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Revista Brasileira de Educação

versão impressa ISSN 1413-2478versão On-line ISSN 1809-449X

Rev. Bras. Educ. vol.25  Rio de Janeiro jan./dez 2020  Epub 25-Nov-2020

https://doi.org/10.1590/s1413-24782020250054 

Artigos

Ensino superior em Música, colonialidade e currículos

EDUCACIÓN SUPERIOR EN MÚSICA, COLONIALIDAD Y CURRICULUM

Marcus Vinícius Medeiros PereiraI 
http://orcid.org/0000-0001-6859-0316

IUniversidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, MG, Brasil.


RESUMO

O texto busca provocar uma reflexão sobre os currículos dos cursos superiores de Música brasileiros, destacando a possibilidade de naturalização de suas estruturas engendrada por disposições de habitus incorporadas ao longo da história. Propõe a colonialidade como doxa do ensino de música, que, por meio de disposições conservatoriais incorporadas na forma de habitus, se torna nomos nos documentos curriculares. Dessa maneira, em diálogo com as propostas de um giro decolonial e de um projeto transmoderno, busca-se, em primeiro lugar, desnaturalizar essa doxa, esse habitus, para então prosseguir com a redistribuição dos conhecimentos legitimados e o reconhecimento de conhecimentos outros comumente silenciados. Para isso, insiste-se que não é necessário apagar o conservatório nem silenciar a música erudita, mas é essencial abrir espaço não somente para outras práticas sonoras, como também para outras formas de pensá-las e organizá-las.

PALAVRAS-CHAVE: educação musical; colonialidade; currículo

RESUMEN

El texto busca provocar una reflexión sobre los planes de estudio de los cursos de educación superior brasileños, destacando la posibilidad de una naturalización de sus estructuras engendradas por disposiciones de habitus incorporadas a lo largo de la historia. Propone la colonialidad como una doxa de la enseñanza de la música que, a partir de disposiciones conservatoriales incorporadas en forma de habitus, se convierte en nomos en los documentos curriculares. Así, en diálogo con las propuestas de un giro decolonial y un proyecto trans-moderno, busca primero desnaturalizar esta doxa, este habitus, y luego proceder a la redistribución del conocimiento legítimo y el reconocimiento de otro conocimiento comúnmente silenciado. Con este fin, se insiste en que no es necesario borrar el conservatorio y silenciar la música clásica; pero es esencial dejar espacio no solo para otras prácticas sonoras sino también para otras formas de pensarlas y organizarlas.

PALABRAS CLAVE: educación musical; colonialidad; curriculum

ABSTRACT

The text aims at inspiring a reflection on the curricula of Brazilian higher education Music programs, highlighting the possibility of naturalization of their structure engendered by habitus dispositions incorporated throughout history. It proposes coloniality as a doxa of music teaching that, based on conservatory dispositions incorporated in the form of habitus, becomes nomos in curriculum documents. Thus, in dialogue with proposals of a decolonial turn and a transmodern project, the study seeks first to denaturalize this doxa, this habitus, and then proceed to redistribute legitimate knowledge and recognize other commonly silenced knowledge. To this end, we do not need to forget the conservatory and silence classical music; however, we must open spaces not only to other sound practices but also to other ways of thinking and organizing them.

KEYWORDS: music education; coloniality; curriculum

NOTAS INTRODUTÓRIAS

A Associação Brasileira de Educação Musical (ABEM), destacada instituição que reúne pesquisadores, professores e estudantes de todos os níveis e modalidades de ensino de música, propôs para as discussões do biênio 2017-2019 um tema relacionado à educação musical em tempos de crise.

Em diálogo com esse tema, este texto propõe um recorte dos aspectos dessa crise concernente aos necessários enfrentamentos contemporâneos do ensino superior de Música, especialmente as licenciaturas, no que diz respeito à seleção curricular e à colonialidade. Os objetivos são, portanto, reconhecer a naturalização da estrutura colonial dos currículos do ensino superior em Música e procurar, com base em propostas decoloniais, pensar em possíveis caminhos de mudança.

Logo de saída, tenta-se compreender a crise não como algo por si mesmo negativo, mas como um momento propício para a tomada de posição. Em diálogo com Hannah Arendt (1997), Veiga-Neto (2008) aponta-nos essa direção, explorando a etimologia da palavra crise:

No grego, krisis, eōs é tanto a faculdade de distinguir, separar, quanto debate, disputa; o verbo do qual essa palavra deriva é krínó e denota a própria ação de julgar (para decidir melhor). Na forma latina crìsis, is passou a significar o momento de decisão cujo objetivo é a execução de uma mudança súbita no curso de um acontecimento, de uma ação, de uma doença etc. As palavras derivadas de crise - como crítica, critério, endócrino - não têm sentidos negativos; ao contrário, evocam até mesmo alguma produtividade. Como explicou Bornheim (1996, p. 49), “nisso tudo não parece haver um rastro de negatividade - ao contrário: há a força de escolher, julgar, discernir, debater; são palavras ligadas à força do pensamento e, portanto, à criação da filosofia, da ciência”. Assim, para Arendt, as crises, os momentos críticos, nos proporcionam a oportunidade de refletir, de modo a agir para tentarmos mudar o rumo dos acontecimentos; assim, a crise tem, em si mesma, uma positividade que não devemos desperdiçar. (Veiga-Neto, 2008, p. 143)

Crises, portanto, são momentos que nos inspiram cautela e nos convidam ao estudo minucioso e amplo que, por sua vez, envolve o debate e a disputa e nos conduz às ações transformadoras, resultado de nossos julgamentos e decisões quanto àquilo que pensamos ser melhor.

A colonialidade, tratando-se de currículos do ensino superior em Música, constitui um desafio a ser enfrentado. Ela é entendida como a hegemonia de conhecimentos, saberes, comportamentos, valores e modos de agir de determinadas culturas que, ao serem impostos a outras culturas, exercem profundo poder de dominação (Maldonado-Torres, 2007), e os currículos dos cursos superiores em Música no Brasil mostram-se como produtos e (re)produtores dessa lógica. Acabam por funcionar, portanto, como instrumentos de manutenção dessa dominação intelectual, artística e estética.

Na tradição crítica, a relação entre currículo e cultura é vista tanto como terreno de produção e criação simbólica quanto como campos de luta, campos contestados. Isso porque a cultura, no interior dessa tradição de pensamento, não é vista como um conjunto inerte nem estático de valores e conhecimentos a serem transmitidos de forma não problemática a uma nova geração, não existindo de maneira unitária nem homogênea (Moreira e Silva, 2006, p. 26). O currículo educacional torna-se, nessa perspectiva, terreno privilegiado de manifestação de conflitos.

É possível notar, no cotidiano do ensino superior em Música, as lutas que são travadas no campo da cultura: por exemplo, o desequilíbrio de valores atribuídos à música erudita, que é tomada como conhecimento oficial e legítimo (Pereira, 2012), e às outras músicas que atravessam a vida (pessoal e profissional) dos estudantes e o contexto em que os cursos estão inseridos - muitas vezes silenciadas como processos, quando não ausentes das discussões que ali se realizam. De fato, não se pode, com base nos documentos curriculares, generalizar sobre as práticas que ocorrem no cotidiano desses cursos. Uma imersão em campo, observando e ouvindo os agentes em ação, é fundamental para compreender de maneira mais holística o caso em questão.

