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Revista Brasileira de Educação

versión impresa ISSN 1413-2478versión On-line ISSN 1809-449X

Rev. Bras. Educ. vol.25  Rio de Janeiro ene./dic 2020  Epub 28-Mar-2020

https://doi.org/10.1590/s1413-24782020250015 

Artigos

Aprendizagem de ciências: uma análise de interações discursivas e diferentes dimensões espaço-temporais no cotidiano da sala de aula

APRENDIZAJE DE CIENCIAS: UN ANÁLISIS DE INTERACCIONES DISCURSIVAS Y DIFERENTES DIMENSIONES TEMPORALES-ESPACIALES EN EL COTIDIANO DE LA SALA DE CLASE

Luiz Gustavo Franco Silveira I  
http://orcid.org/0000-0002-1009-7788

Danusa Munford II  
http://orcid.org/0000-0001-7071-4904

IUniversidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil.

IIUniversidade Federal do ABC, Santo André, SP, Brasil.


RESUMO

Neste artigo analisamos a construção de oportunidades de aprendizagem de Ciências da Natureza em uma turma no início do ensino fundamental. ­Orientados pela etnografia em educação, acompanhamos o cotidiano desse grupo ao longo de três anos, construímos uma análise histórica das aulas de ciências e selecionamos um evento com maior potencialidade analítica. Exploramos interações discursivas nesse evento, caracterizando movimentos em que os participantes reconheciam, compartilhavam e/ou se desviavam de propostas de engajamento em práticas e uso de conhecimentos relacionados aos domínios conceitual, epistêmico e social da ciência. Os resultados indicam como os processos de aprendizagem se constituíram mediante de articulações entre tais movimentos e relações entre contextos provindos de diversos espaços-tempos com significados translocais. Discutimos potencialidades e desafios diante de diferentes contextos no cotidiano da sala de aula, bem como implicações para a noção de contextualização.

PALAVRAS-CHAVE: aprendizagem de ciências; interações discursivas; relações intercontextuais; etnografia em educação

RESUMEN

En este artículo, analizamos la construcción de oportunidades de aprendizaje de Ciencias de la Naturaleza en una clase al princípio de la escuela primaria. Orientados por la etnografía en educación, acompañamos el cotidiano de ese grupo a lo largo de tres años, construimos un análisis histórico de las lecciones de ciencias y seleccionamos un evento con potencial analítico. Exploramos interacciones discursivas en este evento, caracterizando movimientos en los cuales los participantes reconobcían, compartían y/o se desvían de propuestas de participación en prácticas y uso de conocimientos relacionados a los dominios conceptuales, epistémicos y sociales de la ciencia. Los resultados indican cómo los procesos de aprendizaje se constituyeron a partir de articulaciones entre tales movimientos y relaciones entre contextos provenientes de diversos espacios-tiempos con significados translocales. Discutimos las potencialidades y los desafíos frente a diferentes contextos en el cotidiano del aula, así como las implicaciones para la noción de contextualización.

PALABRAS CLAVE: aprendizaje de ciencias; interacciones discursivas; relaciones intercontextuales; etnografía en la educación

ABSTRACT

In this paper, we analyze the construction of Natural Sciences science learning opportunities in a group in elementary school. Guided by ethnography in education, we followed the daily life of a group over three years. Using a historical analysis of science lessons, we selected an event with analytical potential. We explored discursive interactions in this event, characterizing movements in which the participants recognized, shared and/or deviated from proposals of engagement in practices and use of knowledge related to the conceptual, epistemic and social domains of science. The results indicate how learning processes were constituted from articulations between such movements and intercontextual relationships coming from different space-times with translocal meanings. We discuss potentialities and challenges facing different contexts in the classroom daily life, as well as implications for the notion of contextualization.

KEYWORDS: science learning; discursive interactions; intercontextual relationships; ethnography in education

INTRODUÇÃO

No presente artigo analisamos a articulação de diferentes dimensões espaço-temporais na construção de oportunidades de aprendizagem de Ciências da Natureza em uma turma dos anos iniciais do ensino fundamental. Orientados por elementos da etnografia em educação, acompanhamos o cotidiano desse grupo ao longo de três anos em aulas de ciências. Por meio de uma análise situada no tempo e no espaço, exploramos interações discursivas buscando dar visibilidade à perspectiva dos próprios participantes.

Há uma extensa literatura que discute a aprendizagem de ciências. Nas últimas décadas, têm se consolidado noções que entendem a aprendizagem não como processo individualizado na mente de cada estudante, mas como construção social (Driver et al., 1999; Kelly, 2014; Lemke, 1990). Esse deslocamento resultou em uma produção sobre como a aprendizagem é interacionalmente construída, ressaltando a relevância da linguagem em uso nas aulas de ciências (Lin, Lin e Tsai, 2014). Um aspecto que tem sido discutido com relação a essa construção interacional é o desafio encontrado pelos professores diante das diversas vivências e repertórios trazidos pelos estudantes para as interações em sala de aula (Blommaert e Backus, 2011; Scarpa, Sasseron e Silva, 2017).

Conforme questionado por Scarpa, Sasseron e Silva (2017), o que o professor deveria fazer nesse cenário diverso? Como o professor deveria se posicionar e articular diferentes contextos em interações capazes de promover a aprendizagem de ciências? Uma resposta a essa questão tem sido o desenvolvimento de um ensino contextualizado (Gilbert, 2014; Ramsden, 1997). Isto é, propostas instrucionais capazes de contemplar o contexto em que os estudantes estão inseridos, como os programas Context-based science teaching (Bennett, Lubben e Hogarth, 2007) e o programa dos perfis conceituais (Mortimer et al., 2014). Essas propostas visam à superação de um ensino fragmentado do conhecimento científico, tendo em vista a integração com realidades concretas, além de ser uma potencial alternativa para despertar o interesse e promover a participação dos estudantes (Gilbert, 2014).

Nessa mesma direção, a pesquisa em educação em ciências também tem sido continuamente confrontada em relação a como explorar os contextos sociais e culturais dos estudantes ao construir análises de interações discursivas em sala de aula (Gomes, Mortimer e Kelly, 2010; Lemke, 2001; Oliveira, Akerson e Oldfield, 2012; Upadhya, 2009). Estudos têm buscado articular o enfoque instrucional do ensino de ciências a elementos contextuais que extrapolam os limites da sala de aula, considerando diferentes dimensões espaço-temporais em que estudantes e professores estão inseridos (Blommaert, 2015; Franco e Munford, 2018).

Algumas pesquisas têm explorado, por exemplo, relações entre a aprendizagem de ciências, vivências familiares e a comunidade em que a escola está inserida. Upadhyay (2009) indicou como a aprendizagem sobre crescimento de plantas em interações em sala de aula mantinha relações com saberes tradicionais de uma comunidade de nativos vietnamitas que vivia próxima à escola. Sasseron e Carvalho (2006) também destacaram esse tipo de relação por meio de análises de interações em aulas de ciências de uma escola indígena brasileira. Seus resultados indicam que práticas da comunidade indígena tiveram influência sobre o trabalho em grupo que avançava da simples colaboração entre colegas para a cooperação, envolvendo a necessidade de uma ação em busca de soluções que beneficiassem o coletivo.

Paralelamente, a pesquisa de Bricker e Bell (2014) analisou interações estabelecidas por uma aluna nas aulas de ciências e os processos de aprendizagem foram relacionados a diversos espaços-tempos da vida social dessa estudante. Os autores mobilizaram diferentes vivências da aluna em sua família e comunidade: experiências com a mãe e a avó, brincadeiras com amigos, idas ao dentista e visitas a museus de ciências. A análise indicou como esses espaços-tempos articulavam-se à aprendizagem e ao papel exercido pela aluna nas interações em aulas de ciências. Reinhart e colaboradores (2016), por sua vez, apontaram a influência de padrões de participação de famílias de estudantes em sua vida escolar sobre o desenvolvimento de comportamentos investigativos em interações em aulas de ciências.

