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Revista Brasileira de Educação

versão impressa ISSN 1413-2478versão On-line ISSN 1809-449X

Rev. Bras. Educ. vol.25  Rio de Janeiro jan./dez 2020  Epub 16-Dez-2020

https://doi.org/10.1590/s1413-24782020250060 

Artigos

Relações afetivas, gestualidades e musicalidades: culturas lúdicas infantis na pré-escola

RELACIONES AFECTIVAS, GESTUALIDADES Y MUSICALIDADES: CULTURAS LÚDICAS INFANTILES EN LA EDUCACIÓN PREESCOLAR

Sandro Machado I  
http://orcid.org/0000-0003-0134-8386

Rodrigo Saballa de Carvalho I  
http://orcid.org/0000-0002-8899-0998

IUniversidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil.


RESUMO

O artigo é decorrente de uma investigação etnográfica que, fundamentada nas contribuições dos estudos sociais da infância, teve como objetivo pesquisar a produção de culturas lúdicas infantis por crianças pré-escolares na educação infantil. Metodologicamente, foram utilizados como estratégias a observação, os registros escritos e fotográficos e as rodas de conversa com as crianças. Com base nas análises, mapearam-se as gestualidades, as relações afetivas e as musicalidades expressas pelas crianças como unidades analíticas que ilustram a produção das culturas lúdicas em situações cotidianas que não se encontram vinculadas necessariamente às brincadeiras. Por meio da pesquisa, foi possível inferir que as culturas lúdicas dizem respeito à sensibilidade das crianças em reconhecer experiências lúdicas, também naquilo que escapa às suas referências culturais, ao se perceberem envolvidas afetivamente em situações ainda não experimentadas nos diversos ambientes dos quais fazem parte.

PALAVRAS-CHAVE: educação infantil; culturas lúdicas; pré-escola

RESUMEN

El artículo se deriva de una investigación etnográfica que, a partir de las contribuciones de los estudios sociales de la infancia, objetivó investigar la producción de culturas lúdicas por niños en la educación infantil. Metodológicamente se utilizaron, la observación, los registros escritos, fotográficos y las ruedas de conversación con los niños. Con base en los análisis, se mapearon las gestualidades, las relaciones afectivas y las musicalidades expresadas por los niños como unidades analíticas que ilustran la producción de las culturas lúdicas en situaciones cotidianas que no se encuentran necesariamente asociadas a los juegos. A través de la investigación, se pudo inferir que las culturas lúdicas corresponden a la sensibilidad de los niños en reconocer experiencias lúdicas, incluso en lo que escapa a sus referencias culturales, cuando se perciben involucrados afectivamente en situaciones todavía no experimentadas en los varios ambientes de los cuales forman parte.

PALABRAS CLAVE: educación infantil; culturas lúdicas; educación preescolar

ABSTRACT

This article results from an ethnographic investigation that, based on contributions from the social studies of childhood, aimed to research the production of ludic cultures by pre-school children in early childhood education. Methodologically, we used the strategies of observation, written and photographic records, and conversation circles with children. Based on the analyses, the gestures, affective relationships, and musicalities expressed by the children were mapped as analytical units that illustrate the production of ludic cultures in everyday situations that are not necessarily linked to playing. Through the research, we could infer that ludic cultures relate to the children’s sensitivity in recognizing playful experiences, including aspects that escape their cultural references, when they find themselves emotionally involved in situations not yet experienced in the various environments of which they are part.

KEYWORDS: early childhood education; ludic cultures; pre-school

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

As culturas lúdicas, convencionalmente, têm sido definidas como “uma estrutura complexa e hierarquizada, constituída de brincadeiras conhecidas, de costumes lúdicos, de brincadeiras individuais, tradicionais, universais e geracionais” (Brougère, 2010, p. 53-54), ou, ainda, como um conjunto de “procedimentos” ou esquemas que permitem à criança realizar algum jogo ou brincadeira, tornando possível o brincar (Brougère, 1998, 2010). No escopo dessa discussão, “essa cultura inclui, um ambiente composto de objetos e particularmente, de brinquedos” (Brougère, 2010, p. 54) que possibilitam que as crianças brinquem.

