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Revista Brasileira de Educação

versão impressa ISSN 1413-2478versão On-line ISSN 1809-449X

Rev. Bras. Educ. vol.25  Rio de Janeiro jan./dez 2020  Epub 14-Out-2020

https://doi.org/10.1590/s1413-24782020250043 

Artigos

Necroeducação: reflexões sobre a morte do negro no sistema educacional brasileiro

Necroeducación: reflexiones sobre la muerte del negro en el sistema educativo brasileño

Aline Pereira da Costa I  
http://orcid.org/0000-0001-8677-2172

Carlos Henrique dos Santos Martins I  
http://orcid.org/0000-0002-9219-7351

Heloise da Costa Silva I  
http://orcid.org/0000-0002-5073-1050

ICentro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.


RESUMO

Este ensaio traz para o debate processos de invisibilização do jovem negro no sistema educacional brasileiro tendo como uma de suas principais consequências a morte simbólica desse sujeito, que contribui para outras formas de morrer no contexto de uma sociedade marcada pelo racismo estrutural. Partimos do conceito de biopolítica, que será potencializado com a contribuição de Achille Mbembe, ao trazer e aprofundar a discussão com o conceito de necropolítica, que parece orientar parte das políticas educacionais no Brasil. Estas, por sua vez, marcadas por um conjunto incompleto de leis, não garantem o acesso e a permanência da juventude negra na escola. Nesse contexto, surge o desafio de aprofundar o conceito de necroeduação para pensarmos as consequências da eliminação dos corpos negros dos espaços escolares orientada por certa intencionalidade que vai na direção do deixar morrer.

PALAVRAS-CHAVE: necroeducação; racismo; juventude negra

RESUMEN

Este ensayo propone traer al debate algunos procesos de invisibilización del joven negro en el sistema educativo brasileño, siendo una de sus principales consecuencias su muerte simbólica, que contribuye a otras formas de morir en el contexto de una sociedad marcada por el racismo estructural. Para ello, partimos de referencias importantes, como el concepto de biopolítica que será enriquecido con la contribución de Achille Mbembe, trayendo y profundizando la discusión desde el concepto de necropolítica, que parece guiar parte importante de las políticas educativas en Brasil. Estas, a su vez, están marcadas por un conjunto incompleto de leyes que no garantizan el acceso y la permanencia de los jóvenes negros en la escuela. En este contexto, surge el desafío de profundizar el concepto de necroeduación para pensar en las consecuencias de la eliminación de los cuerpos negros de los espacios escolares guiados por una cierta intencionalidad que va en la dirección de dejar morir.

PALABRAS-CLAVE: necroeducación; racismo; juventud negra

ABSTRACT

This essay brings to the debate processes of invisibilization of the black youth in the Brazilian educational system with one of its main consequences being their symbolic death, which contributes to other ways of dying in the context of a society marked by structural racism. We start from the concept of biopolitics, which will be enhanced with the contribution of Achille Mbembe, by bringing and deepening the discussion from the concept of necropolitics, which seems to guide part of the educational policies in Brazil. These, in turn, are marked by an incomplete set of laws that do not guarantee access to and permanence of black youth in school. In this context, the challenge arises to deepen the concept of necroeducation to think about the consequences of the elimination of black bodies from school spaces guided by a certain intentionality that goes in the direction of letting die.

KEYWORDS: necroeducation; racism; black youth

Diz-se corretamente que o racismo é uma chaga da humanidade.

Mas é preciso que não nos contentamos com essa frase.

É preciso procurar incansavelmente as repercussões do racismo

em todos os níveis de sociabilidade.

(Fanon, 2008, p. 82)

Trazer para a agenda pública o debate sobre o racismo e suas diversas formas de expressão apresenta-se como uma tarefa cada vez mais urgente e necessária, especialmente por acreditarmos ser esse tipo de discriminação estruturante das relações sociais. Assim como Fanon, citado na epígrafe, o pesquisador Silvio Luiz Almeida (2018, p. 27), por exemplo, reflete sobre como “o racismo se expressa em processos de subalternidade e se reproduz nos âmbitos da política, da economia e das relações cotidianas”,1 fornecendo instrumentos para analisar a exclusão social da população negra no Brasil, pois, segundo esse autor:

Racismo é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertençam. (Almeida, 2018, p. 25)

Nessa perspectiva, é possível compreender o racismo como uma arma ideológica que serviu à dominação e à exploração dos povos (como negros, índios, entre outros) e que, historicamente, produziu - e produz - severos processos de exclusão e de extermínio de parte dessa população. Entendemos, aqui, que a hierarquização racial foi preponderante para a efetivação da exploração e saque predatório do continente africano, o que possibilitou também a colonização e a escravidão no Brasil e que esse conjunto de crenças na superioridade versus inferioridade de raças, necessário para a perpetuação da exclusão social, se dá até os dias atuais (Santos, 2002).

A exclusão social configura-se, entre outras acepções, pelas condições precárias fornecidas a um indivíduo ou população para usufruir das possibilidades que a sociedade capitalista de cunho neoliberal oferece, podendo ser observada pelo não acesso a seus direitos sociais básicos, bem como às instâncias de poder. Apresenta-se como resultado da insuficiência econômica ou de formas desiguais de distribuição de renda, bens e serviços, como saúde e educação, por exemplo, atrelada à ausência do Estado no que diz respeito às políticas que possibilitem esse acesso, além da perpetuação de mecanismos que promovam a formulação de uma estrutura que vise à manutenção das diferenças entre grupos sociais.

Desse modo, esse não reconhecimento do outro faz com que sua experiência social esteja sempre marcada pela crescente desigualdade no acesso às diferentes instâncias da vida humana às quais deveria possuir direitos: sejam elas atreladas aos direitos básicos, quer seja por conta de negação ou de impossibilidade de acesso ao trabalho pelo sujeito e aquisição de bens ou aos espaços de poder, quer seja por um processo que construa um histórico de violências simbólicas2 que o alije de sua aceitação e respeito enquanto sujeito de direitos diante da sociedade. Para melhor compreensão desse contexto, tomamos como exemplo o Gráfico 1.

Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2012). Elaboração dos autores.

Gráfico 1 - Desigualdade racial na educação brasileira. 

