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Revista Brasileira de Educação

versión impresa ISSN 1413-2478versión On-line ISSN 1809-449X

Rev. Bras. Educ. vol.24  Rio de Janeiro  2019  Epub 28-Jul-2019

https://doi.org/10.1590/s1413-24782019240029 

Artigos

O homem e a instituição: representações sobre Felipe Tiago Gomes e seu percurso diante da Campanha Nacional de Escolas da Comunidade (1940-2000)

El hombre y la institución: representaciones sobre Felipe Tiago Gomes y su recorrido frente a la Campaña Nacional de Escuelas de la Comunidad (1940-2000)

Ariane dos Reis Duarte I  
http://orcid.org/0000-0001-6599-5393

Luciane Sgarbi Santos Grazziotin I  
http://orcid.org/0000-0001-5648-3855

IUniversidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS, Brasil.


RESUMO

Este artigo volta-se para aspectos da vida de Felipe Tiago Gomes, fundador da mantenedora educacional Campanha Nacional de Escolas da Comunidade (CNEC), criada em 1943. Os objetivos do estudo são identificar o percurso de Felipe no projeto de expansão da mantenedora e analisar as representações sobre o personagem e sua trajetória. A investigação encontra respaldo na história cultural, sobretudo em autores como Dosse e Chartier. O recorte temporal estabelecido considera o fato de que as representações sobre Felipe Tiago Gomes transcendem seu ano de falecimento, 1996. Os procedimentos metodológicos centram-se na história oral e na análise documental histórica, desenvolvida com base em amplo acervo constituído ao longo da pesquisa. Por meio do recorte realizado, foi possível perceber o processo de fusão entre a imagem do fundador e a rede por ele criada, bem como a cristalização das memórias sobre sua trajetória.

PALAVRAS-CHAVE: CNEC; história oral; Felipe Tiago Gomes

RESUMEN

Este artículo trata de aspectos de la vida de Felipe Tiago Gomes, fundador de la mantenedora educativa Campanha Nacional de Escolas da Comunidade (CNEC) (Campaña Nacional de Escuelas de la Comunidad), creada en 1943. Los objetivos del estudio son identificar su recorrido en el proyecto de expansión de la mantenedora y analizar las representaciones sobre el fundador y su trayectoria. La investigación se respalda en la historia cultural, sobre todo en autores como Dosse y Chartier. El recorte temporal establecido considera el hecho de que las representaciones sobre Felipe Tiago Gomes trascienden su año de fallecimiento, 1996. Los procedimientos metodológicos se centran en la historia oral y en el análisis documental histórico, desarrollado a partir del amplio acervo constituido a lo largo de la investigación. A partir del recorte realizado, fue posible percibir el proceso de fusión entre la imagen del fundador y la red por él creada, así como la cristalización de las memorias sobre su trayectoria.

PALABRAS CLAVE: CNEC; historia oral; Felipe Tiago Gomes

ABSTRACT

This paper approaches some aspects of the life of Felipe Tiago Gomes, founder of the Campanha Nacional de Escolas da Comunidade (CNEC) (National Campaign of Community Schools), a national sponsor created in 1943. The study aims at identifying his trajectory in the project of expansion CNEC and analyzing the representations about him and his work. The investigation’s theoretical framework is based on cultural history, mainly on authors such as Dosse and Chartier. The historical period analyzed in this paper considers the fact that the representations of Felipe Tiago Gomes exceed the year of his death, 1996. The methodological procedures are centered on oral history and historical documentary analysis, developed from an ample archive compiled throughout the research. After analyzing these documents, it was possible to perceive a process of fusion between the image of the founder and the entity created by him, as well as a crystallization concerning memories of his trajectory.

KEYWORDS: CNEC; oral history; Felipe Tiago Gomes

INTRODUÇÃO

O presente artigo traz o recorte de um estudo mais amplo, que se encontra em andamento e se situa no campo da história cultural, mais especificamente no âmbito do gênero biográfico. Os estudos nessa perspectiva têm crescido consideravelmente nas últimas décadas. Não se trata de um retorno casual, mas do resultado de uma série de mudanças na configuração da disciplina histórica: “a biografia retornou como objeto da história erudita, refletindo sobre a ação humana dotada de sentido, a intencionalidade, a justificação dos atores, os rastros memoriais” (Dosse, 2012, p. 140). Pensar a lógica individual em detrimento das lógicas estruturais fez o campo biográfico ganhar amplo espaço entre os historiadores. Desse modo, não se trata mais de entender a vida do biografado como “uma totalidade postulada”, pois a abordagem refere-se a uma trajetória “questionada em suas tensões, contradições e diversas cidades de pertenças” (Dosse, 2012, p. 142). A vida do biografado é pensada, então, em uma perspectiva não linear e coerente, apoiada em suas muitas possibilidades.

Assim, o texto se debruça acerca da trajetória de Felipe Tiago Gomes, personagem do estudo em construção, que não se enquadra naquilo que se poderia chamar de uma “biografia histórica clássica”, uma vez que o estudo procura narrar aspectos da vida do indivíduo com base em um amplo corpus documental. Nesse caso, o enfoque está na relação de Felipe com a rede mantenedora de escolas por ele fundada, a Campanha Nacional de Escolas da Comunidade (CNEC), e as representações acerca desse percurso.

Atualmente a CNEC atua em todos os níveis educacionais e está presente em 18 estados do Brasil. O crescimento da rede sempre esteve atrelado às parcerias com o poder público em diferentes esferas, como pode ser visto em Silva (2003). Conforme a autora, durante a década de 1960, a participação de verbas públicas da União e das unidades de federação para a Campanha aumentou consideravelmente (Silva, 2003, p. 113). A força motriz para o estabelecimento dos vínculos que possibilitavam tal expansão era seu próprio fundador, que se dedicou a percorrer o país para divulgar a instituição e convocar a participação de personalidades políticas e de comunidades onde não havia acesso ao ensino ginasial. Por esse motivo, o enfoque dessa produção é a vida desse personagem, que, embora tenha sido a referência da Campanha até seu falecimento em 1996, não teve sua trajetória de vida pesquisada. A mantenedora, pelo contrário, conta com considerável número de estudos sobre sua atuação em diferentes estados do país.1

De antemão, faz-se necessário mencionar que Felipe Tiago Gomes não exerceu a docência em sala de aula, exceto nos primeiros momentos de existência da mantenedora por ele fundada. No entanto, é comum verificar, em diferentes documentações, que, ao se referir a esse personagem, a ele seja atribuída a alcunha “professor”. Isso possivelmente se deve ao fato de sua vinculação à causa educacional, pois o personagem em questão dedicou sua vida a presidir a CNEC e, por meio dela, a defender o acesso ao ensino para os grupos menos abastados. Desse modo, dada a sua atuação no âmbito educacional, uma das formas de apropriação e representação de sua imagem é pela alcunha “professor”. Outro elemento que corrobora essa categorização de professor é o fato de que muitas das escolas da Rede Cenecista não tinham verbas para pagar seus docentes, de modo que mobilizavam a comunidade para que encontrassem pessoas dispostas a lecionar voluntariamente. Para reforçar esse pedido, a mantenedora recorria à história de sua fundação, ressaltando que vários jovens, entre eles Felipe, lecionaram gratuitamente para grupos de estudantes que não tinham ensino ginasial. Assim, fazendo uso do exemplo do fundador da Campanha, as escolas cenecistas foram angariando fundos para sua existência e consolidando-se no cenário educacional.