Contudo, o documento curricular desempenha importante papel nesse contexto, uma vez que revela, como fala Goodson (1999, p. 21), “um testemunho visível, público e sujeito a mudanças, uma lógica que se escolhe para, mediante sua retórica, legitimar uma escolarização”. Assim, segundo o autor, o currículo fornece-nos um mapa do terreno sujeito a modificações.

É fundamentado nesses testemunhos documentais - visíveis, públicos e, o mais importante, sujeitos a mudanças - que se propõe a colonialidade como uma doxa perpetuada e operacionalizada pelos currículos dos cursos superiores em Música: ao se estruturarem com base na e para a música erudita ocidental europeia, tais currículos estariam funcionando como colonizadores dos sentidos, como instrumentos que propiciam a colonização da aesthesis por uma estética determinada.

Faz-se importante compreender que o objetivo não é simplesmente romper com a estrutura posta, o que seria simplista e reducionista. Antes, pretende-se refletir sobre algo que parece naturalizado e, portanto, irrefletido: a possibilidade de essa proposta curricular não ser a única versão do possível para a formação na área da música, como parece ser tacitamente aceito.

A trajetória que demarcou a inserção e a consolidação da área da música nas universidades brasileiras é fortemente subsidiada por uma história de exclusões, como afirma Queiroz (2017, p. 133). Diante disso, não se quer alçar o oprimido à condição de novo opressor (Freire, 1981): em vez de excluir do currículo os saberes considerados como hegemônicos, é possível que a solução passe mais por incluir outros processos, outras práticas, outros repertórios, outros universos sonoros - próximos da realidade diversa do país e que precisam ser tão valorizados e reconhecidos quanto aqueles tradicionalmente selecionados.

ENSINO SUPERIOR EM MÚSICA: RETRATOS DE UM HABITUS CONSERVATORIAL

Embora essa reflexão possa (e precise) abranger também os bacharelados em Música, apresentam-se as licenciaturas como foco, em razão do número de estudos já realizados acerca do tema. A própria raridade de discussões e estudos sobre os bacharelados já poderia ser considerada, em si, indicativo da naturalização que se pretende revelar.

A educação superior tem sido analisada, como destaca Queiroz (2017), com base em dois grandes eixos: aquele que se relaciona à sua expansão e outro que diz respeito à “diversificação de modelos, métodos e modos de ensino, com vistas a incorporar a diversidade de saberes e conhecimentos que caracterizam distintas culturas do mundo” (Queiroz, 2017, p. 135).

No que tange à ampliação da oferta de educação superior no Brasil, sua consolidação deu-se principalmente a partir da década de 2000, com grande impacto na área de música. Houve, dessa data em diante, significativa expansão dos cursos de graduação da área, sobretudo no que concerne às licenciaturas (Queiroz e Figueiredo, 2016; Queiroz, 2017).

Contudo, no que se refere ao segundo eixo de análise, vários estudos têm demonstrado que ainda há muito o que se pensar, estudar e fazer em relação ao ensino superior, de maneira especial na área da música (Vieira, 2000; Kleber, 2000; Denardi, 2006; Pereira, 2013, 2014; Queiroz, 2017).

A proposta corrente na área da educação musical era a de um “modelo” ou “forma conservatorial” que se perpetuava nos currículos de música - nas variadas etapas e modalidades de ensino. Vieira (2000), por exemplo, desvelou a presença de um “modelo conservatorial” na formação de professores de música em Belém (PA). Para ela, esse modelo estaria ligado ao domínio do código escrito como essencial à execução de um repertório determinado de música erudita. Esse código musical ensinado pelo modelo conservatorial corresponde ao conhecimento produzido à época em que o modelo foi criado e, ao conservar esse conhecimento, o modelo acaba por preservar um dos fatores que o fundamentam: uma cultura musical que compreende elementos de uma música de determinado momento histórico (Vieira, 2000, p. 4) e, pode-se acrescentar, espaço geográfico.

A “forma conservatorial”, proposta por Jardim (2008), estaria presente na concepção de um “músico professor”, cuja formação especializada assume caráter essencialmente técnico, estético, artístico e profissional (com forte apelo à performance). Concordando com Vieira (2000), Jardim (2008) mostra que nessa “forma conservatorial” o conhecimento teórico era considerado procedimento essencial para que o aluno já tivesse os rudimentos de leitura e escrita quando começasse a tocar ou cantar. Segundo a autora, tanto essa forma quanto as práticas de ensino a ela intrínsecas estariam tão arraigadas e naturalizadas na formação do músico que, de modo geral, as pesquisas que se ocupam desse tema dispensam da sua exposição comentários ou alusões a respeito. Para Jardim (2008), a estrutura dos cursos, os programas de ensino e o perfil dos alunos colaboraram para a consolidação da forma conservatorial.

Kleber (2000) e Denardi (2006), por sua vez, já sinalizavam a necessidade de reformas nos documentos curriculares dos cursos de licenciatura por elas estudados, apontando as mesmas questões discutidas por Vieira (2000) e Jardim (2008). Tais reformas, quando realizadas, foram percebidas pelas autoras como periféricas ou cosméticas, recaindo apenas nos nomes das disciplinas, em alterações de cargas horárias e ementas. A essência da concepção curricular permanecia sempre a mesma.

É importante destacar que, nas Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de graduação em Música (Brasil, 2004), não há prescrição disciplinar, ou definição de um currículo comum, especialmente no que se refere ao conhecimento específico em música. Esses “conhecimentos específicos” são entendidos, no documento, como “estudos que particularizam e dão consistência à área de Música, abrangendo os relacionados com o Conhecimento Instrumental, Composicional, Estético e de Regência” (Brasil, 2004, p. 2).

Entretanto, esses conhecimentos específicos são estruturados de maneira semelhante (para não dizer igual) nos cursos de licenciatura em Música brasileiros e também sul-americanos (Mateiro, 2009, 2011; Pereira, 2013), podendo ser sintetizados no seguinte rol de disciplinas (admitindo-se variações): teoria e percepção musical, contraponto, história da música, harmonia, análise, piano, instrumento complementar.

Essa estrutura, como demonstra Pereira (2012, 2013), guarda profunda relação de semelhança com a do Conservatório de Música do Rio de Janeiro, fundado em 1847, que se manteve essencialmente a mesma ao longo da história da instituição (até os dias de hoje, já como Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro), sendo tomada como referência modelar para outras congêneres em todo o país (tanto outros conservatórios como cursos de ensino superior).

Na análise desse processo histórico do ensino superior em Música no Brasil, Pereira (2012, 2013) destaca como diferentes conservatórios brasileiros foram sendo incorporados às universidades e, assim, levando consigo sua lógica própria de formação e estruturação curricular, de maneira que, mesmo os cursos que não se originaram da incorporação de um conservatório local, assumiram essa lógica já estabelecida para estruturar a formação em música no âmbito da universidade.

Nesse sentido, o autor afirma que, “apesar das dimensões continentais do país, e das diretrizes curriculares afirmarem uma flexibilidade para a adaptação aos contextos específicos de cada região, é possível observar mais semelhanças do que diferenças na concepção da formação docente em educação musical” (Pereira, 2012, p. 110). Não só grande parte das disciplinas e conteúdos correspondentes é comum a todos os cursos, como também está sequenciada de modo bastante similar.

