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Revista Brasileira de Educação

versão impressa ISSN 1413-2478versão On-line ISSN 1809-449X

Rev. Bras. Educ. vol.25  Rio de Janeiro jan./dez 2020  Epub 20-Fev-2020

https://doi.org/10.1590/s1413-24782019250006 

Artigos

Discursos em análise na pesquisa em educação: concepções e materialidades*

SPEECHES IN ANALYSIS IN RESEARCH IN EDUCATION: CONCEPTIONS AND MATERIALITIES

DISCURSOS EN ANÁLISIS EN LA INVESTIGACIÓN EN EDUCACIÓN: CONCEPCIONES Y MATERIALIDADES

Liliana Soares Ferreira I  
http://orcid.org/0000-0002-9717-1476

IUniversidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS, Brasil.


RESUMO

Apresentam-se compreensões de discurso, tendo a dialética como aporte teórico-metodológico. Para tanto, desenvolveu-se percurso teórico-metodológico de modo sistemático, configurado em movimentos de idas e vindas, partindo de um suposto, elaborando sobre ele argumentos, para retomá-los, reiniciar o processo reiteradamente a fim de confirmá-los ou refutá-los, na medida em que foram submetidos ao confronto e à análise comparativa em relação às demais compreensões. Resultante desse percurso teórico-metodológico, este texto visa a apresentar as sistematizações elaboradas em seções que contêm a concepção de discurso, a diferenciação desta em relação às concepções estudadas e considerações sobre a proposição aplicada dessa concepção, considerando a experiência com dados discursivos produzidos no grupo de pesquisa para, em decorrência, sínteses que visam a lançar à frente os estudos sobre o tema.

PALAVRAS-CHAVE: discurso; análise discursiva dialética; pesquisa em educação; práxis

ABSTRACT

Speech comprehension is presented, with dialectics as a theoretical-methodological contribution. For that, a theoretical-methodological course was developed, systematically, configured in movements of comings and goings, starting from a supposed one, elaborating on it arguments, to resume them, to restart the process repeatedly in order to confirm or refute them, in as much as they were submitted to confrontation and comparative analysis in relation to other understandings. As a result of this theoretical-methodological course, this text aims to present the systematizations elaborated in sections that contain the conception of discourse, its differentiation in relation to the conceptions studied and considerations about the applied proposition of this conception considering the experience with discursive data produced in the research group to, consequently, syntheses that aim to launch the studies on the topic ahead.

KEYWORDS: speech; dialectical discursive analysis; research in education; praxis

RESUMEN

Se presentan comprensiones de discurso, teniendo la dialéctica como aporte teórico-metodológico. Con este fin, se desarrolló un recorrido teórico-metodológico, de modo sistemático, configurado en movimientos de idas y venidas, partiendo de un supuesto, elaborando sobre él argumentos, para reanudarlos, reiniciar el proceso reiteradamente para confirmarlos o refutarlos, en la medida en que fueron sometidos al enfrentamiento y al análisis comparativo en relación a las demás comprensiones. Como resultado de este enfoque teórico-metodológico, este documento tiene como objetivo presentar la sistematización elaborada en secciones que contienen el diseño de expresión, la diferenciación de esta en relación con los conceptos estudiados y la consideración de la propuesta de aplicar este concepto considerando la experiencia con datos discursivos producidos en el grupo de investigación para, en consecuencia, síntesis que pretenden lanzar a la cabeza los estudios sobre el tema.

PALABRAS CLAVE: discurso; análisis discursivo dialéctico; investigación en educación; praxis

INTRODUÇÃO

Há tempos trabalhando com análise dialética em comunidade acadêmica1 de pesquisa, enfrenta-se o desafio de explicar por que e com base em quais fundamentos epistemológicos se trabalha com discursos como dados produzidos e analisados. As questões relacionam-se a serem ou não os discursos uma materialidade potencialmente analisável na perspectiva dialética. Do mesmo modo, observando e convivendo com professores, sendo professora, duas questões passam a convocar nas pesquisas e nos estudos:

  1. como reeditar, com os professores, como interlocutores em suas coletividades, os sentidos de seu trabalho e saber quem são como trabalhadores?

  2. em que medida os professores produzirem discursos, em movimentos do individual para o coletivo e deste para aquele, sobre o que fazem profissionalmente produz consciência e, em decorrência, transformação de si e de seu trabalho?

Isso porque, em acordo com Sánchez Vázquez (2007, p. 306), o nível de consciência do trabalhador em relação a seu trabalho permite vislumbrar a ocorrência de “[...] práxis reflexiva (com uma elevada consciência da práxis) e o da práxis espontânea (com uma baixa ou ínfima consciência dela)”. Busca-se um nível em que a práxis reflexiva se manifeste visando a uma ação a mais autônoma e própria de cada sujeito trabalhador, se consideradas as características do trabalho dos professores e seus coletivos.

Tais questões exigiram a escrita deste artigo, cujo objetivo é apresentar compreensões de discurso, tendo a dialética como aporte teórico-metodológico e, ao mesmo tempo, sistematizar os argumentos que se produziu até o momento com relação a essa temática. Para atingir esse objetivo, elaborou-se um percurso que incluiu:

  • estudo das concepções de discurso em especial para análise do discurso (Michel Pêcheux), pois como teoria é a base por meio da qual se tem recriado a análise e constituído o que se está denominando análise dialética aplicada aos discursos;

  • elaboração de quadros de análises dessas concepções, objetivando compará-las e discernir suas aproximações e distanciamentos;

  • elaboração inicial de uma concepção dialética de discurso, diferenciando-a das anteriores;

  • submissão dessa elaboração inicial à análise de dados discursivos produzidos pela comunidade acadêmica;2

  • reelaboração e sistematização das análises neste artigo.

Esse percurso teórico-metodológico configurou-se, portanto, de modo sistemático em movimentos de idas e vindas, partindo de um suposto, elaborando sobre ele argumentos, para retomá-los, reiniciar o processo reiteradamente a fim de confirmá-los ou refutá-los, na medida em que foram submetidos ao confronto e à análise comparativa em relação às demais compreensões.