Feitas essas colocações e esclarecimentos, descrevem-se os objetivos deste texto: compreender a atuação de Felipe Tiago Gomes perante a CNEC, bem como analisar as representações sobre o fundador e sua trajetória. Para isso, o artigo se divide em duas seções: a primeira aborda aspectos de seu percurso perante a Campanha, enquanto a segunda trata das representações sobre sua trajetória durante e após a existência da CNEC.

A VIDA COMO OBJETO DA HISTÓRIA: APORTES TEÓRICOS E CAMINHOS METODOLÓGICOS

Para a construção deste texto, recorreu-se ao acervo documental construído ao longo dos anos de pesquisa sobre a instituição CNEC e seu fundador, de modo que o corpus empírico é composto de narrativas de memória de pessoas próximas a Felipe e de sujeitos que trabalharam na Rede Cenecista. Além dos depoimentos, são utilizados notícias de jornais, livros sobre a CNEC - de autoria de Felipe e de outras pessoas ligadas à instituição -, bem como documentos encontrados no memorial construído em homenagem a Felipe em sua terra natal, a cidade de Picuí, situada no interior do estado da Paraíba, Nordeste do Brasil. Em virtude dos limites quanto à extensão deste artigo, não é possível detalhar o processo de construção do acervo; porém, faz-se necessário dizer que é fruto de um processo de busca de mais de quatro anos, que envolveu diversos deslocamentos e negociações, considerando estudos que foram desenvolvidos anteriormente.

Em relação aos procedimentos metodológicos adotados neste trabalho, é importante pontuar que a história oral é uma metodologia que possibilita ampliar “as possibilidades de interpretação do passado” (Alberti, 2015) e “nos oferece acesso à historicidade das vidas privadas” (Portelli, 2016, p. 17). Como aponta Schmidt (2017), em um estudo de cunho biográfico, a fonte oral viabiliza explorar facetas pouco conhecidas ou inacessíveis em documentos escritos do biografado. De maneira geral, os documentos escritos encontrados ao longo da pesquisa permitem pensar algumas questões sobre Felipe, no entanto revelam elementos de um homem cuja imagem pública foi minuciosamente construída. Assim, por meio das entrevistas realizadas, foi possível conhecer outros ângulos desse personagem - não que a intenção seja desvendar elementos de sua vida particular, ou trazer à tona questões de foro íntimo, mas, sendo a biografia histórica uma perspectiva que entende o indivíduo como ser multifacetado, estudá-lo por diferentes fontes talvez seja uma possibilidade de fugir à lógica evolutiva e linear.

As memórias dos sujeitos entrevistados cristalizam certos aspectos da existência de Felipe, como sua completa abnegação e humildade. Elas não são entendidas como mero depósito de informações, mas como processo contínuo de elaboração e (res)significação (Portelli, 2016). Apesar disso, evidenciam também que os elementos que constituem sua trajetória enquanto homem público não se deram somente ao acaso, foram sim sendo construídos por intermédio da rede de relações pelas quais Felipe circulou.

No Quadro 1, explicitam-se algumas informações sobre os entrevistados e suas entrevistas. Em seguida, é traçado um breve perfil de cada um dos sujeitos da pesquisa, pois entende-se que isso possibilita compreender, com maior clareza, as relações que travam entre si e com a instituição.

Quadro 1 - Relação dos entrevistados. 

Entrevistado Formação Data e local da entrevista Duração da entrevista (min) Número de páginas transcritas
Antônio Carlos Fialho Filosofia Outubro/2014, em sua residência 54 min 11
José Moacir Schreiber Letras/inglês Setembro/2013, ambiente de trabalho 98 min 24
Acácio Dantas Engenharia de minas Julho/2016, ambiente de trabalho 50 min 15
Maria de Lourdes Henriques Pedagogia, mestrado em educação, doutorado em filosofia e ciências da educação Julho/2016, em sua residência 1h40min 26

Fonte: Banco de dados da pesquisa.

Elaboração das autoras.

Na perspectiva da história cultural, entende-se que as memórias que emergem nas narrativas dos indivíduos são representações do passado. Representações são fragmentos atravessados por esquecimentos e silenciamentos; são “esquemas intelectuais incorporados que criam as figuras graças às quais o presente pode adquirir sentido, o outro tornar-se inteligível e o espaço ser decifrado” (Chartier, 1990, p. 17). A representação não é a realidade, mas sim aquilo que cada indivíduo significa sobre a realidade vivida.

Embora Felipe muitas vezes seja lembrado como “professor”, a docência não foi exatamente uma atividade por ele desenvolvida ao longo de sua vida. No entanto, tendo construído sua trajetória na causa educacional, uma das associações feitas à sua imagem é a de professor. Em texto intitulado “O sonho do professor Felipe”, publicado na revista O Cruzeiro, a escritora Rachel de Queiroz enfatiza as ações e a dedicação daquele a quem chama de professor: “é em pessoa, o inventor, o pai, a própria alma da CNEG”2 (“O sonho...”, 1962, p. 114). Entre os fatores que corroboram a construção dessa imagem, pode ser mencionado o recebimento de títulos, tais como “Comendador da Ordem Nacional de Mérito Educacional”, em virtude de sua atuação em prol da educação e da expansão do ensino. Em nota da CNEC em Revista, publicação da mantenedora educacional, é celebrada a concessão do referido título ao fundador da instituição pelo então presidente João Figueiredo (Figura 1).3

Fonte: A chama... (1983, p. 7).

Figura 1 - Nota sobre a homenagem ao fundador da instituição. 

Em uma reflexão sobre os processos sociais que envolvem personagens e instituições, é possível relacionar a construção de representações sobre o fundador e a entidade ao processo de invenção de uma tradição. As invenções das tradições são “[...] um processo de formalização e ritualização, caracterizado por referir-se ao passado, mesmo que apenas por imposição da repetição” (Hobsbawn, 1997, p. 12). Indicam, então, sintomas importantes sobre formas de apropriação de fatos e discursos que devem ser analisados em seus contextos de produção. As representações sobre Felipe, sua relação com a CNEC e os lemas comunitaristas que caracterizam a instituição constituem a criação de uma tradição que atravessou o rumo de ambos. Dessa forma, entende-se que seus percursos estão interligados e que não podem ser dissociados do contexto histórico em que a dita tradição foi edificada. Tal argumento subjaz à discussão que se segue.