Enquanto Pereira (2012, 2013) se dedicou às licenciaturas, Queiroz (2017) ampliou essa análise para os documentos curriculares de todos os cursos/habilitações em Música ofertados em dez instituições brasileiras, duas de cada região do país. Com base nesse estudo documental, Queiroz (2017, p. 146) destaca:

  • Os cursos que são denominados de Música, sem qualquer adjetivo ou complementação, são cursos que têm como única ou maior ênfase a música erudita ocidental;

  • Em diversos cursos de Música do Brasil, mesmo quando considerados outros conhecimentos e saberes que não os vinculados com a música erudita, isso é feito com base em parâmetros estéticos e culturais, de dimensões valorativas, entre outros aspectos, vinculados ao universo da música erudita. Mesmo o termo música popular, usado genericamente no perfil profissional definido em alguns cursos, não aborda diversidade de conhecimentos nem de saberes da música popular, mas uma face dela que pode ser escrita conforme os padrões convencionais, sistematizada por cânones da música erudita, arranjada de acordo com as formas estéticas dessa música;

  • Mesmo os cursos de licenciatura em Música que têm incorporado perspectivas mais amplas de música mantêm tendência similar à dos cursos de bacharelado genericamente denominados de Música. Há grande predomínio de componentes curriculares que dão maior ênfase aos padrões estéticos da música erudita ocidental.

Pereira (2012, 2013), diante de tal panorama, propôs a noção típico-ideal de habitus conservatorial, na tentativa de explicar a permanência da mudança. Sem ser necessariamente um modelo que é reproduzido de maneira completamente irrefletida, as práticas curriculares das licenciaturas em Música - e poder-se-ia ampliar para os bacharelados - permitem vislumbrar um retrato de disposições históricas incorporadas e assumidas como a versão do possível, que, mesmo na proposição de mudanças e reformas, acaba por orientar inconscientemente as práticas de maneira bastante ligada à tradição colonial. Essas disposições auxiliam a compreender o caráter sempre periférico e cosmético das reformas, bem como a similaridade entre os cursos de Música no Brasil.

A noção ancora-se no habitus de Pierre Bourdieu (2009, p. 93):

História incorporada, feita natureza, e por isso esquecida como tal, o habitus é a presença operante de todo o passado do qual é o produto: no entanto, ele é o que confere às práticas sua independência relativa em relação às determinações exteriores do presente imediato. Essa autonomia é a do passado operado e operante que, funcionando como capital acumulado, produz história a partir da história e garante assim a permanência na mudança que faz o agente individual como mundo no mundo.

Retomando uma vez mais a análise da constituição histórica do ensino superior em Música no Brasil, bem como o estudo posterior de quatro documentos curriculares de licenciatura em Música de instituições brasileiras realizado por Pereira (2012), reconhece-se a existência de uma ideologia musical que sustenta, legitima e naturaliza as práticas curriculares em questão. Uma ideologia que, ao despir a experiência musical de seu caráter social, não apenas nega a historicidade e a mutabilidade da música, dos valores e das experiências musicais, mas, ao fazê-lo, se constrói implicitamente como um sistema para a cotação do valor musical:

Quando incorporada nos agentes, esta ideologia ratifica e mantém, imanentemente, a hegemonia de uma instituição musical que faz esses produtos reificados serem vistos como superiores. Entra em cena a tradição seletiva, que separa a música superior de uma música de massa, profana, que são classificadas como não sendo realmente musicais. Ao ser incorporada nos agentes, esta ideologia cria disposições que orientam as práticas, as percepções e os significados musicais. Tudo isto nos leva ao conceito de habitus, a interiorização da exterioridade, a incorporação de disposições, a manutenção de práticas ideologicamente orientadas. Ou, como bem sintetiza Penna: “O conservatório que está tanto fora quanto dentro de nós, quer em nossa prática ou em nossa formação, quer nos compêndios didáticos ou nos modelos que adotamos”. (Pereira, 2014, p. 94)

Essas disposições conservatoriais de habitus fazem com que a música erudita figure como conhecimento legítimo e como parâmetro de estruturação das disciplinas e de hierarquização dos capitais culturais em disputa. Também fazem com que a notação musical ocupe lugar central no currículo, pois dela depende a maior parte das disciplinas que abordam a música erudita. Pereira (2014, p. 95) já observava, nas licenciaturas em Música, aquilo que Queiroz (2017) notou também nos bacharelados: “[Q]uando as ‘outras músicas’ são abordadas no currículo, ou o são por meio de sua excentricidade, ou esta abordagem se dá a partir da lógica erudita, ou seja, como conteúdo a ser trabalhado a partir do instrumental erudito” (Pereira, 2014, p. 95).

No caso das licenciaturas, como já comentado anteriormente, a estrutura de formação privilegia a música erudita e afasta outras possibilidades de práticas musicais que estariam mais relacionadas não somente com a cultura brasileira, mas também com a vida cotidiana dos alunos.

Há, portanto, um choque com as proposições da recém-homologada Base Nacional Comum Curricular (Brasil, 2017). Nesse documento, sancionado pelo Ministério da Educação em 2017 (educação infantil e ensino fundamental) e 2018 (ensino médio), que possui caráter obrigatório com base no qual os currículos das escolas de educação básica brasileiras deverão ser construídos (ou reformulados), a palavra diversidade aparece em três das dez competências gerais elencadas:

6. Valorizar a diversidade de saberes e vivências culturais e apropriar-se de conhecimentos e experiências que lhe possibilitem entender as relações próprias do mundo do trabalho e fazer escolhas alinhadas ao exercício da cidadania e ao seu projeto de vida, com liberdade, autonomia, consciência crítica e responsabilidade.

[...]

8. Conhecer-se, apreciar-se e cuidar de sua saúde física e emocional, compreendendo-se na diversidade humana e reconhecendo suas emoções e as dos outros, com autocrítica e capacidade para lidar com elas.

9. Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação, fazendo-se respeitar e promovendo o respeito ao outro e aos direitos humanos, com acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e de grupos sociais, seus saberes, identidades, culturas e potencialidades, sem preconceitos de qualquer natureza. (Brasil, 2017, p. 9-10)

Percebe-se, com isso, a necessidade de construir currículos que permitam às crianças e aos jovens o desenvolvimento da capacidade de valorizar a diversidade, compreendendo-se nela e respeitando o outro. Como os professores de música o farão, se sua formação é fundada em termos marcadamente monoculturais e coloniais? Se incorporam e acabam por perpetuar um habitus ligado à determinada estética colonial que desvaloriza e exclui tudo aquilo que é diverso?

A construção de currículos, seja na educação básica, seja no ensino superior, que considerem a diversidade se torna um desafio num país continental como o Brasil, com acentuada diversidade cultural e profundas desigualdades sociais. Dessa forma, como lidar com os conhecimentos em disputa? Como pensar, de maneira especial em música, no trato com a diversidade?

Vivemos atualmente no Brasil momentos de grande tensão no que diz respeito à escola, aos currículos e à diversidade. As forças políticas hoje no poder têm se posicionado fortemente contra determinados posicionamentos acerca desse tema, criticando aquilo que chamam de viés ideológico prevalecente na educação brasileira. O objetivo aqui não é entrar no mérito dessa discussão, mas caracterizar o momento atual como crítico e, portanto, propício para reflexões mais aprofundadas que nos orientem nas tomadas de decisão que envolvem educação musical, currículos e diversidade.

