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Revista Brasileira de Educação

versión impresa ISSN 1413-2478versión On-line ISSN 1809-449X

Rev. Bras. Educ. vol.24  Rio de Janeiro  2019  Epub 08-Oct-2019

https://doi.org/10.1590/s1413-24782019240052 

Dossiê

Boletins da ANPEd: das possibilidades de problematização das questões educacionais para além dos espaços acadêmicos

ANPED BULLETINS: THE POSSIBILITIES OF PROBLEMATIZING EDUCATIONAL ISSUES BEYOND ACADEMIC SPACES

BOLETINES DE LA ANPED: LAS POSIBILIDADES DE PROBLEMATIZACIÓN DE LAS CUESTIONES EDUCATIVAS MÁS ALLÁ DE LOS ESPACIOS ACADÉMICOS

Helena Maria Ferreira I  
http://orcid.org/0000-0002-8749-5426

Francine de Paulo Martins Lima I  
http://orcid.org/0000-0002-3014-2670

Marco Antonio Villarta-Neder I  
http://orcid.org/0000-0003-3857-3720

IUniversidade Federal de Lavras, Lavras, MG, Brasil.


RESUMO

O presente artigo busca caracterizar o papel de boletins publicados pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) para a qualificação do debate em educação. Para tal, elegemos como objeto de análise 10 boletins publicados pela ANPEd nos anos 2018 e 2019. Foi possível constatar que a associação demonstra, na organização dos boletins, um enfrentamento ético e político às questões que dizem respeito ao contexto da educação brasileira. Nesse posicionamento, enquanto ato pelo qual se responsabiliza perante a educação brasileira, os boletins configuram-se em uma abordagem que, por meio de enunciados que dialogam com saberes, práticas e dizeres, ultrapassa a dimensão de divulgar e/ou informar. Isso representa uma concepção do fazer acadêmico como um compromisso indissociável entre a produção de saberes especializados, o diálogo desses saberes com outros saberes produzidos e circulantes no interior da sociedade e as fronteiras, no âmbito educacional, entre o conhecer e o agir.

PALAVRAS-CHAVE: boletim da ANPEd; movimentos; educação

ABSTRACT

This article aims to characterize the role of bulletins published by the National Association of Graduate Studies and Research in Education (ANPEd) for the qualification of the debate in education. In order to accomplish that goal, we have chosen 10 bulletins published by ANPEd in the years 2018 and 2019 as an object of analysis. It was possible to verify that the association demonstrates, in the organization of the bulletins, an ethical and political confrontation to the issues that concern the context of Brazilian education. From this point of view, as an act for which it is accountable to Brazilian education, the bulletins are an approach that, through utterances that dialogue with knowledge, practices and sayings, goes beyond the dimension of divulgation and/or informing. This represents a conception of academic practice as an inseparable commitment between the production of specialized knowledge, the dialogue of these knowledges with other knowledge produced and circulating within society and the borders, in the educational sphere, between knowing and acting.

KEYWORDS: ANPEd’s bulletins; movements; education

RESUMEN

El presente artículo busca caracterizar el papel de los boletines publicados por la Asociación Nacional de Estudios de Posgrado e Investigación en Educación (ANPEd) para la calificación del debate en educación. Para tal, elegimos como objeto de análisis 10 boletines publicados por la ANPEd en los años 2018 y 2019. Fue posible constatar que la asociación demuestra, en la organización de los boletines, un enfrentamiento ético y político a las cuestiones que se refieren al contexto de la educación brasileña. En este posicionamiento, en cuanto acto por el cual se responsabiliza ante la educación brasileña, los boletines se configuran en un abordaje, que por medio de enunciados que dialogan con saberes, prácticas y palabras, sobrepasa la dimensión de divulgar y/o informar. Eso representa una concepción del hacer académico como un compromiso indisociable entre la producción de conocimiento especializado, el diálogo de esos saberes con otros saberes producidos y circulantes en el interior de la sociedad y las fronteras, en el ámbito educativo, entre el conocer y el actuar.

PALABRAS CLAVE: boletines de ANPEd; movimiento; educación

INTRODUÇÃO

Participar de uma edição comemorativa de aniversário de 40 anos da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) é uma tarefa inspiradora, mas, ao mesmo tempo, desafiadora. Apesar de ter surgido no contexto da preocupação com as questões da pesquisa e da pós-graduação, mais especificamente, e de não se distanciar dos objetivos definidos na sua proposta de criação, a ANPEd tem consolidado e ampliado uma atuação que “busca o desenvolvimento da ciência, da educação e da cultura, dentro dos princípios da participação democrática, da liberdade e da justiça social” (Machado, 2018). Nesse âmbito, além de uma vasta produção de artigos científicos de relevância acadêmica, a associação adota uma prática de problematização das questões do cotidiano da política educacional brasileira que culmina na produção de boletins informativos, de publicação mensal, que evidenciam as ações propositivas para uma visão crítica e fundamentada de diferentes temas educacionais.

Adotando posicionamento ético e político, a ANPEd tem fornecido uma leitura técnica e científica da realidade educacional brasileira, com argumentos pautados em dados estatísticos, análise de especialistas, documentos oficiais e socialização de debates realizados por diferentes sujeitos da comunidade escolar.

Com vistas a salientar as contribuições trazidas pela associação para o processo de construção de conhecimentos sobre educação e elaboração, consolidação e avaliação dos efeitos das políticas públicas, o presente artigo busca caracterizar o papel de boletins publicados por essa organização para a qualificação do debate acerca do contexto educacional brasileiro.

Nesse contexto, é válido ressaltar que os boletins informativos são produções que circulam, com mais regularidade, nos contextos empresariais e jornalísticos e visam à socialização de ações desenvolvidas pela instituição em questão e à atualização das informações de interesse coletivo, de modo mais preciso, para interlocutores que possuem alguma relação com o órgão. Esses boletins possuem a função social de divulgar informações e são compostos de estratégias discursivas que desvelam/revelam posicionamentos. No caso analisado, a ANPEd adota temáticas, escolhe gêneros discursivos, seleciona e acolhe análises feitas por pesquisadores, delineia ações propositivas para o cumprimento de sua missão de associação, entre outras questões.