Ao ser relacionada aos jogos e às brincadeiras, a cultura lúdica como manifestação cultural tem sido considerada um modo singular de expressão das crianças (Salgado, 2005), em que jogos e brincadeiras se tornam potenciais elementos constitutivos dessa cultura. Logo, entendemos que a brincadeira:

  • é “a associação entre uma ação e uma ficção” (Brougère, 2010, p. 14);

  • consiste em “um meio da criança viver a cultura que a cerca” (Brougère, 2010, p. 62), por meio de “um envolvimento ativo enquanto brincante” (Garvey, 2015);

  • faz com que as crianças realizem “ações que representam as interações, os sentimentos e conhecimentos presentes na sociedade na qual se encontra” (Wajskop, 2012, p. 40);

  • “envolve negociações, equívocos, amizades e conflitos” (Fians, 2015, p. 59).

Ora, como lembra Brougère (2010, p. 106), a brincadeira “é um espaço à margem da vida comum que obedece a regras criadas pela circunstância”.

Em tal perspectiva, a “natureza da atividade do brincar, vem sendo compreendida como um espaço de produção cultural da infância, pela possibilidade que a criança tem de, por ela, experimentar, reproduzir e recriar a realidade e suas regras” (Arenhart, 2016, p. 147), por intermédio das interações estabelecidas nas brincadeiras. Ratificando o argumento, Grigorowitschs (2011, p. 78) afirma: “Os processos de socialização na infância, de um ponto de vista sociológico, repousam no fato de que as crianças participam de uma série de modalidades de interações sociais”1.

Por outro lado, as modalidades de interações sociais vivenciadas na infância não estão restritas às interações produzidas pelas crianças por meio das brincadeiras com seus pares, as quais, segundo Brougère (2010), são os vetores privilegiados da produção de culturas lúdicas. Além das interações sociais pelas brincadeiras, as crianças também desenvolvem “interações no interior da instituição escolar (interações entre crianças, entre crianças, professores e demais funcionários) e interações no interior da vida familiar (com pais, irmãos, primos, avós etc.)” (Grigorowitschs, 2011, p. 79), as quais, a nosso ver, são igualmente geradoras de culturas lúdicas.

Desse modo, com base no argumento de que “a cultura lúdica não está restrita às brincadeiras das crianças e aos brinquedos que elas manipulam” (Salgado, 2005, p. 3), realizamos uma investigação etnográfica com crianças pré-escolares fundamentando-nos nas contribuições dos estudos sociais da infância (Corsaro, 2002; Ferreira, 2004; Grigorowitschs, 2011; Fians, 2015; Arenhart, 2016; Agostinho, 2019). Isso porque entendemos que, para compreender a temática da cultura lúdica para além de sua definição conceitual enquanto “estrutura complexa e hierarquizada, constituída de brincadeiras conhecidas e disponíveis” (Brougère, 2010, p. 53), como geralmente vem sendo discutida nas pesquisas em educação infantil, é imprescindível que observemos as lógicas de ação social (Buss-Simão, 2012; Agostinho, 2019) empregadas pelas crianças.

Nesse sentido, o objetivo da pesquisa que compartilhamos neste artigo foi investigar os processos de produção das culturas lúdicas infantis nas interações sociais estabelecidas pelas crianças em situações cotidianas da educação infantil que não se encontram necessariamente vinculadas às brincadeiras. Assim, numa perspectiva ético-metodológica (Farrell, 2005; Alderson e Morrow, 2011), desenvolvemos uma investigação de inspiração etnográfica (Graue e Walsh, 2003; Vasconcelos, 2016) com um grupo de 19 crianças de 5 anos de idade advindas de famílias de baixa renda e que frequentavam a pré-escola de uma instituição de educação infantil conveniada à rede municipal de Porto Alegre (RS).

Metodologicamente, tendo em vista a geração dos dados da pesquisa, por seis meses consecutivos de trabalho de campo em tempo integral, foram realizadas observações das interações sociais das crianças, descrições densas dessas observações, a proposição de situações de produção de desenhos e registros fotográficos pelas crianças, além da promoção de rodas de conversa com os participantes da investigação. A pesquisa foi desenvolvida baseada na observação, na escuta e, sobretudo, no respeito às singularidades das crianças (Vasconcelos, 2016). Ademais, pautou-se no entendimento de que as crianças são “agentes sociais, ativos e criativos” (Corsaro, 2011, p. 15) e que, portanto, “devem ser tratadas como crianças, mas de um modo que normalmente os adultos não as tratam” (Graue e Walsh, 2003, p. 78), ou seja, com atenção, acolhimento e disponibilidade.

