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Revista Brasileira de Educação

versión impresa ISSN 1413-2478versión On-line ISSN 1809-449X

Rev. Bras. Educ. vol.24  Rio de Janeiro  2019  Epub 28-Jul-2019

https://doi.org/10.1590/s1413-24782019240030 

Artigos

O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro na Educação: caminhos, cruzamentos e disputas (1900-1922)

EL INSTITUTO HISTÓRICO Y GEOGRÁFICO BRASILEÑO EN LA EDUCACIÓN: CAMINOS, CRUZAMIENTOS Y DISPUTAS (1900-1922)

IUniversidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.


RESUMO

Este artigo apresenta análises e alguns dos resultados de pesquisa sobre as contribuições do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) para a educação. Os temas discutidos estão relacionados aos caminhos para a construção de conhecimentos sobre a história da educação no Brasil trilhados pelo instituto; à circulação institucional de alguns sócios, que também compunham os quadros funcionais de outras instituições educacionais e de ensino; e aos trabalhos para a criação de cursos e da Academia de Altos Estudos. Nesses termos, propomos considerar o IHGB como um lugar de poder presente e atuante nos conflitos políticos pertencentes ao campo educacional e como instituição produtora de políticas e projetos educacionais nas primeiras décadas do século XX. Como fonte para essas análises e argumentações, foram utilizadas publicações e atas da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, bem como documentos de arquivos das instituições relacionadas e periódicos existentes ao longo do período do recorte estudado.

PALAVRAS-CHAVE: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro; história da educação no Brasil; projetos educacionais

RESUMEN

Este artículo presenta análisis y algunos de los resultados de investigación sobre las contribuciones del Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (Instituto Histórico y Geográfico Brasileño - IHGB) para la educación. Los temas discutidos están relacionados a los caminos para la construcción de conocimientos sobre la historia de la educación en Brasil trillados por el Instituto; la circulación institucional de algunos socios, que también componían los cuadros funcionales de otras instituciones educacionales y de enseñanza, y los trabajos para la creación de cursos de la Academia de Altos Estudios. En esos términos, proponemos considerar al IHGB como un lugar de poder presente y actuante em los conflictos políticos pertenecientes al campo educacional, y como institución productora de políticas y proyectos educativos en las primeras décadas del siglo XX. Como fuentes para estos análisis y argumentaciones, fueron utilizadas publicaciones y actas de la Revista de IHGB, documentos de archivos de las instituciones relacionadas y periódicos existentes durante el recorte estudiado.

PALABRAS CLAVE: Instituto Histórico y Geográfico Brasileño; historia de la educación en Brasil; proyectos educativos

ABSTRACT

This article presents analyses and some of the research results on the contributions of the Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (Brazilian Historical and Geographical Institute - IHGB) to education. The topics discussed are related to the ways of building knowledge about the history of education in Brazil, the institutional circulation of some members, who also comprised the functional cadres of other educational institutions, the work for the creation of courses and the Academy of Higher Studies. In these terms, we propose to consider the IHGB as a place of present and active power in political conflicts belonging to the educational field, and as an institution that produces educational policies and projects in the first decades of the twentieth century. Publications and minutes of the IHGB Review, archives of the related institutions and periodicals existing during the study, were used as sources for these analyses and arguments.

KEYWORDS: Brazilian Historic and Geographic Institute; history of education in Brazil; educational projects

INTRODUÇÃO

A proposta de analisar as relações do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) com temas educacionais veio da hipótese de considerar o instituto um lugar de produção de políticas educacionais. Reforçadas pelas indicações de Hollanda (1957) a respeito da correlação entre o IHGB e o Colégio Pedro II, as hipóteses iniciais demonstraram a existência de um caminho fértil para investigações sobre a atuação do IHGB na educação.

Além disso, a criação de uma instituição de ensino pelo próprio instituto permitiu ampliarmos as discussões acerca da participação do IHGB em questões e disputas educacionais do início do século XX. Partindo dessa perspectiva, pudemos identificar as contribuições do IHGB para diferentes aspectos da educação no Brasil e expandir as possibilidades de leitura dessa instituição, fortemente marcada por suas origens imperiais.

Para fundamentar e sedimentar o caminho de investigação pretendido, valemo-nos de estudos e de autores referenciais para a historiografia educacional brasileira, que permitiram o desdobramento e aprofundamento de problemas iniciais de pesquisa. O garimpo e o trabalho de cotejamento de fontes possibilitaram que identificássemos significativas relações institucionais e circulações intelectuais no IHGB. Este artigo pretende trazer algumas análises e resultados decorrentes desse processo de pesquisa.

Criado “debaixo da imediata proteção de S. M. I o Senhor D. Pedro II”,1 em 1838, o IHGB desenvolvia estudos científicos sobre as características naturais do país, formações geográficas e botânicas e aspectos históricos. Tendo como um de seus objetivos a criação de uma identidade nacional, os trabalhos de seus membros promoveram a construção de uma narrativa histórica unificadora, representada pelo mito das três raças. Essa interpretação fundava a sociedade brasileira na ideia de interação entre o indígena selvagem, o negro escravizado e o português civilizador, com singular protagonismo do europeu no processo - e missão - de promover a evolução da nação que surgia. Ainda nesse aspecto, o instituto também forjou uma identidade calcada na ideia de continuidade entre o período colonial e o império brasileiro, minimizando as dimensões de ruptura política e ressaltando os laços e as heranças portugueses no Brasil.2

Grande parte dos estudos sobre o IHGB aborda sua dimensão historiográfica seminal e localiza a atuação do instituto no período imperial, negligenciando outras facetas dessa instituição. Para os estudos educacionais, o instituto decerto não figura como tema amplamente frequentado, mas foi possível identificar significativas contribuições e intrigantes projetos sobre educação no interior do IHGB. Com base na abordagem sugerida por Carvalho (2003), pudemos encontrar desdobramentos interessantes dessa presença na educação e procuramos ressaltar os traços metodológicos dessa herança:

No caso da gênese da historiografia educacional brasileira, a presença dessa tradição não tem sido rastreada, e julgo importante não minimizar o papel modelar que a tradição produzida no IHGB possa também ter exercido na configuração da historiografia educacional. (Carvalho, 2003, p. 381)

Por meio da trajetória de pesquisa sobre os debates e as ideias educacionais que circulavam no instituto, foi possível conhecer os espaços e as instâncias em que ocorreram essas atuações na educação. Assim, destacamos inicialmente relações importantes, e mesmo fundantes, entre os trabalhos desenvolvidos no IHGB e os processos de construção de conhecimentos sobre história da educação no Brasil. Além disso, pudemos identificar o trabalho de sócios do instituto na produção de materiais didáticos para o ensino secundário e mesmo a atuação como professores em instituições de ensino como o Colégio Pedro II.

Outra frente de ação na educação foram as iniciativas de divulgação científica, como a promoção das conferências abertas e posteriormente o ousado projeto da Academia de Altos Estudos.

Neste artigo apresentamos alguns aspectos das relações teóricas e metodológicas entre o IHGB e a história da educação brasileira, assim como determinadas atuações do instituto no ensino e a participação dele em políticas educacionais no início do século XX.

A CONSTRUÇÃO DA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO NO BRASIL: UMA PARTE DO PERCURSO

Entre os estudos sobre a configuração da história da educação no Brasil como um campo, os trabalhos de Mirian J. Warde (1984, 1990) e Marta Carvalho (1998, 2003) representam importantes marcos de reflexão e são fundamentais para localizarmos o IHGB como um lugar produtor de conhecimentos sobre a educação.