Diante do exposto, o artigo em pauta, em função de seu propósito de apresentar o estudo de uma instituição que, historicamente, se constitui como uma agência de movimento e de resistência em prol da construção de uma identidade para a educação brasileira, desloca-se dos cânones previstos para a organização dos artigos científicos que circulam no contexto acadêmico. Pautamos nossa reflexão em uma breve discussão sobre o desenvolvimento profissional, na perspectiva assumida pela ANPEd, que se circunscreve em uma abordagem que ultrapassa a dimensão do percurso formativo pautado no estudo de conteúdos e metodologias (predominante em muitas propostas de formação), abarcando questões sociais, políticas, culturais e estéticas do processo educacional. Assim, o foco assumido por este artigo é dado às análises dos boletins.

Nesse contexto, elegemos como objeto de análise 10 boletins publicados pela ANPEd nos anos de 2018 e 2019. Com base na abordagem metodológica de uma pesquisa exploratória e descritiva, foram elaboradas categorias para a apresentação da organização dos boletins e de suas contribuições para a reflexão a respeito do processo educacional. Espera-se que as discussões por nós empreendidas possam contribuir para o debate quanto ao lugar social de um pesquisador/professor da contemporaneidade.

DO ACESSO AO CONHECIMENTO NAS SUAS MÚLTIPLAS FORMAS DE REPRESENTAÇÃO: A POSSIBILIDADE DE UMA ATITUDE REFLEXIVA

Dada a especificidade do gênero boletim, podemos compreendê-lo como um instrumento que promove a discussão e a reflexão sobre temas em educação, notadamente aqueles que estão diretamente ligados ao fazer pedagógico, à concepção de educação ou ainda aos dilemas que cercam o contexto educacional brasileiro. Entendemos que, no caso dos boletins veiculados pela ANPEd, sua forma de apresentação e temáticas abordadas permitem a docentes e profissionais da educação a abertura ao debate e a reflexão dos temas em pauta, ao mesmo tempo em que suscitam uma postura mais crítica perante a atividade profissional e os temas educacionais.

Nesse sentido, os boletins assumem também um papel formativo e de promoção de desenvolvimento profissional de professores no contexto da pós-graduação e da educação básica, da provocação de uma postura reflexiva sobre a prática pedagógica e sobre o contexto educacional brasileiro, bem como acerca do nosso modo de ser e de estar na profissão.

A respeito da reflexão no contexto da prática profissional, diferentes autores, como Alarcão (2011), Libâneo (2012) e Pimenta e Ghedin (2012), discutem a necessidade de desenvolvimento de uma postura e atitude de reflexão perante a atividade profissional, seja num contexto micro - o da sala de aula -, seja num contexto macro - o educacional. Pensar na qualidade em educação é pensar também na qualidade da formação ofertada com vistas ao desenvolvimento de um cidadão ético, capaz de atuar de forma autônoma, colaborativa e crítica na sociedade. Para tanto, faz-se necessário um professor capaz de se perceber num constante processo de autoformação e desenvolvimento da identidade profissional, o que supõe a interlocução com uma comunidade profissional reflexiva (Alarcão, 2011).

É nessa conjuntura que se insere a ANPEd, como uma comunidade profissional que promove debates relacionados à educação, para além dos espaços acadêmicos. As ideias de Alarcão (2011) corroboram nosso entendimento acerca do professor reflexivo:

A noção de professor reflexivo baseia-se na consciência da capacidade de pensamento e reflexão que caracteriza o ser humano como criativo e não como mero reprodutor de ideias e práticas que lhe são exteriores. É central, nesta conceptualização, a noção do profissional como uma pessoa que, nas situações profissionais, tantas vezes incertas e imprevistas, atua de forma inteligente e flexível, situada e reativa. (Alarcão, 2011, p. 44)

Compreendemos que, para alcançar essa atitude reflexiva, se faz necessária a interlocução com a comunidade profissional, a qual fomenta novas possibilidades de reflexão e debate ante situações dilemáticas que envolvem a docência e o contexto educacional. O diálogo provocado por meio dos boletins revela-se também um convite à reflexão e, consequentemente, a novas leituras da ação docente e profissional no contexto da escola e da sala de aula. Ao mesmo tempo em que reconfigura, de modo crítico, os temas abordados, o professor tem a oportunidade de reconfigurar a si próprio, num movimento de autocrítica e de autoformação, num movimento contínuo de desenvolvimento profissional.

BOLETINS DA ANPED: MOVIMENTOS E RESISTÊNCIAS EM BUSCA DE UMA EDUCAÇÃO DE QUALIDADE

Fundada em 16 de março de 1978, a ANPEd, entidade sem fins lucrativos, iniciou suas atividades com sede na cidade do Rio de Janeiro, tendo entre suas intenções “promover o desenvolvimento do ensino de pós-graduação e da pesquisa em educação, procurando contribuir para a sua consolidação e aperfeiçoamento, e estimular experiências novas na área” (ANPEd, 2012, p. 1). Busca ainda, “estimular as atividades de pós-graduação e pesquisa em educação para responder às necessidades concretas dos sistemas de ensino, das instituições de ensino superior, bem como das comunidades locais e regionais, valorizando a cultura nacional e contribuindo para a sua renovação e difusão” (ANPEd, 2012, p. 1).

Nessa perspectiva, considerando o propósito do nosso trabalho de analisar as contribuições das produções constantes de boletins publicados pela ANPEd, procuramos evidenciar a relevância dos movimentos e das resistências (re)construídos pela referida associação para a implementação ou o redimensionamento de políticas públicas mais eficazes e mais eficientes1.

Pensar nas atribuições de uma associação voltada para as questões educacionais, no nosso entendimento, ultrapassa a dimensão de luta pela garantia de direitos dos associados, uma vez que o direito à educação de qualidade é um fator que antecede qualquer outra dimensão, assim como pontua Arroyo (1999, p. 21-22): “O direito coloca a educação no terreno dos grandes valores da vida e da formação humana”.

Os boletins apresentam o mérito de problematizar questões que, recorrente e notadamente, são omitidas ou recebem menos relevo no contexto educacional. Por se tratar de um material voltado para um público mais diverso (pesquisadores, professores de ensino superior, professores/gestores de escolas de educação básica, alunos em formação inicial etc.), seja pela adequação da linguagem, seja pela seleção das temáticas abordadas ou pelas proposições pontualmente apresentadas, os boletins podem contribuir para uma formação docente mais reflexiva, pois contemplam questões do cotidiano social que interferem no processo educativo ou mesmo do contexto educacional, que constituem a atividade profissional. Os boletins são produções mensais enviadas por e-mail aos associados e disponibilizadas no portal da ANPEd com acesso aberto.