O HOMEM E A INSTITUIÇÃO: O PERCURSO INICIAL DE FELIPE TIAGO GOMES E SUA RELAÇÃO COM A CNEC

Felipe Tiago Gomes nasceu em Picuí, Paraíba. De origem humilde e com forte formação católica, ainda jovem mudou-se para Recife, Pernambuco, para concluir seus estudos. Em 1941, ingressou no Ginásio Pernambucano e, no ano seguinte, foi nomeado secretário de Assistência da Casa do Estudante. No ano de 1944, entrou ingressou na Faculdade de Direito de Recife, na qual se formou em 1948. Nesse intervalo de tempo, Felipe Tiago Gomes foi nomeado prefeito de sua cidade natal. Em meio a essas e outras atividades, Felipe iniciou a mobilização de seus colegas estudantes para uma campanha de alfabetização de pessoas carentes e sem acesso ao ensino ginasial.

Um movimento nomeado de Campanha Nacional de Escolas da Comunidade surgiu, portanto, em Recife, no ano de 1943, momento em que o país se encontrava no período conhecido como Estado Novo - regime imposto pelo então presidente Getúlio Vargas - e o mundo vivia os horrores da Segunda Guerra Mundial. Inicialmente, chamava-se Campanha para o Ginasiano Pobre (CGP) e tinha por objetivo possibilitar o funcionamento de escolas em zonas carentes, que não dispusessem de escolas públicas. A instituição surgiu quando Felipe Tiago Gomes, por meio da obra Drama na América Latina, do escritor estadunidense John Gunther,4 tomou conhecimento da experiência de Haya de La Torre, no Peru, e assim mobilizou um grupo de amigos a fim de criar escolas que atendessem os menos favorecidos:

Os fundadores da Campanha não tiveram dinheiro fácil para estudar. Alguns passaram fome para fazer seu curso ginasial [...] E lhes revoltava ver tantos jovens desejosos de outros horizontes culturais e proibidos de alcançá-los por falta de recursos! Filósofos, sociólogos e outros homens de cultura afirmavam não ser justa tão tremenda desigualdade: os filhos dos ricos podiam libertar-se da ignorância; os pobres estavam condenados a permanecer na infraestrutura social. (Gomes, 1980, p. 12)

Pode-se perceber que, para o idealizador da Campanha, a iniciativa representava uma tentativa de romper com o cenário autoritário da época. A libertação dos regimes autoritários e a ascensão social dos menos privilegiados seriam conquistadas por meio da proliferação de escolas. A partir da aceitação da ideia pelo grupo de estudantes, uma série de movimentos foi feita para que a Campanha iniciasse. O primeiro deles foi a publicação de um boletim informativo, no qual os jovens idealizadores expunham suas ideias acerca do levante. Segue excerto da fala de Joel Pontes, um dos idealizadores da Campanha:

Nosso ideal é colaborar na formação de uma consciência nacional, ajudando a eclosão de personalidades e inteligências talvez brilhantes que se perdem por falta de solidariedade nossa. Queremos os ginasianos pobres - pequenos empregados, operários, trabalhadores - todos conscientes dos deveres para com essa sociedade e dos seus também. Queremos homens que não vejam somente as notícias de jornal - mas que saibam opinar, que compreendam a influência delas na vida de todos e o que elas representam como evolução do mundo, como vitória do bem e como motivo de vida. Aceitamos de melhor grado do que se recebêssemos dinheiro, colegas animados pelo nosso ideal. (Gomes, 1980, p. 19)

Nota-se que a intenção dos jovens foi fazer com que a iniciativa fosse aceita e reconhecida pela sociedade, e, para isso, não pouparam esforços e argumentos, de modo que ressaltassem a importância e a nobreza do levante. A educação dos menos favorecidos era por eles vista como a única alternativa para a transformação da realidade - visão esta compartilhada por vários setores da sociedade, os quais defendiam que a construção de uma sociedade mais democrática e justa só poderia se dar por meio da educação. Assim, a criação da Campanha acompanhou uma série de movimentos de massa que viam na difusão do acesso à educação de adultos e crianças o rompimento com os problemas enfrentados pela sociedade:

Essas campanhas de massa desenvolveram-se através de intensa propaganda em favor da difusão do ensino e da criação de escolas para adultos e crianças, mantidas pelas contribuições dos sócios, vendas de selos, festivais e doações. Possuíam uma concepção filantrópica e humanitarista da educação, apoiadas na visão de que a educação era a causa de todos os problemas. (Silva, 2001, p. 98)

A divulgação da CGP deu-se por meio de boletins informativos e de uma série de artigos publicados em jornais da região, ao longo do ano de 1943. Aos poucos, a campanha dos educandários gratuitos foi expandindo-se por outros estados do Nordeste. As divulgações do movimento eram realizadas por meio de doações de colaboradores, organização de espetáculos teatrais com artistas amadores e solicitações de financiamento no poder público. Em 1947, Felipe Tiago Gomes conseguiu aproximar-se do então ministro da Educação do governo de Eurico Gaspar Dutra, presidente do Brasil entre os anos de 1946 e 1950, para pedir apoio à causa. A partir de articulações como essa, a Campanha foi sendo divulgada e tornou-se conhecida, fator que facilitou a obtenção de fundos para seu financiamento (Figura 2).

Fonte: Campanha... (1948a); Campanha... (1948b).

Figura 2 - Notas sobre a expansão da Campanha liderada por Felipe Tiago Gomes. 

Em 1948, já com o nome de Campanha dos Educandários Gratuitos, foi realizado o primeiro congresso da entidade: “Lancei a ideia da realização de um congresso de representantes estaduais, para darmos amplitude nacional ao nosso movimento, de acordo com a recomendação do Prof. Lourenço Filho” (Gomes, 1980, p. 64). Tais congressos passariam a ser organizados periodicamente, a fim de reforçar os ideais da Campanha e sua relação com as escolas. Cabe ressaltar também que o professor Lourenço Filho,5 precursor da Escola Nova e incentivador da educação de adultos, foi um grande incentivador da Campanha de Felipe.