Outras pesquisas tratam de dimensões espaço-temporais que evocam significados translocais considerando contextos mais amplos. Oliveira, Akerson e Oldfield (2012), por exemplo, analisaram de que modo o machismo e a homofobia, presentes em escala macrossocial, interpelavam interações em sala de aula gerando consequências significativas: um ambiente de insegurança, dificuldades na apropriação de elementos do raciocínio científico e, consequentemente, prejuízos no processo de aprendizagem. Gomes, Mortimer e Kelly (2010) indicaram influências mútuas entre a aprendizagem e os padrões de inclusão/exclusão de estudantes em aulas de química. Tais padrões foram evidenciados em interações discursivas mediante a análise das trajetórias escolares dos estudantes em contraste com elementos contextuais como raça, classe e gênero.

Apesar das especificidades de cada um desses estudos, observamos um mesmo movimento analítico no sentido de relacionar a aprendizagem de ciências, por meio da análise de interações, a diferentes dimensões espaço-temporais que constituem a sala de aula. Os resultados de tais pesquisas são promissores e suas indicações reconhecidamente relevantes tendo em vista os objetivos do ensino de ciências no século XXI (Lemke, 2001). Porém, estudos como esses ainda são escassos, conforme discutimos com maior detalhamento em Franco e Munford (2018). Tais análises oferecem grandes potencialidades para nossas compreensões sobre como os estudantes aprendem ciências. Primeiramente, porque têm dado enfoque a aspectos que, apesar de estarem intimamente relacionadas à sala de aula, extrapolam seus limites espaço-temporais - famílias, comunidade, cultura, questões de raça, classe, gênero, religião. Esses elementos são constituintes da vida de professores e estudantes e se intersectam no cotidiano da sala de aula. Desconsiderá-los significa abdicar de componentes que podem ser centrais para a compreensão sobre como se negocia, compartilha e constrói conhecimento na escola (Kelly, 2005).

As análises apresentadas neste artigo se inserem nesse debate. Buscamos contribuir com a área ao investigar interações discursivas em aulas de ciências construindo respostas para a seguinte questão de pesquisa: Como uma turma dos anos iniciais do ensino fundamental articula diferentes dimensões espaço-temporais a conhecimentos e práticas na construção de oportunidades de aprendizagem de ciências em sala de aula?

PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

Nossa compreensão sobre aprendizagem de ciências foi orientada pelas discussões de Kelly (2005), que propõe o uso de elementos da perspectiva etnográfica associados a construtos do campo da pesquisa em educação em ciências. Essa articulação busca dar enfoque ao cotidiano do grupo social que investigamos, a fim de analisar a aprendizagem como um processo situado no tempo e no espaço que se constitui por meio dos significados compartilhados pelo próprio grupo.

Especificamente, situamos essa discussão com base na noção de oportunidades de aprendizagem de ciências (Duschl, 2008; Munford e Teles, 2015; Rex, 2006; Stroupe, 2015). Rex (2006) elencou diferentes formas de compreender aprendizagem, de acordo com referenciais da etnografia em educação, e sintetizou essas indicações ao propor a noção de oportunidades de aprendizagem. Conforme proposto, oportunidades de aprendizagem são “eventos sociais em que uma pessoa ou pessoas estão posicionadas para adotar e assumir um conjunto de práticas sociais e culturais associadas a domínios acadêmicos” (Rex, 2006, p. 165).

Esse tipo de proposta é relevante para investigações de orientação etnográfica dado seu caráter descritivo da vida em sala de aula. Isto é, ao pensar em processos de aprendizagem de ciências, estávamos interessados em descrever e interpretar eventos sociais em que houve potencialidades para que o processo de aprendizagem acontecesse. Não tivemos o objetivo de mensurar possíveis avanços instrucionais após o desenvolvimento de um conjunto de aulas.

Para isso, levamos em consideração o papel central do discurso nesse processo. Discurso, aqui, é entendido como uma ferramenta semiótica por meio da qual as pessoas agem e reagem umas às outras para compartilhar, negociar e reconstruir práticas da vida cotidiana (Bloome et al., 2008). Em sala de aula, professores e estudantes constroem oportunidades de aprendizagem de ciências agindo e reagindo uns aos outros por meio de interações discursivas (Rex, 2006). Articulamos essas concepções às discussões de Duschl (2008), que propõe três domínios do conhecimento científico a serem desenvolvidos nas aulas de ciências: o domínio conceitual, o domínio epistêmico e o domínio social da ciência (Munford e Teles, 2015).

O domínio conceitual está relacionado às oportunidades que os estudantes têm de saber explicações científicas sobre o mundo natural e utilizar o corpo de conhecimentos que representa tais explicações (Duschl, 2008; Stroupe, 2015). Ou seja, trata-se do conjunto de leis, teorias e conceitos científicos. O domínio epistêmico, por sua vez, está relacionado a oportunidades que os estudantes têm de utilizar critérios epistêmicos que a comunidade científica usa para construir o conhecimento. Tais critérios permitem aos alunos reconhecer o que eles sabem e por que eles estão convencidos de que sabem aquilo (Stroupe, 2015). O domínio social, por fim, está relacionado às oportunidades de compreender “processos e contextos que dão forma aos modos como o conhecimento científico é comunicado, representado, argumentado e debatido” (Duschl, 2008, p. 277, tradução nossa). No contexto da sala de aula, como proposto por Stroupe (2015), esse domínio pode ser caracterizado pelas rotinas nas quais os estudantes desenvolvem, criticam e usam ideias para construir conhecimento.

Os domínios epistêmico e social ainda têm pouca visibilidade nas salas de aula de ciências. Apesar disso, como destacado por Kelly (2014), do mesmo modo que consideramos o “saber o que” como um aspecto importante na aprendizagem de ciências, o “saber como” não deveria ser negligenciado. Essa perspectiva considera tão importante saber conceitos e ideias científicas quanto ajudar os estudantes a compreender como tais conhecimentos são construídos e gerar oportunidades para que eles também possam engajar-se nessa construção.

Assim, nossas análises buscaram compreender como os estudantes posicionavam-se para adotar e assumir um conjunto de práticas e conhecimentos dos domínios conceitual, epistêmico e social das Ciências da Natureza. Valendo-nos da etnografia em educação, buscamos analisar esse processo considerando que o grupo investigado possui uma história particular e que essa história se constrói na intersecção entre diferentes contextos nos quais seus participantes estão inseridos (Blommaert, 2015; Bloome et al., 2008; Kelly, 2005).

O foco que demos às análises está profundamente relacionado a esses pressupostos. Acompanhamos uma mesma turma ao longo de três anos, desenvolvemos uma caracterização da história particular desse grupo nas aulas de ciências e identificamos eventos com maior potencial analítico para os interesses da presente investigação.

Para isso, vivenciamos a análise seguindo a lógica do telling case, que tem como pressuposto que os eventos que constituem a vida de um grupo social não possuem o mesmo status analítico, pois não possuem a mesma relevância dentro do fluxo da vida cotidiana do próprio grupo. Quer dizer, existem eventos que são mais significativos para os participantes com relação a algum aspecto de sua vida social e por isso se tornam mais importantes para o trabalho etnográfico (Mitchell, 1984).