Nessa direção, ressaltamos que a escolha dos boletins como objeto de estudo se deu pelo interesse de destacar uma produção da ANPEd que, do nosso ponto de vista, propicia a articulação, de forma mais explícita, de questões de caráter científico e de caráter político. Embora outras publicações, como os artigos acadêmicos veiculados na Revista Brasileira de Educação, e a promoção de eventos científicos, tais como as reuniões da ANPEd, expressem essa preocupação, os boletins, por sua periodicidade de veiculação e pelo formato das produções - extensão, estilo de linguagem, temáticas abordadas, (quase) simultaneidade -, constituem-se como um meio de registro histórico das ações da referida associação.

Inicialmente, analisamos os 31 boletins disponibilizados no portal da ANPEd (2015-2019). Foi encontrada uma diversidade de produções e de temáticas, o que possibilita múltiplas possibilidades de análises. No entanto, para delimitar a discussão aqui proposta e evitar dispersão, optamos por selecionar os dez últimos boletins publicados, com vistas a esboçar um panorama das contribuições do material para a formação docente e para o movimento de luta por uma educação de qualidade e por melhores condições de trabalho docente.

O percurso de desenvolvimento da investigação dos boletins foi pautado nos seguintes procedimentos:

  • leitura de todos os boletins;

  • delimitação do corpus de análise;

  • análise da organização composicional (gêneros discursivos selecionados para a composição dos boletins, temáticas abordadas, levantamento de ações efetivadas pela ANPEd);

  • sistematização dos dados coletados;

  • análise dos textos publicados nos boletins, no período que constitui o recorte temporal deste artigo, em termos de enunciados que não somente dizem a respeito dos temas abordados, mas que, por meio desse dizer, fazem com que a ANPEd estabeleça um posicionamento axiológico sobre tais temas;

  • análise dos temas tratados pela associação nos boletins selecionados.

  • Na apresentação dos boletins, constante do site da ANPEd, há a informação de que a equipe editorial aceita dois tipos de publicação:

  • artigos de opinião, que contemplam abordagens acerca de temas atuais da política educacional brasileira, e outros que versem quanto à área educacional. Esses artigos devem conter posicionamento ético, fundamentação e contextualização, de modo a favorecer a compreensão por parte dos leitores com formação diversa;

  • artigos de popularização científica, que abarcam diferentes leitores (não apenas acadêmicos) e possibilitam o entendimento de determinada investigação.

A estratégia de publicação de boletins evidencia preocupação com a socialização de conhecimentos e informações, o que permite atingir interlocutores de diferentes níveis e áreas de formação, no entanto a associação publica outros textos, os quais revelam diferentes propostas de atuação por parte da coordenação. Essa diversidade de produções constitui um elemento representativo do compromisso social da entidade, que assume diferentes linhas de atuação, seja no âmbito dos conhecimentos acadêmico-científicos, seja no da popularização das discussões concernentes à conjuntura educacional brasileira.

O reconhecimento dessas ações da ANPEd pela publicação de tais gêneros do discurso em seus boletins obriga-nos a explicitar conceitualmente a relação entre esses dizeres e práticas, mas sobretudo desses dizeres enquanto práticas. No contexto teórico-epistemológico-axiológico do círculo de Bakhtin, Volochínov pensa o gênero discursivo por essa perspectiva integradora e interacional:

Cada enunciação da vida cotidiana [...] compreende, além da parte verbal expressa, também uma parte extraverbal não expressa, mas subentendida - situação e auditório - sem cuja compreensão não é possível entender a própria enunciação. Essa enunciação, enquanto unidade de comunicação verbal, enquanto unidade significante, elabora e assume uma forma fixa precisamente no processo constituído por uma interação verbal particular, gerada num tipo particular de intercâmbio comunicativo social. Cada tipo de intercâmbio comunicativo referido anteriormente organiza, constrói e completa, à sua maneira, a forma gramatical e estilística da enunciação, sua estrutura tipo que chamaremos aqui de gênero. (Volochínov, 2013, p. 159, grifos do original)

Assim, cada um dos gêneros que aparecem nos boletins não se configura apenas como uma forma peculiar de organização da língua e do texto, mas nessa organização representa um intercâmbio comunicativo entre sujeitos. De um lado, tem-se um sujeito institucional, a ANPEd, que dialoga, e de outro, sujeitos-associados, sujeitos-leitores, outros sujeitos-institucionais, nas esferas das quais políticas, práticas e ações educacionais interagem com a sociedade. Pode-se estender a esses âmbitos o que Bakhtin diz a respeito dos gêneros quando discute as ciências humanas: “São pensamentos sobre pensamentos, vivências das vivências, palavras sobre palavras, textos sobre textos” (Bakhtin, 2011, p. 307-308).

Nesse sentido, a mobilização incitada pela ANPEd tem representado uma estratégia de ação para a construção de propostas mais autônomas e socialmente mais relevantes para a educação brasileira. Assim, há um movimento pela gestão democrática do sistema e pelo compromisso ético com a qualidade educacional, bem como um movimento de luta contra a ambivalência que se constitui nos discursos governamentais que fazem a assunção da igualdade de oportunidades para a população, mas que na prática se efetivam em programas e projetos orientados pela lógica do campo econômico, dirigindo a ação escolar para as atividades instrumentais do fazer pedagógico e para a administração de meios ou insumos. Esse enfoque utilitarista serve à excelência empresarial e não é suficiente para orientar a qualidade da ação educativa.

Desse modo, amplia-se a demanda por um movimento que resiste a esse projeto educacional, exigindo luta contínua para a extensão da concepção de educação como promotora da melhoria da vida social. Para tal, é necessária interação constante entre a política educacional e os campos da ciência, da cultura, da cidadania e da ética. Nessa perspectiva, a mobilização de grupos de pesquisadores/as e professores/as pode favorecer ações que são capazes de catalisar as demandas emanadas do campo científico, econômico e social para a construção de um projeto educacional que contemple as diversas dimensões do conhecimento humano.

Essas demandas podem ser efetivadas por meio de diferentes ações. No artigo em pauta, buscamos analisar uma dessas ações, representada pelos boletins. Apresentamos no Quadro 1 uma compilação dos gêneros presentes nos boletins da ANPEd no período analisado.

Quadro 1 - Gêneros discursivos presentes nos boletins da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd). 