O livro de autoria de Felipe, intitulado História da Campanha Nacional de Escolas da Comunidade, entre outras obras, ajudou na construção de sua biografia, elencando as motivações que permearam a criação da CNEC. Assim, registros como esse auxiliam na compreensão acerca das representações sobre Felipe e sua trajetória. Em seus escritos, ao mencionar os motivos que o levaram à criação de uma Campanha para oferecer escola gratuita, Gomes (1980) faz referência à infância pobre, à dificuldade em estudar e ao momento histórico que o país e o mundo viviam:

[...] Estávamos em plena Segunda Grande Guerra. Os estudantes gritavam por liberdade, aproveitando comícios contra Alemanha, Japão e Itália. O Recife, às escuras por medidas de segurança, era a cidade que mais sofria as consequências da ditadura. Aqueles jovens presenciavam o choque de ideias e também dele participavam. Mas, da angústia que martirizava o grupo, uma luz de esperança foi acesa. Que adiantava a libertação do mundo, se o Brasil continuava escravo? Daí a resolução daqueles moços em busca de uma liberdade que não brotasse de trincheiras materiais, mas do funcionamento de milhares de escolas. (Gomes, 1980, p. 12)

Dessa forma, na conjuntura então vigente, a educação aparecia como meio libertador dos regimes autoritários que vigoravam no Brasil e em alguns países do mundo.

Felipe Tiago Gomes nunca se casou nem teve filhos, tendo dedicado toda a sua vida à CNEC. Na concepção dos professores Antônio Carlos Fialho e Moacir Schreiber, a CNEC, sob a administração de Gomes, era permeada por uma postura idealista em relação à educação, seguindo assim o perfil de seu fundador:

Quando ele era vivo, a CNEC, vamos dizer, tinha um perfil, uma filosofia, uma forte filosofia eu diria - eu que sou mais antigo na casa - a filosofia assim “idealista”, de manter a todo custo a escola. [...] O fundador, que eu saiba, nunca se casou, pelo menos nunca ouvi falar que o Dr. Felipe tivesse esposa, suponho que ele abraçou essa causa e casou com a causa. Daí isso foi se espalhando por todo o Brasil, havia CNEC em todos os estados do Brasil, escolas assim pequenas que nem a nossa. Enquanto ele era vivo foi assim, a coisa mais baseada no ideal, de “vamos manter”... (Schreiber, entrevista, 2013)

O professor Antônio Carlos Fialho (2013), em entrevista, também fez menção a essa postura idealista do fundador da CNEC: “O Felipe Tiago Gomes foi um grande idealista. Acho que ele era advogado em Pernambuco e ele pensou com um grupo de jovens em fundar uma escola para o ginasiano pobre. Até queria uma escola completamente gratuita, da comunidade” (Figura 3).

Fonte: Você conhece... (2008).

Figura 3 - Felipe Tiago Gomes6  

Na obra de Felipe Tiago Gomes, é possível perceber sua intencionalidade em eternizar sua obra e feitos. Nesse sentido, existe uma tentativa de arquivar a própria vida7 (Artiéres, 1998). Na obra aqui citada, em que o fundador narra a história da Campanha, é possível perceber a ênfase em sua trajetória pessoal perante esse ideal, pois Felipe fala de sua abnegação e determinação, ressaltando a importância de levar esses valores às próximas gerações:

É necessário que os milhares de jovens alunos cenecistas conheçam como surgiu a Campanha Nacional de Escolas da Comunidade. As suas lutas, os sacrifícios dos seus fundadores e a abnegação dos seus dirigentes, tudo isto deve constituir-se em motivo de orgulho para os moços que frequentam as nossas escolas. É preciso ainda que o ânimo de combatividade daqueles dias não decaia ao nível das coisas comuns, das acomodações fáceis. O nosso passado de lutas e de vitórias não pode ser substituído pela rotina tão cômoda aos indivíduos de índole contrária a aventuras [...] Espero que a minha contribuição à HISTÓRIA DA CNEC seja encarada pelos leitores como narração despretensiosa [...] Quis apenas narrar os fatos, muitos dos quais inteiramente ligados à minha pessoa. Daí o personalismo que aparece frequentemente nestas páginas. (Gomes, 1980, p. 11)

No livro CNEC: a força de um ideal (1986), Felipe Tiago Gomes elenca as falas proferidas nas assembleias anuais da CNEC em diferentes estados. Os eventos contam com a participação do fundador da Campanha e também de políticos locais. Todas as exposições orais dissertam sobre a obra de Felipe Tiago Gomes, sua abnegação e perseverança e também sobre a importância da Rede Cenecista para a educação brasileira. Segue um excerto da fala do deputado pernambucano Severino Otávio acerca do fundador:

Tenho profunda admiração por aqueles que dedicam o melhor de suas vidas à nobre tarefa de formar gerações. Posso lhes dizer que Felipe Tiago Gomes, com destemor dos visionários e a persistência de um apóstolo, colocou seu nome na galeria dos grandes educadores brasileiros. (Gomes, 1986, p. 81)

Ao longo dos anos, a Campanha seguiu expandindo-se e passou a exercer importante papel no cenário educacional da época, em que os índices de analfabetismo eram altos e o número de escolas, insuficiente. Ao longo desse período, Felipe Tiago Gomes seguia fazendo viagens para divulgar a Campanha e tentar estabelecer parcerias com o poder público. No fim da década de 1950, durante o mandato de Juscelino Kubitschek, a Campanha passou a integrar o plano desenvolvimentista do governo - Sarah Luísa Lemos Kubitschek, primeira-dama do país, foi presidente da Campanha por vários anos. Nesse contexto, a lei n. 3.557, de maio de 1959, decretava que a Campanha passaria a receber subvenção do Ministério da Educação. O valor foi estipulado conforme o número de turmas das unidades escolares mantidas pela entidade, e à mantenedora cabia enviar relatórios ao Ministério da Educação informando o número de turmas, alunos e séries. Os documentos deveriam ser atestados pelo órgão responsável pelo ensino estadual. Dessa forma, conforme explica Silva (2001, p. 113),

A Campanha foi desenvolvendo as suas atividades na perspectiva do discurso veiculado pelo Estado. A articulação das finalidades e ações da CNEG à política desenvolvimentista pode ser considerada como um fator para a sua expansão, tendo o financiamento do Estado para tal. Desde sua fundação, 1959 é o ano de sua maior expansão, com a criação de 120 escolas.

Como é possível perceber, a expansão da rede se deu por meio de parcerias com personalidades, entre elas a já mencionada Sara Kubitschek; Benjamin Sodré, almirante da Marinha; e Marly Macieira Sarney, esposa do ex-presidente José Sarney; entre outros personagens que ocupavam cargo de destaque no cenário político à época. Essas pessoas, por muitos anos, estiveram ligadas à CNEC por meio da presidência de honra da instituição e atuaram no intermédio com o poder público para aquisição de verbas para a mantenedora. Observam-se, então, as relações de poder estabelecidas entre esses indivíduos: na perspectiva foucaultiana, “as relações de poder são um conjunto de ações que têm por objeto outras ações possíveis, operam sobre um campo de possibilidades: induzem, separam. Facilitam, dificultam, estendem, limitam, impedem” (Castro, 2016, p. 327). Nesse sentido, ao exercerem sua influência, os envolvidos fortaleciam a causa e sua própria imagem enquanto figuras públicas.