Os índices do gráfico nos ajudam a refletir que do universo de desigualdades raciais no Brasil a violência física tem sido apenas um aspecto da exclusão da população negra. Desde a exploração do trabalho infantil de crianças negras, o que incide diretamente em seu acesso precário à educação básica e, por conseguinte, ao ingresso no ensino superior, percebemos que a garantia de direitos básicos se relaciona a uma perspectiva racial. Traçando um paralelo com Souza (2013/2014), encontramos reflexões que corroboram a análise da relação entre a desigualdade sociorracial no Brasil e o seu passado escravocrata:

Os baixos índices socioeconômicos que retratam as condições da maioria da população negra, desde o período pós-abolição, é um fenômeno social que atesta o grau de exploração e exclusão reinante na sociedade brasileira. Sejam nos relatos históricos ou nos mais diversos levantamentos, constata-se o quanto a população negra vem sofrendo em termos de escolaridade, mortalidade infantil, violência urbana, local de moradia, saneamento básico, mercado de trabalho, concentração de renda e outros aspectos reveladores da cidadania de um povo. (Souza, 2013/2014, p. 6)

Como alude o autor, existe um histórico de negação de direitos básicos necessários à sobrevivência da população negra por parte do Estado brasileiro. Essa percepção nos ajuda a refletir sobre o fato de que no universo da exclusão a violência física tem sido apenas um aspecto da vulnerabilidade dessa população no Brasil. Assim, retomando a concepção de racismo de Almeida (2018), podemos dizer que essa forma sistemática de discriminação contra o negro tem sido a base das políticas estatais brasileiras organizadas em contextos de inclusão excludente.

Entendemos o Estado como configurador da exclusão social e racial, uma vez que os equipamentos públicos estão situados distantes da parcela da população que necessita de acesso a serviços básicos, sendo saúde e educação os principais deles, ou ainda quando o acesso se dá de forma precária, marcada por problemas de ordem diversa, como a falta de investimentos para a universalização desses mesmos serviços.

Outra faceta do processo de exclusão se dá a partir da extinção total da possibilidade de obtenção de direitos. Hanna Arendt (1990, p. 330) aponta que, a partir do fortalecimento do antissemitismo, pudemos experimentar o que ela considera como a destituição total de direitos, ou seja, a exclusão social total, representada pelo genocídio de judeus. Para a autora, há “a existência de um direito a ter direitos”, provada por uma lógica que entende que há grupos aos quais a única saída apresentada é o extermínio.

DO BIOPODER À NECROPOLÍTICA

Nessa perspectiva, Almeida (2018) vai resgatar a elaboração teórica de Foucault (2010), ao apontar que o racismo, além de uma ideologia e uma prática, deve ser entendido como uma tecnologia de poder, utilizado pela autoridade de regulação, promoção e controle sobre a vida, denominado como biopolítica, cujo holocausto judeu seria a sua expressão máxima.

Na Biopolítica, o antigo poder de soberania dos monarcas, o qual justificava o suplício - como forma de punição e morte espetacularizada de seus cidadãos -, se transporta, na modernidade, para o controle, exploração e extermínio dos povos colonizados. Ocorre que, diferentemente do que aconteceu em territórios europeus, nos quais a Biopolítica estava voltada a promover e prolongar a vida dos grupos que detinham o poder de soberania, a concepção de Bio se ressignificaria em Necropolítica e inscreveria a população negra como signo da morte, de acordo com o que nos demonstra Mbembe:

O biopoder parece funcionar mediante a divisão entre as pessoas que devem viver e as que devem morrer. Operando com base em uma divisão entre os vivos e os mortos, tal poder se define em relação a um campo biológico - do qual toma o controle e no qual se inscreve. Esse controle pressupõe a distribuição da espécie humana em grupos, a subdivisão da população em subgrupos e o estabelecimento de uma cesura biológica entre uns e outros. Isso é o que Foucault rotula com o termo racismo. (Mbembe, 2016, p. 128)

Mbembe (2016) refere que o biopoder se constitui como política dos que tomam e se inserem no poder, e para os quais a vida é uma possibilidade política.

Assim, tem-se uma divisão visível daqueles que possuem o direito à vida, daqueles que têm direito a ter direitos, enquanto se apartam os que não devem gozar dessa possibilidade e, para além disso, devem ser excluídos, mortos. Desse modo, as formas contemporâneas de construção política e estatal estão pautadas na necessidade de subjugar a vida ao poder da morte, e essa morte está relacionada às mais diversas esferas da existência humana. Nesse sentido, a necropolítica caracteriza-se como:

As várias maneiras pelas quais, em nosso mundo contemporâneo, armas de fogo são implantadas no interesse da destruição máxima de pessoas e da criação de “mundos de morte”, formas novas e únicas da existência social, nas quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o status de “mortos-vivos”. (Mbembe, 2016, p. 146)

Mbembe assevera que a política de morte está atrelada à raça, uma vez que a Necropolítica e a Biopolítica se constroem por meio de uma característica em comum. Para isso, cita o colonialismo, o apartheid e a escravidão como algumas das formas exemplares de exercer esse necropoder que atua até mesmo na liberdade conferida ao indivíduo e ao seu corpo - nesse caso, ao corpo negro.

O autor camaronês defende que a teoria foucaultiana não dá conta das complexidades que se estabelecem nas relações de poder se observarmos por pontos de vista que levem em consideração os processos colonizadores. Para ele:

A noção de biopoder será suficiente para designar as práticas contemporâneas mediante as quais o político, sob a máscara da guerra, da resistência ou da luta contra o terror, opta pela aniquilação do inimigo como objetivo prioritário e absoluto? A guerra não constitui apenas um meio para obter a soberania, mas também um modo de exercer o direito de matar. (Mbembe, 2017, p. 108)

O que Mbembe defende é que a modernidade precisou fabricar o outro, o diferente, para poder justificar a necessidade de aniquilá-lo, de destruí-lo. Esse outro, o fabricado, precisa vir acompanhado de uma construção discursiva que remeta ao perigo: perigo da destruição, da perda do poder, perigo de roubar o lugar que o europeu entende ser seu por direito, até mesmo divino, de se sobrepujar a outros povos. Uma vez que esse outro representa um perigo para o modelo de vida vigente, ele precisa ser eliminado, e essa extinção será garantida por meio da guerra, ou seja, a representação maior do direito de matar. Foi esse pensamento que norteou todo o discurso científico e político presente nos séculos XVIII e XIX.