Gêneros Quantidade
Nota/moção (de repúdio)/manifesto/manifestação 51
Notícia 46
Artigo 17
Entrevista 13
Editorial 10
Vídeo de divulgação/convite 9
Reportagem 7
Carta 6
Nota de pesar 3
Análise técnica 1
Comentário 1
Ofício 1
Resenha 1
Saudação 1
Total 167

Essa categorização exposta no Quadro 1 reflete - é importante salientar inicialmente - nuanças. Há a predominância de dois gêneros: nota (nota, moção de repúdio, manifesto e manifestação); e notícia, seguidos pelos artigos. O que designamos como notas abrange textos de autoria distintas. Logo, há tanto notas emitidas por entidades e publicadas pelo boletim da ANPEd quanto notas da própria ANPEd em apoio a entidades ou em manifestação/reação a eventos político-educacionais. As notícias referem-se a uma decisão editorial do boletim da ANPEd em relação à divulgação de eventos significativos no contexto educacional e à abordagem de temas de relevância para a discussão educacional. Os artigos correspondem, no período do recorte temporal feito neste trabalho, a artigos de opinião, com posicionamento explícito da ANPEd sobre temáticas de destaque, sob o seu ponto de vista, no cenário educacional brasileiro.

Em primeiro lugar, cabe discutir a questão das notas. Gêneros (discursivos), para Bakhtin (2011), como mencionamos anteriormente, são mais do que uma relação entre palavras e mais do que meramente um conjunto de características estruturais do texto. Dessa maneira, no caso das notas, por essa ótica, vale a pena considerarmos em que eventos elas ocorrem, sob que autoria e com que endereçamento. Como exemplo, citamos um trecho da “Nota das Entidades Educacionais ao [Conselho Nacional de Educação] CNE e de agradecimento [...]”, de 8 de outubro de 2018. O texto começa assim: “Com a posse no dia 8 de outubro de 2018 de novos conselheiros no Conselho Nacional de Educação nos dirigimos a esse egrégio Conselho para manifestar publicamente a posição das entidades nacionais do campo da educação abaixo assinadas” (ANPEd, 2019).

A nota publica uma carta subscrita por 60 entidades educacionais. Uma carta caracteriza-se, habitualmente, por um sujeito que se dirige a outro (em condição de não ocorrência simultânea, tanto do ponto de vista espacial quanto temporal). Nesse caso, há um movimento enunciativo que amplia as possibilidades do gênero discursivo carta. Primeiramente, porque, ao publicar uma carta endereçada à própria associação, a ANPEd toma o posicionamento de tornar transparente a comunicação entre si e a sociedade (por meio das entidades que subscrevem o documento). Em segundo lugar, a publicação da carta não somente exibe explicitamente a conexão entre a ANPEd e a sociedade como canal de diálogo, mas constitui um posicionamento da associação como legitimadora do posicionamento das entidades que enviaram a carta. Essa dimensão pode ser relacionada ao que Volochínov (2017) diz sobre a palavra:

A importância da palavra para o interlocutor é extremamente grande. Em sua essência, a palavra é um ato bilateral. Ela é determinada tanto por aquele de quem ela procede quanto por aquele para quem se dirige. Enquanto palavra, ela é justamente o produto das inter-relações do falante com o ouvinte. Toda palavra serve de expressão ao “um” em relação ao “outro”. Na palavra, eu dou forma a mim mesmo do ponto de vista do outro e, por fim, da perspectiva da minha coletividade. A palavra é uma ponte que liga o eu ao outro. Ela apoia uma das extremidades em mim e a outra no interlocutor. A palavra é o território comum entre o falante e o interlocutor. (Volóchinov, 2017, p. 205, grifos do original)

Tornar a palavra do outro (das entidades) palavra sua (da ANPEd) implica à ANPEd a responsabilidade social e ética que essas entidades estão assumindo e consolida a visão de uma associação acadêmica não somente como representativa de uma perspectiva meramente operacional ou burocrática, mas como instância de dizeres (que são)/fazeres que a comprometem com a discussão e com as ações na conjuntura educacional (e política) da sociedade brasileira. Ainda no âmbito das notas, merecem destaque também as notas de pesar, que informam a perda de um pesquisador, mas que, ao mesmo tempo, evidenciam uma atitude de reconhecimento do trabalho e do valor das interlocuções possibilitadas pelo profissional em questão. Essa posição revela a dimensão humana e afetiva que uma associação que representa pessoas deve, no nosso entendimento, valorizar.

Com relação às notícias, aparentemente teríamos uma situação meramente informacional, mas, da perspectiva analítica que aqui assumimos, não é o caso. Vamos destacar brevemente a notícia publicada no boletim da ANPEd de dezembro de 2018 cujo título é “Ação educação democrática recebe apoio do [Fórum Nacional Popular de Educação] FNPE”. Citamos, respectivamente, o primeiro e o último parágrafo da matéria:

A Ação Educação Democrática, organizada pela ANPEd em parceria com o Movimento Educação Democrática, expande seu campo de atuação e alcance com o envolvimento do Fórum Nacional Popular de Educação (FNPE), definido em plenária. A Ação é tida por diferentes segmentos e pesquisadores da área como uma das mais importantes movimentações para 2019 em torno da defesa da educação pública e dos princípios democráticos.

[...]

Para Fernando Pena, um dos coordenadores do Movimento Educação Democrática, “essa é uma das iniciativas mais importantes para a Educação em 2019. Se todos participarem nós teremos condições de fazer uma grande onda pela Educação Democrática, uma grande discussão, pautando este tema em 2019 neste contexto problemático”. (ANPEd, 2019)

Nessa notícia, a ANPEd fala sobre uma ação em parceria entre a associação e um movimento organizado da sociedade civil. Há, aqui, uma questão interessante. É esperado que a ANPEd fale de si, enquanto instituição, que divulgue a sua atuação para os associados. Ocorre, porém, em qualquer ato de linguagem em que um sujeito (individual e/ou institucional) fala de si, esse processo bilateral da palavra que Volochínov (2017) menciona. Fala-se de si para alguém, com um propósito que é um ato. Voltando a Bakhtin (2011), são mais que palavras sobre palavras. Cada um desses atos pode ser caracterizado não em si mesmo, mas pela natureza interacional, levando-se em conta quem diz e para quem diz. Nesse caso, o próprio noticiar assume essa dimensão que endossa o posicionamento do Movimento Educação Democrática. Trazer isso para o leitor dos boletins é mais do que informá-lo. É convidá-lo, conclamá-lo. Mesmo nos atos mais cotidianos de convivência social, a linguagem não é meramente informativa. Informar tem funções como explicar, justificar, sugerir, convidar, entre outras.