Desse modo, mediante uma análise histórica mais ampla, demos destaque a um menor número de eventos capazes de tornar certas particularidades do grupo mais evidentes. A seleção desses eventos ocorreu pela identificação e análise de frameclashes, ou seja, situações em que o fluxo ordinário da vida cotidiana de um grupo é rompido, por meio de conflitos ou quebras de expectativa entre os participantes (Agar, 1994). Tais situações têm sido consideradas pontos ricos para análise etnográfica, pois são momentos em que aquilo que já se tornara invisível na cultura de um grupo torna-se mais expressivo e, desse modo, dá visibilidade a algum aspecto de sua vida social.

Esse movimento da história macro a eventos micro (Green, Dixon e Zaharlick, 2005) foi orientado por uma análise situada no tempo e no espaço, por meio da qual buscamos estabelecer relações entre diferentes contextos que se articulavam em sala de aula. Utilizamos as discussões de Blommaert (2015), que propõe a construção de modelos multidimensionais de contexto. Tais modelos consideram que em uma interação em sala de aula há uma série de elementos contextuais em jogo, provindos de diferentes espaços-tempos. Utilizando a noção de cronotopo, de acordo com Bakhtin, Blommaert enfatiza a inseparabilidade do tempo e do espaço na ação social humana e propõe uma lente teórica que entende contexto como uma amálgama de diferentes dimensões espaço-temporais.

Isso significa que, ao construir nossas análises, não selecionamos um ou outro elemento contextual a priori com o objetivo de mensurar seu possível impacto sobre a aprendizagem de ciências. Antes, compreendemos as oportunidades de aprendizagem de ciências como eventos discursivos situados no tempo e no espaço nos quais significados translocais “são continuamente reconstituídos dentro dos fluxos e contingências da atividade local” (Blommaert, 2015, p. 108, tradução nossa). Desse modo, reconhecemos que as aulas de ciências não estão isoladas do mundo social. Pelo contrário, cada ato de contextualização nas interações em aulas de ciências opera usando invocações (in) validadas de esquemas sócio-históricos coletivos com significados translocais (Blommaert, 2015).

CONTEXTO DE PESQUISA

Nosso grupo de pesquisa tem acompanhado uma mesma turma desde sua inserção no ensino fundamental em uma escola pública federal do Sudeste do Brasil. Em 2012, quando iniciamos o acompanhamento, a turma contava com 25 alunos e estava no 1º ano do ensino fundamental. As crianças haviam passado por diferentes instituições de educação infantil e o ingresso na escola ocorreu mediante sorteio, o que se refletiu na diversidade encontrada no grupo: diferentes experiências escolares e uma heterogênea caracterização étnica e socioeconômica.

A professora de ciências e português da turma, Karina,1 era pedagoga com longa experiência em alfabetização, mas ainda com pouco tempo de experiência no ensino de ciências. Essa mesma professora acompanhou o grupo ao longo dos três primeiros anos. Posteriormente, a partir do 4º ano, houve mudanças de professores de ciências a cada ano.

Uma síntese das temáticas abordadas nas aulas de ciências ao longo dos três primeiros anos do ensino fundamental, entre 2012 e 2014, está representada pela Figura 1. Indicamos com maior detalhamento um conjunto de nove aulas ocorridas entre outubro e novembro de 2012, quando a turma estava no 1º ano, pois o evento de análise discutido neste artigo está inserido no fluxo dessas aulas.

Fonte: banco de dados da pesquisa.

Figura 1 - Linha do tempo com as aulas de ciências entre 2012 e 2014. Destaque para a Aula 7. 

CONSTRUÇÃO DOS DADOS E PROCESSO DE ANÁLISE

A imersão histórica nos três anos da turma ocorreu a partir da observação participante em sala de aula (Spradley, 1980) e de análises do conjunto de dados: vídeos das aulas acompanhadas - aulas de Ciências da Natureza e Língua Portuguesa, registros de caderno de campo digitalizados, fotografias, materiais referentes a diversas atividades e apostilas com atividades desenvolvidas nas aulas.

O trabalho com esse banco de dados extenso não significa que tentamos esgotar em detalhes toda a história do grupo. Construímos a pesquisa com o objetivo de selecionar eventos com maior potencial analítico, conforme já indicamos, seguindo a lógica do telling case.

A partir de questionamentos mais amplos, fizemos uma espécie de zoom na história do grupo (Wolcott, 1994), obtendo respostas que proporcionaram a elaboração sucessiva de perguntas mais específicas, tendo em vista o potencial analítico dos eventos. Esse processo é representado pela Figura 2.

Fonte: banco de dados da pesquisa.

Figura 2 - Processo de análise orientado pela lógica do telling case

No primeiro nível de análise (pergunta 1, Figura 2) elaboramos descrições mais amplas do conjunto de aulas de ciências. Caracterizamos as atividades das aulas e identificamos situações nas quais os participantes evocavam espaços-tempos com significados translocais, como vivências familiares, atividades ocorridas fora da escola, amizades, menções a fontes de informação externas à escola, comentários sobre religião, gênero, raça.

Realizamos uma nova seleção de eventos questionando quais deles teriam maior potencialidade para nossas análises (pergunta 2, Figura 2). Um primeiro recorte foi realizado por meio da identificação de frameclashes. Selecionamos um conjunto de 23 situações de conflito e/ou quebras de expectativa. Tais situações passaram, então, por um novo recorte: uma análise histórica e contrastiva. Por meio da análise histórica, buscamos dar maior visibilidade à perspectiva dos próprios participantes, questionando-nos sobre quais daquelas situações possuíam desdobramentos significativos na história da turma (pergunta 3, Figura 2). Isso foi realizado por meio de uma retomada da história mais ampla da turma na qual identificamos outros eventos em que frameclashes se tornaram recursos mobilizados pelos participantes em discussões posteriores.

Por meio da análise contrastiva, por sua vez, questionamo-nos sobre quais daquelas situações possuíam relações com especificidades do ensino de ciências (pergunta 4, Figura 2). Para isso, estabelecemos contrastes entre os frameclashes registrados nas aulas de ciências e aqueles registrados nas aulas de português. Foi possível identificar que certos conflitos e quebras de expectativa se repetiam em ambas as disciplinas, remetendo a certa tipicalidade do cotidiano do grupo. Outros, porém, ocorriam em apenas uma das disciplinas ou apareciam de modo bastante distinto em cada uma delas. Selecionamos, então, aqueles que ocorreram em discussões mais relacionadas a aspectos específicos das ciências, por exemplo conteúdos conceituais desse campo disciplinar.

A dimensão histórica dessa análise nos possibilitou um recorte não aleatório no conjunto de dados e valorizou a perspectiva dos próprios participantes, uma vez que nos pautamos em evidências na história da turma que indicavam que certos eventos foram marcantes ao longo do tempo. A dimensão contrastiva nos possibilitou dar visibilidade a especificidades do contexto instrucional de ciências, uma vez que nosso objetivo central é compreender a construção de oportunidades de aprendizagem nesse campo. Entre os frameclashes selecionados, optamos por explorar com maior detalhamento um evento ocorrido quando a turma estava no 1° ano do ensino fundamental, com o seguinte questionamento: “Quais desses eventos têm maior potencialidade para análise de oportunidades de aprendizagem de ciências?” (pergunta 5, Figura 2).

Esse evento aconteceu quando a turma estava estudando aspectos da biologia do bicho-pau (Figura 1). Houve um conflito, pois alguns alunos defendiam que o inseto maior era macho e outros que o maior era fêmea, então a professora promoveu um debate.