Um modo interessante de se pensar o trato com a diversidade é com base nos dois modelos de se conceber uma sociedade plural, propostos por Raguso (2005, p. 7-8):

O primeiro, que se afirmou nos Estados Unidos particularmente no último século, reconhece-se e autodefine-se como melting pot: uma sociedade singular dominante relaciona-se com vários grupos minoritários; este modelo presume que os grupos minoritários estão destinados a ser absorvidos pela cultura dominante e, portanto, desaparecerão com o tempo. Prevalece deste modo, o mito de “um povo, uma cultura, uma nação”. O segundo tipo de sociedade plural assume-se como multicultural e define-se como um mosaico, no qual os grupos étno-culturais diferentes mantêm o sentido da própria especificidade cultural e participam num molde social caracterizado por regras e leis compartilhadas que regulam a vida em conjunto.

Em qual dos dois modelos nos encaixamos atualmente?

Parece-me que, diante dos estudos que vêm sendo realizados a respeito do ensino superior em Música no Brasil, vivemos o primeiro. Práticas sonoras de grupos minoritários, quando abordadas, são absorvidas pela lógica da música esteticamente dominante. Contudo, na área da educação musical, lutamos para construir o segundo1, mas temos agido de maneira a consegui-lo?

A COLONIALIDADE COMO O FOGO QUE AQUECE O MELTING POT

Como bem destacou a professora Rosângela de Tugny no Encontro Regional Nordeste da ABEM, em 20182, é bastante curioso constatar que, no Brasil, “os outros” são os povos indígenas e os negros ou pardos, enquanto o sempre ideológico nós se identifica mais com os alemães, austríacos, franceses, enfim, os europeus. Tal postura pode ser entendida como resultado da colonialidade que perdura na América Latina como um todo, apesar de o colonialismo já haver, pelo menos oficialmente, chegado ao fim.

Define-se o colonialismo, como destaca Maldonado-Torres (2007), pela dominação política e econômica de um povo ou nação sobre o outro, por meio de uma relação explícita de poder, soberania e hegemonia. Colonialidade, como já apresentado anteriormente, é a hegemonia de conhecimentos, saberes, comportamentos, valores e modos de agir de determinadas culturas que, ao serem impostos a outras culturas, exercem profundo poder de dominação. Para Maldonado-Torres (2007), o colonialismo precede à colonialidade, mas a colonialidade sobrevive a ele.

Tais termos conduzem-nos à perspectiva de uma colonialidade do saber, proposta por Quijano (2014): processo que consolidou a repressão de outras formas de produção de conhecimento não europeias, tendendo a negar o legado intelectual e histórico de outros povos, como os indígenas e africanos, reduzindo-os a categorias vazias e preconceituosas, como primitivos e irracionais, por pertencerem a “outra raça” (Queiroz, 2017, p. 137).

Podemos compreender a colonialidade como o fogo que aquece o melting pot proposto por Raguso (2005): a compreensão da Europa como hegemônica, determinante dos saberes, comportamentos e modos de agir e pensar, que subjuga à sua própria ótica os saberes, comportamentos e modos de agir e pensar de todos os que, de acordo com ela, são vistos como “os outros”.

O eurocentrismo estaria na base de todo um processo de colonialidade, seja ela política, seja do ser, seja do conhecimento, seja da estética. Citando Aníbal Quijano, Amaral (2017) mostra que, em razão da colonialidade e da socialização sob seus termos, o eurocentrismo não é a perspectiva exclusiva dos europeus, mas do conjunto de pessoas educadas sob sua hegemonia e que naturaliza esse processo.

Queiroz (2017, p. 108) fala de epistemicídios musicais, crimes cometidos contra um conjunto amplo de expressões culturais que, por processos históricos de exclusão, foram expulsas de lugares destacados na sociedade. Ao serem lidas, analisadas e explicadas sob o ponto de vista da música erudita ocidental europeia, várias práticas sonoras, com suas próprias leituras, análises e explicações de si, têm sido silenciadas em todo o Brasil e na América Latina.

Como bem afirma Araújo (2016, p. 8-9), mesmo a palavra música, que utilizamos como se universal fosse, pode ser tanto um termo criado em determinado contexto ocidental, mas de aplicação muitas vezes precária, impositiva e/ou também violenta a outras práticas e saberes, que quase sempre subvertem os domínios estaques do quadro kantiano das artes. Nessa perspectiva, prossegue o autor, a aparentemente neutra categoria música tem levado à redução de culturas tidas como subalternas em relação a outras que se impuseram às primeiras como superiores, podendo redundar até mesmo no apagamento intelectual e físico-material de quaisquer diferenças significativas de visões de mundo subalternas após sua tradução àquelas pretensamente superiores.

Logo, há que se questionar: o que estamos assumindo como música em termos como licenciatura e bacharelado em Música, música nas escolas, disciplina e/ou conteúdo música, conhecimento específico de música? Não estaremos assumindo o impositivo e violento significado assumido para música na tradicional disciplina História da Música, presente em praticamente todos os currículos dos cursos superiores em Música no Brasil e no mundo: uma música erudita ocidental europeia masculina branca heteronormativa e cristã?

O que a compreensão desse termo implica na forma como temos organizado currículos e práticas em educação musical? Não estaria também esse termo contribuindo para a reprodução de uma sociedade do tipo melting pot?

A COLONIZAÇÃO DOS SENTIDOS: AESTHESIS × ESTÉTICA

A palavra aesthesis, que se origina no grego antigo, é aceita sem modificações nas línguas modernas europeias. Os significados da palavra giram em torno de vocábulos como “sensação”, “processo de percepção”, “sensação visual”, “sensação gustativa” ou “sensação auditiva” (Mignolo, 2010, p. 13). Daí que a palavra synaesthesia se refere ao entrecruzamento de sentidos e sensações e fora aproveitada como figura retórica no modernismo poético/literário.

No século XVII, o conceito de aesthesis restringiu-se e, daí para diante, passou a significar “a sensação do belo”. Nasciam, assim, a estética como teoria e o conceito de arte como prática. Muito se escreveu sobre Immanuel Kant, destaca Mignolo (2010, p. 13), e a importância fundamental de seu pensamento na reorientação da aesthesis e sua transformação em estética. Assim, em retrospectiva, começou-se a escrever a história da estética e foram encontradas suas origens não somente na Grécia, mas também na pré-história.

Para Mignolo (2010, p. 14), essa operação cognitiva constituiu, nada mais nada menos, a colonização da aesthesis pela estética. Posto que aesthesis é um fenômeno comum a todos os organismos viventes com sistema nervoso, prossegue o autor, a estética é uma versão ou teoria particular de tais sensações ligadas à beleza. Isso quer dizer que não há nenhuma lei universal que torne necessária a relação entre aesthesis e beleza. Essa foi uma ocorrência do século XVIII europeu. O problema, segundo o autor, é que a experiência singular do coração da Europa translada a uma teoria descobriu a verdade da aesthesis para uma comunidade particular, que não é universalizável. Isso não quer dizer que civilizações não europeias desconheceram aquilo que na Europa foi definido como belo. Basta observar qualquer civilização do planeta da qual se guardem documentos para comprovar que no Antigo Egito e na China Antiga, assim como em tribos indígenas brasileiras, a satisfação das sensações e o gosto pela criatividade na linguagem, nas imagens, nos edifícios, nas decorações, entre outros, não eram estranhos para ninguém. Também na Europa moderna, como nas civilizações antigas, essas experiências humanas existiam. Por razões complexas, que para Mignolo (2010) tem a ver com a construção da Europa a partir de 1492, a teorização particular de sua experiência universalizou-se.