Em relação aos aspectos éticos (Alderson e Morrow, 2011) que permearam o processo de pesquisa, destacamos que, primeiramente, se fez a exposição prévia dos objetivos da investigação aos gestores e professores da instituição de educação infantil que definimos como lócus do trabalho de campo. Com a anuência dos gestores e professores da instituição, ocorreu, no segundo momento, uma reunião com os responsáveis pelas crianças da turma de pré-escola. Nessa reunião, foram expostas as etapas da pesquisa, bem como assinados os termos de consentimento livre e esclarecido autorizando a participação das crianças. Além disso, antes do início do trabalho de campo, foram compartilhadas as intenções de pesquisa com as crianças, possibilitando que elas assentissem (ou não) em sua participação mediante a assinatura (por meio de desenho) de um termo de assentimento. Isso reflete que a exposição de uma pesquisa de cunho participativo exige sensibilidade do investigador para “aprender a ver, ouvir, falar, pensar e agir” (Vasconcelos, 2016, p. 57) de forma respeitosa com todos os envolvidos.

Em sintonia com o exposto, convém apontarmos que a observação sistemática das interações das crianças no interior da instituição de educação infantil, por meio de uma participação periférica (Corsaro, 2002), nos possibilitou a construção do argumento de que as culturas lúdicas infantis também são produzidas por meio da miríade de relações sociais e afetivas (Ferreira, 2004; Fians, 2015) estabelecidas pelas crianças no cotidiano. Fundamentados na análise dos dados, mapeamos regularidades constituintes das culturas lúdicas presentes nos modos como as crianças compartilhavam socialmente certas referências culturais entre seus pares durante a jornada diária na pré-escola. Mediante a leitura dos diários de campo, definimos as gestualidades, as relações afetivas e as musicalidades como unidades de análise que (de certa maneira) ilustram a produção das culturas lúdicas pelas crianças em situações de vida cotidiana que não se encontram diretamente vinculadas às brincadeiras.

Com a pesquisa, passamos a entender as culturas lúdicas infantis como um processo de relações sociais que compreende tanto a capacidade das crianças de se apropriar de referências culturais lúdicas e compartilhá-las quanto de reconhecer experiências lúdicas para além de suas próprias referências. Portanto, passamos a defender que as culturas lúdicas dizem respeito a certa sensibilidade das crianças de reconhecer experiências lúdicas também naquilo que escapa às suas próprias referências culturais, ao se perceberem envolvidas afetivamente em situações ainda não experimentadas nos diversos ambientes dos quais fazem parte. Isso porque concebemos o lúdico (Rivero, 2011) como uma experiência constituída de um conjunto de emoções e sentimentos, como alegria, satisfação, contentamento e prazer, que tem na diversão a capacidade de, por exemplo, possibilitar que as crianças se desloquem afetivamente para uma posição na qual possam desfrutar essas figuras elencadas.

Em vista do exposto, organizamos o artigo em seis seções. Após esta seção introdutória, serão discutidos, na segunda seção, os conceitos de cultura, lúdico e culturas lúdicas infantis. Na terceira seção, abordaremos os modos como as crianças, por meio de suas gestualidades, se relacionam ludicamente com os seus pares. Na quarta seção, visibilizaremos as circunstâncias e intenções que envolveram as crianças em suas relações afetivas, possibilitando-lhes experiências lúdicas. Na quinta seção, compartilharemos as musicalidades das crianças e suas relações com as experiências lúdicas. Por fim, apresentaremos as considerações finais.

SOBRE OS CONCEITOS DE CULTURA, LÚDICO E CULTURAS LÚDICAS INFANTIS

Abordar as culturas lúdicas implica necessariamente discutir o entendimento conceitual que se tem de cultura e, sobretudo, de lúdico. Desse modo, apresentaremos os referidos conceitos e suas implicações na discussão sobre culturas lúdicas infantis. Para compreender tal investida, destacamos que as pesquisas com crianças desenvolvidas no campo dos estudos sociais da infância, ao problematizarem a perspectiva que vê a sociedade como entidade (Pires, 2010; Corsaro, 2011), têm corroborado a defesa de que as crianças não são índices do mundo adulto (Pires, 2010), e sim agentes ativos nos processos de socialização e produção cultural (Corsaro, 2002, 2011). Em outras palavras, as crianças têm sido vistas “não apenas como seres determinados pelas culturas, mas também como agentes produtores de cultura” (Barbosa, 2014, p. 650). Ratificando o argumento, Pires (2010) afirma que é preciso levar em consideração que: “1) não há uma idade única para o aprendizado cultural; 2) as crianças aprendem tanto quanto ensinam dos seus pares e dos adultos; 3) a aprendizagem não se faz apenas pela via consciente e racional” (Pires, 2010, p. 148).