Quanto à estrutura hierárquica da instituição, esta era organizada da seguinte forma: presidência nacional, diretoria nacional e membros, que constituíam uma espécie de conselho. Conforme pode ser conferido em Silva (2001), de maneira geral, todos esses cargos eram ocupados por deputados ou professores. Em nível regional, existiam o “setor estadual” e o “setor local” - este último era composto de membros da comunidade na qual a CNEC estava inserida e sua atuação era maneira voluntária. Cabe frisar que a estrutura hierárquica da instituição sofreu diversas alterações ao longo dos anos, sendo as citadas suas características gerais.

Na década de 1960, a Campanha seguiu expandindo-se e, por conta disso, revendo questões referentes a seu estatuto. Segundo Silva (2001), entre os anos de 1960 e 1961, a mantenedora criou 105 novas escolas, totalizando 39.000 alunos. Nesse momento, ainda conforme a autora, a entidade intensificava seu caráter comunitarista. Durante tal período, a mantenedora adotou uma postura anti-individualismo, pregando, assim, a mobilização da comunidade local nas questões que envolvessem as escolas. Nesse sentido, é importante frisar que a Campanha não tomava a iniciativa de abrir a escola: o levante devia partir da comunidade e, assim, a entidade auxiliava nas questões burocráticas para a abertura e, posteriormente, dava respaldo às questões administrativas. Para que esse movimento fluísse, era preciso reforçar o lema idealista e comunitário, que encontrava fundamentação nas ações do seu fundador.

Entre os documentos que possibilitam verificar a divulgação dos ideais da CNEC, pode-se destacar o conteúdo dos hinos da entidade: a Canção Cenecista, o Hino Cenecista e Lindo é. No conteúdo das composições, é possível identificar a concepção da Campanha em relação à educação. As canções possuem certo tom edificante, afirmando a transformação por meio da associação entre idealismo e trabalho. No Quadro 2(t2), seguem excertos das composições:

Quadro 2 - Excertos de hinos da CNEC. 

Canção cenecista Hino Cenecista Lindo é

  • É uma ideia que marcha

  • E que se espalha no nosso Brasil,

  • É uma semente lançada e frutificada a se expandir

  • Gente ajudando a gente,

  • Todos a construir

  • Amplas estradas, para os caminhos de um mundo melhor

  • Isto é C-N-E-C

  • Trabalho, idealismo,

  • Isto é C-N-E-C

  • É todo um país a despertar

  • Venha também participar

  • E muito obrigado, amigo.

  • Tu que tens mais riso e menos pranto.

  • Tu que tens mais paz e menos luta.

  • Fica em silêncio um minuto só;

  • Para e escuta:

  • Uma luz que a Escola Irradia.

  • E afugenta da treva o pavor.

  • Há-de o povo lutar e vencer

  • Sem temor! Sem temor!

  • Amigo, avante!

  • Na falange Cenecista

  • Ocupa o teu lugar

  • Pelo Brasil,

  • Com fervor de idealista:

  • TRABALHAR!

  • Lindo é,

  • Lutarmos por um mundo bem melhor

  • É fazer

  • Uma canção feliz em tom maior

  • Lindo é estudar

  • Tendo no peito a fibra de sempre vencer

  • É ter na alma a satisfação de ser Cenecista de coração.

Fonte: Hinos... (2009).

Elaboração das autoras.

Em uma breve análise, é possível perceber a referência ao ato de trabalhar pela expansão da Campanha e fazer dela uma causa pela qual se luta diariamente. Da mesma forma, os hinos reforçam a ideia de que a união entre os membros da escola era necessária para difundir e consolidar o movimento. Também chama atenção, na letra do Hino Cenecista, o excerto em que o autor se refere à escola como um órgão que irradia luz e “afugenta da treva o pavor”. Nesse trecho, a autor parece referir-se às escolas cenecistas como se as entidades possuíssem certo caráter sagrado e fossem, assim, uma opção para um mundo melhor. Aliás, nas três composições, fica explícito que a dedicação à causa e a força de trabalho nela empregada construiriam um “mundo melhor”. Sendo assim, ser cenecista equivaleria a lutar por um mundo melhor. Nessa direção, para a entrevistada Maria de Lourdes Henriques, que foi professora da CNEC e trabalhou com Felipe, o cenecismo

[...] é a doutrina que orienta a vida dos cenecistas. Ser cenecista é participar ativamente das atividades da CNEC com alegria e solidariedade. Na minha concepção, a CNEC é uma filosofia educacional que realmente é transmitida por Felipe Tiago Gomes e, à medida que a pessoa vai recebendo em doses homeopáticas, vai se fortificando e se tornando um cenecista [...] O cenecismo é isso: uma doutrina que você vai recebendo em doses homeopáticas e quando ela penetra no seu corpo, você jamais vai deixar de ser cenecista. Você passa a sofrer com o que acontece com a CNEC, as injustiças e tudo mais. (Henriques, entrevista, 2016)

Observa-se então que o lema “cenecismo” encontra respaldo naquele que fora um de seus criadores. A abnegação e a dedicação de Felipe eram os ingredientes que moviam as ações em prol da Campanha e serviam de exemplo àqueles que se aproximassem do movimento. Assim, a instituição passou a assumir as características benevolentes de seu fundador e, à medida que se expandiu em número de escolas, cresceu também o (re)conhecimento dos feitos de Felipe, de modo que um não pôde dissociar-se do outro.

Mesmo com esse discurso, conforme Silva (2001), para se manter, a Campanha sempre procurou adequar-se aos princípios do governo federal, sendo o período investigado neste trabalho o de maior crescimento do número de escolas e alunos da Rede Cenecista. Nesse contexto, o poder público concedia prédios e/ou bolsas de estudo em localidades onde não havia escolas públicas para todos. Diante disso, a CNEC investiu na implantação de cursos técnicos e de oficinas nas escolas, alinhando suas ações aos projetos do regime militar (Figura 4).

Fonte: Felipe... (2009).

Figura 4 - Felipe Tiago Gomes (à esquerda), o presidente militar Ernesto Geisel (ao centro) e o almirante da Marinha Benjamin Sodré (à direita), década de 1970. 