Resultante desse percurso teórico-metodológico, este texto visa à apresentação das sistematizações elaboradas em seções que contêm a concepção de discurso, a diferenciação desta em relação às concepções estudadas e considerações sobre a proposição aplicada dessa concepção, considerando a experiência com dados discursivos produzidos no grupo de pesquisa para, em decorrência, elaborar sínteses que visam a lançar à frente os estudos sobre o tema.

SOBRE UMA CONCEPÇÃO DE DISCURSO

O que são discursos? Tratam-se de enunciados organizados e expressos pelos sujeitos, mediante uma intencionalidade, um objetivo em relação aos interlocutor(es), preestabelecido e teleologicamente elaborado, porque antecipam reações, compreensões, interações a serem alcançadas por meio da organização expressiva da linguagem. Discursivar,3 primeiramente, é repartir-se no social, indo ao encontro do outro, seja para compartilhar, seja para contrariar. Essa dimensão do discurso é que o consubstancia como produção social. Pelo discurso, os sujeitos narram, descrevem, planejam, projetam, avaliam, reconstroem e registram seu trabalho.

Para efeitos de esclarecimento, faz-se distinção entre língua e linguagem. Aquela é o conjunto de signos linguísticos com os quais é possível comunicar-se (língua portuguesa, língua inglesa etc.); esta é o conjunto de signos linguísticos e não linguísticos (mímica, canto, gestos etc.), ou seja, é entendida como toda manifestação verbal e não verbal, por meio da qual os sujeitos interagem, estabelecem relações e trabalham. Cabe destacar agora um argumento a ser desenvolvido ao longo do artigo: há uma relação intrínseca entre trabalho e linguagem, de modo que esta assim como aquele constituam o ser humano. Por isso, é totalmente social, ou seja, a linguagem evidencia-se no social, histórica e contextualmente localizada. Nesse sentido, Sánchez Vázquez afirma que a língua, em sua aplicação prática, não se separa “[...] de seu conteúdo ideológico ou relativo à vida. Para se separar abstratamente a língua de seu conteúdo ideológico ou vivencial, é preciso elaborar procedimentos particulares não condicionados pelas motivações da consciência do locutor” (Sánchez Vázquez, 2007, p. 89). Anteriormente, Marx, em sua obra magna O capital - crítica da economia política, livro 1, também afirmava que a linguagem é social.4 Dizia o autor alemão: “[...] a conversão dos objetos úteis em valores é, como a linguagem, um produto social dos homens” (Marx, 2008, p. 96). Cada uma, linguagem e língua, tem suas peculiaridades. E linguagem e língua são diferentes de discurso. Cabe destacar o que antecipa Pêcheux acerca do discurso:

O sistema da língua é, de fato, o mesmo para o materialista e para o idealista, para o revolucionário e o reacionário, para aquele que dispõe de um conhecimento dado e para aquele que não dispõe desse conhecimento. Entretanto, não se pode concluir, a partir disso, que esses diversos personagens tenham o mesmo discurso: a língua se apresenta, assim, como a base comum de processos discursivos diferenciados, que estão compreendidos nela na medida em que [...] os processos ideológicos simulam processos científicos. (Pêcheux, 1988, p. 91)

Viana (2009), que tece considerações críticas ao conceito de discurso de Pêcheux,5 destaca que a linguagem é o meio pelo qual o discurso é manifestado e pode conter vários discursos. Ao diferenciar linguagem e discurso, Viana (2009) explica que em uma sociedade organizada em classes sociais a linguagem é polissêmica e o discurso possui um significado próprio, o qual se mescla aos significados dos discursos dos interlocutores. Então Viana apresenta sua concepção de discurso, cujas características são:

  • “[...] é uma manifestação concreta e delimitada da linguagem”;

  • “[...] suas partes constitutivas são a estrutura e a conjuntura e o caráter de sua estrutura é unissêmico”;

  • “[...] é algo concreto e delimitado, ou seja, é sempre o discurso de um autor, de uma escola, de um grupo social, etc.”;

  • “[...] é uma totalidade”;

  • “[...] é uma manifestação particular, específica, concreta da linguagem”;

  • “[...] um todo coerente e organizado, embora o nível de coerência e organização varie dependendo do discurso”.

E o autor encerra declarando: “A coerência e organização dependem de quem profere o discurso” (Viana, 2009, p. 17). Nesse rumo de concepção, o autor vincula discurso e consciência, defendendo que aquele é uma manifestação de um sujeito, ser consciente, que elabora e emite, tendo por base “[...] sua posição no conjunto das relações sociais e da forma como concebe sua posição. O discurso, por conseguinte, é constituído socialmente e para descobrir seu processo de produção é preciso compreender o seu produtor” (Viana, 2009, p. 17). Então não se trata de uma “entidade abstrata”, e o autor reitera que discurso é, sim, “[...] uma manifestação concreta da linguagem”, constituída linguisticamente pelos sujeitos ao aplicarem linguagem “[...] sob uma forma concreta e particular” (Viana, 2009, p. 17). O autor enfatiza que, ao discursivar, os sujeitos expressam a realidade concreta e, ao mesmo tempo, possibilitam movimento de socialização, no qual há possibilidade de debate, diálogo, confronto de argumentos, condição para a práxis política e para consciência sobre si e sobre a realidade.

Fairclough (2001), ao estabelecer correspondência entre o social e os discursos, descrevendo a linguagem como possibilidade de elaborar a realidade, representar nela as relações estabelecidas entre os seres humanos e construir textos, então, uma prática social, uma ação social e historicamente situada, descreve discurso do seguinte modo: “O discurso é uma prática, não apenas de representação do mundo, mas de significação do mundo, constituindo e construindo o mundo em significado” (Fairclough, 2001, p. 91). E, em capítulo destinado a descrever uma concepção de discurso, já no início afirma:

Ao usar o termo “discurso”, proponho considerar o uso da “linguagem” como forma de prática social e não como atividade puramente individual ou reflexo de variáveis situacionais. Isso tem várias implicações. Primeiro, implica ser o discurso um modo de ação, uma forma em que as pessoas podem agir sobre o mundo e especialmente sobre os outros, como também um modo de representação. [...] Segundo, implica uma relação dialética entre o discurso e a estrutura social, existindo mais geralmente tal relação entre a prática social e a estrutura social; a última é tanto uma condição como um efeito da primeira. Por outro lado, o discurso é moldado e restringido pela estrutura social no sentido mais amplo e em todos os níveis: pela classe e por outras relações sociais em um nível societário, pelas relações específicas em instituições particulares, como o Direito ou a educação, por sistemas de classificação, por várias normas e convenções tanto de natureza discursiva como não discursiva, e assim por diante. (Fairclough, 2001, p. 90-91)