Nesse ponto de vista, o conceito de cultura que pauta essas discussões e que assumimos em nossa investigação define que a “cultura não é unicamente aquilo que vivemos, mas também em grande medida, aquilo para o que vivemos” (Eagleton, 2005, p. 184). Essa conceitualização reforça que a cultura, enquanto processo de desenvolvimento humano (Du Gay et al., 1997), possibilita aos sujeitos “estruturas compartilhadas de significados que são utilizadas para localizar e compreender as coisas, para ‘atribuir sentido’ ao mundo” (Du Gay et al., 1997, p. 6). Por essa razão, pode-se declarar que a cultura, enquanto “condição constitutiva da vida social” (Hall, 1997, p. 9), é produtora de um campo de referências que pode preservar certos modos de relação social, inovar pensamentos e ainda ressignificar as posições de sujeito ocupadas pelas pessoas. De fato, as práticas culturais, ao “penetrarem em cada recanto da vida social contemporânea” (Hall, 1997, p. 5), mediam as relações sociais dos sujeitos com uma variedade de imagens produtoras de referências constitutivas de seus modos de ser, de viver e de se relacionar com os outros e consigo mesmo. Assim, reafirmamos que as crianças “elaboram sentidos para o mundo e suas experiências compartilhando plenamente de uma cultura” (Cohn, 2005, p. 35).

Nesse contexto, a cultura “é concebida, principalmente tendo como referência as práticas locais, os saberes cotidianos, os saberes incorporados, ou ainda uma etnografia do minúsculo” (Barbosa, 2014, p. 661). Como esclarece Pires (2010, p. 148), “a cultura não reside estática na cabeça dos adultos esperando ser enviada passivamente para as cabeças infantis”. Ela é dinâmica e “não está localizada em lugar algum, mas pode ser pesquisada nas relações entre as pessoas” (Pires, 2010, p. 152). Em suma, “se a cultura for compreendida como uma invenção do cotidiano, é certamente possível afirmar a participação das crianças na construção cultural do mundo” (Barbosa, 2014, p. 164).

Todavia, sempre é importante lembrar que as crianças possuem apenas uma “relativa autonomia cultural em relação aos adultos” (Cohn, 2005, p. 35). Isso porque “os sentidos que [as crianças] elaboram [sobre o mundo] partem de um sistema simbólico compartilhado com os adultos” (Cohn, 2005, p. 35). Por exemplo, ao discutirmos as culturas lúdicas infantis, de modo nenhum estamos “afirmando a particularidade da experiência infantil, sob o custo de uma cisão entre o mundo adulto e o infantil” (Cohn, 2005, p. 35). Tal como defende Pires (2010, p. 152), entendemos que “as crianças recriam o mundo, a partir do mundo que lhes é apresentado, um mundo de adultos”. Ou seja, somos cientes de que as crianças “são agentes de mudança, mas também de continuidade” (Pires, 2010, p. 152).

Com a exposição do conceito de cultura e realizados os alertas em relação a ele no que diz respeito à produção cultural pelas crianças, passamos à discussão do conceito de lúdico (Rivero, 2011; Massa, 2015) e dos modos como ele se manifesta no âmbito da educação infantil. Para tanto, definimos conceitualmente o lúdico como um tipo, entre outros, de experiência constituído de um conjunto de emoções e sentimentos, como alegria, satisfação e prazer. Desse ponto de vista, consideramos que sempre existe um diálogo entre o lúdico e o seu contexto, o qual possibilita que as crianças, por meio da diversão, se desloquem afetivamente para uma posição na qual desfrutem emoções e sentimentos, como indica Rivero (2011).