Os subsídios provenientes da relação com o poder público - no âmbito federal e, a partir dos anos 1960, também no estadual - mantinham boa parte da receita da Campanha. Ao mesmo tempo, a contribuição financeira mensal da comunidade na qual as escolas eram construídas passou a ser institucionalizada. Assim, membros da comunidade, por meio do órgão interno chamado setor local, deveriam contribuir com valor previamente estipulado. Além disso, o terreno, o prédio e a manutenção da escola ficavam a cargo da comunidade. Em virtude dessas modificações, nos congressos cenecistas realizados no fim da década de 1960, a Campanha trocou de nome e passou a se chamar Campanha Nacional de Escolas da Comunidade, nomenclatura que prevalece até hoje.

Conforme Silva (2003), na década de 1940 o governo brasileiro adotou uma metodologia de trabalho intitulada desenvolvimento de comunidade, por meio da qual foram arquitetadas as campanhas de alfabetização e escolarização de jovens e adultos.8 A metodologia tinha por objetivo evitar o contato da população com o comunismo e instigar as camadas populares a engajarem-se em serviços para seu bem-estar e nos programas de governo. Tal metodologia foi institucionalizada pela Organização das Nações Unidas (ONU), por intermédio da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), na década de 1950,9 a fim de evitar a propagação do comunismo e manter os países periféricos alinhados e sob certa dependência.

No Brasil, apesar de o trabalho com a comunidade ter surgido na década de 1940, sua disseminação, como prática, verifica-se apenas na década de 1950, ligada à perspectiva de solução para os problemas sociais e de valorização da comunidade como unidade básica de desenvolvimento. A educação de adultos e a problemática do subdesenvolvimento do meio rural são as principais questões que buscam, no DC [desenvolvimento de comunidade], uma estratégia de superação [...]. (Silva, 2003, p. 24)

Entendemos que a Campanha iniciada por Felipe incorpora essa perspectiva da referida metodologia, associando-a à postura abnegada de seu fundador e recorrendo às comunidades para consolidar os espaços de ensino mantidos pela CNEC. Na concepção da referida metodologia, o progresso e a reforma social viriam da integração e cooperação voluntária, e “os agentes desse processo seriam as lideranças que deveriam estimular a mudança através de seus próprios exemplos, das realizações da sua própria vida e das relações que estabeleceriam com os outros” (Silva, 2003, p. 23). Assim como a CNEC a perspectiva da metodologia do desenvolvimento de comunidade era apostar na força dos grupos sociais para fazer reparos em sua realidade, não tendo como objetivo reformas estruturais.

A partir da metade da década de 1970, a CNEC enfrentou dificuldades para manter-se, pois as verbas recebidas do governo federal não eram suficientes, as comunidades tinham dificuldades em manter as escolas e os governos estaduais começavam a diminuir a compra de bolsas de estudo. A mantenedora então iniciou um processo de diversificação em suas atividades, desenvolvendo cursos profissionalizantes em diferentes áreas e atuando ainda no ensino supletivo. A partir da década de 1980, o número de escolas da CNEC decresceu em virtude da estatização do ensino, quando o país se encontrava em um período de redemocratização, após o fim da ditadura civil-militar. A queda no número de escolas cenecistas seguiu ao longo dos anos de 1990.

Analisando a trajetória da Campanha, conforme documentos pesquisados, e confrontando-a com as narrativas dos sujeitos aqui entrevistados, é possível perceber que o discurso baseado no idealismo e na comunitariedade é construído tomando como base o seu fundador. O próprio, em vida, fez questão de ressaltar sua dedicação e abnegação, utilizando-as como elementos propulsores das ações para manutenção das escolas, que necessitavam de subsídios para manter-se. Para difundir tais princípios, a mantenedora organizava congressos anuais, dos quais participavam membros das escolas da Rede Cenecista de todo país, autoridades e o fundador da Campanha. O discurso comunitário e idealista da CNEC se contrapõe ao fato de que esta, ao longo das décadas, adaptou seus ideais às medidas do governo federal, ambicionando ampliar o número de escolas em terrenos e prédios construídos pela comunidade, pois estes passavam a pertencer à mantenedora. Ou seja, ao mesmo tempo em que a instituição pregava a força da comunidade para suprir a ausência do Estado, atuava com ele para garantir sua existência.

IDEALISTA E VISIONÁRIO: REPRESENTAÇÕES SOBRE A VIDA E OBRA DE FELIPE TIAGO GOMES

Nesta seção, o texto trata das representações e formas de apropriação sobre a imagem de Felipe Tiago Gomes. Nesse caso, foram priorizadas narrativas de memória de pessoas próximas do personagem, que conviveram e trabalharam com ele durante sua gestão frente à CNEC.

O entrevistado Acácio Dantas foi um dos “escolhidos” de Felipe, ou seja, alguém selecionado pelo fundador da Campanha para levar seus projetos adiante. Para Acácio, ele tinha um “olho clínico” e detectava indivíduos com potencial para gerenciar projetos ligados à Rede Cenecista. Formado em engenharia de minas, logo após ter se graduado, foi convidado por Felipe para coordenar o projeto de mineração, vinculado a outro mais amplo, o Fundo para o desenvolvimento de Picuí (FUNDEPI). Para isso, ele passou a circular em Brasília, em audiências com ministros e demais autoridades, em busca de financiamento:

Eu era jovem quando terminei meu curso com 23, 24 anos, então com 25 anos lá estava eu dentro dos ministérios com audiência com o Ministério de Minas e Energia, e paralelamente a esse projeto, enquanto ele estava lá tramitando nós fizemos um trabalho muito bonito aqui em Picuí [...] a Universidade Federal da Paraíba montou aqui em Picuí uma, um centro de formação de lapidários e de formação de artesãos minerais, justamente porque aqui a gente tem alguns minerais que se prestam tanto para aproveitar como artesanato mineral como para fazer gemas, uma água marinha, turmalina, ônix, ametista. E aí, nós montamos uma estrutura e, justamente aproveitando essa base da Universidade Federal da Paraíba aqui em Picuí, fizemos uma ampliação e formamos muitos lapidários, era uma coisa muito bonita. (Dantas, entrevista, 2016)

Segundo Acácio, o projeto enfrentou muitos problemas, que iam desde a aceitação por parte dos proprietários das terras a serem exploradas até a falta de recursos financeiros. Embora muitas áreas tenham sido requeridas para o projeto, os conflitos gerados por esse movimento e a falta de recursos impediram seu prosseguimento:

Era um projeto de mineração, mas com vistas à valorização do trabalhador, do garimpeiro do pequeno minerador. E a gente sabe que aí você confronta aí com a realidade, que é uma atividade que grandes vultos tomam conta, que bancam o preço e fica uma coisa assim meio difícil de você mudar essa lógica de extração e de vencer mercado. Então foi, eu tive que me afastar, porque a coisa começou a realmente não... a gente não viu a perspectiva, não havia nenhuma perspectiva realmente dos recursos para fazer esse projeto como a gente concebia, como a gente concebeu e via, seria muito importante para região. (Dantas, entrevista, 2016)