Assim, o autor explica que essa política de morte deixa de ser executada apenas pela figura de um soberano (representado pela figura do Estado), mas que este, dentro de uma lógica colonial, passa a ser qualquer um que se institua de poder e queira decidir sobre a possibilidade de vida e de morte sobre o outro. Assim, Foucault nos ajuda e refletir quando afirma:

É claro, por tirar a vida não entendo simplesmente o assassínio direto, mas também tudo o que pode ser assassínio indireto: o fato de expor à morte, de multiplicar para alguns o risco de morte ou, pura e simplesmente, a morte política, a expulsão, a rejeição etc. (Foucault, 2005, p. 306)

A afirmação de Foucault contribui para pensarmos a respeito das diversas mortes às quais o negro é submetido, seja a morte efetivamente física, seja a falta de acesso à educação, saúde, lazer, aos espaços de política e poder econômico, a impossibilidade de construir sonhos e de forjar a sua própria identidade sem a necessidade de busca pela aproximação ao padrão do outro (o branco).

Por essa ótica, podemos perceber que não apenas a morte física dos indivíduos se apresenta como pressuposto necropolítico, mas também todas as formas de fazer com que determinados grupos estejam alijados do convívio social, bem como das condições mínimas de direitos humanos. Assim, pensar a necropolítica passa também pela compreensão de que as diversas instituições sociais e políticas no país funcionam como verdadeiros braços da execução desse poder.

Lima (2018) nos apresenta essa concepção, ao ressaltar:

[...] nos contextos brasileiros, o poder necropolítico se faz visível no sistema carcerário, na população em situação de rua, nos apartheids urbanos nas grandes e pequenas cidades brasileiras, em dados relevantes, no genocídio da população negra, que em sua maioria é jovem e masculina, na eclosão dos grupos de justiceiros, nos hospitais psiquiátricos, nas filas das defensorias públicas, nas urgências e emergências hospitalares, entre tantos outros lugares. (Lima, 2018, p. 28)

A perspectiva adotada por Mbembe (2016) e também discutida por Lima (2018), conforme vimos acima, reverte a ótica de observação das relações de poder levantadas anteriormente por Foucault (2005). O ponto, a partir de agora, passa a ser o do colonizado, daquele cujo discurso não tem sido amplamente ouvido, pois, partindo dessa perspectiva, a política exercida sempre foi a da morte: física, social, psicológica.

O colonizado sempre esteve inserido em um processo em que o poder exercido pelos setores de dominação pautava-se em sua eliminação, uma vez que a política de vida só era (e é ainda nos dias atuais) atribuída àqueles historicamente considerados humanos. Aos tidos como não humanos, a morte, a eliminação, era a ordem vigente.

Da mesma forma ocorre quando o corpo negro é aquele a quem não se imputa a possibilidade de transitar livremente pelos distintos espaços sociais. Há lugares construídos para a presença do negro, assim como há ambientes construídos para a presença do branco. Geralmente, a formulação desses espaços obedece a uma lógica de desenvolvimento, acesso, infraestrutura, relações de poder, então favoráveis a um e desfavoráveis ao outro.

Assim, a partir da perspectiva racial, o Estado passaria não somente a selecionar quem pode viver e quem pode morrer, como também viria a atuar diretamente no exercício de “fazer viver e deixar morrer”, indicando quem ou quais grupos devem ser exterminados, onde toda e qualquer ação estatal em direção ao colonizado se traduziria em políticas de morte.

Se pensarmos, por exemplo, no acesso à cidade, aos espaços considerados hegemonicamente de cultura, de tecnologia, o corpo negro não é visto como um elemento pertencente a esses contextos. Ele é sempre um intruso, ao qual se quer apreender, expulsar, pois se trata de uma associação da maneira como aquele determinado espaço deve manter-se para o seu funcionamento planejado.

Historicamente, o corpo negro incomoda em sua presença, desde que milhares foram lançados às ruas um dia após o fim da escravidão, “manchando” a imagem da cidade que se queria europeizada. É aquele que até hoje, quando presente, deve apenas se ater às funções previamente socialmente estabelecidas a ele: de preferência, realizando atividades de menor prestígio, servindo ao branco.

Há uma morte da liberdade - de desfrutar a possibilidade de trânsito, de experienciar os espaços como os demais - que é imputada ao negro. Ou, ainda, a sua experiência nesses espaços limita-se àquela que o branco lhe permite ter; é também uma morte da possibilidade de escolha, de decisão. Da mesma forma, há diversos outros tipos de morte, apresentados das mais variadas formas para a população negra na sociedade brasileira - e elas se mostram tanto em índices gerais quanto em situações mais concretas e particulares.

Dessa maneira, não há dúvidas de que a inexistência ou a ineficácia das políticas públicas direcionadas à população negra não seria apenas um mero acaso, mas, como já apontado, faz parte da estratégia das políticas de morte utilizadas no genocídio do negro brasileiro, como assinala Abdias do Nascimento (1978). Assim, à medida que o Estado se nega a desenvolver mecanismos para a garantia dos direitos fundamentais da população negra, como o direito à vida e à dignidade, reafirma sua lógica genocida, principalmente pela falta de intervenção efetiva mediante políticas públicas que tenham a finalidade de reduzir os altos índices de homicídios entre a juventude negra no país. Além disso, criar condições efetivas para permitir o acesso da população negra aos seus direitos básicos, tais como uma educação pública e de qualidade que se expresse na garantia de ampliação não só do ingresso, mas principalmente da efetivação de mecanismos que garantam sua permanência no espaço escolar.