Dussel (2005, p. 30) propõe que o ego cogito moderno foi antecedido em mais de um século pelo ego conquiro (eu conquisto) prático do luso-hispano, que impôs sua vontade sobre o indígena americano. A modernidade originou-se, segundo ele, nas cidades europeias medievais, livres, centros de enorme criatividade, mas nasceu quando a Europa pôde se confrontar com “o Outro” e controlá-lo, vencê-lo, violentá-lo; quando pode definir-se como esse ego conquiro, conquistador e colonizador da alteridade constitutiva dessa mesma modernidade. Dussel (1994, p. 10) defende que esse outro não foi “descoberto” como Outro, mas foi “en-coberto” por aquilo que a Europa já era desde sempre. Para o autor, 1492 foi o momento do “nascimento” da modernidade como um conceito, a “origem” de um “mito” de violência sacrificial muito particular e, ao mesmo tempo, um processo de “en-cobrimento” do não europeu.

Dussel (2005) propõe uma visão da “modernidade” num sentido mundial que

consistiria em definir como determinação fundamental do mundo moderno o fato [de a Europa] ser (seus Estados, exércitos, economia, filosofia, etc.) “centro” da História Mundial. Ou seja, empiricamente nunca houve História Mundial até 1492 (como data de início da operação do “Sistema-mundo”). Antes dessa data, os impérios ou sistemas culturais coexistiam entre si. Apenas com a expansão portuguesa desde o século XV, que atinge o extremo oriente no século XVI, e com o descobrimento da América hispânica, todo o planeta se torna o “lugar” de “uma só” História Mundial. (Dussel, 2005, p. 28)

Para o autor, com base no entendimento de que a “modernidade” da Europa foi a operação das possibilidades que se abriram por sua “centralidade” na história mundial e a constituição de todas as outras culturas como sua “periferia”, é possível compreender que, mesmo que toda cultura seja etnocêntrica, o eurocentrismo (etnocentrismo europeu moderno) é o único que pode pretender identificar-se com a “universalidade-modernidade”: “O ‘eurocentrismo’ da Modernidade é exatamente a confusão entre a universalidade abstrata com a mundialidade concreta hegemonizada pela Europa como ‘centro’” (Dussel, 2005, p. 30).

A ideia de um mito da modernidade, que realiza um processo irracional que se oculta a seus próprios olhos, é então apresentada por Dussel (2005) descortinando a modernidade como justificativa de uma práxis irracional de violência. Nesse mito, a civilização moderna autodescreve-se como mais desenvolvida e, portanto, superior. Essa superioridade obriga, como uma exigência moral, a desenvolver aqueles tidos como mais primitivos, bárbaros e rudes. O caminho para esse processo educativo de desenvolvimento deve ser aquele seguido pela Europa e, como o bárbaro se opõe ao processo civilizador, a práxis moderna deve exercer em último caso a violência, se necessário for, para destruir os obstáculos dessa modernização. Tal dominação acaba por produzir vítimas (de muitas e variadas maneiras), mas essa violência é interpretada como algo inevitável, com um sentido quase-ritual de sacrifício. Como afirma Dussel (2005, p. 30), “o herói civilizador reveste as suas próprias vítimas da condição de serem holocaustos de um sacrifício salvador (o índio colonizado, o escravo africano, a mulher, a destruição ecológica, etcetera)”. Por opor-se ao processo civilizador, o bárbaro teria, para o moderno, uma “culpa”. Essa culpa permite à modernidade apresentar-se não somente como inocente, mas como emancipadora dessa culpa de suas próprias vítimas. Por fim, os sofrimentos ou sacrifícios (os custos) impostos pela modernização são interpretados como inevitáveis resultados desse processo “civilizatório” da modernidade.

É assim que Dussel (2005) propõe superar a modernidade: negando a negação de seu mito.

Para tanto, a “outra-face” negada e vitimada da “Modernidade” deve primeiramente descobrir-se “inocente”: é a “vítima inocente” do sacrifício ritual, que ao descobrir-se inocente julga a “Modernidade” como culpada da violência sacrificadora, conquistadora originária, constitutiva, essencial. Ao negar a inocência da “Modernidade” e ao afirmar a Alteridade do “Outro”, negado antes como vítima culpada, permite “des-cobrir” pela primeira vez a “outra-face” oculta e essencial à “Modernidade”: o mundo periférico colonial, o índio sacrificado, o negro escravizado, a mulher oprimida, a criança e a cultura popular alienadas, etc. (as “vítimas” da “Modernidade”) como vítimas de um ato irracional (como contradição do ideal racional da própria “Modernidade”). (Dussel, 2005, p. 30-31)

Como um dos resultados desse processo civilizatório, a mutação da aesthesis em estética sentou as bases para a construção de sua própria história e para a avaliação de toda experiência estética que não tivesse sido conceitualizada nos termos em que a Europa conceituou sua própria e regional experiência sensorial.

Não estaríamos, em nossos cursos superiores em Música, oferecendo a nossos alunos ferramentas construídas com base nessa visão regionalizada de estética para analisar e valorar práticas do universo sonoro que, muitas vezes, possuem outras intenções, outros sistemas, outras estéticas? Não estaríamos perpetuando tudo isso também na seleção que fazemos para o trabalho na escola de educação básica? Não seria o habitus conservatorial um modus operandi da colonialidade no que se refere aos currículos em música no Brasil?

Muitas vezes acabamos entendendo o trato da diversidade apenas como a abordagem de outros produtos, mas sob as lentes estreitas da estética colonizadora. Não a abordamos com seus sistemas próprios, suas intenções próprias, sua estética própria. Assim, muitas vezes, acabamos por reeditar o mito da modernidade, sacrificando, num ritual civilizatório - ainda que com as melhores intenções -, as mais variadas práticas do universo sonoro, cometendo, portanto, os epistemicídios musicais de que nos fala Queiroz (2017).

PARA SUPERAR A MODERNIDADE E SUA COLONIALIDADE: O PROJETO TRANSMODERNO E O GIRO DECOLONIAL

Os diversos autores que abordam a colonialidade concordam que reconhecer sua existência e perceber os seus efeitos são passos fundamentais. Dussel (2005, p. 31) defende um projeto mundial de libertação, uma “trans-modernidade”, que se inicia, como mostrado anteriormente, com a negação do mito civilizatório e da inocência da violência moderna, revelando a injustiça da práxis sacrificial fora (e às vezes dentro) da Europa.