Segundo Carvalho (2003), uma “memória dos renovadores” operou um deslocamento da história da educação do âmbito da investigação histórica para o campo pedagógico, fazendo da educação um instrumento explicativo das condições em que se dava o desenvolvimento - ou não - dos sistemas de ensino e pensamentos educacionais. Nesse movimento a história da educação não foi “instituída como especialização temática da História, mas como ‘ciência auxiliar da educação’” (Warde, 1984, p. 3). Mesmo entre as ciências da educação, a história da educação ocupava um lugar inferior em relação às principais disciplinas de referência, como a Psicologia, a Sociologia e a Biologia (Warde, 1984). Tais aportes eram articulados para compreender os mecanismos biológicos de aprendizado e desenvolver formas científicas de intervenção no processo de aprendizagem, porém as reflexões passavam ao largo de questões sobre a construção de conhecimentos e as delimitações da própria disciplina.

A instrumentalização de outras disciplinas, como História e Sociologia, tomadas como abordagens utilitárias para os estudos pedagógicos, minimizava as contribuições dos processos investigativos e as potencialidades para a construção do conhecimento histórico que tais disciplinas poderiam oferecer. Essa postura derivava de uma interpretação que destituía os estudos históricos de bases experimentais, pelo menos para os temas de interesse pedagógico (Carvalho, 2003, p. 378). Nesse sentido, segundo Warde (1990), a História era articulada à medida que poderia recuperar os traços de origem dos problemas educacionais e, de algum modo, justificá-los no presente:

Na sua gênese e no seu desenvolvimento, a História da Educação Brasileira carrega uma marca que lhe é conformadora: a de ter nascido para ser útil e para ter sua eficácia medida não pelo que é capaz de explicar e interpretar dos processos históricos objetivos da Educação, mas pelo que oferece de justificativas para o presente. (Warde, 1990, p. 8, grifos do original)

Com a inserção no campo pedagógico, a História da Educação foi configurada como uma disciplina de formação moral e de repertório básico para a formação de professores, distanciando-se do campo da investigação e das problematizações (Carvalho, 2003, p. 378). Ainda assim, Warde (1984) observa a presença de temas e referências da história na produção acadêmica por ela estudada. Segundo a autora, os conhecimentos históricos e aportes teóricos da historiografia foram mobilizados, em alguns estudos, como grandes modelos interpretativos, nos quais os problemas ou os temas educacionais estudados representavam os exemplos desses contextos. Em concordância com Warde (1984, p. 4), Carvalho (2003) identifica uma constante recorrência aos referenciais marxistas, para os quais, das determinações econômicas e das inflexões estruturais, irradiariam as leituras dos processos históricos.

Nesse cenário, Warde (1984) e Carvalho (2003) verificam um movimento interno de reflexão e de redefinições da disciplina em que sua trajetória, seu campo de pesquisa e suas potencialidades são redimensionados. Assim, os trabalhos de Warde (1984, 1990) estabelecem análises e mapeamentos sobre a construção e reordenações da história da educação brasileira como campo de pesquisa.

A autora aponta ao menos dois momentos de inflexão nesse processo de redefinição. O primeiro ocorreu durante os anos 1940 e 50, com a produção de obras de referência, como A Cultura Brasileira, de Fernando de Azevedo, e as várias reformas educacionais. Tais correntes de pensamento e investigação - ou a matriz azevediana, como ficou conhecida - foram sendo consolidadas como modelo para uma historiografia sobre educação nos programas de pós-graduação em educação criados nos anos 1970. O segundo momento consiste no das renovações teóricas e metodológicas da história da educação advindas do contato mais próximo às práticas historiográficas do campo da história nos anos 1980, as quais também estavam em processo de redefinição.

O contato com as produções historiográficas da história cultural, segundo as autoras, teria representado um importante movimento de virada para os estudos a respeito da história da educação. O olhar sobre a educação como espaço de disputas e construção de sentido para a realidade, e que também está inserido na dinâmica social, reconfigurou a história da educação como um campo de pesquisa. O campo educacional foi percebido como integrante e ativo nas relações com o ambiente político, econômico e social, sendo a cultura “um bom lugar para localizá-lo” (Chartier, 1990, p. 27). O estudo desses aspectos não consiste em, “portanto, afastar-se do social [...] muito pelo contrário, consiste em localizar os pontos de afrontamento tanto mais decisivos quanto menos imediatamente materiais” (Chartier, 1990, p. 27). A educação não está apartada dos tensionamentos políticos, ideológicos e culturais que afetam outras esferas da realidade; ela é um dos eixos sobre os quais são construídos e disputados espaços de legitimação. Localizar a educação no espaço cultural permite observar os diferentes projetos que concorrem e coexistem num mesmo período.

Nesse movimento, as abordagens de temas educacionais com base no arcabouço teórico da história cultural possibilitaram a identificação de outras formas de ensino e aprendizagem para além das práticas escolares (Azanha, 1991). Estas também foram revisitadas. Lido sob sua lógica interna, o espaço escolar foi observado como produtor de práticas e de conhecimentos próprios, no qual são expressos ensinamentos e doutrinas por diferentes meios, não apenas nas exposições de conteúdos. Assim, os estudos sobre as histórias das disciplinas (Chervel, 1990), da cultura escolar (Julia, 2001) e da arquitetura escolar (Escolano, 2001) colocaram em cena aspectos marginalizados pelas análises produzidas até então.

As reflexões sobre história da educação desenvolvidas haja vista esse cenário abriram caminhos para a inserção de outros espaços e agentes no panorama histórico das experiências educacionais, bem como na trajetória de construção do conhecimento sobre o tema no Brasil. Analisando esses aspectos, Carvalho (2003) salienta a potencialidade do rastreamento das contribuições de lugares como o IHGB nos debates sobre educação, e mesmo enquanto espaço promotor de educação:

É preciso considerar também que, no Brasil, diferentemente de outros países latino-americanos, a universidade é uma instituição tardia. Por isso a forte presença da tradição historiográfica produzida no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, na gênese dos estudos de História no Brasil, é matéria incontroversa. (Carvalho, 2003, p. 381, grifo meu)

Se ao longo do século XX essas questões são construídas nos ambientes universitários, até meados da década de 1920, os espaços de discussão sobre educação (Nora, 1993) distribuíam-se entre associações, instâncias políticas e círculos acadêmicos como o instituto. Nesse sentido, buscamos identificar as interlocuções nem sempre explicitadas entre esses dois campos: de um lado, o lugar oficializado da produção da narrativa histórica no Brasil, preocupado com grandes questões políticas e identitárias, o IHGB; de outro, uma crescente demanda pelo conhecimento do percurso de construção das políticas, metodologias e ideias educacionais vinda de outra disciplina, a Pedagogia.

A PRESENÇA DO IHGB NA HISTORIOGRAFIA EDUCACIONAL

Estudos como os de Marta Carvalho (1998, 2003), Diana Vidal e Luciano M. Faria Filho (2003) e Moysés Kuhlmann Jr. (1999) procuram mapear as trajetórias de investigação seguidas pelos estudos sobre a história da educação no Brasil ao longo dos séculos XIX e XX. Nesse panorama, são evidenciados os interesses sobre ensino e educação nos trabalhos historiográficos feitos pelos sócios do IHGB.

Em concordância com o argumento exposto por Carvalho (2003) e já comentado, o estudo de Vidal e Faria Filho (2003) desenvolve o mapeamento da construção do campo de pesquisa e das discussões acerca da história da educação brasileira. O viés de rastreamento propõe tomar a tradição historiográfica consolidada pelo IHGB como um referencial no trabalho de compilação de fontes relacionadas tanto à história nacional quanto à história da educação no país.

Com o “objetivo de coligir, metodizar, publicar ou arquivar os documentos necessários para a história e a geografia do Império do Brasil” (Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Tomo I de 1839, p. 18), a trajetória de alguns sócios do IHGB permitiu a reunião de documentações para a produção de obras sobre a instrução pública brasileira no período imperial, em sua maioria textos legais e dados estatísticos. De acordo com Vidal e Faria Filho (2003), esses primeiros estudos privilegiavam o segundo reinado e tinham como finalidade política exaltar as ações imperiais direcionadas à educação, sendo “peças de propaganda do Estado Imperial” (Vidal e Faria Filho, 2003, p. 45).