DA NECROPOLÍTICA À NECROEDUCAÇÃO

Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) de 2015, no Brasil, aproximadamente 27 milhões de crianças e adolescentes têm um ou mais direitos fundamentais negados (IBGE, 2016). Pensando na pobreza em uma dimensão maior, uma análise feita pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) considera que a pobreza na infância possui outras dimensões que não são apenas monetárias e impactam diretamente na constituição da criança como indivíduo e em sua formação como cidadão. Assim:

A pobreza na infância e na adolescência tem múltiplas dimensões que vão além do dinheiro. Ela é o resultado da interrelação entre privações, exclusões e as diferentes vulnerabilidades a que meninas e meninos estão expostos e que impactam seu bem-estar. (UNICEF, 2018, p. 6)

A instituição considera como elementos de análise, com base no PNAD 2015, a relação entre o atendimento ou não de seis direitos básicos: educação, informação, água, saneamento, moradia e proteção contra o trabalho infantil. Assim, quanto menos esses direitos básicos forem atendidos, em conjunto com a presença ou a ausência de renda, maiores são as possibilidades de ocorrer a inserção dessas crianças em situações diferentes de privações, que podem ser classificadas como:

  • ausência de privações: quando a criança possui acesso aos direitos básicos;

  • privação intermediária: quando ocorre atendimento a alguns direitos, mas de forma precária; e

  • privação extrema: quando o atendimento aos direitos básicos é quase inexistente ou nulo.

Por essa lógica, ao observarmos os dados referentes às desigualdades de acesso entre negros e brancos, podemos notar uma disparidade no atendimento aos direitos básicos analisados (Gráfico 2).

Fonte: Fundo das Nações Unidas para a Infância (2018). Elaboração dos autores.

Gráfico 2 - Porcentagem de privações entre crianças negras e brancas. 

De acordo com o Gráfico 2, podemos verificar que, entre as crianças e os adolescentes que possuem algum tipo de privação, 58,3% são negras, enquanto entre as brancas esse índice não chega a 40% do total. Ao analisarmos somente os casos de privação extrema, temos que essa discrepância é ainda maior, nas quais a incidência de negros é duas vezes maior que a de brancos (UNICEF, 2018).

Essa relação entre a diferença de privação de direitos de acordo com o recorte de raça nos leva a refletir a respeito de o porquê a diferença social no Brasil estar diretamente relacionada à raça, um processo que se inicia ainda na infância. Dessa forma, a população negra, desde a mais tenra idade, experimenta uma realidade de privação de direitos básicos, o que afetará diretamente sua condição de viver em contextos de cidadania plena, assim como no acesso a recursos básicos, bens materiais e desenvolvimento educacional e, por conseguinte, profissional, perpetuando as disparidades sociais entre as populações negra e branca no Brasil.

Além disso, Mbembe levanta as seguintes questões: “Se imaginarmos a política como uma forma, devemos interrogar-nos: qual é o lugar reservado à vida, à morte e ao corpo humano (em particular o corpo ferido ou assassinado)? Que lugar ocupa dentro da ordem do poder?” (Mbembe, 2017, p. 108). Ao questionar qual é o lugar reservado à vida, à morte e ao corpo humano, o autor nos obriga a observar e refletir sobre a quem é dado o direito à vida, a quem apenas a morte é uma imposição e a quem é realmente dada a possibilidade de ser considerado ser humano, e não apenas do ponto de vista físico, mas também em sua posição social e histórica.

A racialização do não europeu (ou não branco) retira do colonizado africano e indígena a possibilidade de ser visto (e de se ver) como expressão universal do gênero humano, impedindo qualquer exercício de alteridade, pois na experiência colonial o outro é sempre um inimigo - e no Brasil esse inimigo materializou-se na população negra.

Assim, se considerarmos a vivência racial experimentada no Brasil por uma ótica que considere a colonização, o sequestro de negros no continente africano, escravizados e desumanizados, bem como toda uma estrutura atual que se apresenta pelo genocídio da juventude negra e dos baixos índices de desenvolvimento dessa parcela da população, os questionamentos levantados por Mbembe nos indicam caminhos para possíveis reflexões.

De acordo com o Atlas da violência de 2018, entre os anos de 2006 e 2016 a taxa de homicídio referente à população negra foi de 40,2% de seu total, enquanto a do restante da população foi de 16%, o que implica dizer que, atualmente, 71,5% das pessoas assassinadas no Brasil a cada ano são pretas ou pardas. Podemos observar nos dados que, no tocante a homicídios, é como se negros e não negros vivessem em países completamente distintos, pois verificamos que a violência letal é majoritariamente concentrada e que os(as) jovens negros(as) são as principais vítimas.

Em contrapartida, esse mesmo Estado, incapaz de garantir proteção à juventude negra por intermédio de suas instituições públicas de segurança, tem sido o responsável direto pelas mortes de jovens negros. De acordo com o Anuário de segurança pública de 2017, 76,6% das vítimas de intervenção policial são negras, sendo a maioria composta de homens (99%), com os jovens representando 81,8% do total.

Quijano (2005) afirma que a concepção de raça na América foi a maneira de garantir legitimidade nas relações de dominação impostas pela conquista dos territórios pelas nações europeias, embasadas não somente em uma proposta de dominação, mas também de extermínio. O autor utiliza ainda o conceito de colonialidade para definir o regime de poder (e de saber), amparado em uma ideia de desenvolvimento em que o dominador impõe ao grupo dominado padrões de afirmação identitária fundamentada nos valores civilizatórios eurocêntricos, expropriando desse grupo suas múltiplas identidades.

Muitas vezes, para forçar o trabalho, os donos de escravos destituíam sua dignidade com castigos físicos ou mesmo pela aniquilação de seus símbolos religiosos e culturais, de suas marcas identitárias, privando-os, assim, de tudo que lembrasse sua cultura e sua identidade enquanto povo africano, o que configura uma das práticas genocidas contra a população negra.

Assim, recursos e princípios como a oralidade, o cooperativismo, a religiosidade e sua integração com a natureza e o corpo como espaço sagrado, e tantos outros valores africanos, seriam contestados e suprimidos do cotidiano das comunidades negras em diáspora.

Da mesma forma, se pensarmos no contexto escolar, podemos perceber que as crianças negras e pobres, embora inseridas formalmente no sistema educacional, não podem exercer seus direitos de forma plena. A pobreza, os problemas de acesso e de permanência, a mobilidade, a ausência quase completa de políticas governamentais que garantam o atendimento aos seus direitos mais básicos impossibilitam a estes que acessem uma educação que possa realmente lhes proporcionar algum tipo de mudança ou mobilidade social. Com isso, tornar esses crianças realmente cidadãs, por meio da promoção da vida, da possibilidade de construção de sonhos e planos, trata-se de um projeto que é constantemente inviabilizado.