Nas situações que antecederam o debate, grande parte dos estudantes concordava que o bicho-pau macho deveria ser maior que a fêmea. No evento de análise, por sua vez, observamos discordâncias mais expressivas com relação a essa questão. Já em eventos posteriores, a maioria passou a concordar que o bicho-pau maior seria a fêmea. A mudança no posicionamento do grupo é uma evidência de que esse evento gerou consequências relevantes na turma.

O evento foi marcado por um cenário de maior incerteza com relação àquilo que se discutia, diferentemente de eventos passados e futuros. Essa discussão também foi retomada em anos posteriores, em 2013 e 2014, sendo utilizada como recurso quando novas discussões sobre identificação sexual de outros animais aconteceram, dando-nos mais evidências de sua relevância para os próprios participantes.

Além disso, a quebra de expectativa deu visibilidade a significados translocais que estavam sendo evocados pelos alunos enquanto definiam critérios para a identificação sexual do inseto, relacionados a questões de gênero. Os participantes apoiavam-se em aspectos como: ser mais forte ou comer mais, ser mais tranquilo, passivo ou mais nervoso. Desse modo, o fluxo da atividade local de estudo sobre o conceito de dimorfismo sexual estava operando, nessa turma, por meio de negociações do que significa “ser homem” e “ser mulher”. Isso nos deu evidências da potencialidade analítica desse evento para nossos interesses de pesquisa, pois um conceito científico estava sendo construído de forma articulada a dimensões espaço-temporais com significados translocais.

Uma vez selecionado o evento de análise, passamos a nos questionar sobre como os participantes se posicionavam para adotar conhecimentos e se engajar em práticas dos domínios conceitual, epistêmico e social da ciência (pergunta 6, Figura 2). Para construir respostas, elaboramos um quadro de interações com três colunas. Cada coluna foi elaborada de modo que pudesse dar visibilidade a um aspecto relevante da construção das oportunidades de aprendizagem de ciências. Na primeira coluna, temos a transcrição das interações; na segunda, uma análise do modo como os participantes se posicionavam no evento; e, na terceira, a identificação de diferentes dimensões espaço-temporais.

Para dar maior visibilidade ao modo como os participantes agiam e reagiam uns aos outros, realizamos a transcrição em unidades de mensagem. Essas unidades são estabelecidas a partir de pistas que as pessoas utilizam para sinalizar umas para as outras o que está acontecendo e sejam capazes de atribuir significados ao seu comportamento (Erickson e Shultz, 1977). Essa sinalização foi identificada recorrendo ao que Gumperz (1982) chama de pistas de contextualização, incluindo sinais verbais, não verbais e prosódicos, como mudanças de entonação da fala, ritmo, ênfase, pausa, gestos, olhares.

A segunda coluna, por sua vez, indicou como os participantes se posicionavam nas interações. Associamos elementos da perspectiva etnográfica a propostas da educação em ciências. Tomando como base as discussões de Bloome e Egan-Roberton (1993), sobre relações intertextuais, caracterizamos como os participantes reconheciam, compartilhavam e/ou se desviavam de propostas de uso de conhecimentos e engajamento em práticas relacionados aos domínios conceitual, epistêmico e social da ciência (Duschl, 2008).

A caracterização foi desenvolvida mediante quatro eixos. Os três primeiros são:

  1. Proposta - quando a professora ou estudante, por meio de interações discursivas, propunha o engajamento em uma prática ou uso de conhecimentos relacionados aos domínios conceitual, epistêmico e social da ciência.

  2. Reconhecimento - quando um participante reconhecia a proposta que estava sendo discutida.

  3. Compartilhamento - quando as crianças interagiam diretamente entre si e utilizavam contribuições uns dos outros ao reconhecer a proposta em discussão.

Além disso, como quarto eixo de análise, identificamos também movimentos discursivos caracterizados como Desvios. Nem tudo o que é dito em uma aula de ciências está relacionado aos movimentos de propor, reconhecer ou compartilhar. Um desvio acontecia, por exemplo, quando a apropriação de conhecimentos ou o engajamento nas práticas em construção não aconteciam do modo esperado, com base em expectativas instrucionais da educação em ciências. O que indicou movimentos de desvio foram evidências obtidas das próprias reações dos participantes.

Por fim, a terceira coluna foi elaborada explorando uma concepção multidimensional de contextos (Blommaert, 2015), por meio da identificação de relações intercontextuais nas interações (Bloome et al., 2009). Trata-se de relações que os próprios participantes construíam evocando diferentes dimensões espaço-temporais: evocação de eventos da própria história do grupo ou de eventos externos à sala de aula e evocação de contextos com significados translocais. Os quadros forneceram evidências no discurso oral para a análise da construção de oportunidades de aprendizagem de ciências na turma investigada, conforme discutimos a seguir.

As interações do evento de análise foram organizadas em três unidades interacionais. Cada unidade interacional corresponde a um bloco de conversação por meio do qual os membros do grupo se engajam na construção do que estão fazendo na sala de aula e organizam sua interação (Bloome et al., 2008). ­Apresentamos cada unidade recorrendo a um Quadro de Interações, seguido de uma análise que buscou explorar:

  • como os participantes se posicionaram para adotar conhecimentos e práticas das Ciências da Natureza nas interações; e

  • como diferentes dimensões espaço-temporais articulavam-se na construção de oportunidades de aprendizagem.

RESULTADOS

Conforme indicamos na Figura 1, o evento aqui analisado ocorreu quando a professora desenvolvia um conjunto de nove aulas sobre a temática “A Biologia do Bicho-pau”, explorando conhecimentos como: morfologia dos insetos, camuflagem, alimentação, processo de muda, dimorfismo sexual e reprodução.

A professora havia levado três bichos-pau de tamanhos diferentes para a sala de aula na Aula 4, e a turma iniciou uma rotina de observações dos animais. Desde a Aula 4, houve discussões acerca da identificação sexual dos insetos.2 Nas primeiras aulas, havia um consenso relativo de que o animal maior seria o “pai”, o médio seria a “mãe” e o menor seria o “filhote”. Porém, a ideia de que o inseto maior poderia ser fêmea tornou-se dominante ao longo das aulas, gerando um frameclash entre os estudantes.

Nesse conjunto de aulas, o evento transcrito a seguir ocorreu na Aula 7, quando ocorreu a interação em que houve maior incerteza acerca da identificação sexual dos insetos estudados. Karina promoveu um debate lançando perguntas sobre assuntos que eles haviam estudado até aquele momento, incluindo as discussões sobre dimorfismo sexual. O evento está organizado em três unidades interacionais.

UNIDADE INTERACIONAL 1

Na primeira unidade interacional,3 a professora iniciou a discussão envolvendo a participação compartilhada de Camila, Marcelo e Ramon (Quadro 1):

Quadro 1 - Unidade interacional 1. 

Linha Falante Unidade de mensagem Oportunidades de Aprendizagem de Ciências Relações intercontextuais
Pr Re Co De
1.1 P Marcelo pode falar I

  • Evocação de evento anterior na história da turma

  • Fonte de informações externa à sala de aula

1.2 O quê que você acha ↑
1.3 Marcelo Aqui+ I
1.4 O+ I
1.5 A+ I
1.6 Grande é a mãe I
1.7 P Porque que você acha I
1.8 Que a grande é a mãe ↑
1.9 Marcelo Porque ela precisa botar os o+vos I
1.10 A Camila não falou I
1.11 Que bicho-pau bota ovo ↑ Mariana levanta o braço
1.12 P Camila I
1.13 Você disse que bicho-pau bota ovos ↑
1.14 Camila Acena com a cabeça fazendo sinal positivo
1.15 P Bota ovos ↑
1.16 Como você descobriu isso ↑
1.17 Camila Na internet I
1.18 P Na internet ↑
1.19 Você pesquisou ↑
1.20 Camila A aluna continua acenando positivamente
1.21 P Po+r que que você foi pesquisar isso na internet ↑
1.22 Camila Para ter certe+za I
1.23 P Para ter certeza I
1.24 Você acha I
1.25 Que na internet I
1.26 Todas as coisas que são ditas lá I
1.27 São verdade+iras ↑
1.28 Ramon Não I
1.29 Não I
1.30 Camila Camila está com os braços estendidos
1.31 Ramon Nem todas I
1.32 Camila Algumas sim I
1.33 Algumas não I

Pr: proposta; Re: reconhecimento; Co: compartilhamento; De: desvios.