Entre os sócios que contribuíram para a publicação de obras significativas para a história da educação, são encontrados os trabalhos de Santa-Anna Nery (1848-1901), como L’instruction publique au Brésil, de 1884. Nesse texto, Nery demonstra estatisticamente o avanço educacional atingido pelo Brasil, por meio da expansão da escola primária nas províncias e da frequência escolar dos alunos (Vidal e Faria Filho, 2003, p. 40). É possível destacar também as obras de José Ricardo Pires de Almeida (1843-1913), e, entre elas, Vidal e Faria Filho (2003) ressaltam a importância de L’Instruction publique au Brésil: histoire et legislation (1500-1889), de 1889, para os futuros estudos sobre legislação educacional. Essa obra tinha ainda o objetivo de valorizar o regime imperial em oposição aos regimes republicanos latino-americanos, procurando exaltar a maior eficácia do regime monárquico, em termos educacionais e de “progresso civilizador”, em comparação com os republicanos.3

Considerando a tradição historiográfica consolidada pelo IHGB como um trabalho de compilação de fontes e análise de temas significativos à construção de uma história nacional e que suscitasse debates e produções dos seus sócios, os autores afirmam que “a ligação clara entre Pires de Almeida e o Instituto Histórico estabelece de maneira inesperada um vínculo entre disciplinas (História e Educação) que aparentemente dispunham de trajetórias apartadas” (Vidal e Faria Filho, 2003). Ainda nesse âmbito, apontam para a relação entre as obras de Primitivo Moacyr e a tradição forjada pelo instituto, apesar de Moacyr não ser sócio. Sua aproximação com a produção do IHBG dava-se

seja pelo primado de coligir e metodizar documentos, seja pelo recurso às publicações do Instituto e autores a ele ligados na elaboração do texto, seja ainda pelo elogio inicial, feito por Peixoto, que situa Moacyr como herdeiro de uma tradição que remonta a um dos personagens mais célebres do Instituto, seu antigo secretário, Varnhagen. (Vidal e Faria Filho, 2003, p. 47)

Desse modo, é possível observar a caracterização do que chamam de uma primeira vertente seguida pela historiografia da educação no Brasil do fim do século XIX e início do XX, que, por sua vez, teve marcante influência da metodologia histórica conformada pelo instituto. Essa vertente foi forte o bastante, de acordo com Carvalho (2003), a ponto de ser detectada até mesmo em publicações dos renovadores. Um exemplo consiste na presença das obras de Primitivo Moacyr na Coleção Brasiliana, da Companhia Editora Nacional, entre 1931 e 1954, período em que a coleção estava sob a coordenação de Fernando de Azevedo.

Desse reconhecimento metodológico da compilação e publicação de informações temáticas, decorre a herança do IHGB. Mesmo no propósito analítico, fundador das publicações de Azevedo, é possível reconhecer essa prática. Para Carvalho (2003) e Warde (1984), apenas a partir de 1950, com os trabalhos de Laerte Ramos de Carvalho e os contatos com a filosofia e a sociologia da educação, os temas educacionais foram postos em perspectivas analíticas conforme “um projeto de construção de uma História da Educação Brasileira, autônoma, apoiada em levantamentos documentais originais, capaz de recobrir o desenvolvimento do sistema público de ensino” (Warde, 1984, p. 93).

Aprofundando a análise e o mapeamento dessas intersecções, Moysés Kuhlmann Jr. (1999) permitiu-nos identificar outros aspectos da presença do IHGB nos estudos sobre história da educação no Brasil. Analisando as obras produzidas para as exposições nacionais e internacionais realizadas no fim do século XIX e início do XX, o autor observa a intensa participação de sócios do IHGB nesses eventos. Nesse sentido, demonstra que o “progresso educacional brasileiro” era encampado como principal fator comprobatório de que o Brasil estava seguindo o caminho do “progresso das nações civilizadas”. Ainda de acordo com Kuhlmann Jr. (1999, p. 160):

É um procedimento que parece seguir a trilha apontada na Exposição de História do Brasil, de 1881, que visava impulsionar a elaboração de nossa história, da história de cada um dos setores e das instituições que representariam os pilares dessa civilização moderna, entre elas a história da educação brasileira.

Nesse aspecto, o instituto legou algumas obras e concepções influentes na constituição do campo de pesquisa da educação. Entre essas contribuições, Kuhlmann Jr. (1999) destaca a atuação de Manuel Porfírio de Oliveira Santos e Benjamin Franklin Ramiz Galvão. Este, segundo o autor, “esteve presente em vários acontecimentos relativos às exposições e à educação” (Kuhlmann Jr., 1999, p. 163). Responsável pela seleção e pelo arrolamento de obras literárias, históricas e científicas que tratassem dos diversos aspectos necessários ao estudo da história do Brasil em 1881, Ramiz Galvão organizou um catálogo de obras que correspondiam a uma detalhada classificação temática, na qual está presente a instrução pública. Esse trabalho foi desenvolvido em função da exposição, porém seu interesse por questões educacionais não ficou restrito ao evento.

Para Kuhlmann Jr. (1999, p. 159, grifo meu), “as obras relativas à instrução pública arroladas no catálogo não são historiográficas, mas expressam a necessidade desse tipo de produção ao listar aquelas que seriam as fontes para tanto”. Isso delineia um impulso à investigação e reflexão históricas a respeito dessas fontes, como o próprio Kuhlmann Jr. (1999) observa em outras publicações que tomaram esse conjunto documental como material de análise.

Seguindo a proposta de configurar um panorama histórico da construção de uma nação civilizada, foi produzido o Livro do Centenário, coordenado por Ramiz Galvão, para as comemorações do quarto centenário do descobrimento, em 1900.4 A obra, que trazia o discurso do progresso atrelado ao regime republicano, atribuía ao - suposto - sucesso da educação a elevação “de uma raça inferior [...] a um povo que cresce” (Kuhlmann Jr., 1999, p. 173). Nela, Ramiz Galvão destaca a existência de vários textos relativos à instrução pública, mas que conservam o caráter ufanista e de síntese de materiais e documentação.

Em 1922, o instituto promoveu a publicação do Diccionario Historico, Geographico e Ethnographico do Brasil, que se valeu em grande parte do conjunto documental das outras produções já citadas, porém que, no entanto, desenvolve uma reflexão e uma argumentação mais crítica em relação a temas da educação. Obra também coordenada por Ramiz Galvão, o Diccionario possuía um capítulo chamado “Instrução Pública, notícia histórica de 1822 a 1922, resenha da evolução”, de autoria de Manuel Porfírio de Oliveira Santos, sócio honorário do instituto. Segundo Kuhlmann Jr. (1999), esse texto propunha uma abordagem mais reflexiva a respeito da educação e dos problemas detectados na instrução pública. A começar pela constatação da insuficiente capacidade de administrar e promover os ensinos primário e secundário que os governos regionais vinham demonstrando desde o século XIX, fosse por dificuldades orçamentárias, fosse pela falta de parâmetros nacionais.

É possível, ainda, atribuir a Oliveira Santos uma consciência da necessidade de se pensar a educação de forma historicizada. De acordo com Kuhlmann Jr. (1999, p. 173),

a história da instrução no Brasil, para Oliveira Santos, deveria ser estudada sob dois pontos de vista: das mutações por que têm passado [considerando as reformas e adaptações locais, regionais ao longo dos períodos colonial, regime monárquico, e republicano federativo] e do direito constituído em nossa legislação.