Coloca-se em destaque a expressão “prática social” como central e a relação entre esta e a “estrutura social”. O autor determina que a estrutura é consequência da prática, assim como uma condição. Dessa maneira, os sujeitos produzem discursos porque estão imersos no social e, ao produzi-los, reorganizam esse social. Então o discurso não seria práxis?6 E, se assim for, visa à transformação do sujeito. Do mesmo modo, se o discurso, para ser analisado, precisa considerar a estrutura social que o molda, há uma expansão do discurso para além da linguagem, para além dos sujeitos, parecendo exigir uma maior subjetivação da análise, ou seja, uma projeção do sujeito que discursiva no social.

Contrariamente, defende-se que o discurso em si já contém o social, já contém as posições de classe social, as relações que o sujeito estabelece com o social, e por isso sua análise restringe-se ao discurso em si. A práxis possibilita, se em condições críticas, perspectivas revolucionárias, transformação. No capitalismo, há que se investigar quais condições se tem de produzir um discurso crítico, sobretudo se o discurso crítico está subjugado à produção da mais-valia imposta pelo capitalista, base da práxis revolucionária. Por essas questões em aberto, é necessário ir além de Fairclough, recriando sentidos para a análise do discurso, de modo que, mais que crítica, seja dialética. É essa a intenção com a qual se está escrevendo para sistematizar argumentos até agora elaborados.

Em sua obra, no âmbito do estabelecimento das bases para o materialismo dialético, Marx e Engels destacam que a linguagem é antiga como o é a consciência: “[...] a linguagem é a consciência real, prática, que existe para os outros homens e, portanto, existe também para mim mesmo; e a linguagem nasce, como a consciência, da necessidade de intercâmbio com outros homens” (Marx e Engels, 2007, p. 34). Engels ainda vai além. Narra que os animais, apesar de possuírem órgãos fonadores diferenciados dos seres humanos, ao conviverem com estes passam a compreender sua linguagem e a se desenvolver, chegando a ponto de apreender também a apegar-se, seguir e interagir com quem convivem.7 Dada essa peculiaridade, o autor afirma, em um contexto científico, com base nas descobertas sobre a origem e constituição do ser humano próprias daquele momento:

Primeiro o trabalho, e depois dele e com ele, a palavra articulada, foram os dois estímulos principais sob cuja influência o cérebro do macaco foi-se transformando gradualmente em cérebro humano - que, apesar de toda sua semelhança, supera-o consideravelmente em tamanho e em perfeição. [...] o desenvolvimento do cérebro e dos sentidos a seu serviço, a crescente clareza de consciência, a capacidade de abstração e de discernimento cada vez maiores, reagiram por sua vez sobre o trabalho e a palavra, estimulando mais o seu desenvolvimento. Quando o homem se separa definitivamente do macaco, esse desenvolvimento não cessa de modo algum, mas continua, em grau diverso e em diferentes sentidos entre os diferentes povos e as diferentes épocas, interrompido mesmo às vezes por retrocessos de caráter local ou temporário, mas avançando em seu conjunto a grandes passos, consideravelmente impulsionados e, por sua vez, orientado em um determinado sentido por um novo elemento que surge com o aparecimento do homem acabado: a sociedade. (Engels, 2004, p. 19-20)

Portanto, desde então se sabe haver uma relação entre linguagem, discurso e consciência. Fromm (1979), ao elucidar a relação entre os sujeitos, a cultura e a sociedade, influenciado por Marx, afirma que há uma relação entre a experiência tornada consciente e o pensamento organizado: “[...] a experiência só pode adquirir consciência sob a condição de ser percebida, relacionada e ordenada em termos de um sistema conceptual e de suas categorias” (Fromm, 1979, p. 110-111). E nesse sentido há uma imbricação entre linguagem, consciência e discurso ou, como explica Fonseca, tanto quem detém os meios de produção quanto quem detém a força de trabalho utilizam-se da mesma língua, porém sendo esta um processo social, relaciona-se às posições sociais: “[...] não é um instrumento neutro à disposição dos usos sociais os mais diversos: ela compreende em si mesma, na sua materialidade, lacunas e equivocidades que reverberam conflitos discursivos do passado e do presente” (Fonseca, 2015, p. 8). Chega-se, então, à relação entre luta de classes, linguagem e discurso, assim descrita por Viana:

A luta de classes que perpassa a linguagem se dá em torno do significado das palavras e dos demais signos utilizados na comunicação humana. A classe dominante possui o interesse em emperrar um livre desenvolvimento da consciência humana além de um determinado limite. Ela busca, de forma às vezes inintencional, impor sua ideologia, suas concepções, sua mentalidade. As demais classes sociais buscam resistir e as classes exploradas esboçam uma linguagem diferenciada. Entretanto, a diferença de linguagem ocorre no interior de uma totalidade, ou seja, a diferença vem acompanhada por uma semelhança. (Viana, 2009, p. 17)

Conforme se argumentou até aqui, os discursos, cuja base é a linguagem e visam a ser manifestação consciente dos sujeitos, estão em conformidade com a posição social pela qual cada sujeito se percebe socialmente, dependendo de sua participação na produção material da vida, pela venda ou pela compra da força de trabalho e pela propriedade ou não dos meios de produção. Tal crença inscreve-se em um modo de entender a relação entre o ser social e a produção do discurso, relacionando-os à posição que ocupa, vive ou pode viver dentro de uma formação social. Essa posição lhe confere uma classe social na qual e por meio da qual se produzem também discursos:

[…] classes sociais diferentes servem-se de uma só e mesma língua. Consequentemente, em todo signo ideológico confrontam-se índices de valor contraditórios. O signo se torna a arena onde se desenvolve a luta de classes. [...] O signo, se subtraído às tensões da luta social, se posto à margem da luta de classes, irá infalivelmente debilitar-se, degenerará em alegoria, tornar-se-á objeto de estudo dos filólogos e não será mais um instrumento racional e vivo para a sociedade. (Bakhtin, 2006, p. 45-46)8

Os conceitos de classes sociais9 e de consciência de classe são organizativos da argumentação marxiana e estão presentes em toda a sua obra. Na carta a Annenkov, de 28 de dezembro, provavelmente de 1846, ao emitir opinião sobre a obra Filosofia da miséria, escrita por Proudhon, Marx sentencia que a história social é a história do desenvolvimento individual, ainda que os sujeitos não tenham consciência disso, e explica: “Suas relações materiais constituem a base de todas as suas relações. Essas relações materiais nada mais são do que as formas necessárias nas quais sua atividade material e individual se realiza” (Marx, 1985, p. 207). Nessa perspectiva de entendimento, buscam-se sentidos que os sujeitos estabelecem para suas posições em relação à sua condição de trabalhadores, pois se entende que são anteriores a posições de classe social e ampliam-se com estas.