Por outro lado, a priori nos opomos ao emprego do termo lúdico como adjetivo - modo como vem sendo utilizado com regularidade na educação infantil - para, por exemplo, nomear algum tipo de objeto ou ação específica, como jogo lúdico, sequência lúdica, ação lúdica, atividade lúdica. Isso porque tal uso toma como premissa que o jogo, a sequência de atividades etc., por serem considerados naturalmente lúdicos, estão ligados de forma indissociável a uma suposta cultura lúdica.

Diante disso, reafirmamos a impossibilidade de o lúdico ser definido de antemão (Rivero, 2011), já que depende das experiências vivenciadas pelas crianças e do conjunto de referências culturais que são apropriadas por elas em determinadas situações de suas vidas. Por essa razão, sustentamos que não há garantias de que um planejamento, uma proposta ou um espaço pensado para ser lúdico alcance seu objetivo pelo simples desejo daqueles que possuem tal expectativa. Não estamos declarando, com isso, que não deva existir planejamento na educação infantil, tampouco que não sejam oportunizadas propostas que o professor considere prazerosas, divertidas e produtivas para as crianças. Queremos, de fato, chamar a atenção para o uso desmensurado e naturalizado do conceito de lúdico no vocabulário pedagógico (Massa, 2015), pois, assim como Rivero (2011), pensamos que o lúdico não se encontra exclusivamente vinculado às brincadeiras e depende do ponto de vista de quem vivencia a experiência.

Por exemplo, conforme tivemos a oportunidade de observar na pesquisa, as crianças podem ver situações ordinárias da vida cotidiana como ocorrências lúdicas, tais quais cumprimentos, diálogos, partilhas de confidências ou, ainda, momentos de descanso, de realização de refeições, de ensaios para a festa de encerramento do ano letivo, deslocamentos pela escola. Por esse motivo, por mais que possamos contar com um mesmo espaço (sala de aula), objetos (materiais e mobiliário disponíveis) e, também, com as mesmas crianças (colegas de turma), é um equívoco pensarmos que isso garante, a priori, a emergência de um ambiente lúdico2. Desse ponto de vista, entendemos que a inflação discursiva a respeito do conceito de lúdico na educação infantil ocorra talvez por certa expectativa dos professores de que, ao realizar determinada proposta ou ao interagir com dado objeto (supostamente considerado) lúdico, as crianças possam desfrutar algum tipo de experiência lúdica.

Desse modo, supomos que grande parte dos professores que empregam o termo lúdico enquanto adjetivo - no contexto da educação infantil - assim o faz não por resolver realizar algum tipo de prognóstico futuro, mas, ao contrário, por uma espécie de endereçamento ao passado, àquilo que já foi vivenciado por eles e que, de certa maneira, causou satisfação às crianças. Nesse caso, são determinadas experiências lúdicas passadas que, de alguma forma, são evocadas, convidadas a voltar à cena mais uma vez para confirmar ou legitimar certa intencionalidade proposta pelos professores no presente. Tal movimento utiliza um campo de referências culturais que os docentes compartilham entre si.

Diante dessa lógica, é possível depreender que há uma tentativa de conformação/confirmação do lúdico a determinadas ações das crianças - como no caso da atividade lúdica -, como se o professor tivesse condições de antecipar as sensações experienciadas por elas. Portanto, consideramos urgente que seja desenvolvida uma compreensão do conceito de lúdico que ultrapasse as adjetivações predeterminadas. Isso porque somente se pode afirmar que certa experiência está sendo lúdica haja vista os sentidos atribuídos pelas crianças no tempo presente.

Com base no argumento de que as crianças participam ativamente do processo de produção cultural (Corsaro, 2002; Pires, 2010; Grigorowitschs, 2011) e de que o lúdico é constituído dos sentidos conferidos por elas, julgamos ser importante ampliar o conceito de culturas lúdicas infantis. Em primeiro lugar, assim como Brougère (1998, p. 110), entendemos que “a cultura lúdica como toda cultura é produto da interação social”. Ademais, a cultura lúdica produzida pelas crianças não “está isolada da cultura geral, já que esta influência é multiforme e começa com o ambiente, as condições e materiais” (Brougère, 1998, p. 111). Do mesmo modo, concordamos com a premissa de que devemos tomar cuidado para que a cultura lúdica “não se constitua como substância já que a mesma só existe potencialmente, ou seja, como virtualidade” (Brougère, 1998, p. 112). Ainda, destacamos que Brougère (1998, p. 112) define a cultura lúdica como “o conjunto de elementos de que uma criança pode valer-se para seus jogos”, ou como “o conjunto de procedimentos que permitem tornar o jogo possível” (Brougère, 1998, p. 107).