Oliveira Santos apresenta uma estrutura de análise que conecta a crítica documental à reflexão histórica. Seu texto propõe o acompanhamento das ações governamentais por meio da observação dos processos contemporâneos de mudanças e adaptações dos sistemas educacionais (Kuhlmann Jr., 1999). Mesmo verificando o descompasso entre projetos e a efetivação de propostas, Santos acaba esboçando um parecer positivo quanto às ações do governo nesses primeiros anos da república. Baseado em suas análises, ele constata o aumento de instituições de ensino, da população escolar e da porcentagem de alfabetizados, recorrendo novamente às estatísticas e apresentando a conclusão esperada à finalidade da obra. Ainda que sob condições determinadas de produção e em função de interesses de governo, o retrospecto sobre alguns estudos educacionais reforça a efetividade das relações do instituto com a construção de conhecimentos acerca da educação ao longo do período evidenciado.

A construção do panorama dessas relações permitiu-nos identificar outras formas de participação do instituto nos assuntos educacionais, seguindo principalmente a circulação e as sociabilidades dos seus membros. Além disso, foi possível revisitar o papel político e acadêmico do IHGB - uma instituição monárquica - no início do século XX, em que desenvolveu significativas atividades na educação sob o regime republicano.

PROFESSORES DO COLÉGIO PEDRO II E AUTORES DE MATERIAIS DIDÁTICOS

Para compreender o processo de circulação dos debates sobre educação e dos movimentos que impulsionaram a criação de projetos educacionais, como as conferências abertas e, posteriormente, a Academia de Altos Estudos, foi preciso localizar os outros lugares e instituições dos quais os sócios do instituto também faziam parte. As relações do IHGB com o Colégio Pedro II, por exemplo, podem ser observadas nos movimentos de fundação de um projeto nacional de que participavam.

O Colégio Pedro II foi criado como instituição-modelo para a organização dos estudos secundários no império. Voltado para a formação da elite econômica e política, tinha por objetivo ministrar uma cultura ampla e erudita aos futuros dirigentes. Passando do currículo humanista ao científico moderno, foi sendo adaptado às conformações sociopolíticas ao longo dos séculos XIX e XX. Além disso, também exercia função propedêutica para o acesso ao ensino superior na metrópole e em outras instituições do império (Haidar, 1972). Nessa lógica, o Colégio Pedro II funcionava como espaço estratégico de produção de políticas educacionais, assim como ambiente de prestígio social. Portanto, a presença e circulação dos professores no IHGB e de sócios no colégio são referendadas pela própria função sociopolítica das duas instituições.

O papel social e institucional desempenhado tanto pelo IHGB como pelo Colégio Pedro II - ambos criados na década de 1830 - representa funções, ao menos, complementares: enquanto o primeiro se caracterizava como o espaço da reflexão intelectual e da construção do conhecimento científico e histórico do período, o segundo foi encarregado de construir, de forma escolarizada, a estrutura social do império e sua manutenção política (Haidar, 1972).

Outros aspectos demonstram a relação entre os currículos, os compêndios utilizados no Colégio Pedro II e os membros do IHGB (Hollanda, 1957, p. 15). De acordo com Bittencourt (1993, p. 204), grande parte dos materiais didáticos produzidos entre o fim do século XIX e as primeiras décadas do XX tinha como autores os sócios do instituto e/ou professores do Colégio Pedro II, que passou a ser ginásio nacional com a proclamação da república.

Tal aproximação deu-se especialmente no ensino de história. Nesse duplo movimento, o instituto atuou como um lugar de legitimidade para a produção de um conhecimento histórico acadêmico e, por isso, como uma instância autorizada a traduzir esses conhecimentos em materiais didáticos. Isso sinaliza, segundo Bittencourt (1993), um movimento gradual de produção didática nacional que operou de duas formas: desvencilhando-se da importação de materiais e traduções didáticas francesas e, ao mesmo tempo, imprimindo no âmbito escolar os conhecimentos históricos oficiais e a memória nacional produzidos no instituto.

Assim, o IHGB assumiu um papel importante no processo de orientação ao que deveria ser ensinado. É interessante notar, de acordo com Bittencourt (1993), a existência de um simultâneo reconhecimento da importância desse tipo de produção, que cria uma espécie de “historiografia didática” e um esquecimento dessas obras quando observada a carreira expressa como “cientistas acadêmicos” (Bittencourt, 1993, p. 203). A dificuldade em identificar autores e em atribuir obras didáticas evidencia essa distinção de atribuição de valores às obras.

Tendo em vista a efetiva interligação social e política das duas instituições, foi possível rastrear alguns nomes que transitavam em ambas e em outras esferas políticas e educacionais. Desse levantamento, foi possível construir o Quadro 1, para expressar essas relações.

Quadro 1 - Sócios, professores e políticos. 

Nome Admissão no IHGB Sócio Áreas de atuação

  • Justiniano José da Rocha

  • (1812-1862)

26/3/1845 Efetivo Catedrático de História do Colégio Pedro II

  • Joaquim Manuel de Macedo

  • (1820-1882)

18/4/1848 Correspondente

  • Professor de História Antiga e Geografia do Colégio Pedro II

  • Autor de material didático

  • Benjamin Franklin Ramiz Galvão

  • (1846-1938)

16/8/1872 Efetivo

  • Professor de Grego e Literatura Brasileira no Colégio Pedro II

  • Um dos idealizadores da Academia de Altos Estudos do IHGB

  • Reitor da Universidade do Rio de Janeiro (1920)

  • Diretor geral da Instrução Pública do Distrito Federal

  • Max Fleüiss

  • (1868-1943)

3/8/1900 Secretário Perpétuo

  • Sócio influente no IHGB

  • Autor de material didático

  • Um dos idealizadores da Academia de Altos Estudos do IHGB

  • Sílvio V. da S. Ramos Romero

  • (1851-1914)

23/8/1901 Efetivo Professor de História do Colégio Pedro II

  • Epitácio L. da Silva Pessoa

  • (1865-1942)

29/3/1907 Benemérito

  • Presidente da república (1919-1922)

  • Um dos autores do Código Epitácio Pessoa (1901)

  • Rivadávia da Cunha Corrêa

  • (1866-1920)

4/5/1910 Honorário

  • Ministro da Justiça e Negócios do Interior (1910-1913)

  • Um dos autores da Reforma Rivadávia Corrêa (1911)

  • Alberto S. M. Torres

  • (1865-1917)

3/10/1910 Benemérito

  • Presidente do estado do Rio de Janeiro (1887-1900)

  • Entusiasta da Academia de Altos Estudos do IHGB

  • Luís G. d’Escragnolle Dória

  • (1869-1948)

4/5/1912 Efetivo

  • Professor de História Universal e História do Brasil no Colégio Pedro II

  • Participante das reformas educacionais de 1926 e 1929

  • Carlos Maximiliano P. dos Santos

  • (1873-1960)

16/10/1913 Honorário

  • Ministro da Justiça e Negócios do Interior (1914-1918)

  • Um dos autores da Reforma Carlos Maximiliano (1915)

  • João Batista Ribeiro

  • (1860-1934)

12/5/1914 Efetivo

  • Professor de História Universal e História do Brasil no Colégio Pedro II

  • Autor de material didático de História

  • Jonathas A. de S. Serrano

  • (1855-1944)

24/5/1919 Efetivo

  • Membro da Associação Brasileira de Educação

  • Professor de História do Brasil e Latim no Colégio Pedro II

  • Afrânio Peixoto

  • (1876-1947)

16/6/1919 Efetivo

  • Ocupante da Cadeira 7 na Academia Brasileira de Letras (1910-1947)

  • Diretor na Escola Normal do Rio de Janeiro (1915)

  • Diretor da Instrução Pública do Distrito Federal (1916)

  • Carlos M. Delgado de Carvalho

  • (1884-1980)

6/8/1921 Efetivo Professor de História Universal do Colégio Pedro II

  • João Luís Alves (1870-1925)

5/9/1923 Efetivo

  • Ministro da Justiça e Negócios do Interior (1922-1925)

  • Um dos autores da Reforma João Luís Alves - Rocha Vaz (1925)

IHGB: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

Fonte: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Tomo VII, de 1846; Tomo VI, de 1849; Tomo 742, de 1911; Cadastro de Sócios, Tomo 752, de 1912; Tomo 762, de 1913; Tomo 772, de 1914; Tomo 782, de 1915; Tomo 92, de 1922; v. 164, de 1931; v. 182, de 1944; Colégio Pedro II, 1900-1925.