■ (fala da professora); ● (fala de estudante); ↑ (aumento da entonação no final da fala); ↓ (diminuição da entonação); XXXX (fala ind­­­­ecifrável); ênfase; ▲ (maior volume); ▼ (menor volume); enunciado com maior velocidade; vogal+ (vogal alongada); Comportamento não verbal em itálico; I (pausa); IIII (pausa longa); - (palavra incompleta).

No início dessa discussão, Marcelo reconheceu a proposta da professora ao utilizar a informação de que o bicho-pau bota ovos (L1.9), mobilizando um conhecimento do domínio conceitual da biologia do inseto. O aluno elaborou um argumento baseado em uma relação forma-função do animal como critério para construção da afirmação - se a fêmea bota ovos, ela deveria ter o corpo maior, o que indica o engajamento em uma prática relacionada ao domínio epistêmico. Marcelo, além de reconhecer a proposta da professora, usou como base informações fornecidas pela colega Camila (L1.10).

O posicionamento de Marcelo indica ainda o engajamento em uma prática do domínio social do conhecimento científico. Ao incluir os “dados” de Camila em seu argumento, temos evidência de que os alunos estavam levando em consideração as contribuições dos pares durante a discussão. Além disso, esse processo abriu possibilidades para uma nova proposta no fluxo da interação, relacionada à avaliação de fonte de dados (L1.23-27).

Dados provindos de outro espaço-tempo se articulam à oportunidade de aprendizagem em construção. Primeiro, porque a contribuição de Camila tratava-se de um conhecimento que ainda não havia sido discutido. Surgiu de uma dimensão espaço-temporal externa à sala de aula: a internet. A reação da professora foi fazer uma nova proposta: avaliar a internet como fonte de dados nas aulas de ciências. A proposta, bem como o reconhecimento de Camila e de Ramon, indica o engajamento em uma prática relacionada ao domínio epistêmico do conhecimento científico: para justificar por que se sabe o que se diz saber, é necessário, na ciência, avaliar as fontes de dados.

Outro aspecto relevante dessa articulação é que a análise de eventos passados indica que Camila não concordava com Marcelo: ela considerava que o macho seria maior que a fêmea. Porém, na unidade interacional 1 seria contraditório se ela discordasse da pesquisa na internet que ela mesma fizera. Desse modo, o recurso trazido por Camila foi utilizado contra o próprio ponto de vista da aluna, estratégia argumentativa de Marcelo que deu força à ideia de que a fêmea poderia ser maior que o macho. A caracterização da oportunidade de aprendizagem em construção está representada pela Figura 3.

Fonte: banco de dados da pesquisa.

Figura 3 - Caracterização da oportunidade de aprendizagem na unidade interacional 1. 

UNIDADE INTERACIONAL 2

Na sequência da interação, a professora deu continuidade à discussão, compartilhando a proposta com os alunos Maurício e Breno (Quadro 2):

Quadro 2 - Unidade interacional 2. 

Linha Falante Unidade de mensagem Oportunidades de Aprendizagem de Ciências Relações intercontextuais
Pr Re Co De
2.1 P Maurício I

  • Evocação de significados translocais relacionados a questões de gênero

  • Evocação de possíveis eventos passados em sala de aula

  • Evocação de significados translocais relacionados a questões de gênero

  • Evocação de possíveis eventos passados e experiências externas à sala de aula

  • Evocação de vivência em casa

2.2 Eu quero ouvir você I Breno com o braço levantado
2.3 Maurício O macho é o grande I
2.4 Sabe por quê ↑
2.5 Porque ele está comendo mais I
2.6 A mãe I
2.7 E o filho principalmente I
2.8 Estão comendo bem pouco I
2.9 Porque I aponta para o terrário
2.10 O pai é o grande I
2.11 Sabe por que professora↑
2.12 Porque toda vez que eu vejo I
2.13 Ele está comendo I
2.14 E a mãe I
2.15 E o filho não estão não I Vinícius levanta o braço direito
2.16 P O ma+cho I
2.17 Você está dizendo que ele come ma+is I
2.18 Por isso que ele é o maior↑
2.19 Maurício faz sinal positivo com a cabeça
2.20 P Você já viu o macho I
2.21 Comendo na nossa casa I
2.22 Do bicho aqui ↑
2.23 Maurício Já I faz sinal positivo com a cabeça
2.24 P Já↑
2.25 E você acha que é o gra+nde I
2.26 Que é o macho↑
2.27 Maurício É+ I
2.28 Ma+s I aponta para o aquário
2.29 O grande é o macho I
2.30 Sabe por que↑
2.31 Porque++ I
2.32 O macho tem que ficar de olho no filhinho I
2.33 P Ô+ Breno I
2.34 Você pode falar agora I
2.35 Breno A+ I
2.36 A+ I
2.37 A+ I
2.38 Mãe tem que ser a maior porque+ I
2.39 Ela tem que comer I
2.40 Mais do que o ma+cho I
2.41 Pra ela ter filho+tes I
2.42 E algumas vezes o o+vos I
2.43 Podem ser que nem cocô I
2.44 P Sei I
2.45 Você sabe disso I
2.46 Breno I
2.47 Você descobriu isso I
2.48 Na nossa sala de aula ↑
2.49 Ou teve que procurar isso em outro lugar ↑
2.50 Você chegou a procurar em outros li+vros I
2.51 Na interne+t ↑
2.52 Breno Nã++o I
2.53 P Conversou com alguém ↑
2.54 Breno Na minha casa tem bicho-pau I
2.55 P Ah!
2.56 Na sua casa tem I
2.57 Breno Nas árvores I Aponta para cima
2.58 P E você na sua casa I
2.59 Já tinha observado I
2.60 Que a fêmea era maior ↑
2.61 Breno Faz sinal positivo com a cabeça
2.62 P Como você olha e sabe que ela é fêmea ↑
2.63 Tem jeito ↑
2.64 Breno Porque I
2.65 A fêmea tem que comer mais do que macho I
2.66 P E você XXXX Maurício fala em tom elevado
2.67 Maurício XXXX Levanta a mão, mas a fala é inaudível
2.68 Karina Me parece I ela aponta para Maurício
2.69 Que a sua opinião é diferente da do Maurício I

Pr: proposta; Re: reconhecimento; Co: compartilhamento; De: desvios.

■ (fala da professora); ● (fala de estudante); ↑ (aumento da entonação no final da fala); ↓ (diminuição da entonação); XXXX (fala ind­­­­ecifrável); ênfase; ▲ (maior volume); ▼ (menor volume); enunciado com maior velocidade; vogal+ (vogal alongada); Comportamento não verbal em itálico; I (pausa); IIII (pausa longa); - (palavra incompleta).