SOBRE DISCURSOS EM UMA PERSPECTIVA DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO

Ainda que sejam aparentemente isentos de sentidos,10 acredita-se que os discursos sempre são intencionais, pelo menos para o sujeito que o profere, pois é ele quem seleciona, organiza e expressa. Assim, não há discurso desprovido de intencionalidade. Para confirmar, basta analisar a seleção das palavras, a sua organização, ou mesmo a falta de palavras, os silêncios. Dessa maneira, compreendem-se a aglutinação e a resultante emissão de palavras desprovidas de sentido que se configuram também em discurso. Outro aspecto significativo diz respeito ao fato de os discursos serem evidências dos sujeitos, dizem sobre quem os elabora e emite. É por esse motivo que se constituem em fundamental material de análise.

Em que medida o discurso é material? Tal pergunta exige outra anterior: o que é materialidade? Começa-se por essa. São materiais as condições de vida humana, a produção humana para sobreviver, e, em decorrência, produzir historicidade e, assim, autoproduzir-se humano. Desse modo, os seres humanos se produzem humanos na medida em que interferem na natureza, sendo eles próprios parte dessa natureza. Ao fazê-lo, alteram sua vida e seu entorno. Essa ação não é somente um esforço humano braçal, é todo o ser humano em ação. Imerso nesse contexto, o discurso então:

  • é produção;

  • é ação;

  • é expressão da ação;

  • é registro histórico da ação;

  • é intervenção na natureza;

  • é manifestação humana individual, mas, por seu caráter comunicacional, é representação11; e

  • está imerso no coletivo (pois precisa ser entendido, e isso exige inter-relação entre os sujeitos).

Assim, o discurso é materialidade. Está na base desta, sustenta-a, alimenta-a de sentidos e possibilita o movimento dos sujeitos, em inter-relação.

Entende-se, assim, a materialidade do discurso e a mediante sua análise podem-se conhecer as condições de vida dos sujeitos, suas marcas ideológicas e sua inserção no social. Isso se deve ao fato de o discurso amalgamar o social exterior à historicidade do sujeito, revelando-o como trabalhador e exibindo o seu trabalho. Um discurso não é individual, produz-se em decorrência de uma formação coletiva e, assim, tem a ver com historicidade. Isso porque não há discurso como protoforma, marco zero, há sempre um antes e um depois, aos quais se referenda o discurso. Obviamente, é mister considerar que um discurso não é um compósito de verdades ou a verdade. Podem-se expressar ideias, argumentos, crenças que não são verdadeiras com a aparência de que o são:

As ideias podem ser expressivas - ou seja, corresponder a uma situação social, de classe, a certos interesses ou necessidades - sendo justamente, por isso, falsas, deformadas ou ilusórias. Nesse caso, o fato de serem expressivas de certos interesses limita ou invalida seu valor cognoscitivo, sua verdade. As ideias são, então, expressivas sem ser verdadeiras. (Sánchez Vázquez, 2007, p. 301)

Ao formular essa argumentação em defesa da materialidade do discurso, afasta-se parcialmente da análise do discurso em Pêcheux, que pressupõe haver materialidade no discurso por ser este articulador da linguagem e da ideologia. Entende-se que, ao produzir-se, como manifestação humana o discurso já é material, está atendendo à ideologia. Nesse aspecto, dizer que o discurso é materialidade não é o mesmo que afirmar a materialidade discursiva (Orlandi, 2012, p. 44). Orlandi ainda afirma: “A materialidade específica do discurso é a língua” (Orlandi, 2012, p. 44). Trata-se de uma questão secundária no que se argumenta. O que é relevante diz respeito ao discurso como produção humana ser por si próprio material, pois é evidência de sua ação no mundo, do seu trabalho, do modo como vive, de suas crenças etc. Para esclarecer essa diferenciação, cita-se, ainda, Orlandi: “O discurso é pois um elemento particular da materialidade ideológica” (Orlandi, 2012, p. 83). E reafirma: “[...] a língua é o lugar material em que se realizam os efeitos de sentido”, retomando o conceito de Pêcheux, para o qual “O discurso é efeito de sentidos entre locutores” (Orlandi, 2012, p. 84). Resultante desses elementos comparativos, discurso é materialidade, é produção de sentidos entre sujeitos que, ao produzi-los, constituem seu mundo, reafirmam ou rearticulam crenças, dão sentido ao seu trabalho e à pertença social, pois: “O sentido da palavra é o caminho para o resgate daquilo que no homem é sujeito, no qual ele não se anula nem se desfaz” (Duarte, 2001, p. 234).