Organizado pela cronologia de admissões como sócios do instituto e com apontamentos sobre atuações na educação, o quadro permitiu observarmos outros aspectos de interesses equivalentes, além da relação dos sócios com o Colégio Pedro II. O recorte cronológico apresentado, no entanto, não privilegia o período do império, ainda que o encadeamento proposto até aqui aponte para as contribuições do IHGB enquanto instituição oficial de produção do conhecimento, como o foi principalmente durante o século XIX. Caso o recorte fosse ampliado, teríamos verificado ainda mais os cruzamentos dos professores do Colégio Pedro II e os quadros sociais do IHGB, além de outros produtores de materiais didáticos, contudo a periodização apresentada também aborda as primeiras décadas do período republicano e fundamenta outros percursos da investigação.

Os estudos sobre o IHGB geralmente discutem a trajetória do instituto ao longo do século XIX, com ênfase no papel modelar exercido no campo historiográfico nacional. Com a proclamação da república, algumas interpretações apontam o declínio do prestígio social e financeiro da instituição e a sua saída do cenário político e cultural do país, diminuindo sua importância e representatividade a partir de então. Todavia, as primeiras décadas do século XX representaram importante momento de inflexão na história do instituto. Como uma das principais referências para a abordagem desse movimento, Gomes (2009) insere o IHGB nesse cenário de transição política e considerável atividade no campo educacional. No mesmo caminho, Guimarães (2006) narra a história da instituição pensando nas suas reconfigurações sob o regime republicano. Tais reflexões ajudam a elucidar a permanência das relações entre o instituto e o Colégio Pedro II, então ginásio nacional, durante os primeiros anos da república, como é possível ver no Quadro 1, assim como a presença de personalidades políticas republicanas também ligadas às esferas educacionais.

Nesse sentido, Gomes (2009, p. 31) estabelece paralelos entre as mudanças sociopolíticas ocorridas no Brasil e em Portugal na virada do século XIX para o XX e como elas incidiram sobre o pensamento histórico e o lugar da história nos projetos políticos dos dois países. Em ambos os casos, a autora identifica a história e o ensino como campos de disputa nos processos de legitimação dos sistemas políticos. No caso brasileiro, o IHGB encontrava-se pressionado a ressignificar a própria prática histórica. Esta deveria adequar-se às novas demandas de enraizamento histórico e de construção da autoridade política do sistema republicano.

Assim, Gomes (2009) observa não apenas uma mudança na narrativa, que passava a ser sobre um povo e para um povo, mas também na postura assumida por alguns sócios do instituto. Dessas proposições, emergem perguntas como: quem é esse povo? Já existia ou ainda estaria por ser inventado? Disso, decorrem indicações valiosas sobre a circulação institucional dos sócios do IHGB e suas significativas relações com o âmbito educacional.

A presença de alguns nomes conhecidos nos círculos educacionais e, principalmente, associados a mudanças de políticas educacionais como as reformas dos anos 1920 indica um movimento de aproximação entre o instituto e os membros do novo regime político. No processo de composição do quadro social, abrigar entre seus sócios integrantes de outras esferas, política, econômica e social, foi uma tática de convivência adotada pelo instituto (Certeau, 1998). Essa postura permitiu a manutenção de algumas relações de mecenato com o Estado durante a república, a exemplo do que relata Fleiüss (1942, p. 155), quando diz: “Foi Rodrigues Alves quem regularizou [entendida como constância das publicações] os serviços das publicações do Instituto e de seu expediente na Imprensa Nacional e das atas no Diário Oficial”.

Nesse sentido, a identificação de alguns nomes ligados à educação sinalizava um interesse no âmbito da política educacional, como por exemplo a presença de Epitácio Pessoa, Rivadávia Corrêa, Carlos Maximiliano e João Luís Alves. Ainda nessa análise das redes e circulações institucionais das quais também o IHGB fazia parte, outra presença chamou-nos a atenção. Carlos Miguel Delgado de Carvalho, consócio do instituto desde 1921 (Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1922, Tomo 092) e também professor do Colégio Pedro II, foi um dos membros fundadores da Associação Brasileira de Educação e, em 1924, esteve amplamente envolvido nos movimentos educacionais dos anos 1920 e 30 (Carvalho, 1998, p. 100), de maneira especial na reforma de Franco Campos.5

Se considerarmos as indicações de Hollanda (1957, p. 13) a respeito da manutenção da congregação do Colégio Pedro II como instância deliberativa acerca das reformas educacionais e curriculares nacionais, mesmo após a criação do Ministério da Educação e Saúde Pública, temos que os sócios do IHGB também pertenciam a círculos de decisões políticas sobre educação. Além disso, alguns dos nomes já citados propuseram reformas ou legislações acerca da educação em diferentes momentos, demonstrando proximidade com ambientes de decisão política.

Podemos salientar ainda que a educação, posta como bandeira republicana da transformação social, consistia no aspecto privilegiado pelo novo regime e simbolizava um espaço importante para atuação política e institucional. A leitura da situação política e cultural do país e a operação tática conforme essas configurações possibilitaram as movimentações empreendidas pelo IHGB nesse período.

Assim, mesmo antes dos desdobramentos advindos com a república, alguns sócios já demonstravam preocupações com questões educacionais: “Os vínculos desses intelectuais com a questão da educação, em sentido amplo”, estariam associados à crença “no poder transformador da cultura e do ensino da palavra escrita” (Gomes, 2009, p. 20), o que permite associar essas preocupações às movimentações em torno de projetos e ações efetivas, como iniciativas de “reformadores sociais” (Gomes, 2009, p. 20). Gomes (2009, p. 16) confere uma dimensão ativa aos trabalhos dos sócios: “É fundamental atentar para a prática desses homens que, voltados para os estudos históricos, dedicaram-se a escrever compêndios escolares ou livros de literatura infantil, com evidentes fins pedagógicos”. A abordagem indicada pela autora permite observar a história do instituto nesses primeiros anos da república de outra maneira, contrapondo-se a interpretações que atribuem inércia e apatia ao IHGB nos anos posteriores ao fim do segundo reinado.

Essa abordagem opõe-se também à literatura que aponta o período como “a República que não foi”,6 que interpreta os primeiros anos do regime republicano como estagnado em relação às expectativas de desenvolvimento social e político que incidem na ideia de república. Assim, é possível retomar o olhar sobre o período como um ponto de inflexão importante para as mudanças sociais em curso e da própria narrativa histórica de forma geral. Permite identificar a ascensão dos discursos científicos e cientificistas, que manifestam, em certa medida, a utilidade de seus conhecimentos a serviço de outras demandas. Nesse panorama também estão as preocupações com a história ensinada, tida como espaço formador do cidadão para a república e como forma de consolidar uma cultura política republicana.

Juntamente com as mudanças políticas vividas no período, era sentida a efervescência cultural e científica da virada do século XIX. Os movimentos de divulgação científica e de institucionalização dos espaços de produção do conhecimento também estavam presentes no cenário brasileiro e do IHGB. Iniciativas como as conferências abertas e o projeto da Academia de Altos Estudos dialogam e ocorrem em momentos específicos, os quais chamaria Sirinelli (2003, p. 68) de sensibilidades da época.