Supera-se a razão emancipadora como “razão libertadora” quando se descobre o “eurocentrismo” da razão ilustrada, quando se define a “falácia desenvolvimentista” do processo de modernização hegemônico. Isto é possível, mesmo para a razão da ilustração, quando eticamente se descobre a dignidade do Outro (da outra cultura, do outro sexo e gênero, etc.); quando se declara inocente a vítima pela afirmação de sua Alteridade como Identidade na Exterioridade, como pessoas que foram negadas pela Modernidade. Desta maneira, a razão moderna é transcendida (mas não como negação da razão enquanto tal, e sim da razão eurocêntrica, violenta, desenvolvimentista, hegemônica). (Dussel, 2005, p. 31)

A proposta de Dussel (2005) é realizar uma passagem transcendente (por isso trans-modernidade), na qual a modernidade e sua alteridade negada (suas vítimas) se correalizariam por mútua fecundidade criadora:

O projeto transmoderno é uma co-realização do impossível para a Modernidade; ou seja, é a co-realização de solidariedade, que chamamos de analéptica, de: Centro Periferia, Mulher/Homem, diversas raças, diversas etnias, diversas classes, Humanidade/Terra, Cultura Ocidental/Culturas do mundo periférico ex-colonial, etc.; não por pura negação, mas por incorporação partindo da Alteridade. (Dussel, 2005, p. 31, grifo do original)

De maneira análoga, entendemos, com Maldonado-Torres (2008), como um enfrentamento responsável e ético no trato da diversidade a proposta de um giro decolonial. Esse giro é o movimento teórico e prático de resistência política e epistemológica à lógica da modernidade/colonialidade. São partes fundamentais para esse giro tanto uma atitude quanto uma razão decolonial. Dialogando com o projeto transmoderno de Dussel (2005), o giro refere-se, essencialmente, à tomada de consciência do silenciamento, da ocultação, dos epistemicídios que foram e são produzidos pelas formas de poder modernas, bem como seus efeitos em diversos povos e segmentos sociais ao longo do tempo. O giro colonial diz respeito, também, ao reconhecimento de que as formas de poder coloniais são múltiplas e que tanto os conhecimentos como a experiência vivida dos sujeitos marcados pela colonialidade são altamente relevantes para entender as formas modernas de poder e prover alternativas a elas (Maldonado-Torres, 2008, p. 66).

O giro decolonial e o projeto transmoderno não se caracterizam pela negação da herança colonial, mas pelo descortinamento de sua hegemônica versão da verdade e, consequentemente, pela inserção de novas possibilidades epistemológicas na compreensão do mundo. Como afirmou Dussel (2005), é uma solidariedade analéptica, e não asséptica, assim como se trata de um giro porque essa subsunção, essa incorporação se daria por meio da alteridade, e não mais da suposta modernidade civilizada, civilizadora, conquistadora e dominadora.

O conceito de giro decolonial, em sua expressão mais básica, busca lançar mão de uma série de ferramentas conceituais e metodológicas, um sem número de estratégias contestatórias que busquem uma mudança radical nas formas hegemônicas atuais de poder, ser e conhecer.

A mudança da atitude natural racista ou individualista da modernidade para uma atitude decolonial de cooperação na ruptura com o mundo da morte colonial é o momento mais fundamental do giro decolonial, segundo Maldonado-Torres (2008). De acordo com ele, “a decolonialidade não pode ser realizada sem uma mudança no sujeito. Esta questão está relacionada com o que outros chamam de decolonialidade da mente ou do imaginário histórico da memória3” (Maldonado-Torres, 2008, p. 67). É para pensar essa mudança do sujeito que propomos o diálogo com Pierre Bourdieu (1983, 2008, 2009), partindo da tomada de consciência de seu habitus estruturado e estruturador da doxa colonial.

DIALOGANDO COM PIERRE BOURDIEU: A COLONIALIDADE COMO DOXA

Com sua teoria praxiológica, o sociólogo francês Bourdieu (1983, 2008, 2009) auxilia-nos a compreender e, assim, a desconstruir essas atitudes naturais - ou naturalizadas. É pela perspectiva bourdieusiana que tenho proposto compreender a colonialidade como a doxa do campo educativo-musical, que tem nas disposições conservatoriais de habitus incorporadas seu modus operandi de perpetuação.

Por doxa, Bourdieu (2003, p. 87) compreende a opinião consensual, todo o conjunto do que é admitido como óbvio, aquilo a que todos estão de acordo e, por estarem tão de acordo, nem sequer se fala disso, permanecendo como que escondido. Por meio de nossos habitus, transformamos essa doxa internalizada em nomos: leis que regem e regulam a luta pela dominação do campo (os currículos, por exemplo).

As disposições conservatoriais de habitus, reunidas na noção típico-ideal de habitus conservatorial proposta por Pereira (2013), funcionam como matrizes que engendram modos de ação e percepção, bem como crenças e critérios de valor institucionalizados pelos conservatórios de música.

O exercício de olhar para a colonialidade na educação musical com base em Bourdieu (2003) nos incita a questionar: que tipo de capital cultural se valora no campo da música? Que tipo de pensamento rege a seleção de conhecimentos e experiências musicais para os currículos de música? Há de fato uma reflexão sobre os conhecimentos e experiências musicais, ou aceitamos aqueles que são legitimados pelo campo? Aqueles que se referem a certo tipo de prática musical, pensados por e para essa prática, universalizada como produto da estética pura?

As crenças e os critérios de valor, bem como as ações e percepções em música, têm legitimado a música erudita como conhecimento específico a ser entregue, transmitido, e toda a teorização e sistematização realizadas por meio dessa e para essa música funcionam como a doutrina a ser seguida e aplicada a todas as práticas do universo sonoro. Como se a cultura erudita fosse legitimada pela tradição e pelo tempo, os “grandes purificadores dos conhecimentos”, e não possuísse nada de questionável (Lopes, 1997, p. 101).

A institucionalização dessa doxa pelos conservatórios de música perpetuada ao longo da história alçou à condição de nomos, nos currículos que tratam do ensino de música, uma colonialidade musical. Essa colonialidade liga-se à crença, um verdadeiro mito de superioridade da música erudita ocidental europeia, produzida por uma ideologia musical que “baseia-se na suposição de que a música é uma criação atomizada e fragmentada de indivíduos isolados, e que alcança grandiosidade quando transcende sua aparente singularidade e passa a pertencer ao universal, ao eterno, ao a-histórico” (Green, 1988, p. 5). Tal ideologia consiste na refração, para o campo artístico, da colonialidade e do mito da modernidade.

A compreensão do conservatório como instituição escolar também auxilia a compreender a tradição seletiva inventada: as práticas de ensino de música são organizadas num tempo e num espaço escolar estruturados pela linguagem e pela cultura do escrito - que se impõe em detrimento da oralidade (Pereira, 2018, p. 13). De acordo com Vincent, Lahire e Thin (2001), a escola (nesse caso, os conservatórios) passa a ocupar um espaço específico, distinto do espaço ocupado para a realização de outras práticas sociais, e se estrutura em torno de um projeto pedagógico cujos conhecimentos transmitidos são organizados em conteúdos, currículos, disciplinas, métodos, materiais, produzindo um saber-fazer próprio. Nessa institucionalização da formação do músico, que é naturalizada e transposta para o campo educativo em sua proposta de formação integral do cidadão, o conservatório elege a música erudita europeia (notada) como conhecimento legítimo e como parâmetro - de estruturação de disciplinas, de seleção de métodos, de ordenação de conteúdos e de valoração das práticas musicais.

O que Pereira (2013) pretendia, com a noção de habitus conservatorial, era desnaturalizar essas práticas como o único caminho de escolarização da música: seja para a formação do músico, seja para a formação do cidadão - de maneira mais ampla.

A desnaturalização de nosso habitus, com o reconhecimento de suas disposições conservatoriais, tem sido uma proposta de ferramenta que nos auxilia a, de um lado, decolonizar a arte e seus cânones e, por outro, decolonizar a aesthesia, a percepção estética que vincula subjetivamente a beleza e a complexidade ao padrão de arte clássica da Europa.

Essa proposta toma como base a afirmação de Setton (2002, p. 61) de que habitus não é destino. O primeiro passo para mudar consiste em desnaturalizar as tradições, reconhecendo-as como inventadas. Logo, se são inventadas, é possível reinventá-las. Reinventá-las com um giro decolonial, com base na solidariedade analéptica, de um projeto transmoderno.