Cabe destacar que se está tratando de discurso, não de fala. Esta, por suas características, é uma manifestação individual, não necessariamente legível aos demais, que pode se isentar do compromisso com a compreensão e com o ir ao encontro do outro. Exemplifica-se com um sujeito que, por algum motivo, patológico ou não, caminha pela rua, falando uma língua não conhecida por outros sujeitos, sem o compromisso de estar implicado no real. Vigotski (1996), ao estudar as relações entre pensamento e linguagem, afirma que a fala, na forma como é organizada, influencia no modo como os sujeitos concebem o mundo, seu pensamento. E argumenta:

A função primordial da fala é a comunicação, o intercâmbio social. Quando o estudo da linguagem se baseava na análise em elementos, também essa função foi dissociada da função intelectual da fala. Ambas foram tratadas como funções separadas, até mesmo paralelas, sem se considerar a inter-relação de sua estrutura e desenvolvimento. No entanto, o significado da palavra é uma unidade de ambas as funções da fala. (Vigotski, 1996, p. 5)

Pode ser uma fala com características discursivas, porém, ao não ser compreendida, não pode ser denominada discurso. Isso porque a primeira característica de um discurso é estar socialmente comprometido, na medida em que se permite ser entendido e, em decorrência, ser refutado, complementado, desconstruído, interpretado. Nessa perspectiva, a fala é individual, o discurso é produção coletiva. Ao mesmo tempo, a fala é própria dos sujeitos em suas peculiaridades individuais, em acordo com suas vivências, imersos em suas culturas. O discurso surge e está referido ao coletivo, aos sujeitos em suas relações. “A materialidade discursiva consiste em uma relação determinada entre a língua e a ideologia” (Courtine, 2016, p. 14). E explica:

[...] o discursivo materializa o contato entre o ideológico e o linguístico, na medida em que ele representa no interior da língua os efeitos das contradições ideológicas e onde, inversamente, manifesta a existência da materialidade linguística no interior da ideologia. (Courtine, 2016, p. 15)

Destaca-se também que os discursos têm sentidos e significados. Isso porque, conforme já mencionado, sentidos são provisórios, alteram-se conforme submetidos ao debate, à análise, à sistematização, configurando-se, só então, em significados. Vigotsky (1996, p. 4) argumenta: “[...] é no significado da palavra que o pensamento e a fala se unem em pensamento verbal”. Assim, o significado equivale a pensar, pertence tanto ao campo da linguagem quanto ao do pensamento (Vigotsky, 1996, p. 4). Pode-se afirmar que língua é um sistema de signos, linguagem inclui a prática social desse sistema e a palavra é o signo, mas é no discurso e por meio dele que o pensamento/conhecimento sobre o mundo se constitui e se expressa. Dada essa complexidade, para Vigotsky (1996, p. 18), diferentemente de Piaget, “[...] o verdadeiro curso do desenvolvimento do pensamento não vai do individual para o socializado, mas do social para o individual”. E, mais adiante em sua argumentação, Vigotsky (1996, p. 104) reitera que o significado das palavras “É um fenômeno do pensamento verbal, ou da fala significativa - uma união da palavra e do pensamento”.

Porém, cabe destacar que a questão não é expressar o pensamento por meio de palavras, organizadas em discursos, somente, mas por meio dos discursos e palavras criar o pensamento (Vigotsky, 1996, p. 108).

Até aqui se objetivou descrever concepções de discurso. Passar-se-á a considerá-los no processo de análise tendo como campo empírico primário e base os projetos de pesquisa já desenvolvidos.

DISCURSOS EM ANÁLISE NA PESQUISA EM EDUCAÇÃO

Um discurso, então, indica algo. Por isso, não é nele que se encontram todos os sentidos e/ou significados, apenas apresenta indicações, mas não todas. Está composto com índices de aparência e de índices a serem analisados dentro de um conjunto de evidências que acabam por mesclarem-se, confundirem-se, criando e recriando as margens dos sujeitos, dos próprios discursos e dos contextos. Porém é importante frisar que o discurso não é o sujeito, muito menos a verdade, é o que se apresenta como sentido e significado. Os sentidos são elaborações alteráveis e o significado se configura em um sentido com mais estabilidade e precisão: “[...] Uma palavra adquire seu sentido no contexto em que surge; em contextos diferentes, altera o seu sentido. O significado permanece estável ao longo de todas as alterações do sentido [...]” (Vigotsky, 1996, p. 125).

Assim, analisa-se o discurso em seus movimentos, suas relações, suas evidências, enfim. Para tanto, cabe imersão profunda, na perspectiva que Harvey denomina de ascenso e descenso (Harvey, 2013, p. 17-18), com o objetivo de compreender as temporalidades do discurso e a especialidade da produção dos sujeitos, da intenção oriunda dos movimentos do social e do impacto, que resultam em mudanças ou não tanto em relação aos pesquisadores, ora analistas de discurso, quanto dos sujeitos e do próprio discurso.

Analisar o discurso não é extraí-lo do contexto em que foi produzido, como se fosse um apêndice. Faz-se necessário analisá-lo no contexto, como produzido, relacionado e dependente deste. Assim, no caso dos discursos dos professores, cabe entender as relações sociais que engendram a seleção de vocabulário, os modos de dizer, as alterações no tom de voz, os silêncios etc. E essas relações sociais, como totalidade, levam os pesquisadores para o interior da escola ou do local de trabalho dos professores, para o bairro onde se insere esse local, para o social ampliado, a fim de que se possa interpretar os discursos e o contexto de sua produção que está na base dos sentidos (Vigotsky, 1996, p. 130).

A análise é, dessa maneira, uma espiral se formando, cujas dobras se vão intercambiando e demandando sentidos para emergir, de modo que possa dar um sentido ao discurso inicial.

Sendo os professores os interlocutores, o discurso faz parte de seu trabalho. Seu trabalho é produzir conhecimento com os estudantes. E isso somente é possível por meio do discurso, da articulação linguística, ou seja, do conjunto de signos pelo qual os sujeitos interagem, socializando saberes, analisando e sistematizando-os e a linguagem, um conjunto ampliado de signos linguísticos e não linguísticos com o qual interagem os sujeitos. Discursivar é um trabalho a ser aprendido pelos professores. Entretanto, não é simples, pois não significa comunicar somente, tampouco expressar argumentos somente. Vai além. Potencializa a dimensão da sedução pelo argumento, da sistematização, do acolhimento e da evidência do conhecimento científico, ao mesmo tempo. Então educar (e mesmo reeducar, criticar e modificar conscientemente) o discurso é uma das atividades mais complexas na autoprodução dos trabalhadores e do trabalho dos professores.