A segunda unidade interacional tem início com a contribuição de Maurício. O aluno tinha um argumento: sempre que ele olhava para o terrário, o macho estava comendo mais (L2.5-15). A ideia era de que, se o macho comia mais, faz sentido considerar que ele fosse maior, o que é plausível. Porém o aluno se afastou da proposta que estava sendo compartilhada pelo grupo. É importante lembrar que, ao olhar para o terrário, Maurício não via o macho comendo mais e a fêmea comendo menos, e sim o animal maior comendo mais e o menor comendo menos. O desvio foi evidenciado pela reação da professora. Ela não aceitou o argumento sem antes tentar estabelecer as relações presentes na fala de Maurício ao perguntar: “Você já viu o macho comendo na nossa casa do bicho aqui?” (L2.21-22). Karina tentava esclarecer possíveis conexões que seriam necessárias para que o aluno reconhecesse a proposta.

O critério epistêmico adotado por Maurício afastava-se daquilo que o grupo estava compartilhando. Maurício considerou a ideia de que o macho era maior como uma premissa. Desse modo, o aluno não estabeleceu distinção entre teoria e evidências. Dizer que o macho comia mais significou apenas uma constatação de que ele via o maior comendo mais. Como o maior [já] seria o macho, logo, o macho comia mais. Essa constatação até corrobora com a ideia, mas não corresponde à sua causa.

O desvio de Maurício remete-nos às já bastante discutidas dificuldades das crianças pequenas na adoção de critérios epistêmicos do conhecimento científico. Porém, a análise histórica (Figura 2) indica que as crianças já possuíam recursos para coordenar dados e conclusões, como Marcelo fizera na unidade 1 (L1.9). O próprio Maurício, em discussões sobre outros assuntos no passado e no futuro, conseguiu formular bons argumentos, o que nos leva a pensar que não se tratava apenas de uma incapacidade do aluno de se engajar de forma apropriada nessas práticas.

Conforme indicamos, ao longo das aulas sobre o bicho-pau, significados translocais das relações de gênero hegemônicas na sociedade foram evocados pelos participantes nas interações. Maurício exerceu um papel de protagonismo na defesa de que o animal maior deveria ser, necessariamente, o macho. O aluno tinha dificuldade em reconhecer que o macho poderia ser menor que a fêmea. Nessa unidade interacional, por exemplo, o argumento de Maurício mobilizou a noção de que o macho, gastador intrínseco de energia, naturalmente come mais e por isso é maior.

A análise histórica oferece elementos para a uma interpretação alternativa do modo como Maurício se posicionou. É como se, independentemente daquela discussão, a resposta do aluno já estivesse dada. Ao dizer que o macho comia mais, Maurício estava dizendo que o maior comia mais, e, como o maior “era” o macho, ele usou essa observação [comer mais] como informação legitimadora. O mesmo vale para o argumento de “ter que ficar de olho no filhinho” (L2.32), também usado por Maurício. Aliás, nesse caso, o estudante não chegou a mencionar nenhuma observação que desse suporte à sua proposta, o que tornaria seu argumento ainda mais frágil.

Nesse sentido, além de se afastar das práticas do domínio epistêmico compartilhado pelo grupo, o desvio de Maurício também se refere ao domínio conceitual. Um dos aspectos centrais do conceito de dimorfismo sexual é o reconhecimento de que não existe um único modo de diferenciação entre machos e fêmeas, dada a diversidade que o mundo biológico exibe. Não reconhecer a possibilidade de a fêmea ser maior que o macho indica um afastamento da expectativa instrucional com relação ao conceito em construção.

Na sequência da interação, Breno reconheceu a proposta em discussão. O aluno articulou a ideia de Maurício, relacionada à alimentação do inseto (L2.5), ao argumento de Marcelo, relacionado à função de gerar filhotes (L1.9). Dessa forma, Breno gerou outra interpretação para o comportamento alimentar dos bichos-pau: é a mãe que precisaria comer mais, e não o macho, com base no conhecimento de que é a fêmea que vai “ter filhotes”. A ideia de Maurício foi utilizada como contra-argumento à luz da relação forma-função proposta por Marcelo, indicando a mobilização de um conhecimento do domínio conceitual e seu engajamento em uma prática relacionada ao domínio epistêmico do conhecimento científico. Breno articulou contribuições dos pares buscando defender seu próprio ponto de vista, o que evidencia também o engajamento em uma prática relacionada ao domínio social do conhecimento científico.

Karina questionou como Breno sabia aquilo, evocando fontes de informação externas à sala de aula, como pesquisa em livros, internet, conversas com outras pessoas (L2.44-51). Breno indicou outro espaço-tempo: a própria casa (L2.54). Breno morava em uma casa semelhante a um sítio e, em eventos futuros, chegou a levar para a escola um bicho-pau que encontrou nas árvores de casa. A análise histórica indica que Breno estabelecia relações produtivas entre o que era estudado em sala de aula e suas experiências em casa, especialmente no que diz respeito às brincadeiras e à imaginação.

Apesar de a experiência em casa dar força ao argumento de Breno, a expectativa da professora era que o aluno trouxesse algum outro tipo de evidência, ao questionar: “Como você olha e sabe que é fêmea?” (L2.62). A reação do aluno foi retomar o argumento já exposto anteriormente (L2.64-65). Ao final da interação, a professora retomou a discordância existente entre as crianças e pediu que os alunos repetissem seus argumentos. Porém, a dúvida em torno da identificação sexual não foi resolvida nesse momento. A caracterização da oportunidade de aprendizagem em construção nessa unidade interacional está representada pela Figura 4.

Fonte: banco de dados da pesquisa.

Figura 4 - Caracterização da oportunidade de aprendizagem na unidade interacional 2. 

UNIDADE INTERACIONAL 3

A terceira e última unidade interacional trata-se de uma discussão entre Karina e Ricardo (Quadro 3):

Quadro 3 - Unidade interacional 3. 

Linha Falante Unidade de mensagem Oportunidades de Aprendizagem de Ciências Relações intercontextuais
Pr Re Co De
3.1 P Ricardo pode falar

  • Evocação de evento passado em sala de aula

  • Evocação de significados translocais relacionados a questões de gênero

  • Evocação de vivência familiar

  • Evocação de significados translocais relacionados a questões de gênero

3.2 Ricardo Lembra aquele dia I
3.3 Que a Samara tirou os bichos I
3.4 Daquele aquário I aponta outro terrário
3.5 Para colocar naquele ↑
3.6 P Le+mbro I
3.7 Exatamente I
3.8 Ela fez isso um dia I
3.9 Ricardo O gra+nde I Camila levanta o braço
3.10 Ela deixou ela colocar I olhando para a professora
3.11 E o mé+dio I
3.12 Ele ficou I
3.13 Lá mexendo demais I
3.14 Então I
3.15 Parece que o médio I
3.16 É o ma+cho I
3.17 O mé+dio I
3.18 O+ I
3.19 Ma+cho I
3.20 Eu acho que é mais forte I
3.21 Porque I
3.22 Sempre I
3.23 É+ ▼ abaixa a cabeça
3.24 Lá na minha ca+sa I ▼Coloca a mão sobre a cabeça
3.25 Mi- I ▼
3.26 Minha mãe+ I ▼ olhando para baixo
3.27 XXXX com meu pai I ▼
3.28 Aí meu pai I ▼
3.29 Fica sempre ganhando I ▼debruça-se com os braços sobre a carteira
3.30 P Como é que é ↑
3.31 Esse finalzinho a gente não entendeu I
3.32 Na sua casa I
3.33 Seu pai e sua mãe I
3.34 O que ↑
3.35 Ricardo Brincam I
3.36 P Brincam I
3.37 E aí o que acontece quando eles brincam ↑
3.38 Ricardo Meu pai I
3.39 Sempre ganha I em volume bem baixo
3.40 P O pai sempre ganha I
3.41 E quando a Samara I
3.42 Foi mexer nos bichos I coloca a mão na boca
3.43 O quê que aconteceu ↑
3.44 Que você consegue pensar I
3.45 Que aquele pode ser o macho↑
3.46 Ricardo Porque+ Ramon começa a falar junto
3.47 O macho ficou I
3.48 Mexendo demais I
3.49 P O macho ficou mexendo demais I
3.50 E na casa dele o pai também fica mexendo demais ↑
3.51 Aluno: XXXX
3.52 Ricardo Fica I com a mão direita na boca
3.53 P Então porque que você acha ↑
3.54 Que I
3.55 É aquele médio lá I
3.56 Não I
3.57 Ricardo É porque eu acho que o macho I
3.58 Ficou nervoso I
3.59 P Ah++ I
3.60 É porque o mé- I
3.61 Aquele que é médio I
3.62 Que nós estamos chamando I
3.63 Que é o meno+r I
3.64 Do que aquela grandona I
3.65 Ficou I
3.66 Mexendo demais I

Pr: proposta; Re: reconhecimento; Co: compartilhamento; De: desvios.