Contrariar a colonialidade da estética, começando pela desnaturalização de nosso habitus, não corresponde a pregar o retorno a uma suposta expressão artística pura ou essencial, mas à busca por legitimar outras formas de experiência e expressão, outros sistemas de valores, considerados segundo os significados daqueles que os forjaram.

Não se trata de instituir tribunais inquisitoriais para queimar o conservatório, a música erudita e sua sistematização, mas de construir novos olhares e espaços de valor para as outras práticas, as outras músicas, as outras sistematizações. Desafiar e transcender essa verdade tida como única, abrindo espaço para outras epistemologias: espaço de fala e de escuta, permitindo a correalização de que nos fala Dussel (2005).

UM CURRÍCULO DECOLONIAL: ENTRE REDISTRIBUIÇÃO E RECONHECIMENTO

Focando o olhar para o ensino superior em Música, mas sem deixar de vislumbrar possibilidades para as escolas de educação básica, desnaturalizar a colonialidade como doxa curricular no campo da música implica a busca por justiça curricular. A justiça curricular, em sua potencialidade conceitual, pode ser um instrumento coletivo que nos permite promover a defesa da justiça escolar e da qualidade social da educação (Silva, 2018, p. 1).

É central, nesse processo, reconhecer os processos em que a colonialidade se expressa em nomos curriculares, como resultado das influências das disposições conservatoriais de habitus, pois “o pensamento pedagógico contemporâneo não pode se esquivar de uma reflexão sobre a questão da cultura e dos elementos culturais dos diferentes tipos de escolhas educativas, sob pena de cair na superficialidade” (Forquin, 1993, p. 10), na artificialidade e em um forte distanciamento semântico da música como prática social cotidiana. Não se trata de construir currículos exclusivamente baseados na prática musical cotidiana dos estudantes (e da própria universidade/escola), mas de incluir essa prática também como objeto de conhecimento e estudo.

A preocupação com o conhecimento a ser ensinado - entendido por Young (2014, p. 195) como “a capacidade de vislumbrar alternativas”, não podendo ser definido meramente por resultados, habilidades ou avaliações - não sugere uma percepção estática ou estável daquilo que se ensina. O conhecimento escolar está ancorado socialmente e, por isso, é referenciado nas práticas sociais de nosso tempo e, entre outras coisas, visa à qualidade e à relevância da educação (Silva, 2018, p. 5).

Ao mesmo tempo, o que justifica fundamentalmente, e sempre, o empreendimento educativo é a responsabilidade de ter de transmitir a experiência humana considerada como cultura, isto é, aquilo que, ao longo dos tempos, pôde aceder a uma existência pública, virtualmente comunicável e memorável, cristalizando-se nos saberes cumulativos e controláveis, nos sistemas de símbolos inteligíveis, nos instrumentos aperfeiçoáveis, nas obras admiráveis (Forquin, 1993, p. 13-14).

Logo, nos currículos, trata-se tanto de um processo de redistribuição, ou seja, de garantir o acesso ao conhecimento valorizado, aquele que vem sendo considerado “o melhor conhecimento possível” (Young, 2014), quanto de reconhecimento - reconhecer e valorizar diferenças culturais, outros saberes e outras práticas possíveis. Descobrir que o melhor conhecimento possível não é somente aquele que tem sido valorizado como o tesouro da humanidade. Há outros tesouros encobertos pelo véu da colonialidade.

Esta é uma transposição das propostas de Nancy Fraser para os estudos curriculares realizada por Silva (2018): Fraser (2006, p. 231) assume que a justiça, hoje, exige tanto redistribuição quanto reconhecimento. Para ela, isso significa, em parte, pensar em como conceituar reconhecimento cultural e igualdade social de forma a que sustentem um ao outro, em vez de se aniquilarem. Observamos aqui similaridade com o projeto transmoderno de Dussel (2005): o objetivo não é aniquilar a colonialidade (posto que é impossível, dada a profundidade das marcas culturais deixadas, assumidas também como uma de nossas matrizes culturais), mas promover uma correalização solidária com a cultura da América Latina valorizada como tal e assumida como perspectiva do olhar (e da escuta).

Ainda que a socióloga utilize a redistribuição como alternativa para a injustiça econômica, radicada na estrutura econômico-política da sociedade4, nos currículos pensamos na redistribuição como aquele conhecimento que tem se mantido inacessível à grande parte da população:

No que tange à redistribuição, a proposta de justiça curricular poderia garantir acesso a formas específicas de conhecimento para aqueles grupos que historicamente não conseguiam chegar à escola. Seria um referencial de qualidade social que, ao invés de um quadro estável de conteúdos ou de uma lista fixa de competências, potencializaria formas diferenciadas de inclusão social e de democratização através da ampliação dos repertórios culturais dos estudantes. Poderia ser lida como uma importante gramática para a vida em comum. (Silva, 2018, p. 16)

O reconhecimento é pensado especificamente para a injustiça cultural e consiste em alguma espécie de mudança cultural ou simbólica - um giro decolonial. Fraser (2006, p. 232) indica que pode envolver a revalorização das identidades desrespeitadas e dos produtos culturais dos grupos difamados, também o reconhecimento e a valorização positiva da diversidade cultural e, mais radicalmente ainda, uma transformação abrangente dos padrões sociais de representação, interpretação e comunicação, de modo a transformar o sentido do eu de todas as pessoas.

Pensando no currículo:

A redistribuição precisaria estar articulada com as demandas do reconhecimento, que, em termos curriculares, poderia ser representada pelas questões das diferenças culturais, em suas variações políticas. Conforme afirmamos na última seção, os debates em torno de um currículo que escute, respeite e valorize as diferenças culturais têm sido recorrentes no campo da política educacional. Favoreceria colocar em estudo as diferentes desigualdades ainda presentes em nossa sociedade, examinar as múltiplas formas de discriminação e a agenda contemporânea dos direitos ou, mais que isso, auxiliaria na ampliação da capacidade formativa das escolas através de um reencontro com a alteridade. (Silva, 2018, p. 16)

Como ações de enfrentamento para essas injustiças, Fraser (2006, p. 237) propõe “remédios” afirmativos e transformativos. O primeiro é entendido como as ações voltadas para corrigir efeitos desiguais de arranjos sociais sem abalar a estrutura adjacente que os engendra, ao passo que o segundo buscaria corrigir os efeitos desiguais precisamente por meio da remodelação da estrutura gerativa subjacente.

Os remédios afirmativos estariam associados a um “multiculturalismo mainstream”, que propõe compensar o desrespeito por meio da revalorização das identidades grupais injustamente desvalorizadas, enquanto deixa intactos os conteúdos dessas identidades e as diferenciações grupais subjacentes a elas. Em contraste, os remédios transformativos estariam associados à desconstrução: compensariam o desrespeito por meio da transformação da estrutura cultural valorativa subjacente. “Desestabilizando as identidades e diferenciações grupais existentes, esses remédios não somente elevariam a auto-estima dos membros de grupos presentemente desrespeitados; eles transformariam o sentido do eu de todos” (Fraser, 2006, p. 237).

Esta pode ser uma direção para o giro decolonial (e para o giro deconservatorial): ao mesmo tempo em que, com os remédios afirmativos, se promovem as diferenciações dos grupos existentes, com os transformativos, no longo prazo, desestabilizamos tais diferenças, a fim de abrir espaço para futuros reagrupamentos, para correalizações solidárias.