A menção a conflitos internos da cidade permeia as recordações de Acácio - não só no que diz respeito aos projetos do FUNDEPI, mas também no que concerne a questões políticas. Esse apadrinhamento causava polêmica na cidade e fazia com que Felipe encontrasse grupos de resistência aos seus planos para Picuí:

[...] nós tínhamos aqui um prefeito, fazia muitos anos que mandava, e longe de eu estar querendo incriminar, de jeito nenhum... A própria cultura leva para isso. Era um negócio meio de coronel, município muito atrasado, e a pessoa sem muita visão, sem muita expectativa, assim, de perspectiva de desenvolver o município. Com certeza ele ficava muito angustiado com tudo isso, querendo fazer o município... Imagina, o potencial que ele tinha, não era como um parlamentar que bota uma emenda parlamentar lá para trazer recurso para o município, era a capacidade que ele tinha de mobilização e de ir lá no poder, e ele via todo o potencial que ele tinha desenvolvido aqui, a terra dele e... só que o comando político aqui, muito arcaico, muito atrasado, então segurava. (Dantas, entrevista, 2016)

Nas memórias de Acácio, Felipe é tido como um visionário, alguém que enxergava além de sua realidade e que, em razão disso, queria agir para modificá-la. No entanto, ele não entrava no jogo político pessoalmente, mas por meio de seus escolhidos, como uma tentativa de driblar essas resistências e articular o cenário a seu favor. O próprio Acácio foi vereador de Picuí por influência de Felipe. Ele foi eleito por meio do apoio da estrutura da CNEC e, por isso, foi o terceiro vereador mais votado. Acácio conta ter sentido de imediato a resistência em torno das ações promovidas pelos projetos de Felipe, pois, segundo ele, diziam que “Dr. Felipe quer tomar conta...”. Os planos o fundador da CNEC incluíam a candidatura do entrevistado a prefeito de Picuí, de modo que deviam trabalhar em prol disso. No entanto, segundo Acácio, a classe política não aceitava essa possibilidade. Observa-se que, em vida, Felipe não conseguiu eleger um de seus escolhidos para prefeito da cidade. Porém, anos após sua morte, dois de seus escolhidos estiveram à frente da gestão municipal.

Elementos como esses possibilitam pensar na dimensão das ações individuais, no sentido de que, mesmo após sua morte, a figura de Felipe influencia nos atos desses sujeitos que fizeram parte de sua história. Não se trata de atribuir isso à excepcionalidade de Felipe, de sua trajetória e de seus seguidores, mas sim de entender que as representações engendradas em torno desse indivíduo mobilizam as ações daqueles que o conheceram.

No caso da professora Maria de Lourdes Henriques, a relação com Felipe é mais próxima e de mais tempo de convivência. O avô da professora Lourdes Henriques era irmão de Ana Maria Gomes, mãe de Felipe. Além do parentesco, a professora atuou muitos anos na CNEC em diferentes funções; logo, seu contato com Felipe se deu por um longo período, em diferentes situações. Em virtude do parentesco, Felipe frequentava a casa da professora, e é possível perceber que os vínculos familiares são significativos nas rememorações dela.

Suas memórias recaem sobre a devoção e humildade do fundador, que, segundo ela, não fazia nenhum tipo de distinção entre as pessoas dos diferentes meios pelos quais circulava, mas que adotava diferentes comportamentos, de acordo com seu interlocutor:

Ele não era orgulhoso, era muito humilde, muito devoto de São Francisco de Assis, por isso que vocês viram lá [no memorial em Picuí] a imagem de São Francisco. Era de uma humildade muito grande. O motorista comia na mesa com ele. Era, assim, uma pessoa sem nada de etiqueta. Não tinha reserva nenhuma. Agora, na hora de receber deputados, senadores, ele tratava a todos muito bem, de forma mais formal. (Henriques, entrevista, 2016)

As narrativas permitem perceber a admiração pelo personagem e pela obra para a qual ele dedicou sua vida. Além disso, o olhar atento para o conteúdo das narrativas possibilita ver as táticas empregadas por Felipe ao longo de sua trajetória: fazia discursos públicos em diversas ocasiões, relacionava-se com políticos e escolhia pontualmente aqueles que serviriam para seus propósitos. Isso não significa que ele tenha construído linearmente e coerentemente sua trajetória, ao contrário, revela as características humanas de um personagem que, durante e após sua existência, é tratado como um mito, um exemplo a ser seguido e admirado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para se compreender a possibilidade de criação de uma rede de escolas com as características da CNEC e as dimensões que ela assumiu, é, sem dúvida, importante uma imersão no cenário político e social do Brasil entre os anos de 1940 e 1990. Porém, levar em consideração somente essa face do contexto histórico impediria uma reflexão com outro grau de aprofundamento sobre a abrangência da CNEC e a rede de significados que ela assume em nível nacional. Para além de um juízo de valor sobre classe social, opressores e oprimidos, estão as relações de poder em nível micro, as táticas utilizadas para empreender a criação da Campanha, o caráter multifacetado desse processo que articula o personagem de Felipe Tiago Gomes à sua comunidade de origem e a sua percepção idealista e ideológica com relação à educação.

Este estudo, com caráter biográfico, constrói uma memória - uma entre tantas que poderiam emergir por meio de documentos escritos, iconográficos, documentos pessoais ou oficiais e memórias daqueles que fizeram parte da vida de Felipe. Esse conjunto de fontes permitiu uma imersão em uma faceta específica da história da educação do Brasil, em que se articulam, de forma indelével, uma pessoa e seus atos no percurso de uma instituição. É o itinerário de uma vida imbricada na trajetória daquilo que fora chamado de um “ideal”, conforme definido por Felipe em uma de suas publicações (Gomes, 1986). Tal ideal, aliado a diferentes redes de relações e interesses, colabora para a edificação de uma mantenedora educacional presente em quase todo o país, cujo fundador, também chamado de “o homem que criou 2000 escolas”, foi tomado como referência de sucesso, determinação e abnegação.

O altruísmo de Felipe é uma das características marcantes nas representações sobre o personagem. Esse aspecto manifesta-se não só quando são feitas menções à vida pessoal de nosso biografado - como o fato de nunca ter se casado e tido filhos -, mas também com relação às articulações políticas travadas por ele. Ao longo de sua vida, Felipe manteve redes de contato com diferentes personalidades políticas, em relações que foram consideradas estritamente profissionais, e não como correspondentes a um posicionamento ideológico ou partidário do fundador. Nesse sentido, sua abnegação seria transcendente a qualquer amostra de individualidade - ou seja, em prol da CNEC, ele se relacionava com toda e qualquer pessoa que estivesse disposta a contribuir com a Campanha. No entanto, não foi possível encontrar elementos que apontassem para a ausência de posicionamento político em nosso personagem. Ao contrário, todas as relações que podemos constatar até o momento apontam para os mesmos partidos e seus respectivos representantes. Portanto, entendemos que essa coerência e linearidade integram as representações que mitificam o fundador da CNEC.