O que acontece é a constituição de uma lógica que gera um tipo de “inclusão excludente”, em que ao mesmo tempo insere os sujeitos no sistema capitalista e educacional, mas demarca os lugares a serem ocupados por eles na sociedade. De acordo com Souza et al. (2011, p. 253):

A exclusão includente é uma lógica que priva os sujeitos de participarem de forma plena do mundo do trabalho, precariza os direitos trabalhistas e a educação, dialeticamente está relacionada: a inclusão excludente, ou seja, as estratégias de inclusão nos diversos níveis e modalidades da educação escolar sustentam o sistema capitalista criando reservas de mão de obra barata.

É essa reserva que marca a educação pública, pois a precarização da educação vai ao encontro dos interesses do mercado, que impõe à escola uma formação aligeirada, pronta para preencher os espaços que necessitam de mão de obra que não demande conhecimentos e formação técnica. Esses mesmos sujeitos estão matriculados na rede pública de ensino, mas não de forma satisfatória, uma vez que a precarização do sistema público de educação, marcado pelos baixos salários dos professores e demais profissionais, a falta de infraestrutura das instituições, que tendem a agravar-se principalmente com a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n. 241/2016, que congela os gastos públicos com educação pelos próximos vinte anos. Assim, ao mesmo tempo em que estão incluídos, esses sujeitos são excluídos socialmente.

De acordo com o Anuário brasileiro da educação básica de 2017, um total de 97% dos alunos entre 6 e 14 anos, pertencentes às classes menos abastadas, estão matriculados no ensino fundamental. No entanto, esse índice agrupa também o número de crianças e adolescentes que não frequenta nem concluiu essa etapa escolar. Ainda de acordo com o documento, só se pode considerar universalizado o ensino nessa faixa ao se atentar à parcela mais rica da população.

Ao partirmos desse ponto e ao realizarmos um recorte racial para discutir acerca da exclusão, o quadro de desigualdade mostra-se ainda mais nítido: no Brasil, falar em população mais pobre é, paralelamente, falar em população negra, entendendo esta, como apontado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) como o conjunto dos autodeclarados pardos e pretos. Os pretos apresentam 11,2% de analfabetos no Brasil, enquanto os pardos apresentam 11% e os brancos apenas 5%.

O Brasil é o segundo país com a maior população negra e o primeiro fora do continente africano. No entanto, verificamos que essa população é minoria no que tange à representação nos mais diversos espaços das relações sociais, ou, ainda, quando esta ocorre, apresenta-se muitas vezes de forma negativa e pela reprodução de estereótipos. Nesse contexto, a escola também age de uma forma que reproduz esse quadro, contribuindo para a perpetuação do preconceito e da discriminação racial.

Entendendo que a necropolítica constitui-se como uma política de morte, de extinção e de apagamento de tudo aquilo/aqueles aos quais não se considera o direito à vida plena, em que se mata o corpo e toda a possibilidade de existência (Mbembe, 2016), podemos pensar que a educação se estabelece como um dos seus braços principais. A educação exerce a mesma gerência sobre matar e deixar morrer, sobre fazer viver e fazer morrer, em seus sentidos físicos e simbólicos.

O que notamos é uma educação para a morte. Como visto nos dados anteriormente apontados neste estudo, o negro é quem possui menor acesso à educação formal, e, quando esse acesso é possibilitado, ele ocorre de forma precária, ou seja, com atendimento não satisfatório, seja pela falta de infraestrutura adequada das instituições, pela ausência de meios que possibilitem melhor aprendizagem, como remuneração de professores e funcionários, ou pela inexistência ou existência insuficientes de escolas em áreas marginalizadas, entre outras.

Temos, assim, que o sujeito negro está morto em sua totalidade dentro do sistema educacional. Ou ele não aparece fisicamente, intelectualmente, historicamente ou é colocado no lugar daquele que se pode facilmente descartar. Quando não, o que ocorre é a sua assimilação. Em todo caso, é importante que ele seja o mais próximo do branco possível. Ao aluno negro resta o lugar do “não-ser”, como apontam Fanon (2008) e Neuza Santos (1983), já que, conforme dissemos, ele precisa sempre tentar enquadrar-se no ideal branco. Mas como ele não se enquadra, precisa ser eliminado em sua ontologia.

Podemos então pensar que uma necroeducação (Silva, 2019) é construída quando observamos o apagamento, a subalternização, a animalização, o silenciamento dos alunos negros e de sua (sub)representação no sistema educacional, quando se está exercendo o direito de deixar morrer aquele que se quer extinguir. Temos uma política de morte epistêmica, simbólica, imagética, identitária do negro nas políticas escolares, nos currículos, nas práticas pedagógicas cotidianas, nas falas dos professores, na estrutura e na organização institucionais.

Assim, a necroeducação formula-se por uma lógica que visa não só perpetuar o racismo estruturante da sociedade, mas por uma política que possibilita o assassínio do negro em suas diversas instâncias, o que é legitimado política e socialmente. A necroeducação se constrói por meio de bases, inclusive científicas, que ajudam a perpetuar a guerra racial e a morte, real e simbólica, do sujeito negro na educação.

Mbembe (2016) vai denominar essa prática no conceito de epistemicídio, apontando-o como um dos mecanismos do fazer morrer contra a população negra, pois, além do legado de desigualdade e de injustiça sociais profundos do colonialismo e do imperialismo, existe um legado epistemológico do eurocentrismo que nos impede de compreender o mundo pelo próprio mundo em que vivemos e das epistemologias que lhes são próprias.

IDENTIDADES NEGADAS: A ESCOLA COMO ESPAÇO DE EXCLUSÃO SOCIORRACIAL

Outra forma de exemplificarmos a “inclusão excludente” diz respeito à uniformização do sistema de ensino, que pode ser percebida pela construção dos currículos e da própria estrutura escolar, que retira a possibilidade de uma abordagem mais diversa, além de inviabilizar outros processos de identização dos alunos.

Importa ressaltar que a escola conta com mecanismos de silenciamento que promovem a invisibilidade das práticas que não se encaixam nos cotidianos escolares “institucionalizados” adotando uma cultura de padronização que se torna extremamente violenta e excludente para adolescentes e jovens negros e negras. Nesse sentido, a escola apresenta-se constituída no privilégio de poder promover suportes para que os jovens elaborem seus projetos pessoais.