■ (fala da professora); ● (fala de estudante); ↑ (aumento da entonação no final da fala); ↓ (diminuição da entonação); XXXX (fala ind­­­­ecifrável); ênfase; ▲ (maior volume); ▼ (menor volume); enunciado com maior velocidade; vogal+ (vogal alongada); Comportamento não verbal em itálico; I (pausa); IIII (pausa longa); - (palavra incompleta).

No início dessa unidade, Ricardo reconheceu a proposta relacionada à definição do sexo do bicho-pau (L3.15-16). Porém, ao apresentar sua justificativa, gerou um desvio à medida que se foi apoiando em argumentos relacionados a vivências familiares. O aluno teve dificuldades de expressão e mostrou-se constrangido (L3.23-29).

O aluno havia exposto três ideias:

  1. o macho seria o animal menor (L3.15-16);

  2. esse animal (o menor) ficou se mexendo mais no dia em que foi trocado de terrário (L3.13);

  3. em sua casa, o seu pai sempre ganha da mãe (L3.28-29).

A reação da professora diante da terceira ideia indica o desvio. A professora tentou entender a elaboração do aluno (L3.30), e suas perguntas buscavam recuperar as relações que o aluno estava construindo entre as três ideias (L3.40-45, 3.49-53).

Ricardo, então, reconheceu o que estava sendo proposto e a reação da professora indica a compreensão da relação: o animal menor parecia se mexer mais ao ser trocado de terrário, de modo semelhante, em sua casa, o pai também “mexe mais”, porque é mais nervoso. Ao expressar “Ah++” (L3.59), a professora reconheceu a relação estabelecida pelo aluno diante do significado de mexer mais: “ficou nervoso” (L3.58). A professora imediatamente reagiu de forma positiva à colocação da criança. Nesse caso, o reconhecimento ocorreu quando Ricardo conseguiu indicar como estava construindo relações entre dados e conclusão. O posicionamento de Ricardo indica seu engajamento em uma prática relacionada ao domínio epistêmico do conhecimento científico, apesar de não haver a mobilização de conhecimentos de referência do domínio conceitual da ciência sobre dimorfismo sexual.

A relação que Ricardo construiu era complexa e articulava elementos de diferentes dimensões espaço-temporais. Baseado em uma vivência em sala de aula, no passado, o aluno observou um fenômeno e concluiu que o animal menor parecia ser mais nervoso e forte, pois se mexia mais quando foi trocado de terrário por Samara. Tal conclusão foi interpretada à luz de uma vivência externa à escola: o pai “ganhava” da mãe em casa.4 Esses elementos tinham uma característica em comum: ambos (pai e bicho-pau pequeno) são nervosos. Daí a conclusão: o bicho-pau pequeno, que é nervoso como o pai, também é macho.

Nesse caso, significados translocais sobre “ser homem” e “ser mulher” foram evocados por Ricardo e influenciaram sua interpretação sobre o que foi observado em sala de aula: nervosismo/força como atributos do macho (L3.20,57-58), e a passividade como atributo da fêmea (L3.10). A caracterização da oportunidade de aprendizagem em construção nessa unidade interacional está representada pela Figura 5.

Fonte: banco de dados da pesquisa.

Figura 5 - Caracterização da oportunidade de aprendizagem na unidade interacional 3. 

Ao final do debate, a turma ainda não havia resolvido a discordância. ­Apesar disso, conforme indicamos, a partir desse evento a maioria dos estudantes alterou o modo de identificar o sexo dos insetos: fêmea seria maior do que macho. Outros critérios para identificação, além do tamanho, foram discutidos posteriormente nas Aulas 7 e 8. Na Aula 9, última aula sobre o bicho-pau, o grupo construiu um texto coletivo com as conclusões do estudo e registraram três critérios para definir o sexo do inseto: tamanho [fêmea é maior que o macho], presença de asas [macho possui asas] e postura de ovos [fêmea bota ovos].

CONCLUSÕES E IMPLICAÇÕES DA PESQUISA

No presente estudo, caracterizamos oportunidades de aprendizagem de ciências baseados no modo como professora e estudantes reconheciam, compartilhavam e/ou desviavam de propostas de uso de conhecimentos e engajamento em práticas relacionados aos domínios conceitual, epistêmico e social da ciência. A análise deu visibilidade aos modos como tais conhecimentos e práticas estavam relacionados ao mundo social dos participantes.

Parte dessa discussão na área de educação em ciências centra-se na compreensão desse “mundo social” como uma espécie de cenário em que se passa o roteiro do ensino e aprendizagem de ciências. Desse modo, os contextos socioculturais dos estudantes, apesar de reconhecidos na área (Gilbert, 2014; Lemke, 2001), muitas vezes acabam ocupando um lugar secundário nas análises, sem uma preocupação sobre como eles influenciam resultados obtidos ou auxiliam na interpretação e análise dos processos de aprendizagem de ciências (Franco e Munford, 2018).

Nossos resultados indicam como conhecimentos dos domínios conceitual, epistêmico e social da ciência eram construídos de forma situada no tempo e no espaço e valorizando elementos contextuais. A análise histórica e o evento apresentado indicam que a vida em sala de aula se constituiu de uma série de experiências de diferentes momentos na trajetória da própria turma, bem como de espaços-tempos com significados translocais, como as vivências familiares, o uso da internet e questões de gênero.

Nesse sentido, destacamos a relevância de a área de Educação em Ciências se aprofundar nas noções que tem adotado sobre contexto, tendo em vista que a vida em sala de aula envolve mais do que introduzir os estudantes um conjunto de conhecimentos escolares e acadêmicos (Bloome et al., 2008). Envolve negociar visões de mundo e se constituir como pessoa, o que demanda entender a sala de aula, os professores e estudantes não mais como categorias abstratas (Blommaert, 2015; Kelly, 2005). É urgente contextualizarmos nossos sujeitos de pesquisa no espaço-tempo e compreendê-los considerando os diversos contextos nos quais circulam.

Nesta pesquisa, não tivemos a pretensão de esgotar a diversidade de contextos relacionados ao que era construído pela turma. Isso seria impossível ao lidar com as diferentes raças, religiões, classes sociais, configurações familiares e vivências que constituíram repertórios muito diversos dos alunos, elementos estes compõem a diversidade de qualquer sala de aula. Apesar disso, foi possível trilhar caminhos mais sensíveis a esses contextos. Pensemos, por exemplo, nas relações entre as oportunidades de aprendizagem em construção e questões de gênero em sala de aula, uma das dimensões exploradas nas análises. Na área de Educação em Ciências, tais relações são normalmente estabelecidas partindo do pressuposto de que existe um contexto “externo” à sala de aula que invade esse espaço, levando os estudantes a reproduzirem (ou não) padrões socioculturais mais amplos (Brickhouse, 2011; Brotman e Moore, 2008; Tindall e Hamil, 2004).