Reconhecer e ressaltar as diferenças, valorizando-as, com o passar do tempo acabam por inculcar novas disposições de habitus, que engendrarão novas práticas mais dialógicas, analépticas, solidárias.

NOTAS FINAIS

Ao longo do texto, foi possível observar o quão desafiador é enfrentar a crise dos currículos construídos por meio de disposições de habitus engendrados na doxa da colonialidade. Procurou-se destacar os testemunhos visíveis da colonialidade oferecidos pelos documentos curriculares do ensino superior em Música, com base em diferentes estudos que tomaram o ensino superior em Música como objeto. Propôs-se, portanto, compreender a colonialidade como o fogo que aquece o melting pot, isto é, como a doxa que, incorporada na forma de disposições conservatoriais de habitus, acaba por (re)produzir efeitos de dominação e colonização do saber, excluindo outras práticas musicais, produzindo até mesmo epistemicídios.

Com essa reflexão, pôde-se entender que os currículos do ensino superior em Música têm funcionado, muitas vezes, como um instrumento de colonização da aesthesis musical, definindo padrões estéticos europeus como a base para um sistema de cotação do valor musical e, por conseguinte, para a seleção curricular em música.

Em primeiro lugar, contudo, é preciso reconhecer que há uma crise e enxergar nessa crise um momento propício para a transformação, para reformas estruturais que atinjam de fato a essência que organiza as estruturas curriculares no ensino superior em Música. A proposta de um projeto transmoderno, de um giro decolonial, de um giro deconservatorial, apresenta-se como uma possibilidade de transformação.

Como tenho argumentado já há alguns anos, esses projetos e giros não serão resultado de uma imposição curricular, mas de um ajuste de contas individual com nossas crenças, valores e práticas: da tomada de consciência de nosso habitus.

Como Osho (2016), controverso filósofo indiano, nos fala:

Se você estiver me ouvindo e for uma pessoa instruída, um sábio, então não conseguirá me ouvir diretamente, simplesmente. Você não conseguirá me ouvir. Enquanto eu estiver falando, lá no fundo, você estará julgando, avaliando, criticando - não há diálogo, há um debate. Você pode parecer silencioso, mas não está silencioso; seu conhecimento continua girando em sua cabeça. Ele destrói tudo o que estou dizendo, ele o distorce, e o que quer que chegue até você não é a coisa real. O que chega até você é apenas aquilo que seu conhecimento permite que chegue. (Osho, 2016, p. 16)

Assim, não é preciso abdicar do conhecimento que possuímos, mas transcendê-lo, colocando-nos numa postura disponível para o que está acontecendo ou o que vai acontecer.

Faz-se essencial convidar os mestres do saber para nos falar sobre sua arte - algo que já tem sido feito nos encontros de saberes em algumas universidades brasileiras - e acerca de como eles compreendem a arte que fazemos. Precisamos, como Spivak (2014) desvela, abandonar o lugar incômodo e a cumplicidade de intelectuais que julgam poder falar pelo outro e, por meio dele, construir um discurso de resistência. Ao agir dessa forma, de acordo com Spivak (2014), estamos reproduzindo as estruturas de poder e opressão, mantendo o subalterno silenciado, sem lhe oferecer uma posição, um espaço de onde possa falar e, principalmente, no qual possa ser ouvido. Logo, a professora indiana alerta para “o perigo de se constituir o outro e o subalterno apenas como objetos de conhecimento por parte de intelectuais que almejam meramente falar pelo outro” (Spivak, 2014, p. 40). Afinal, “são mudos aqueles que agem e lutam em oposição àqueles que agem e falam” (Spivak, 2014, p. 40)?

Quanto do outro temos constituído em nossos currículos e práticas musicais no ensino superior em Música? Quanto temos imposto a dinâmica da colonialidade em nossas pretensas práticas em prol da diversidade? Como fazer diferente?

Para responder a essas perguntas de maneira mais consistente, é imperativo transcender à análise documental e inserir-se no campo, observando e escutando os agentes que produzem a história por meio da história, que estruturam e são estruturados por esse campo. Aprofundar-se nas práticas cotidianas é uma possibilidade que se mostra como fecundo desenrolar das pesquisas realizadas até aqui.

Para que um giro decolonial se inicie e, com ele, comece uma longa e lenta revolução, faz-se preciso reconhecer a colonialidade em nossas ações e pensamentos cotidianos. Devemos afirmar o valor das diferenças, ao mesmo tempo em que lutamos para transformar a estrutura que nos diferencia tanto econômica quanto culturalmente.

Para isso, não é necessário apagar o conservatório nem silenciar a música erudita, mas sim reconhecer os efeitos desse monopólio cultural e abrir espaço para outras formas de se pensar e organizar o universo sonoro. Se assumimos como premissa curricular para estruturar o ensino de música a afirmação de Blacking (2000, p. 10) de que “música são sons humanamente organizados”, todo estudante, nos variados níveis de ensino, tem o direito de estudar as diferentes propriedades dos sons, bem como o silêncio, porém, principalmente, tem o direito de entrar em contato com as mais diversas formas pelas quais diferentes agrupamentos humanos organizam esses sons em música - sejam elas as assumidas como eruditas, já escolarizadas pelo conservatório, sejam elas outras, que passam por diferentes sistematizações, sentidos e combinações com outras práticas sociais e artísticas.

O caminho não parece ser fácil, no entanto desnaturalizar as práticas cotidianas parece ser um primeiro passo consensual. Como já dizia Williams (1961), a revolução é longa. Somente o tempo pode fazer incorporar novas disposições de habitus, que (re)estruturam e são estruturadas por novos campos, com nova doxa e novo nomos. As marcas da colonialidade não desaparecerão, posto que são profundas e constituidoras de nossas práticas, mas é preciso aprender a conviver com elas e construir novos projetos de futuro, com elas e apesar delas.

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1Cf. estado do conhecimento sobre a produção da área da educação musical relacionando currículo e diversidade em Pereira (2017).

2Cf. fala oral na mesa-redonda intitulada “Educação musical em tempos de crise: vozes da diversidade”, no XIV Encontro Regional Nordeste da ABEM, em Salvador (BA), no dia 20 de setembro de 2018. Integravam a mesa: a professora doutora Rosângela Pereira de Tugny (Universidade Federal do Sul da Bahia), a professora doutora Laila Rosa (Universidade Federal da Bahia - UFBA), a professora doutora Katharina Döring (Universidade do Estado da Bahia) e a professora doutora Ângela Lühning (UFBA), esta última como articuladora.

3 Conforme o original: “La descolonización no se puede llevar a cabo sin un cambio en el sujeto. Este asunto está relacionado a lo que otros han denominado como la descolonización de la mente o del imaginario histórico y la memoria”.

4 Seus exemplos incluem a exploração (ser expropriado do fruto do próprio trabalho em benefício de outros), a marginalização econômica (ser obrigado a um trabalho indesejável e mal pago, como também não ter acesso a trabalho remunerado) e a privação (não ter acesso a um padrão de vida material adequado) (Fraser, 2006, p. 232).

Recebido: 06 de Outubro de 2019; Aceito: 13 de Maio de 2020

Marcus Vinícius Medeiros Pereira é doutor em educação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). E-mail: markusmedeiros@yahoo.com.br

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