Entendemos que o ambiente escolar contribui de forma bastante pungente para o processo de formação de uma sociedade e de seus indivíduos. Para esses últimos, inclui-se também a esfera identitária, ou seja, a construção de dados sobre si mesmos que os tornam, ao mesmo tempo, diferentes dos demais e participantes de determinado grupo, situando o seu lugar no mundo. De acordo com Joaze Bernardino:

[...] Por identidade compreendemos tanto o “entendimento que a pessoa tem acerca de quem ela é quanto o entendimento que o outro significativo tem sobre ela”. Portanto, supomos que a construção da identidade envolve um processo dialógico tanto com os próprios negros quanto com os brasileiros autodefinidos como brancos. Assim, essa discussão sobre identidade passa pela necessidade de um correto reconhecimento. O dado é que “se a pessoa recebe um correto reconhecimento, ela terá a sua autoestima intacta”, assim como se identificará positivamente com aquilo que o outro enxergou nela. (Bernardino, 2002, p. 265)

Nesse sentido, entendemos a identidade como uma categoria relacional, em que o “eu” e o “outro” são acionados. Ela se constrói por uma visão individual e de reconhecimento, ou não, daqueles pertencentes aos diversos grupos em que estamos inseridos. Assim, eu construo a minha identidade tanto com base naquilo que me é próprio quanto pelo o que o outro significativo constrói sobre mim.

Na discussão trazida por Bernardino (2002), essa construção relacional da identidade tem efeitos tanto sobre negros quanto sobre brancos; a diferença é de que maneira esses efeitos serão vistos. Para o autor, quando o “outro” enxerga aspectos positivos, essa identidade se dará positivamente; se o “outro” enxerga aspectos negativos, ela se construirá negativamente.

Atentando-nos para isso, podemos pensar a respeito das discussões acerca da representatividade e da construção de identidade e autoestima da população negra no nosso país, no qual essas relações de reconhecimento podem ser bastante discutidas de acordo com os diversos contextos sociais.

Além disso, é importante atentarmos para um outro tipo de exclusão: o aluno negro é maioria na rede pública de ensino nas séries iniciais, mas, no que se refere à sua representação, à produção de conteúdo e de discursos no espaço escolar, este não é contemplado.

Historicamente, a escola aparta o aluno negro de um processo de socialização institucional que o possibilite desenvolver-se como indivíduo, conhecer sua história e construir uma visão positiva sobre si próprio. Esse aluno é invisibilizado pelas práticas pedagógicas ou, o que é ainda mais cruel, é representado em práticas e atividades que o colocam em posição inferiorizada, negativizada, constituindo outra forma de exclusão. Assim, não considerar a presença do aluno negro no processo escolar constitui uma maneira de manter:

Vivo um certo imaginário que tende a conceber a escola como espaço privilegiado dos brancos, desconsidera a luta encaminhada pelos negros na tentativa de utilizar a educação como instrumento de afirmação no espaço social e ignora os mais diferentes aspectos ligados à questão racial que, ao contrário do que se pensa, está ligada a elementos básicos dos processos colocados em curso na educação. (Fonseca, 2007, p. 35)

São esses privilégios que necessitam ser colocados em xeque caso estejamos realmente comprometidos com a transformação da educação em geral - e com a escola em particular -, na direção de práticas pedagógicas que potencializem o autorreconhecimento do aluno negro. Um dos caminhos para essa mudança está relacionado ao material didático, cujo conteúdo produza alterações significativas no fazer pedagógico.

Isabel Aparecida dos Santos (2001) ressalta que nos materiais didáticos analisados em seu trabalho foram encontrados vários estereótipos atribuídos aos negros, sempre conferindo a eles posição de inferioridade em relação aos brancos, entre os quais destaca:

As imagens de mulheres negras eram sempre caricatas, com lenço na cabeça, brinco de argolas e traços animalizados; as mulheres negras eram sempre “cuidadoras”, sem família, numa brutal referência à “ama de leite”; quanto ao trabalho, apareciam associados a atividades não qualificadas (pedreiros, domésticas etc.); […] os negros como sinônimo de escravos. Em contrapartida, os valores inversos, positivos, eram atribuídos aos brancos. (Santos, 2001, p. 103)

Vale ressaltar que, quando essa relação não se dá pela ideia de inferioridade, ela se apresenta também pelo apagamento do negro, de suas características mais específicas, até o seu apagamento e/ou silenciamento total. Para efeito de exemplificação, selecionamos o livro didático destinado ao segundo ano, o Trilhas Sistema de ensino, publicado pela Editora FTD Educação no ano de 2017, no qual podemos ver, logo no primeiro capítulo - denominado “Como eu sou” - que na verdade a criança negra continua sem se ver representada em sua integridade.

Muito embora apareçam crianças negras ao longo da seção, na página 217, o exercício 2 apresenta o seguinte comando: “Circule as palavras que definem as características do seu cabelo”. E as características que aparecem para ser selecionadas são: curto, loiro, ruivo, cacheado, comprido, castanho, preto e liso. Não se observa, no entanto, a característica do cabelo crespo, por exemplo. Além disso, o cabelo crespo não aparece nesse capítulo em nenhuma das páginas anteriores (Figura 1).

Fonte: Trilhas... (2017, p. 217).

Figura 1 - Trilhas Sistema de Ensino. 

Parece-nos que essa invisibilização, quando simplesmente não só contribui para o processo de exclusão dessas crianças, faz com que elas mesmas não consigam ser vistas por si e pelos outros alunos de uma maneira positiva; ou seja, se aparecem características de vários tipos de cabelos, mas o crespo não é mencionado, este deixa automaticamente de ser um cabelo como qualquer outro, o diferente, ou até mesmo o objeto. Nesse sentido, podemos dizer que invisibilizar configura-se como uma das estratégias de deixar morrer. Com base nesse entendimento, podemos considerar que estabelecer uma política de morte não estagna apenas na morte física, legitimada e promovida pelos poderes estatais, que nos dias de hoje se apresenta por meio de uma nova configuração de soberania, na qual qualquer um se arvora no direito de eliminar o outro.