AS CONFERÊNCIAS DO IHGB E O PROJETO DA ACADEMIA DE ALTOS ESTUDOS

Nos estudos sobre os processos de vulgarização dos conhecimentos científicos, as conferências são caracterizadas como um espaço de apresentações e preleções voltadas a um público genérico e promovido por intelectuais com o objetivo de difundir as “luzes” para além dos gabinetes (Bastos, 2002, p. 3). As práticas de promoção de encontros abertos entre letrados e um público diverso podem ser observadas desde o século XVIII. Segundo Moura (1874, p. 25), é possível localizar algumas referências em folhetins prussianos do fim do século XVIII. No segundo quarto do século XIX, tais reuniões teriam se expandido pela Europa, com maior adesão e atividades na França. A princípio, teriam surgido como forma de apresentação de produções literárias e posteriormente como espaço de ampla formação de professores primários para os sistemas escolares em organização nos países europeus (Bastos, 2002). No Brasil, estiveram atreladas a iniciativas pessoais particulares ou a instituições de ensino, faculdades e colégios, e de pesquisa, como museus, institutos e associações (Moura, 1874, p. 34). Algumas atividades nesses moldes podem ser encontradas por volta de 1870, como as realizadas por Antônio Cândido da Cunha Leitão, em Aracaju (Bastos, 2002).

Nesse panorama, foram promovidas as Conferências Populares da Freguesia da Glória. Inicialmente organizadas por Manuel Francisco Correia, conselheiro do imperador Pedro II e secretário de governo, as conferências da Glória foram realizadas entre 1873 e 1890 na cidade do Rio de Janeiro (Fonseca, 1996). Manuel Correia via na prática das conferências uma forma de apresentar a um público mais amplo os assuntos políticos e de conhecimentos gerais. Tais interesses aproximavam-se da prática europeia, mas no Brasil as conferências também geravam uma possibilidade de instrução não formal.7 Elas foram organizadas em publicações seriadas com o título de Conferências Populares. Em sua apresentação, Correia (1875, grifos meus) expressa os anseios do projeto:

Uma das instituições que, durando ha mais de dous annos, tem encontrado o melhor acolhimento da parte do publico, é a das Conferencias Populares, que se têm feito com a maior regularidade no salão do edificio das escolas publicas da freguezia da Gloria. Foi a primeira no dia 23 de Novembro de 1873, e de então até hoje não tem havido interrupção, estando já habituada a população desta cidade a esse util entretenimento. [...] Ellas servirão para patentear o adiantamento intellectual do paiz, o talento oratório de seus filhos, e pela variedade dos assumptos tratados, a extensão dos estudos entre nós. [...] Estamos persuadidos de que prestamos ao paiz um serviço importante. [...] Lançamos à terra a semente, na firme crença de que o conhecido patriotismo dos brazileiros a fará frutificar. Se por desventura a nossa tentativa for mal succedida, o que não esperamos, teremos ao menos dado irrefragavel testemunho de nosso sincero desejo de concorrer para o monumento da civilização do Brazil.

Nessa apresentação podemos identificar novamente uma inclinação a apresentar os problemas e os avanços do país a seus habitantes, difundindo o desejo e a necessidade de desenvolvimento para a sociedade de forma mais abrangente. A “semente” decerto deveria ser lançada pelos que identificavam os problemas, ou possuíam requisitos para tal diagnóstico, e também sabiam os caminhos para sua solução. Tais atividades eram ainda identificadas como populares, pedagógicas ou literárias, mantendo a função de espaço público e gratuito de difusão de conhecimentos (Carula, 2007). É válido ressaltar que, embora constituíssem um ambiente de circulação de conhecimentos e instrução, no Brasil as conferências não assumiram caráter de educação ou ensino formal, nem desempenharam papel alternativo a este; funcionaram como outra maneira de divulgação de conhecimento e promoção de cultura.8

Inseridas numa tradição letrada de incentivo às preleções e aos debates, as conferências figuravam como ambiente de inserção e circulação de novas ideias, discussões políticas e espaços de reflexão sobre problemas sociais. Além disso, tornaram-se ambiente de exibição das habilidades de oratória e de posturas políticas. Na visão de Bastos (2002, p. 15), as conferências passaram de promotoras do conhecimento e difusoras da ilustração a palcos políticos de discussões partidárias e exaltações retóricas. O ciclo de palestras promovidas pelo IHGB alguns anos depois é tributário desse modelo de conferências do fim do século XIX.

CONFERÊNCIAS ABERTAS DO IHGB

Antecedidas por discursos e debates como os de Alberto Torres, que discutia acerca dos deveres políticos e das potencialidades educacionais do instituto, principalmente nos processos de reconfiguração do poder em curso no país, as conferências abertas do IHGB sinalizaram os primeiros esforços nessa tomada de postura, ainda que de modo diferente dos esboçados por Torres naqueles debates.

A proposta inicial dessas conferências era a vulgarização de conhecimentos gerais - assim como as conferências da Glória e as praticadas na Europa -, além da promoção de interação e abertura das atividades a outros públicos então excluídos das dinâmicas do instituto, mas ainda com o fator de distinção e prestígio como garantias da relevância de seus trabalhos. Nas conferências eram ministradas explanações acerca da conjuntura atual do país, assim como algumas possibilidades de melhorias. Também é possível dizer que a dinâmica das palestras respondia à necessidade detectada pelos sócios de apresentar o Brasil aos brasileiros e de alguma forma estender essa ideia a outros círculos.

No Quadro 2 temos a distribuição dos palestrantes, temas das aulas e ocorrências no período de 1913 a 1915.

Quadro 2 - As Conferências Abertas do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). 

Palestrante Tema/título da exposição Datas Publicações na Revista do IHGB
Alberto Rangel Aspectos gerais do Brasil

  • 2, 9 e 23 dez. 1913;

  • 8 e 13 jan. 1914

Tomo 761, p. 453-517, 1913; e Tomo 781, p. 3-4, 1915
José Vieira Fazenda Aspectos do período regencial do Brasil 6 e 8 fev. 1914 Tomo 771, p. 255-288, 1914; e Tomo 781, p. 3-4, 1915
Basílio de Magalhães Expansão e formação do território brasileiro após os bandeirantes

  • 18 e 25 maio 1914;

  • 3 jun. 1914

Tomo 771, p. 385-398, 1914; e Tomo 781, p. 3-4, 1915
Antonio Gonçalves Pereira da Silva Antigos veículos no Rio de Janeiro 30 jul. 1914 Não encontrada
Aurelino Leal História da Constituição no Brasil

  • 15, 23, 29 out. 1914;

  • 5 e 11 nov. 1914

Tomo 772, p. 485-488, 1914; e Tomo 781, p. 3-4, 1915
Artur Pinto da Rocha História diplomática do Brasil

  • 25 dez. 1914;

  • 7 e 21 jan. 1914;

  • 4 e 18 fev. 1915;

  • 4 mar. 1915

Tomo 781, p. 3-4, 1915; Tomo 782, p. 345-368, 1915
Augusto Olympio Viveiros de Castro História tributária

  • 22 e 29 abr. 1915;

  • 6 e 20 maio 1915;

  • 3 jun. 1915

  • Tomo 782, p. 542-602, 1915

  • Tomo 781, p. 3-4, 1915

Ernesto da Cunha de Araujo Vianna Artes plásticas do Brasil Curso em cinco lições (datas não encontradas) Tomo 782, p. 506-608, 1915; e Tomo 781, p. 3-4, 1915
Ramalho Ortigão História financeira do Brasil Datas não encontradas Tomo 781, p. 3-4, 1915

Fonte: com base em dados encontrados na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Tomo 781, 1915, p. 3-4.

O cronograma das conferências variava em função da disponibilidade dos palestrantes. Algumas tiveram durações mais longas, sendo identificadas como cursos, e eram publicadas nos anexos da revista do instituto.9 Ainda que não seja possível identificar ou mesmo quantificar o público dessas conferências, podemos inferir que a longevidade de alguns temas tem relação com as expectativas do público que era alcançado. Fosse pela busca de distinção social, por meio da possibilidade de frequentar um espaço como o instituto; fosse pelas utilidades práticas e/ou profissionais de tais conhecimentos, a frequência dos eventos e a recorrência de assuntos econômicos e históricos (como história diplomática e tributária e aspecto geral do Brasil) indicam a boa recepção da iniciativa.