Essa função fica mais nítida por a estratégia textual do boletim em questão terminar o texto com a fala de um dos coordenadores do Movimento Educação Democrática: “Se todos participarem” (apudANPEd, 2019). A opção autoral de encerrar o texto com uma conclamação não somente informa os associados, mas estende a eles o convite e o chamamento do coordenador a quem o texto possibilitou que aparecesse sua voz.

Nessa discussão sobre gêneros discursivos constitutivos dos boletins, vale destacar ainda os espaços de diálogo construídos pela associação, seja por meio de vídeos, seja de provocação para o debate mediante os convites para reuniões e eventos de mobilização coletiva.

Com base nessa discussão inicial, ressalvamos que a ANPEd busca problematizar questões e lutar em prol de uma educação de qualidade. Essas questões também podem ser constatadas pelas escolhas das problemáticas abordadas, conforme o Quadro 2.

Quadro 2 - Configuração temática dos boletins da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd). 

Problemáticas dos boletins Âmbito de atuação Proposições
Demonstração da urgência/das prioridades de questões políticas, educacionais e sociais

  • valores da educação democrática;

  • políticas públicas educacionais;

  • combate às diferentes desigualdades;

  • qualidade da educação pública;

  • educação ambiental;

  • ações em defesa da educação;

  • educação de escravizados e de encarcerados;

  • eleições 2018 (análise de plano de governo em relação à proposta para a educação);

  • agenda da política educacional brasileira;

  • Constituição de 1988 e o direito à educação;

  • retrocessos na educação;

  • defesa de direitos, proposição de medidas e análise crítica que inviabilizam a implantação do PNE

  • mitos relativos à educação brasileira;

  • cotidiano escolar;

  • conjuntura política na educação no país;

  • metas do PNE;

  • gestão escolar, liderança do diretor e resultados educacionais no Brasil.

  • mobilização de educadores e da sociedade em defesa dos valores democráticos e sociais e luta coletiva contra as formas de violência, exclusão e desigualdade;

  • defesa de políticas públicas pautadas em estudos e pesquisas sobre a educação;

  • elaboração ou assinatura e socialização de notas de repúdio;

  • crítica ao momento atual de tensionamento político e social;

  • defesa da pesquisa acumulada na área de educação;

  • chamada para um olhar atento para as propostas educacionais;

  • socialização de uma série de notícias e posicionamentos que evidenciam a atuação vigilante da ANPEd em relação à agenda da política educacional brasileira;

  • estímulo às instituições de ensino (na educação básica ou superior) e parceiros diversos a desenvolveram estratégias que respondam à atual conjuntura política brasileira, no sentido de pensar estudos e ações políticas que possam garantir condições para o exercício do direito à educação democrática, pública, gratuita e laica em todos os níveis e graus.

Defesa da vida

  • defesa da vida em situações de conflito - caso Venezuela;

  • defesa da democracia para a qualidade de vida;

  • violência no campo;

  • violência da polícia militar;

  • defesa do acesso à internet como mecanismo de inclusão social.

  • manifestação contra a intervenção armada e o envolvimento do Brasil em problemas de outros países;

  • mobilização para a defesa dos direitos sociais e educacionais;

  • críticas às formas de violência.

Direitos dos trabalhadores em educação

  • reforma da previdência.

  • crítica à proposta da reforma da previdência;

  • enfrentamento de pautas que interferem no cenário educacional;

  • estímulo ao amplo diálogo e debate social em torno da reforma da previdência e suas consequências nefastas para o povo brasileiro.

Organização das propostas governamentais

  • reposicionamento do PNE;

  • discussões sobre o novo Fundeb;

  • Base Nacional Comum para a formação de professores;

  • BNCC - ensino médio;

  • Diretrizes curriculares nacionais para o ensino médio;

  • políticas afirmativas na educação superior.

  • educação infantil;

  • educação especial;

  • Filosofia e Sociologia no currículo do ensino médio;

  • problematização do ensino de libras;

  • organização da educação básica;

  • política de desregulamentação da oferta educacional por grupos privados;

  • currículos escolares;

  • gestão escolar, liderança do diretor e resultados educacionais no Brasil.

  • críticas às propostas/aos documentos apresentados pelo MEC;

  • críticas ao percurso de aprovação da BNCC (audiências públicas interrompidas, críticas severas de especialistas em diferentes áreas e de conselheiros do próprio CNE, ausência de diálogo com as associações científicas);

  • repúdio aos encaminhamentos relacionados aos indicadores de qualidade, às metas educacionais, às novas formas de organização das modalidades de ensino, aos resultados educacionais.

Denúncias

  • denúncias contra retrocessos;

  • perseguições políticas a gestores e professores.

  • denúncia contra retrocessos cujas propostas representam desmonte das políticas educacionais, da organização das diferentes instâncias educativas e da carreira do magistério;

  • busca para afirmação da escola como um espaço de proteção aos estudantes e aos professores, em que a pluralidade de pensamentos e o diálogo democrático sejam cultivados para a criação de espaço em que se aprendem o respeito e o apreço à tolerância.

Reconhecimento

  • defesa do legado social e do projeto educacional do MST;

  • legado de Paulo Freire;

  • pesquisas e atuação docente de professores falecidos.

  • valorização de pesquisadores renomados, de grupos de pesquisa e profissionais da educação;

  • homenagem póstuma a pesquisadores de destaque.

Críticas relacionadas às propostas governamentais

  • fechamento de escolas do campo;

  • política ambiental;

  • militarização das escolas;

  • educação domiciliar;

  • ideologia nas escolas;

  • organização do processo de alfabetização;

  • ideologias nas escolas/Escola sem Partido;

  • ataques à autonomia universitária e a profissionais da educação superior;

  • política de desregulamentação da oferta educacional por grupos privados;

  • retrocessos na educação;

  • defesa de direitos, proposição de medidas e análise crítica que inviabilizam a implantação do PNE;

  • laicidade da escola pública brasileira;

  • Programa Residência Pedagógica.