O Racionais MC’s, grupo brasileiro de rap, diria, nos anos de 1990, que “quem não é visto não é lembrado” (Silva, 2011). Então, quando a escola retira da sua estrutura organizacional qualquer possibilidade de menção à existência de um outro fora do que se considera a verdadeira figura humana, ela está automaticamente matando. A produção do esquecimento caracteriza-se como um mecanismo necropolítico, uma vez que também acaba com a possibilidade da existência do outro.

Em contrapartida, em continuidade aos estudos sobre a presença do negro em material didático, Ana Célia Silva (2011) pontua que houve uma mudança positiva na representação do negro nos livros escolares no que se refere às questões de subalternidade e estigmatização. Os negros estariam aparecendo também como integrantes da classe média, e não mais exclusivamente como executores de profissões de baixo prestígio. A autora também verifica o surgimento de uma nova categoria: a assimilação ao branco, tanto social quanto culturalmente.

Apesar de os dados da pesquisa apresentarem significativa melhora, Silva (2011) pontua que a baixa representatividade do negro ainda constitui característica marcante nos materiais, além de questões relacionadas às suas manifestações culturais não aparecerem nos livros analisados, seja por meio de descrição ou ilustração.

Silvério e Motokane (2019) evidenciam esse aspecto ao apresentarem uma análise acerca da sub-representação de corpos negros em livros de biologia do ensino fundamental. Os autores analisam que esse quadro se mostra como um dos processos de branqueamento, no qual se reforça a ideia de que o modelo típico de corpo humano é o do corpo branco. Assim, os corpos negros fixam-se como minoria, muito embora sejam mais de 50% da população brasileira.

Mesmo panorama pode ser observado também no estudo de Martins e Pureza (2020), que salientam a sub-representação de pessoas negras nos materiais de geografia no mesmo nível educacional apontado anteriormente. Além disso, os autores analisam que, mesmo após 17 anos da sanção da lei n. 10.639/2003, há um grande despreparo por parte dos profissionais da educação em colocar em prática a visibilização positiva do negro na história e na formação do Brasil, o que inviabiliza sua representação positiva e, por sua vez, acaba por impossibilitar o processo de desmistificação de estereótipos racistas.

Quando a negação do negro não se dá de maneira a extingui-lo dos espaços, sejam esses físicos ou simbólicos, ela acontece pela tentativa de assimilação de um ideal que visa torná-lo o mais próximo possível do branco. Negar-se como negro é uma das maneiras de tentar sobreviver - inclusive fisicamente - e aproximar-se do padrão branco, seja por meio de mecanismos para obter um cabelo similar ao liso, pela realização de incursões cirúrgicas que possam “minimizar” os traços fenotípicos, como nariz e boca, por exemplo, seja até recorrendo a cremes e tratamentos que clareiam a tonalidade da pele.

Assim, a assimilação ao branco indicada nos estudos de Silva (2011) demonstra que as práticas escolares apresentadas pelos materiais didáticos visam a uma uniformização do aluno negro, inserindo-o no ideal de indivíduo e sociedade, reiterando os valores hegemônicos que a estruturam e orientam. Ora, se antes o aluno negro não era inserido no material, agora ele, muito embora esteja representado fisicamente, não é respeitado em sua história, em sua individualidade. Ele passa a ter um outro ideal: o de ser um negro assimilado.

Jesus (2017) também aponta esse quadro ao apreciar livros paradidáticos. O autor denuncia a apresentação de uma personalidade, com base em análise de uma obra sobre a infância de Chiquinha Gonzaga, uma musicista negra que não aparece identificável como tal em um livro de literatura voltado para crianças do ensino fundamental. Isso nos leva a observar que uma das formas da manutenção de estereótipos racistas atualmente também se dá por meio de outra prática: a do branqueamento físico ou ilustrativo de personagens negros tidos como importantes ou históricos e que estejam exercendo ações de protagonismo, reiterando a ideia de que posições de destaque são ocupadas por pessoas/personagens não negras.

A assimilação ao branco pode também ser notada pelo conteúdo dos currículos escolares. A escola, ao adotar a gramática tida como normativa, por exemplo, e excluir quaisquer possibilidades de produção de linguagem e língua viva e elaborada, desconsiderando a fala dos alunos, bem como a peremptória correção de qualquer manifestação linguística que se afaste do ideal de língua portuguesa a ser falado na escola, está impondo um processo de assimilação de uma língua tida como a ideal: a do branco, a do colonizador.

Para ilustrar, um aluno que não realiza a concordância nominal para a sentença “as casas”, utilizando a construção “as casa”, é tido pela escola como alguém que não domina aspectos linguísticos de forma satisfatória. No entanto, ignora-se que existem outras normas linguísticas que não apenas a padrão (privilegiada pelo sistema de ensino corrente) e que, além disso, há outras influências que formam a língua portuguesa falada no Brasil.

Nei Lopes (2007) menciona que nas línguas do grupo banto,3 por exemplo, o plural se dá no início das palavras, e por isso não haveria a necessidade de repetir sua marcação, como estabelece a norma culta da língua portuguesa ao formular “as casas” como correto. Levando essa informação em consideração, podemos perceber que esse comportamento das instituições escolares desconsidera completamente toda a influência e legado que as diversas línguas africanas exerceram sobre o português falado no Brasil, relegando a essas influências o status de erro ou de anomalia linguística.

Concordando com Fanon (2008, p. 33) ao afirmar que “falar é existir absolutamente para o outro”, defendemos que, quando se retira do aluno a possibilidade de falar considerando seu lugar e sua cultura, está-se retirando dele, ao mesmo tempo, a possibilidade de existência. Essa é uma das facetas mais cruéis do racismo e empregada no sistema educacional.