As palestras partiam de explanações históricas cronológicas às análises conjunturais dos períodos históricos, com detidas atenções aos processos da proclamação da república. De modo geral, os temas com maior número de aulas - que, por sua vez, foram designados como cursos - possuem considerável quantidade de páginas na Revista do IHGB, ao passo que alguns que contaram apenas com uma ou duas aulas não foram reproduzidos nos registros. Além disso, os temas visavam oferecer conhecimentos e reflexões sobre assuntos tidos como importantes e, por vezes, problemáticos naquele contexto.

A participação de Conde Afonso Celso como palestrante na tribuna da Glória, discutindo as condições do ensino obrigatório no Brasil, despertou nosso interesse. Intitulada Em que condições pode ser instituído o ensino obrigatório no Brasil, foi a nona preleção na tribuna da Glória, em 28 de dezembro de 1873. Afonso Celso discutia questões sobre ensino obrigatório, ao qual demonstrava ser favorável, e celebrava os debates acerca da educação promovidos pelas conferências da Glória.

Nessa palestra, Afonso Celso também apontava os benefícios da liberdade de ensino e os ganhos que a atuação particular - ou privada - poderiam trazer à tarefa de disseminação do ensino e do conhecimento na sociedade brasileira. Entendia, nesse sentido, que também competia aos doutos a função de, em auxílio à atividade política e administrativa do Estado, viabilizar o progresso do país por meio do saber amplo e produtivo. Por fim, Afonso Celso incluía-se no processo de fundação da chamada Sociedade Propagadora da Instrução Pública na Corte, da qual ficaria responsável pela organização das conferências a partir de 1874. Embora pareça contraditória a defesa da participação privada numa atividade declarada como função estatal, tal posição permite atuações pessoais com engajamentos políticos e ideológicos no campo da educação sem, necessariamente, ir de encontro aos interesses nem aos projetos do Estado vigente, quase como ações apartidárias.

Ao analisarmos as transcrições dessas conferências, é necessário atentar para dois elementos importantes para sua compreensão: a oralidade e os objetivos da palestra. A questão da manifestação da oralidade na narrativa dos documentos relacionados ao instituto configura outro fator característico para as análises desses cursos. De acordo com Sousa (2012, p. 22), “a presença da performance é uma marca da escrita da história e de sociabilidade no IHGB [...] na realidade antecede o texto impresso, e o texto traz marcas da oralidade”. A postura do orador, a condução da explanação sobre um tema perpassa por toda a construção dos conhecimentos transmitidos e discutidos na conferência, dos quais as habilidades retóricas do palestrante fazem parte. Tais elementos assemelham-se à discussão de Noguès (2011, p. 88) sobre as faculdades francesas do século XIX, principalmente a partir da restauração (1815-1830), em que as aulas nas faculdades haviam ganhado um aspecto mais de “espetáculo” do que propriamente objetivo científico ou de formação. Nesse sentido, para além do desejo de apresentar o Brasil aos brasileiros, a promoção das conferências pode ser lida como uma expressão de domínio sobre certos conhecimentos e de habilidade para transmiti-los, uma espécie de demonstração de autoridade para ensinar.

ENTRE ESCOLA E ACADEMIA: DOIS NOMES PARA UM PROJETO EDUCACIONAL

A reforma Rivadávia Correa, de 1911, retomou várias questões em debate no campo da educação superior, entre elas as discussões sobre quais eram as responsabilidades do Estado em relação à organização, regulamentação e criação de instituições superiores (Cunha, 1986). De forma sintética, a reforma tornou a liberdade de ensino uma prática, permitindo a criação de estabelecimentos de ensino superior que pudessem funcionar com recursos próprios, não dependendo de subsídios estatais para isso. Desse modo, deu-se a ampliação das instituições superiores não oficiais, mas submetidas às inspeções estatais.

Nesse novo panorama legislativo e impulsionado pelos resultados positivos dos ciclos de conferências abertas de 1914, foi apresentada, na sessão de 12 de outubro de 1915, a proposta de organização de uma Escola de Altos Estudos, a ser fundada e dirigida pelo IHGB. O secretário Max Fleiüss apresentou a proposta, uma colaboração conjunta de Manuel de Oliveira Lima e de Carlos Delgado de Carvalho. Segundo Fleiüss (1942), Oliveira Lima teria-o ajudado a amadurecer a ideia de uma instituição de ensino juntamente com a elaboração dos programas de cursos a serem oferecidos. Antes de expor o projeto de estruturação da escola, Fleiüss ressaltava a importância dos movimentos do instituto em prol dos cursos e conferências e enfatizava o reconhecimento dessas atividades. Sobre isso, as atas retomam os elogios de Oliveira Lima às recentes atividades do IHGB:

O Sr. FLEIUSS [1º secretário perpetuo] diz que o Instituto soube, graças ao decisivo apoio do egregio Sr. Presidente Conde de AFFONSO CELSO, dar plena execução à idéia do eminente consócio Sr. Dr. Manuel de Oliveira Lima, quanto à Eschola de Altos Estudos. O próprio Sr. Dr. Oliveira Lima, em repetidas cartas do orador, tem manifestado o seu grande applauso, reconhecendo que os brilhantíssimos cursos realizados no Instituto pelos srs. Basilio de Magalhães, Aurelino Leal, Pinto da Rocha, Viveiros de Castro, Ramalho Ortigão e Araujo Vianna constituem a eschola que projectara. (Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Tomo 782, 1915, p. 789)

Por mais que as conferências abertas tenham sido boas experiências, uma espécie de laboratório didático, os objetivos políticos e desdobramentos dos projetos seguintes adentravam em diferentes esferas de atuação. Como já mencionado, as conferências versavam sobre temas gerais, sem determinações curriculares ou programáticas, com a perspectiva de pensar o Brasil e apresentá-lo a um público exterior ao instituto, promovendo reflexões e vulgarização de conhecimentos. Já a estruturação do projeto da Escola de Altos Estudos pretendia oferecer um percurso de formação técnica e capacitação para futuros ocupantes de cargos públicos.

Na mesma sessão do dia 12 de outubro foi lido o documento escrito por Oliveira Lima que apresentava as finalidades da escola, assim como os programas curriculares dos cursos a serem oferecidos. O excerto mostra um pouco da trajetória de reflexão e dos modelos escolhidos como parâmetros para os cursos:

Felicito - mais uma vez pela brilhante iniciativa dos cursos [conferências] do Instituto e mando-lhe incluso um resumo do programma da Eschola de Sciencias Políticas e Administrativo feito pelo Delgado de Carvalho, de um trabalho maior que elle elabourou. Penso ser optimo esse programma. Aproveita dos programmas da Eschola de Sciencias Politicas de Paris, da E’cole dês Hautes Etudes Commerciales e da London School of Economic and Politic Science a indispensável parte technica, reduzindo-a a suas menores proporções. Adapta os referidos programmas às necessidades da administração brasileira, facilitando aos nossos estudantes as funcções públicas. Ao jornalismo e à vida política. [...] A Eschola de Altos Estudos é destinada a preparar funccionario para os ministérios do Exterior, da Fazenda e da Agricultura, Industria e Commercio e para as administrações estadoaes. (Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Tomo 782, 1915, p. 790, grifos meus)

Observando mais detidamente o perfil das instituições que fundamentaram as estruturas e os programas da Escola de Altos Estudos, podemos traçar os anseios e as projeções alçados para ela. As escolas francesas mencionadas foram criadas no fim do século XIX com o objetivo de oferecer às elites francesas formação científica e acadêmica. De tais instituições, vieram as sequentes gerações de lideranças e comando político, assim como as elites econômicas. Inicialmente fundadas como instituições particulares, foram incorporadas ao sistema estatal de ensino, mas mantiveram seus estatutos de autonomia administrativa e acadêmica. Nesse processo, estabeleceram rígidos programas de seleção e trajetórias de formação, construindo uma reputação de prestígio social e político e de reconhecimento científico.