  • solicitação de reconsideração da medida provisória sobre ensino domiciliar;

  • alerta sobre os equívocos das propostas apresentadas por instâncias governamentais;

  • apresentação de argumentos sobre prejuízos que as propostas podem ocasionar à formação de alunos;

  • problematização sobre desconstrução, estereótipos, preconceitos e discriminações;

  • apoio a entidades pela mobilização permanente por uma escola plural;

  • demonstração da necessidade de o orçamento da Capes garantir condições para consolidar estratégias de formação de quadros da educação básica;

  • promoção de ações, projetos e programas que se constituam como políticas de Estado e, dessa forma, não possam sofrer descontinuidades.

Debates

  • impactos na licença-maternidade na produção acadêmica;

  • movimentos sociais;

  • luta das mulheres por igualdade: direito à creche;

  • mobilização para luta de resistência em relação aos direitos das mulheres, cortes de salários e repressão.

  • discussão sobre impactos da licença-maternidade na produção acadêmica.

Divulgação de ações

  • eventos promovidos por entidades;

  • reuniões nacionais e regionais;

  • informações sobre ações operacionais da associação;

  • apoio a entidades;

  • publicação de artigos ou edições das revistas: RBE e RBEB;

  • editais diversos;

  • história da ANPEd.

  • demonstração da necessidade de resistência criativa e de vigilância para a defesa dos pilares sociais e da educação pública;

  • provocação a uma análise crítica dos ataques que são de múltiplas dimensões, mas também inspiram pensar que as lutas e as resistências são intensas e plurais;

  • demonstração das potencialidades das revistas e da ANPEd para a valorização de pesquisadores e professores, para a comunicação de teorias e práticas para uma educação democrática e plural.

Financiamento educacional

  • cortes de bolsas de pós-graduação;

  • suspensão de programas de educação básica, de universidade aberta e de cooperação internacional;

  • financiamento da educação;

  • cortes orçamentários na Capes;

  • posicionamentos de defesa do orçamento à pesquisa e à ciência;

  • financiamento da educação brasileira: necessidade de investimento.

  • demonstração acerca da necessidade de recompor os orçamentos das unidades ligadas às atividades de ciência e tecnologia;

  • apoio à reinvindicação para ampliação dos recursos orçamentários;

  • defesa do papel da Capes no financiamento e na qualidade do desenvolvimento da educação brasileira.

Organização da pós-graduação

  • sistema de avaliação da pós-graduação;

  • critérios de doutorado sanduíche no exterior;

  • desafios e perspectivas para a pós-graduação;

  • excelência das instituições;

  • perspectivas para a pós-graduação em educação;

  • métricas, avaliações e periódicos.

  • articulação com outras entidades;

  • discussão do contexto da pós-graduação, dos sistemas de avaliação e da métricas científicas;

  • críticas sobre o programa de doutorado sanduíche;

  • defesa da necessidade de expansão e do fortalecimento da política de pós-graduação para o cumprimento do PNE;

  • preocupação com a concepção de internacionalização da pós-graduação.

PNE: Plano Nacional de Educação; Fundeb: Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação; BNCC: Base Nacional Comum Curricular; Libras: Língua Brasileira de Sinais; MEC: Ministério da Educação; CNE: Conselho Nacional de Educação; MST: Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra; Capes: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior; RBE: Revista Brasileira de Educação; RBEB: Revista Brasileira de Educação Básica.

Ao inventariarmos as problemáticas abordadas pelos boletins da ANPEd, pudemos apontar aspectos relevantes que evidenciam as concepções epistemológicas e axiológicas que fundam os princípios basilares defendidos pela associação. Observa-se uma atenção para os diversos aspectos constitutivos de uma política educacional e do fazer pedagógico. O caráter reflexivo concedido às questões abordadas pode contribuir para processos de formação docente, uma vez que as questões são tratadas fundamentadas em estudos estatísticos ou em pesquisas realizadas por especialistas, o que favorece a apresentação de uma argumentação orientada teoricamente.

Como a análise foi feita em relação aos gêneros discursivos presentes nos boletins, partimos de uma concepção de que dizer e fazer são atos complementares e indissociáveis. Podemos, por essa perspectiva, analisar as problemáticas tematizadas pelos boletins enquanto posicionamentos linguístico-sócio-discursivos. Bakhtin, em seu livro Para uma filosofia do ato responsável, utiliza a palavra russa postupok, que é traduzida como ato responsável. Augusto Ponzio, primeiro tradutor do autor para o italiano no início dos anos 1970, explica a tradução:

“Postupok”, ato, contém a raiz “stup” que significa “passo”, ato como um passo, como iniciativa, movimento, ação arriscada, tomada de posição. [...] “Postupok” é um ato, de pensamento, de sentimento, de desejo, de fala, de ação, que é intencional, e que caracteriza a singularidade, a peculiaridade, o monograma de cada um, em sua unicidade, em sua impossibilidade de ser substituído, em seu dever responder, responsavelmente, a partir do lugar que ocupa, sem álibi e sem exceção. (Ponzio, 2010, p. 9-10)

Esse ato, no âmbito bakhtiniano, é ao mesmo tempo constitutivo de uma responsabilidade (enquanto tomada de posição) e de uma respondibilidade (enquanto resposta inescapável diante de outros dizeres e outros atos). Do lugar único e singular que cada sujeito ocupa no mundo, em dado acontecimento, é que ele é responsabilizado pelo que diz/faz, respondendo a dizeres/fazeres seus e de outros sujeitos.

O sujeito-institucional ANPEd situa-se, igualmente, na mesma condição. Pode parecer, pelo Quadro 2, que as problemáticas publicadas nos boletins levantam âmbitos de atuação e proposições demasiadamente amplos, no entanto os temas que elas evocam não são desvinculados dessa relação responsável e respondível que o próprio contexto educacional, tomado em uma esfera mais ampla, na inter-relação com o social, econômico, político, ideológico e cultural, evoca. Volochínov (2017) trata da inter-relação dessas dimensões: “Cada época e cada grupo social possui o seu próprio repertório de formas discursivas da comunicação ideológica cotidiana. Cada grupo de formas homogêneas, ou seja, cada gênero discursivo cotidiano, possui seu próprio conjunto de temas” (Volochínov, 2017, p. 109).

Assim, quando os boletins tratam da problemática que intitulamos de “prioridades de questões políticas, educacionais e sociais”, pode parecer estranho que âmbitos de atuação tais como “mitos relativos à educação brasileira”, “cotidiano escolar” e “valores da educação democrática” participem de uma mesma unidade temática. Todavia, de acordo com essa lógica interacional de enunciados [dizeres e(nquanto) fazeres], há uma resposta do posicionamento da ANPEd (um ato responsável) ao contexto sociopolítico, impactante do cenário educacional. Mitos relativos à educação brasileira referem-se, por um lado, a concepções pré-/anticientíficas que continuam postulando, a despeito de pesquisas sociológicas e antropológicas, concepções sobre cognição e fracasso escolar baseadas em modelos racistas, de superioridade/inferioridade de classes, etnias e segmentos sociais, étnicos e raciais.