A análise do discurso implica considerar uma categoria fundamental da dialética, que é a totalidade. Ao considerá-la, pode-se partir do suposto de que só se compreende o discurso nas relações que o determinam, na materialidade que o produziu, nas quais se manifestam interesses de classes fundamentais no processo de produção discursiva. Nesse sentido, objetivar-se-á deslindar o discurso dominante, as produções de consenso e as determinações, desconstruindo aparências, mediante a recomposição dos sentidos dos movimentos históricos, para finalmente atingir a essência, por meio do movimento sincrônico entre empiria e teoria. Antepondo-se à filosofia idealista de Hegel, Marx e Engels sentenciam:

Totalmente ao contrário da filosofia alemã, que desce do céu à terra, aqui se eleva da terra ao céu. Quer dizer, não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou representam, tampouco dos homens pensados, imaginados e representados para, a partir daí, chegar aos homens de carne e osso; parte-se dos homens realmente ativos e, a partir de seu processo de vida real, expõe-se também o desenvolvimento dos reflexos ideológicos e dos ecos desse processo de vida. Também as formações nebulosas na cabeça dos homens são sublimações necessárias de seu processo de vida material, processo empiricamente constatável e ligado a pressupostos materiais. (Marx e Engels, 2007, p. 94)

E na continuidade relacionam esse fazer concreto com a produção da “consciência em si”, afirmando: “[...] parte-se dos próprios indivíduos reais, vivos, e se considera a consciência apenas como sua consciência” (Marx e Engels, 2007, p. 94). Segundos os autores, nessa especificidade pode-se produzir uma ciência de fato, sabendo-se que os seres humanos estão imersos em seu cotidiano real, desconsiderando quaisquer especulações sem fundamento material.

Portanto, os discursos evidenciam categorias, e estas indicam seus núcleos de sentidos. Conhecê-las indicará os sentidos produzidos, suas recorrências e a importância que têm para o que os interlocutores querem revelar de si e do que pensam. Entretanto são índices com os quais trabalharão os pesquisadores e somente se imersos naquela realidade, na condição de cientistas, poderão apreender o não dito, o escondido, o não revelado.

Considerem-se, nessa perspectiva, os dados produzidos com entrevistas realizadas com professores. As entrevistas,12 se sabe, são potenciais momentos de interlocução, nos quais os professores que nas atuais condições precarizadas e intensificadas de trabalho não têm oportunidades para discursivar sobre o que fazem profissionalmente, apresentam argumentos com os quais caracterizam seu trabalho pedagógico.13 Há dois aspectos a se considerar nessas situações: o fato de os professores discursivarem sobre o que produzem e os torna trabalhadores; o fato de os professores utilizarem a linguagem para discursivar sobre seu trabalho, ou seja, expressam o que pensam.14 No primeiro aspecto, dada a solenidade da entrevista, entendida como momento ímpar de interlocução (pois, mesmo que os professores sejam interlocutores em muitas pesquisas, quando são perguntados sobre seu trabalho, são remetidos à sua condição de trabalhadores), há um resgate do sujeito e de sua produção que não é indelével. Ao contrário, é o momento de os interlocutores se haverem com suas condições de trabalho e de trabalhadores. Poder-se-ia, então, falar em consciência de si próprio - como uma autocompreensão dos sujeitos como trabalhadores, cuja origem está em sua relação com o social, pela qual dialeticamente se projeta, se descreve e se entende como sujeito - e consciência de classe, às quais são remetidos quando convocados a discursivar.

Compreendido como primeiro estágio da análise dialética aplicada aos discursos, a elaboração do roteiro de entrevista é cuidadosa e detalhada. Para tanto, há necessidade de se conhecer profundamente o aporte teórico-metodológico e, ao mesmo tempo, o contexto e os sujeitos que se estuda. No segundo estágio, tem-se o momento da entrevista. Esse é práxico, se se considerar práxis, nas condições concretas em que os sujeitos se encontram, como sendo transformação. Práxis que é intencional: “[...] na medida em que, através da mesma, o indivíduo persegue um fim determinado” (Sánchez Vázquez, 2007, p. 27).

No caso, os professores, ao produzirem discursos sobre si e sobre o que produzem, elaboram os sentidos e os assumem como verdadeiros. Dada a formalidade do momento, obviamente, são discursos objetivados. Entretanto, ainda assim, revelam concepções, crenças, posições sociais, subjetividades, pois é esta a característica do discurso oral: ser revelador do sujeito que o emite, no contexto da interlocução. Os sujeitos trabalham com a linguagem e, em decorrência, a linguagem é matéria-prima para o que produzem, o conhecimento, sempre de modo articulado ao que dizem ser. Contudo, a práxis pode ser também não intencional “[...] quando sua atividade se integra com outras práxis no nível social, produzindo resultados globais que escapam a sua consciência e vontade” (Sánchez Vázquez, 2007, p. 27). E esse é o motivo pelo qual se tem trabalhado com professores e os discursos que produzem sobre seu trabalho, como já sugerido anteriormente neste texto. Pressupõe-se, com base na vivência como professora na educação básica e nos cursos de graduação para professores, na universidade, que, a par dos inúmeros processos que assolam o trabalho desses profissionais, há também um desmonte dos sentidos do que produzem e de quem são como trabalhadores. Recuperar esses sentidos fundantes e integradores ao social torna-os mais fortes para as inúmeras lutas cotidianas em busca de melhores e maiores condições de trabalho, o que envolve uma práxis efetivamente transformadora.

Acredita-se, em suma, que ao reconstituir os sentidos do seu trabalho e, consequentemente, produzir consciência capaz de conduzir à superação e modificação das determinações sociais monolíticas, os professores, no coletivo, encaminham práxis revolucionária, ou seja, superação e repetição autônoma de um fazer para “[...] transformar de forma criadora, isto é, revolucionariamente, a realidade” (Sánchez Vázquez, 2007, p. 33). Importante destacar que revolução implica radicalidade e, conforme Marx, “Ser radical é agarrar as coisas pela raiz. Mas, para o homem, a raiz é o próprio homem” (Marx, 2005, p. 151). Cabe, ainda, destacar que a práxis é:

[...] atividade material, transformadora e adequada a fins. Fora dela, fica a atividade teórica que não se materializa, na medida em que é atividade espiritual pura. Mas, por outro lado, não há práxis como atividade puramente material, isto é, sem a produção de fins e conhecimentos que caracteriza a atividade teórica. (Sánchez Vázquez, 2007, p. 237)

Portanto, somente a teoria não modifica. Não modifica inclusive o trabalho dos professores: “[...] a teoria por si mesma - como produção de fins ou de conhecimento - não transforma nada real, ou seja, não é práxis” (Sánchez Vázquez, 2007, p. 261). E cabe destacar que se trata de atividade que une a teoria e a prática, imbricando-as, juntando um “lado ideal, teórico, e um lado material, propriamente prático”, sem que se possa isolar um lado de outro, a não ser de modo artificial (Sánchez Vázquez, 2007, p. 262).