De modo geral, a proposta dessas instituições concentrava-se na formação das elites e de sua colocação na esfera da administração pública, seguindo o modelo de grande école francês. Tal noção implica a formação de grupos e sucessores que passaram pelo modelo ou pela doutrinação dessas escolas e, no caso projetado, do IHGB. Nesse panorama, o instituto desempenharia papel importantíssimo no processo de formação cultural, política e acadêmica de um sistema de governo ainda em construção.

Contudo a Escola de Altos Estudos, tal como fora apresentada e organizada no fim de 1915, acabou não entrando em funcionamento. Embora tenha sido inaugurada em março de 1916, a estrutura do programa, e mesmo de organização da instituição, continuou sendo alterada e debatida nas semanas seguintes de sua inauguração. Desse modo, além do nome, para Academia de Altos Estudos,10 também foram alterados os cursos a serem oferecidos pela recém-criada academia. A inclusão de uma grade para um curso de Filosofia e Letras gerou interessante movimentação na instituição.

A academia foi oficialmente inaugurada em 25 de março de 1916. A instituição agregou vários nomes reconhecidos, como Clóvis Beviláqua, Epitácio Pessoa, Edgard Roquette-Pinto, Jonathas Serrano e Afrânio Peixoto, em seu corpo docente. Como academia, alcançou a marca de 529 aulas ministradas até o fim do ano de 1917 (O Imparcial, 1918). Ao longo de 1918, outras reformulações foram feitas nos estatutos e currículos dos cursos, até que em março de 1919 surgiu a Faculdade de Filosofia e Letras do IHGB. Nessa última reforma, além do nome, foi criado o Curso Normal Superior, para formação de professores destinados ao magistério secundário. Esse último período da instituição foi marcado por conflitos políticos e impasses legais, e os últimos registros de atividades foram encontrados por volta de 1922.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como escola ou como academia, é possível dizer que os projetos educacionais representaram significativa mobilização em torno da atuação do instituto na educação, servindo como base para o desenvolvimento de um perfil de uma instituição educacional gestada no instituto. Desse modo, podemos ler a presença do IHGB na educação sob três aspectos: por meio das bases metodológicas de compilação de fontes para o estudo de assuntos educacionais; pela circulação de seus membros em instituições de ensino e esferas políticas e administrativas da educação; e pela produção de projetos educacionais e políticos de participação no sistema de ensino em construção no período estudado.

Se as conferências abertas representaram um espaço de aquisição de experiências sociais, tendo o IHGB, em parceria com a Biblioteca Nacional, o papel de promover uma prática cultural diferente das assembleias e conferências habituais, a organização de uma instituição educacional como a academia, e posteriormente as faculdades, representa a firme decisão do instituto de participar dos debates e conflitos inscritos no âmbito do ensino e da educação como um todo naquele período.

As reformas curriculares e estatutárias e as alterações do nome (escola, academia e faculdade) respondiam a outras demandas além das discussões internas e de expansão dos cursos, mas identificamos que tais movimentos visavam alcançar a permissão para emitir certificações (diplomas) e garantir o reconhecimento da documentação por outras instituições do Estado.

As significativas oposições a esse objetivo e ao projeto do IHGB ressaltam a complexidade e a centralidade que os assuntos educacionais possuem no jogo político de construção e legitimação de uma ordem social. Desse modo, pudemos observar o instituto com um dos agentes que participaram das disputas ocorridas no campo nas primeiras décadas do século XX, dando especial atenção às relações estabelecidas com as mudanças políticas que ocorriam no país. Nessa chave, buscamos compreender a atuação educacional do IHGB como um movimento de expansão das atividades da instituição, com o objetivo de permanecer no cenário político e intelectual do início da república.

Além disso, a leitura permite localizar a atuação de parte dos sócios em movimentos engajados no campo da educação. A ideia de que era preciso revelar o Brasil aos brasileiros por meio das letras perpassa pelos diferentes momentos da iniciativa educacional organizada pela instituição. Desde as primeiras conferências até a formalização da faculdade, a ideia de necessidade de atuação nesse campo está colocada, assim como a noção de que faria parte de uma função social atribuída ao próprio ambiente partilhado. Como estudiosos e conhecedores dos saberes acadêmicos, estariam autorizados e inclinados a exercer tais funções.

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1Expressão que simbolizava a estreita relação do imperador com a instituição. Ata de fundação do IHGB. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Tomo I, 1839.

2“Incumbido de criar o amálgama da sociedade brasileira sob o signo Estado-Nação, no IHGB foram elaborados os discursos que conferiam legitimidade às organizações sociais e políticas do país, através dos supostos enraizamentos históricos que possuíam. Durante o Império, a ideia de continuidade da ordem adquirida com a Coroa conferiria unidade aos povos que, agregados em um território exuberante, teriam construído a essência da identidade brasileira” (Guimarães, 1988, p. 129, grifo do original).

3“Nesse movimento de construção identitária da Nação pelo IHGB, distinguir-se do outro era necessário, seja internamente apartando-se dos negros e índios, porque não portadores da noção de civilização; seja externamente das repúblicas latino-americanas, porque ameaças à forma de governo monárquico e representação da barbárie” (Guimarães, 1988apudVidal e Faria Filho, 2003, p. 53, grifos do original).

4Segundo informações de Kuhlmann Jr. (1999), Ramiz Galvão foi reitor da Universidade do Rio de Janeiro e presidente do Conselho Superior de Ensino e recebeu o título de Oficial de Instrução Pública pelo governo francês.

5As concepções educacionais de Delgado de Carvalho, favorável à presença organizadora e regularizadora do Estado na educação, são bem próximas às proposições da reforma de 1931, entendendo a ação educativa como processos ativos de construção e reconstrução de conhecimentos que precisam ser adaptados às exigências sociais encontradas e guiados para a obtenção de resultados futuros (Carvalho, 1934).

6Nesse aspecto, Gomes (2009) faz alusão a obras como a de José Murilo de Carvalho (1987), que estuda as formas de participação política das camadas populares nos primeiros momentos do regime republicano. Embora Carvalho identifique diferentes formas de manifestação dessas pessoas, sua interpretação considera que não ocorreu o estabelecimento de um sistema político representativo, que não houve uma república de fato. O protagonismo militar e da elite econômica teria criado um sistema de exclusão da população mais ampla da esfera política. Desse modo, identifica que os movimentos de implantação da república não vieram da mobilização social, da qual, segundo o autor, deveriam emergir (Carvalho, 1987).

7Segundo Bastos (2002, p. 9), as conferências do Rio de Janeiro foram comparadas às conferências promovidas por Antonio Cândido da Cunha Leitão em Sergipe e consideradas imitações delas.

8Apesar de abertas ao público em geral, Carula (2007) destaca a pouca - ou quase nula - presença de pessoas das classes populares - negros, trabalhadores, mulheres - nas sessões. Na análise de um trecho publicado na Gazeta de Notícias (RJ), a autora salienta: “O autor tratou de modo satírico o fato de o público presente não ser composto por pessoas do povo; destacando que se esta parcela da sociedade resolvesse assistir às palestras, o público presente se sentiria profundamente incomodado” (Carula, 2007, p. 7).

9As transcrições de alguns cursos podem ser encontradas em: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Tomo 762, p. 520-36, 1913; Tomo 782, p. 430-442, 1914; Tomo 771, p. 219-344, 1914; Tomo 772, p. 291-418, 1915.

10As primeiras discussões referem-se ao projeto de instituição de ensino como Escola de Altos Estudos, porém esse nome já havia sido usado por outra instituição nos anos de 1913 e 1914. A proximidade temporal e a função de ensino dessas duas instituições provocaram associações em algumas publicações da cidade.

Recebido: 16 de Abril de 2018; Aceito: 14 de Fevereiro de 2019

Thaís de Melo é doutoranda em educação pela Universidade de São Paulo (USP). E-mail: thaisdesamelo@hotmail.com

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