Essa dimensão responde, por oposição, a “valores democráticos da sociedade brasileira” e impregnam o “cotidiano escolar”, em nossos espaços educacionais da educação básica, bem como nos espaços de formação inicial do professor no ensino superior e de formação continuada no próprio ambiente de trabalho.

Essas questões também não estão dissociadas do que aparece na problemática dos debates como “mobilização para luta de resistência para os direitos das mulheres, cortes de salários e repressão”. A inter-relação entre as questões de gênero e a assimetria de reconhecimento profissional e a precarização da condição de trabalho particulariza, na situação das mulheres professoras, um conjunto de concepções, dizeres, fazeres, políticas governamentais que desenham um cenário de desafios aos quais a ANPEd responde, com dizeres que são fazeres de marcar posição. Assim, fixa um lugar de resistência ao desrespeito a esses direitos, entendidos como fundamentais para a dignidade de profissionais da educação, estudantes, comunidades atendidas e da sociedade brasileira em geral.

Outro ponto que destacamos é a problemática do financiamento educacional. Quando os boletins tematizam o financiamento da pós-graduação, pode parecer que isso está desconectado dos problemas mais cruciais vivenciados pela educação básica, no entanto podemos enxergar que, no repertório temático que faz a ANPEd se constituir como sujeito-institucional, há uma concepção sistêmica da educação. Nenhuma instância desse sistema é estanque, nem termos de inter-relação com as demais, nem em termos de que as concepções que subjazem a cada uma coparticipam da construção da conjuntura como um todo.

Em vista disso, podemos notar claramente, em cada um desses contextos de exposição de problemáticas, que as proposições da ANPEd se constituem, ao mesmo tempo, por considerarem que a problematização e a discussão são âmbitos fundamentais de construção de espaços de resistência, os quais não prescindem de reivindicações, cobranças, mobilizações nem parcerias com outras agências e movimentos da sociedade.

Desse modo, a associação representa uma possibilidade de deslocamento de posição, de pluralização de ideais e de redefinição de estratégias formativas, uma vez que evidencia não somente a preocupação com o desenvolvimento científico (viabilizado por meio de diferentes iniciativas - entre as quais, a Revista Brasileira de Educação - e das reuniões nacionais e regionais), mas também com as dimensões relativas às propostas governamentais e às demandas da sociedade.

Nesse sentido, observamos, nos boletins, uma diversidade de campos de atuação: evidencia-se uma abordagem que contempla os níveis de ensino (educação infantil até o ensino superior), as políticas públicas (Plano Nacional de Educação - PNE, Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação - Fundeb, Base Nacional Comum Curricular - BNCC etc.), as propostas educativas (educação do campo, educação ambiental, educação especial), as propostas de redirecionamento da educação anunciadas pelos governos (militarização das escolas, educação domiciliar, educação a distância nas escolas, educação domiciliar, ataques às universidades e à educação pública, ideologia nas escolas, orçamento educacional etc.). Além disso, os boletins promovem uma interlocução com os associados, por intermédio de gêneros discursivos que estabelecem contato explícito com o interlocutor. Soma-se a essas questões uma atenção especial quanto às pautas relacionadas às diversidades socioculturais.

Essa posição encontra sustentação em Aguiar (2009, p. 11 e 19):

Além do incentivo e da socialização da produção da área, a ANPEd participa de movimentos que buscam alargar as conquistas da sociedade no campo dos direitos, bem como procura intervir na formulação e implementação de políticas educacionais, em especial de políticas de pós-graduação em educação, a exemplo de sua destacada participação nos processos de definição da Constituição Brasileira de 1988, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996, do Plano Nacional de Educação de 2001 e, mais recentemente, com relevante contribuição nas audiências e fóruns que discutem as questões da educação brasileira, como a Conferência Nacional de Educação Básica. Inserida nos movimentos que visam contribuir para a superação da desigualdade no país e para a afirmação dos direitos sociais, a ANPEd tem assumido e compartilhado diversas iniciativas no campo da diversidade cultural. [...] As iniciativas da ANPEd no tocante ao campo da diversidade cultural colaboram com os processos que buscam a transformação da sociedade brasileira no sentido de sua emancipação, ao acolher demandas do setor público que visam o estabelecimento de padrões de justiça e de igualdade social. Incentivar e proporcionar condições propícias ao desenvolvimento de estudos sistemáticos e relevantes sobre a multiplicidade de aspectos da realidade brasileira constitui, sem dúvida, uma contribuição relevante da ANPEd para o alcance de tais objetivos, dado que o acesso cada vez mais amplo ao conhecimento crítico auxilia a desvelar contradições da sociedade e pode induzir ações de mudanças. O combate a todas as formas de exclusão é também alimentado pela produção científico-acadêmica. Os estudos e as pesquisas produzidos pelos pesquisadores vinculados à ANPEd mostram não só a persistência das desigualdades na sociedade brasileira, como apontam alternativas para modificar as condições que as produzem. As investigações contribuem de forma relevante para a implementação de ações e de políticas que podem alterar esse quadro, garantindo a oferta e a qualidade da educação para todos.

A diversidade de temas abordados pela ANPEd nos boletins revela uma concepção bastante ampliada de educação. Ou seja, as bases epistemológicas e axiológicas assumidas pela associação ao longo de sua trajetória de atuação são construídas fundamentadas em uma concepção de educação como um fenômeno complexo em que estão implicados diferentes sujeitos e diferentes contextos, que, por sua vez, demandam diferentes ações propositivas.

Nesse sentido, destacamos que as produções organizadas e socializadas pela ANPEd não se limitam à problematização de questões ligadas às políticas educacionais nem à busca pela construção de uma escola pública gratuita, laica e de qualidade. Os boletins, de modo especial, apresentam uma dimensão propositiva.