A elite branca passa a pensar o negro e o índio como categorias sociais, por construções ideológicas que possam auxiliar a formular esse tipo de classificação. No entanto, o branco não se pensou e não se pensa como uma categoria social e ideológica tal qual o negro e o índio, e isso o exime da discussão racial, ainda nos dias de hoje (Gonçalves, 2011). Para o branco, ele é a categoria universal, e a escola adota esse ideário dentro das suas práticas mais cotidianas, contribuindo para a manutenção das diferenças e da exclusão.4

No entanto, não podemos pensar a escola e a educação a partir de um viés paralisante que nos faça refletir sobre a impossibilidade de reinvenção de uma nova ótica de construção do fazer pedagógico e da sociedade. Se uma cultura necropolítica/necroeducacional é imposta nesse espaço, é importante fazer emergir maneiras de ressurgimento da existência, de reinvenção da vida. Uma dessas formas seria a possibilidade de uma nova soberania dos sujeitos dentro desse espaço - soberania esta que não visa à morte, mas ao encontro com a sua própria vida.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando que o Brasil se constitui como um país estruturalmente racista, no qual a necropolítica é a forma de construção de poder vigente, discutimos neste texto como uma política para a morte pode estar inserida não apenas no que diz respeito à execução física de corpos, mas manifestada no apagamento, na exclusão, no aprisionamento e na deslegitimação de quaisquer grupos sociais. Nesse sentido, entendemos que as diversas instituições funcionam como braços necropolíticos, que desempenham o papel de morte e de exclusão dos grupos subalternos - e temos no sistema educacional uma forma muito marcante da execução desse poder.

É importante pensar que a exclusão social é também racial em nosso país e se manifesta pelo não acesso de crianças e jovens negros, por exemplo, a seus direitos básicos, bem como pela sua falsa inclusão em instituições, entre elas as escolares.

Diante disso, ao observarmos a escola e seus diversos mecanismos, como materiais didáticos, instrumentos, construção curricular e práticas pedagógicas, notamos que o sujeito negro é sub-representado, apagado e estereotipado ainda nos dias atuais. E assim uma educação para a morte, ou seja, uma necroeducação se estabelece.

Se, para Foucault, o poder se constitui em dimensões macro e micropolíticas, pensar as relações entre bio e necropolítica no sistema educacional é também avaliar essas relações. É pensar a quem está sendo dado o direito de viver (o branco, a sua cultura, a sua estética, o seu currículo, a sua visão de mundo) e a quem é relegada a posição de deixar morrer (o negro, em sua cultura, fala, historicidade, cosmogonia, complexidade).

No entanto, consideramos ser de extrema importância que a discussão sobre uma educação para a morte seja superada, não no sentido de esquecer ou desconsiderar as desigualdades, a estrutura e a exclusão sociorracial na qual os alunos e alunas negros e negras estão inseridos, mas a fim de que possamos buscar alternativas ao quadro que se apresenta.

Sendo assim, qualquer medida, intervenção ou política pública que vise à superação da condição de exclusão social da população negra deve estar estruturada em ações que possibilitem a (re)constituição da identidade desses indivíduos negros como pertencentes a um povo dotado de memória (ancestralidade) e a uma história de resistência negra.

Como abordado, ações como essas proporcionarão à população negra não somente acesso a seus direitos básicos, como ingresso em instituições de ensino, mas principalmente uma efetiva aprendizagem e permanência no espaço escolar.

Ao nos dispormos a construir uma sociedade que promova concretamente o acesso de todos e de todas à educação, é preciso atuar considerando as possibilidades de intervenções pedagógicas e políticas educacionais que promovam uma equidade de oportunidades e de justiça sociorracial por meio da educação.

Acreditamos, portanto, que novas narrativas, novas pedagogias, novos modos de construir uma raça (negra), a fim de se forjar a possibilidade de (re)aproximação dos alunos dentro do espaço escolar, apresentam-se como alternativas de superação de uma cultura de invisibilização, de apagamento, de esquecimento e morte de alunos e alunas negras no sistema educacional e início de alguns passos rumo a uma verdadeira construção de uma política de vida, por meio da qual a educação faça viver.

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1 Para um debate mais aprofundado a respeito de racismo, ver Guimarães (2004). O autor “analisa a formação do campo temático dos estudos de relações raciais, no Brasil dos anos 1940, e sua posterior superação pelos estudos de identidade racial e racismo, nos anos 1970”. Guimarães (2004, p. 9) sugere que a partir de 1970, em decorrência dessa “superação e sua substituição por paradigmas que utilizam quase exclusivamente a análise estrutural e institucional, o conceito de racismo passou a denominar de maneira imprecisa todas as dimensões da vida social e da interação entre ‘brancos’ e ‘negros’”.

2 Para Bourdieu (1989), a violência simbólica é tudo aquilo que se sustenta como resultado do poder simbólico, ou seja, tudo aquilo que não esteja diretamente relacionado ao processo de coerção física. Dá-se por meio do reforço da naturalização das relações de poder e caracteriza-se pela imposição de uma ideologia que se apresenta pelo discurso. A violência simbólica tem um papel fundamental na construção e na reprodução de estereótipos e estigmas sociais e manifesta-se também no âmbito das instituições.

3 Banto é a designação de um grupo linguístico genérico dada por W. H. Bleck a uma família de cerca de duas mil línguas africanas em 1860. Nos estudos realizados, o autor observou que a palavra muntu era existente em quase todos os idiomas analisados e possuía o mesmo significado, que era o de “gente”, “pessoa”, “indivíduo”. Os substantivos, nas línguas bantas, são precedidos de prefixos, que se distinguem de acordo com, por exemplo, o indivíduo, o grupo étnico, a terra de onde se origina e a língua que ele fala. O prefixo ba-, nesse caso, é utilizado para localizar de acordo com o grupo étnico. Assim, bantu passa a designar o plural para a palavra muntu (pessoas, indivíduos). Para mais informações, ver Lopes (2007).

4 A recorrente associação entre negros e escravos pode ser vista ainda nos dias atuais, mesmo que não em documentos oficiais, ou jornais, especificamente, mas está presente nas falas e nos materiais didáticos (mesmo que de maneira indireta). De forma geral, observamos uma maior atenção aos assuntos relacionados às questões raciais quando se aproximam os dias 13 de maio ou 20 de novembro, datas da abolição da escravatura e da memória da morte de Zumbi dos Palmares, respectivamente.

Recebido: 26 de Setembro de 2019; Aceito: 17 de Abril de 2020

Aline Pereira da Costa é mestranda em relações étnico-raciais pelo Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET-RJ). E-mail: alpe.costa@gmail.com

Carlos Henrique dos Santos Martins é doutor em educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET-RJ). E-mail: chsmlobo@gmail.com

Heloise Da Costa Silva é mestranda em relações étnico-raciais pelo Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET-RJ). E-mail: helo_dcs@hotmail.com

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