Decorrente da entrevista, dá-se continuidade à análise dos dados. Continuidade porque a análise já iniciou na primeira fase, ao ser elaborado o instrumento de entrevista. A transcrição de dados é o momento de se reencontrar com os discursos. Ouvi-los e lembrar como aconteceu sua produção para os pesquisadores é criação, porque é então que se percebe o que o instante da entrevista, por suas características, não permitiu perceber. Hesitação, palavras repetidas, argumentos repetidos, clichês, modos de elaborar os argumentos, silêncios, entre tantos outros aspectos, são percebidos e considerados como importantes índices de sentidos. Retoma-se o que se sabia previamente sobre os sujeitos, indexa-se o que dizem e desse compósito são sistematizados sentidos. Resultam as primeiras análises. Estas são submetidas aos entrevistados, agora em grupos de interlocução.15 E, assim, se reorganizam, com base nas análises do coletivo.

Desse modo, em todo o processo há um elemento articulador: o discurso. Este não é somente o que será analisado, é a própria análise, pois se produzem discursos sobre discursos. Rigor, atenção, comprometimento com o aporte teórico-metodológico, no caso a dialética de base materialista, são elementos imprescindíveis ao pesquisador nesse trabalho. Primeiro, porque a pesquisa em educação necessita assentar-se em aspectos que a potencializem como modalidade científica de fato; segundo, porque o grau de subjetividade que orbita e organiza os discursos é alto, necessita também de ser analisado. Por esses motivos, uma compreensão aprofundada da noção de discurso é basilar para os pesquisadores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo por limite as configurações de um artigo, texto rápido e objetivo, partiu-se da intenção de apresentar ponderações sobre a noção de discurso, em uma análise dialética aplicada à pesquisa em educação, tendo por campo empírico as pesquisas e os estudos que se realizam com abordagem dialética. Pressupôs-se que o discurso não é individual, relaciona-se à formação coletiva, e assim tem a ver com a historicidade. Desse modo, a materialidade do discurso está no próprio discurso, relacionando-se ao contexto do interlocutor e do investigador. Então discurso implica alargamento, projetar-se além, autonomizar-se e, consequentemente, responsabilizar-se. A linguagem, organizada sob a forma de discurso, materializa os sentidos produzidos pelo sujeito em relação ao social, a si como ser social, é, portanto, um trabalho e, como tal, produz. Vale dizer: um discurso é material, porque é composto de linguagem e esta, de caráter histórico, é produção humana com a qual é organizado o social e, portanto, é trabalho, elemento pelo qual os humanos se produzem humanos. A linguagem não é o discurso, este se compõe por ela, de modo político, pois é escolha, limite, possibilidade e coaduna-se com a posição social dos sujeitos.

Importante destacar que as noções de análise de discurso aqui referidas são pontos de referência e, de modo algum, aproximam-se de um esgotamento de todas as nuances características das consagradas análises do discurso que se tem disponíveis. Vale dizer que o que se pretendeu foi a descrição de concepções de discurso com as quais já se trabalhou em algum momento, em pesquisas realizadas, para então propor um entendimento de discurso como materialidade a ser analisada na pesquisa em educação. Com isso, não se está estabelecendo nenhum comparativo ou julgamento, apenas revisitando perspectivas teóricas para a partir delas descrever um entendimento de discurso. Como todo entendimento, esse é fruto de escolhas, de seleções e de possibilidades.

Reitera-se que se acredita que os sujeitos interlocutores da pesquisa em educação e seus discursos são sínteses de múltiplas determinações e estas necessitam ser investigadas no contexto em que são produzidas de modo dialético não somente para que se possam compreender os fenômenos, mas para que de modo práxico se possa transformá-los. Talvez, nesse sentido, seja necessário aproximar melhor a pesquisa em educação, portanto, ciência com política, portanto, movimento social transformador. Esse pode ser um encaminhamento para este estudo a ser sistematizado em produções futuras.

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*Texto produzido com base no projeto de pesquisa realizado com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (Processo 306603/2019-5) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS) (Processos 2333-2551/14-7 e 41507.540.19616.28062019).

1 Entende-se que comunidades acadêmicas e grupos de pesquisa são diferenciados: uma comunidade acadêmica “Pressupõe o grupo de pesquisa e o torna ainda mais coeso, mais integrado em torno de objetivos comuns, potencializando características individuais que se tornam vetores para a produção coletiva do conhecimento. Na comunidade, então, vai-se além, produzindo-se o entrecruzamento de leituras, argumentos, experiências, subjetividades que, ao se movimentarem, se recriam e demandam análise, interpretação, sistematização” (Ferreira, 2017, p. 107).

2 Refere-se ao Kairós - Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho, Educação e Políticas Públicas/Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

3 Discursivar é um neologismo, criado com o intuito de descrever o trabalho de produzir discurso. Apesar de haver o verbo “discursar”, escolhe-se “discursivar” pela ênfase no processo, por dar a entender a ação pelo discurso.

4 Em obra ainda anterior, de 1845/1846, Marx e Engels já criticavam o modo como a filosofia abordava a linguagem: “A realidade imediata do pensamento é a linguagem. Assim como os filósofos autonomizaram o pensamento, também tiveram de autonomizar a linguagem num reino próprio [...] na qual os pensamentos, como palavras, possuem um conteúdo próprio. O problema de descer do mundo dos pensamentos para o mundo real se converte no problema de descer da linguagem para a vida” (Marx e Engels, 2007, p. 429). E ainda afirmam: “[...] a autonomização dos pensamentos e das ideias é uma consequência da autonomização das condições e relações pessoais dos indivíduos” (Marx e Engels, 2007, p. 429). E, naquele trecho daquela obra, concluem: “[...] nem o pensamento nem a linguagem constituem um reino próprio; [...] eles são apenas manifestações da vida real” (Marx e Engels, 2007, p. 429).