As ações propositivas destacadas neste trabalho evidenciam que a ANPEd assume um posicionamento crítico e proativo em relação à conjuntura educacional brasileira. As diversas ações demonstram processos de intervenções, que culminam em:

  • (re)dimensionamento das políticas públicas, com vistas a garantir o acesso à educação de qualidade, melhor uso de recursos públicos, ampliação dos direitos dos cidadãos, viabilização de propostas para atendimento às demandas das minorias sociais, atenção aos diferentes processos do processo educacional (gestão, ensino, pesquisa etc.);

  • sistematização das discussões sobre o campo da educação, visando garantir o aprofundamento das questões de interesse dos grupos de pesquisadores/as e de professores/as; propiciar a circulação das produções científicas; favorecer o atendimento às especificidades das demandas regionais; promover o debate quanto às questões atuais da conjuntura educacional brasileira;

  • adesão e promoção de movimentos de enfrentamento de situações de injustiça, de desigualdade social, de desvalorização profissional etc., objetivando a luta coletiva por direitos já assegurados por lei ou por novas garantias legais e o fortalecimento de ações coletivas;

  • problematização de questões ligadas ao atrelamento de políticas públicas ao substrato econômico que sustenta os diferentes projetos nacionais de desenvolvimento, o que pode favorecer uma discussão acerca dos investimentos educacionais e da dotação orçamentária;

  • valorização profissional de professores/as e pesquisadores/as, que evidencia a atuação humanizada e solidária.

Tais ações configuram, portanto, atos que se responsabilizam não somente pelos dizeres que publicam, mas que, por dizerem, agem enquanto diálogo - crítico - no que se refere aos sujeitos individuais e institucionais, às organizações e às instâncias da sociedade brasileira que coparticipam de relações com a conjuntura educacional. É no movimento desse fazer/dizer que os boletins representam um papel de compromisso, seja pela divulgação de informações, seja pelo acesso a outras vozes, as quais ensejam denúncias, discussões e reflexões acadêmicas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tivemos como objetivo, neste artigo, caracterizar o papel de boletins publicados pela ANPEd para a qualificação do debate sobre o contexto educacional brasileiro. Para isso, analisamos dez boletins de 2018 e 2019 e procuramos discutir como, por meio da publicação desse material, a ANPEd demonstra em sua atuação que uma entidade de representação acadêmica de área é mais do que uma congregação de encaminhamentos e proposições técnico-científicas.

Com base na análise desses boletins e à luz de conceitos que pensam o dizer e o fazer como instâncias indissociáveis e complementares, percebemos e quisemos mostrar que há, inerentemente ao ato de dizer e publicar (dizer publicamente), um posicionamento dos sujeitos, sejam individuais, sejam institucionais. No caso da ANPEd, como associação acadêmica, evidenciamos dois âmbitos. Um primeiro, subjacente à publicação dos boletins, é que, ao dizer sobre a educação brasileira, sobre as relações que a educação tem com a conjuntura (geo)política e econômica, a ANPEd já institui um fazer que ora é de denúncia, ora de esclarecimento, ou ainda de se constituir como porta-voz de segmentos internos ao contexto educacional brasileiro ou externos, mas afeitos às questões que o afetam. O segundo âmbito é relativo ao teor dos boletins. A associação demonstra, na escolha dos temas, um diálogo com as questões que, no seu entender, dizem respeito ao cenário da educação brasileira. Não se restringe a temáticas mais diretamente ligadas ao seu campo de atuação, mas, cumprindo as concepções que já aponta em seus documentos de fundação, entende como seu compromisso institucional o posicionamento crítico, explícito e não tecnicista. Isso representa uma concepção do fazer acadêmico como um compromisso indissociável entre a produção de saberes especializados, o diálogo desses saberes com outros saberes produzidos e circulantes no interior da sociedade e as fronteiras, no âmbito educacional, entre o conhecer e o agir.

Tais reflexões também revelam contribuições para uma discussão sobre as demandas de articulação com a escola básica e para a qualificação do trabalho de professores/as, uma vez que o gênero discursivo boletim implica um diálogo com/entre diferentes sujeitos envolvidos no contexto educacional.

Essa atuação da ANPEd potencializa não somente discussões quanto ao contexto educacional, mas constitui uma relevante estratégia formativa para a constituição de sujeitos críticos, mais atentos aos desafios da conjuntura. Os boletins da ANPEd, na medida em que não se limitam a reproduzir, divulgar nem informar, assumem cada ato de dizer como uma responsabilidade institucional e ética para com os propósitos da associação e suas concepções de educação e de sociedade.

REFERÊNCIAS

AGUIAR, M. Â. S. A ANPEd e o campo da diversidade cultural. Iniciativas e contribuições recentes. Múltiplas Leituras, v. 2, n. 1, p. 9-20, 2009. Disponível em: Disponível em: https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/ML/article/download/323/321 . Acesso em: 20 dez. 2018. [ Links ]

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1 Uma reflexão acurada no que diz respeito à qualidade da educação supõe apreendê-la no âmago da dinâmica socioeconômica e cultural de um país. Implica perceber como a política educacional interage com os projetos nacionais de desenvolvimento, os quais, por sua vez, articulam-se, de forma mais ou menos autonômica, com as sucessivas mutações da economia mundial; supõe perceber a sua interlocução com os movimentos pedagógicos e metodológicos e, ainda, com as demandas da sociedade organizada, mais especificamente aquelas que partem dos educadores, muitas vezes sustentando posições contrárias à política oficial. No seio dessa dinâmica, são produzidos valores que se traduzem em diferentes sentidos para a qualidade. Observada pela função social, a educação de qualidade se realiza na medida em que logre preparar o indivíduo para o exercício da ética profissional e da cidadania. Supõe, ainda, educá-lo para compreender e ter acesso a todas as manifestações da cultura humana; do ângulo puramente pragmático, a educação de qualidade se resume ao provimento de padrões aceitáveis de aprendizagem para inserir o indivíduo - como produtor-consumidor - na dinâmica do mercado (Fonseca, 2009, p. 154, grifo dos autores).

Recebido: 25 de Março de 2019; Aceito: 27 de Agosto de 2019

Helena Maria Ferreira é doutora em linguística aplicada e estudos da linguagem pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professora da Universidade Federal de Lavras (UFLA). E-mail: helenaferreira@ufla.br

Francine de Paulo Martins Lima é doutora em psicologia da educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professora da Universidade Federal de Lavras (UFLA). E-mail: francine.lima@ufla.br

Marco Antonio Villarta-Neder é doutor em linguística e língua portuguesa pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp). Professor da Universidade Federal de Lavras (UFLA). E-mail: villarta.marco@ufla.br

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