Um dos objetivos deste estudo é analisar as representações sobre o biografado, e, nesse intuito, um dos aspectos que nos chama atenção é a construção de um personagem que se torna conhecido como professor, visto que as memórias verbalizam e reforçam esse título. Professor, nesse contexto, parece uma designação para além da profissão daquele que ministra aulas, adquirindo uma dimensão mais ampla, entendida na perspectiva daquele que ensina a vida, configurando-se em um exemplo a ser seguido. Ainda, nesse sentindo, os lemas da CNEC têm como ponto de partida as representações sobre a figura de seu fundador, uma vez que seu conteúdo recorre a passagens da vida de Felipe que o caracterizam como um visionário, abnegado, comprometido com comunidades que careciam de investimentos em educação.

Finalmente, cabe frisar que a pesquisa sobre o personagem aqui apresentado encontra-se em andamento, de modo que os apontamentos ora discutidos integrarão um estudo mais amplo, o qual aprofundará essas e outras facetas da vida de Felipe Tiago Gomes.

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1Para este estudo fizemos uma interlocução com as seguintes pesquisas sobre a CNEC: Azevedo (2007); Ferrer (2010); Santos (2007); Silva (2010); Silva (2001), trabalho que posteriormente foi publicado em formato de livro, o qual é mencionado neste estudo.

2Ao longo dos anos, a CNEC passou por modificações em sua nomenclatura, como poderá ser observado no decorrer do texto.

3João Batista de Oliveira Figueiredo foi o último presidente do regime militar do Brasil, vigente entre os anos de 1964 e 1985. Seu mandato se deu entre os anos de 1979 e 1985, período caracterizado por gradativa abertura política. Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/joao-batista-de-oliveira-figueiredo. Acesso em: 14 fev. 2018.

4John Gunther, jornalista estadunidense, viajou por mais de 20 países da América Latina. Suas observações são descritas na obra referenciada. Ao longo de sua jornada, o autor entrevista diferentes pessoas e narra suas percepções sobre o que ouviu. Cada país visitado ganhou espaço no livro, no qual o autor discute sua organização política e social. No caso do Peru, Gunther se detém em falar de Victor Raúl Haya de La Torre, que, segundo ele, “converteu-se em chefe revolucionário da noite para o dia” (Gunther, 1943, p. 216). O autor dedica algumas páginas da obra para falar de Haya de La Torre, a quem descreve como “um idealista de aspirações de vasto alcance” (Gunther, 1943, p. 227). Em 1921, o referido personagem, então estudante, fundou em Lima a Universidade Popular, em que os jovens estudantes davam aulas gratuitas para aquelas pessoas que não podiam frequentar escolas. O lema do projeto era “Viva a Cultura! Viva a Escola!”, que se expandiu rapidamente. Em diferentes oportunidades, Felipe declara sua admiração pelas ações do peruano, que ao longo de sua trajetória chegou à presidência do Peru. Nas ocasiões, Haya de La Torre aparece como uma das grandes influências de sua vida. Em 1962, Felipe o organiza uma recepção em homenagem ao político e o leva para conhecer a sede da mantenedora educacional no Rio de Janeiro. Na ocasião, Haya de La Torre teria dito que “tal medida deveria ser adotada em todos os países da América Latina e em outras nações do chamado grupo subdesenvolvido”. Informação conforme publicação do jornal Diário do Paraná do dia 29 de setembro de 1962 (s/p.), com o título Haya de La Torre foi homenageado pelo CNEG e <Associados> de Minas.

5Lourenço Filho, professor que exerceu diferentes cargos em órgãos relacionados à educação no Brasil. Foi um dos responsáveis pela difusão do movimento intitulado Escola Nova, que, inspirado no pensamento do filósofo John Dewey, promoveu renovações na concepção do ensino a ser ministrado nas escolas.

6Segundo o professor Moacir Schreiber, todas as escolas cenecistas possuíam um retrato do fundador da mantenedora.

7 Artiéres (1998, p. 11) diz que “[...] não arquivamos nossas vidas, não pomos nossas vidas em conserva de qualquer maneira; não guardamos todas as maçãs da nossa cesta pessoal; fazemos um acordo com a realidade, manipulamos a existência: omitimos, rasuramos, riscamos, sublinhamos, damos destaque a certas passagens [...] Numa autobiografia, a prática mais acabada desse arquivamento, não só escolhemos alguns acontecimentos, como os ordenamos numa narrativa; a escolha e a classificação dos acontecimentos determinam o sentido que desejamos dar às nossas vidas”.

8A Campanha de Educação de Adolescentes e Adultos (CEAA) foi criada em 1947 durante o governo de Eurico Gaspar Dutra, com enfoque no meio rural. Mais tarde, entre os anos de 1958 a 1961, acontece a Campanha Nacional do Analfabetismo (CNEA). Essa campanha se deteve em ampliar a rede escolar primária, expandir o nível de escolaridade e promover a ação comunitária.

9Durante o período chamado Guerra Fria, as potências que estavam à frente do conflito, Estados Unidos e União Soviética, mobilizaram uma série de ações para fortalecer seus domínios e visão ideológica. Foi então promovida uma série de intervenções que visava conter a ameaça representada pelo rival. No entanto, teóricos como Hobsbawn (1995, p. 224) e Chomsky (1996) apontam que o conflito foi usado por ambas as partes envolvidas para justificar suas ações sobre sua própria população e países alinhados. Para Chomsky (1996, p. 104), a Guerra Fria “foi uma espécie de acordo tácito entre a União Soviética e os Estados Unidos, sob o qual os EUA conduziram suas guerras contra o Terceiro Mundo e controlaram seus aliados na Europa, enquanto os governantes soviéticos mantiveram com garras de aço seu próprio império interno e seus satélites na Europa Oriental - cada lado utilizando o outro para justificar a repressão e a violência em seu próprio domínio”. Assim, em alguma medida, segmentos da sociedade como a educação foram atravessados por tais movimentos.

Recebido: 30 de Março de 2018; Aceito: 14 de Fevereiro de 2019

Ariane dos Reis Duarte é doutoranda em educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Professora do Colégio Luterano Concórdia. E-mail: ariane.reisd@gmail.com

Luciane Sgarbi Santos Grazziotin é doutora em educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Professora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). E-mail: lusgarbi@terra.com.br

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