Grande parte dessa literatura tem buscado avaliar questões como a identificação de meninos e meninas com ciências e com carreiras científicas, ou o seu desempenho na aprendizagem de ciências em relação às suas vivências externas à escola (Conner, Perin e Pettit, 2018; Gafoor e Narayan, 2012; Sáinz e Müller, 2018). Por meio dessas pesquisas, o campo indica alternativas capazes de promover maior inclusão de meninas, à luz de uma diversidade de fatores contextuais, como limitações dos currículos, padrões macrossociais de gênero, formação de professores e outros (Brickhouse, 2011), e suas indicações têm sido fundamentais na construção de uma educação científica de excelência.

Porém, o que argumentamos aqui é a necessidade de avançarmos na compreensão desse contraste entre o que está “dentro” e “fora” da sala de aula, para não corrermos o risco de construir imagens muito limitadas da agência dos estudantes e professores em sala de aula diante da influência do que acontece fora dela. Nossas análises contribuem ao considerar que, em um evento comunicativo, diferentes dimensões espaço-temporais se interconectam de forma não determinística. Aquilo que está “fora”, na verdade, está “dentro” da sala de aula, pois os alunos não simplesmente reproduzem seus contextos, mas os negociam, momento a momento, enquanto aprendem ciências. Cabe, então, buscarmos superar essa dicotomia interno/externo, entendendo que na sala de aula também se negocia o que, aparentemente, está fora dela.

Até aqui, demos enfoque às relações entre os processos de aprendizagem de ciências e diferentes contextos. Porém, outro aspecto relevante para a área de Educação em Ciências é a noção de “contextualização” do ensino, algo bastante presente nos currículos atuais e que dialoga com os resultados que apresentamos (Bennet, Lubben e Hogarth, 2007; Gilbert, 2014).

Uma compreensão limitada de contextualização e que tem orientado o desenvolvimento de muitos currículos/materiais, bem como a prática pedagógica de professores, é a necessidade de associar o conhecimento escolar com o cotidiano do aluno. Argumenta-se que a utilidade desse conhecimento tem de ficar clara para o aluno, em uma visão de que os conhecimentos dos estudantes iriam “harmonizar” com os novos conhecimentos escolares (Duarte, 2010). Entendemos que essa visão pode levar a uma compreensão equivocada de que o contexto do aluno determina o que se deve aprender ou dá sentido ao que se aprende. O que propomos é que novos significados são construídos a partir da negociação de significados translocais que acontecem em interação na sala de aula.

Nessa direção, cabe questionar o modo como a contextualização se materializa nas propostas curriculares. Recentemente, Costa e Lopes (2018) indicaram como o conhecimento que se projeta como “contextualizado” nos currículos tende a desconsiderar as múltiplas possibilidades imprevistas e singulares dos estudantes. As autoras evidenciam como os contextos, na contextualização educacional, frequentemente são definidos previamente por alguns, podendo ser baseados em visões restritas e hegemônicas, atendendo a interesses particulares. A contextualização, nesses casos, aparece restringindo as possibilidades de agência.

Isto é, valoriza-se aquilo que se considera relevante sobre os contextos dos alunos, e não necessariamente as vivências desses contextos que se expressam no cotidiano da sala de aula. Nesse sentido, a noção de “contextualização em sala de aula” tem sido bem menos explorada do ponto de vista de pesquisas acadêmicas. De certo modo, essa tendência reforça ainda mais a crítica de Costa e Lopes (2018), pois indica que a contextualização não é construída nos espaços de interação.

O que seria contextualizar no espaço de interação da sala de aula? O que essa forma de “contextualização” gera/possibilita, do ponto de vista da aprendizagem? Quem faz/pode fazer a contextualização? Ainda sabemos pouco sobre esses questionamentos, mas oferecemos algumas contribuições. Na turma que investigamos, a apropriação de práticas científicas da ciência escolar apoiou-se em conhecimentos e práticas de diferentes espaços-tempos. Conhecimentos oriundos da internet ou de vivências em casa tornaram-se dados na construção de argumentos nas discussões. Significados translocais interpelaram os processos de interpretação desses dados, como as noções de masculinidade e feminilidade negociadas pelos alunos.

Os estudantes mobilizavam conhecimentos de seus contextos buscando dar sentido ao que era estudado em sala de aula. Dessa forma, para além da elaboração de currículos ou planejamentos que considerem, a priori, as vivências e os contextos dos alunos, nossos resultados indicam como os contextos emergem em interação, gerando situações inesperadas de incerteza e instabilidade. Vivências de diferentes contextos emergem continuamente em sala de aula e fazem parte das oportunidades de aprendizagem de ciências em construção.

Por meio da noção de intercontextualidade (Bloome et al., 2009), foi possível dar visibilidade a tais contextos a partir do que acontece em sala de aula. A intercontextualidade, portanto, é capaz de auxiliar na compreensão das diferentes formas como professora e estudantes, enquanto grupo, constroem relações entre contextos, históricos, e com significados translocais. Essa forma de contextualização, na interação, dá maior visibilidade aos pontos de vista do próprio grupo e, assim, favorece a emergência de contextos considerados relevantes em sala de aula.

AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) cujo financiamento permitiu a realização desta pesquisa.

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1 Utilizamos pseudônimos para identificar professora e estudantes. Tendo em vista a preservação dos direitos, sensibilidade, privacidade e bem-estar dos participantes (Spradley, 1980), as crianças foram consultadas previamente e houve discussões com elas sobre o estudo e como os dados seriam utilizados. O projeto em questão foi submetido aos processos de análise e aprovação do Comitê de Ética da instituição responsável e os adultos envolvidos - pais, professora e estagiários - também foram consultados e assinaram um Termo de Consentimento.

2 Aprender sobre o dimorfismo sexual demanda considerar que as diferenças entre os sexos não seguem um padrão único e ter certa abertura às possibilidades de ocorrência do fenômeno na natureza. Para explicar sua ocorrência entre artrópodes, o campo da ecologia evolutiva tem usado diferentes propostas (Fairbairn, 2013). Uma das propostas mais aceitas indica que, como as fêmeas produzem os ovos, há maior demanda energética e de proteção às crias, o que se manifesta na diferença de tamanho. Assim, há fêmeas maiores que machos, que é o caso do bicho-pau. Porém, não há um padrão universal de dimorfismo sexual e há outros fenômenos que explicam as diferenças entre machos e fêmeas.

3 Como a interação é muito longa, selecionamos trechos de maior interesse para as análises apresentadas neste artigo.

4 Pelos registros em vídeo não foi possível identificar o que o aluno disse na L3.27. O aluno diminuiu o tom de voz e falou de cabeça baixa nesse momento. Na L3.35, Ricardo diz que pai e mãe “brincam”. Em conversa posterior com a professora, ela nos indicou que havia entendido o aluno dizer “brigam” da primeira vez. Apesar disso, não tivemos acesso a maiores informações sobre o contexto familiar do aluno.

Recebido: 07 de Junho de 2019; Aceito: 11 de Outubro de 2019

Luiz Gustavo Franco Silveira é doutor em educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor da mesma instituição. E-mail: luizgfs@ufmg.br

Danusa Munford é doutora em education curriculum and instruction pela Pennsylvania State University (Estados Unidos). Professora da Universidade Federal do ABC (UFABC). E-mail: danusa.munford@ufabc.edu.br

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