5 “A definição de Pêcheux, por sua vez, parte de uma separação metafísica entre língua e discurso, que mantém a dicotomia saussuriana entre uma estrutura formal invariante, a língua, e suas manifestações concretas, a fala. O discurso estaria no segundo caso, o que demonstra que Pêcheux não percebeu que o primeiro caso só existe na concepção ideológica de Saussure e nunca na realidade concreta. Partindo da percepção da insuficiência destas concepções, retomemos nossa definição de discurso” (Viana, 2009, p. 17).

6 As palavras práxis e prática em algumas línguas não se dissociam, mas na língua portuguesa sim. A práxis não é neutra. Possui uma clara conotação política, desde o modo como é planejada, e se é planejada. A prática é aplicada como uma atividade instantânea, não necessariamente organizada com base em um projeto, podendo ser descolada de uma ação coletiva.

7 Decorridos mais de trinta anos após a morte de Engels, é publicada a sua obra A dialética da natureza (1979), na qual, empolgado pelas descobertas realizadas por físicos e biólogos, reitera que a linguagem é um fenômeno social, desenvolvido concomitantemente com a inteligência humana no processo de “transformação do macaco em ser humano” e acrescenta à obra daqueles cientistas que foi o trabalho o vetor de desenvolvimento “dos símios para a condição de humanos”.

8 Sobre a autoria dessa obra, Fonseca afirma: “A autoria de ‘Marxismo e filosofia da linguagem’ nunca foi ponto pacífico, o que se explica em parte pela forma coletiva de produção do chamado Círculo de Bakhtin, em parte pela criminalização dos pesquisadores não legitimados pelo aparelho estatal soviético. Mikhail Bakhtin (1895-1975) reunia em torno de si um grupo de discípulos e pesquisadores, com destaque para Valentin Voloshinov (desaparecido em 1936) e Pável Medviédev (fuzilado em 1938)” (Fonseca, 2015, p. 3).

9 Entretanto Marx relata a Weydemeyer, em carta de 5 de março de 1852, que não criou o conceito de classe social: “[...] No que me diz respeito, não me cabe o mérito de ter descoberto nem a existência das classes na sociedade moderna nem a sua luta entre si. Muito antes de mim, historiadores burgueses tinham exposto o desenvolvimento histórico desta luta das classes, e economistas burgueses a anatomia económica das mesmas. O que de novo eu fiz foi: 1. demonstrar que a existência das classes está apenas ligada a determinadas fases de desenvolvimento histórico da produção; 2. que a luta das classes conduz necessariamente à ditadura do proletariado; 3. que esta mesma ditadura só constitui a transição para a superação de todas as classes e para uma sociedade sem classes. [...]” (Marx e Engels, 1977, p. 25-26).

10 Sentidos e significados são diferenciados. Ambos são construções sociais, mas estes, porque passaram por socialização intencional, são estáveis, enquanto aqueles são provisórios. Na perspectiva da psicologia social, de perspectiva construcionista e, por isso, diferenciada da abordagem dialética com a qual se trabalha, mas nem por isso pode ser ignorada, Spink e Medrado descrevem sentidos de um modo esclarecedor: “O sentido é uma construção social, um empreendimento coletivo, mais precisamente interativo, por meio do qual as pessoas - na dinâmica das relações sociais historicamente ditadas e culturalmente localizadas - constroem os termos a partir dos quais compreendem e lidam com as situações e fenômenos a sua volta” (Spink e Medrado, 2000, p. 41).

11 Representação não no sentido de vir no lugar de. Refere-se a estar em relação com. Ao expressar seu pensamento, o sujeito não está somente descrevendo o real, mas configurando outros reais. A língua não representa o real, é o real configurado.

12 Entrevistas são técnicas de produção de dados atinentes à pesquisa em quaisquer áreas. Assim como o são a observação, o diário de campo, questionários, grupos focais etc. Porém focalizou-se a abordagem da pesquisa em educação e, nesta, exemplifica-se com a técnica de entrevista.

13 “Parte-se do suposto que o trabalho pedagógico é um trabalho com características pedagógicas e isso o difere dos demais trabalhos. O pedagógico é sempre político, por implicar escolhas e ações humanas, dentro dos contextos sociais onde se produz. Nesse sentido, exige do sujeito que se movimente entre o que lhe é demandado pelo contexto capitalista e o que acredita como trabalhador. Do mesmo modo, pedagógico é a soma de todas as características que, amalgamadas, contribuem para que se produza conhecimento, desde a infraestrutura escolar até o olhar dos professores em relação aos estudantes, das cores que decoram o ambiente ao modo como se organiza esse ambiente, passando por todos os aspectos culturais e sociais que possibilitam haver uma relação entre sujeitos que visam a conhecer” (Ferreira, 2017, p. 8).

14 Não se ignora que toda entrevista produz discursos com significativo grau de subjetividade. A subjetividade é um aspecto presente na pesquisa em educação, pois se tratam de professores-pesquisadores estudando sobre o trabalho e os trabalhadores na educação. Assim, a aplicação de mais de uma técnica de produção de dados e a análise comparativa desses dados são sempre um modo de garantir maior rigor científico na pesquisa. Paralelamente a essa subjetividade, há sim, em virtude das escolhas metodológicas e à ação dos pesquisadores, elementos objetivos. Portanto, cabe aos sujeitos da pesquisa amalgamar esses elementos e dar-lhes o trato científico. Uma das possibilidades é a aplicação de grupos de interlocução, a serem descritos na sequência do texto.

15 Grupos de Interlocução é a denominação de uma técnica de produção e análise de dados elaborada pelo Kairós - Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação, Trabalho e Políticas Públicas (UFSM), que consiste em reunir os sujeitos, interlocutores da pesquisa, entrevistados ou que participaram de observações ou grupos focais, para apresentar a análise prévia dos dados produzidos e submetê-la ao debate. São tempos e espaços nos quais esses sujeitos, diante dos dados produzidos, passam a se influenciar mutuamente, socializando seus discursos, em uma relação eu-tu, de diálogo, debate ou confronto de argumentos que constituirão também o trabalho realizado pelos pesquisadores.

Recebido: 27 de Abril de 2018; Aceito: 11 de Setembro de 2019

Liliana Soares Ferreira é doutora em educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: anaililferreira@yahoo.com.br

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