Como se pode observar, do ponto de vista de Brougère (1998), as culturas lúdicas são conceituadas pontualmente como “esquemas de brincadeiras - regras vagas de estruturas gerais e imprecisas que permitem organizar jogos de imitação ou de ficção” (Brougère, 1998, p. 25). Por outro lado, discordamos que as culturas lúdicas estejam restritas ao âmbito das brincadeiras, pois, conforme dissemos anteriormente, as crianças podem reconhecer o lúdico (Rivero, 2011) em situações cotidianas. Nesse contexto, de modo nenhum negamos que as culturas lúdicas também são produzidas pelas crianças nas brincadeiras, mas, tal como Rivero (2011), sustentamos que o lúdico não se encontra somente vinculado a essas atividades. Afinal, seria ingênuo supormos que as crianças estão o tempo inteiro brincando (Fians, 2015) e que outras situações promotoras de interações sociais não podem ser reconhecidas por elas como lúdicas nem mesmo servir de referências lúdicas3 em circunstâncias futuras. Conforme Corsaro (2011, p. 199), “se é verdade que todas as crianças brincam, isso não significa que brincar simulando ações reais do mundo adulto, sintetize e esgote toda a vida das crianças”.

De fato, o que propomos, com base na teorização de Brougère (1998), é uma ampliação do conceito de culturas lúdicas, entendendo-o também como:

  • a capacidade das crianças de se apropriar de referências lúdicas e compartilhá-las por meio de interações sociais (Grigorowitschs, 2011) que podem estar relacionadas aos jogos e às brincadeiras ou, ainda, ao amplo espectro de situações da vida cotidiana;

  • a sensibilidade afetiva (relacional) das crianças de reconhecer experiências lúdicas naquilo que escapa às suas próprias referências “a partir da participação em interações sociais constituintes de um conjunto incontável de processos que não estão dados de antemão” (Grigorowitschs, 2011, p. 121).

No intuito de ilustrar a discussão, compartilharemos a seguir análises decorrentes da pesquisa que evidenciam indícios de como, por meio de brincadeiras, ou para além destas, as crianças também produzem culturas lúdicas infantis. Assim, alguns dos indícios do trabalho de campo serão apresentados como unidades de análise. Lembramos, ainda, que a definição dessas unidades passou necessariamente pela compreensão de que os registros, produzidos por meio de uma relação dialógica com as crianças, deveriam balizar nossas reflexões acerca da produção deste artigo. Por isso, a ideia não era criar generalizações sobre como se manifestam as culturas lúdicas infantis. Trata-se apenas da descrição de certas possibilidades de produção das culturas lúdicas infantis que foram observadas e que talvez possam promover debates e investigações futuras. Nessa direção, em cada uma das unidades - relações afetivas, gestualidades e musicalidades -, serão revelados excertos dos registros de campo4, descritos em episódios, os quais servirão de material analítico.

RELAÇÕES AFETIVAS: REDE DE ALIANÇAS E SOLIDARIEDADES

A “rede de alianças e solidariedades” (Ferreira, 2004, p. 193) constituída das crianças por meio das relações afetivas com seus pares possibilita que experimentem o mundo, percebendo-o “com seu estilo próprio no interior de uma experiência cultural” (Le Breton, 2016, p. 15-16). Por essa razão, destacamos que “a escola de educação infantil, configura-se como um espaço de sociabilidades onde as crianças encontram outras crianças, brincam, conversam, trocam informações e fazem amizades” (Gomes, 2015, p. 132). Isso porque, conforme afirma Ferreira (2004, p. 193), “as relações de sociabilidade se manifestam na competência das crianças para estabelecer e nutrir uma rede de alianças e solidariedades” e são marcadas por uma intensidade de afetividade presente nos modos como ocorrem as aproximações, os diálogos, as disputas e as transgressões partilhadas entre os pares.

Pelos motivos expostos, compartilharemos episódios que evidenciam o caráter afetivo das relações estabelecidas pelas crianças entre si e com os adultos no processo de constituição das culturas lúdicas infantis. Tendo em vista a compreensão da experiência social infantil (Grigorowitschs, 2011; Gomes, 2015; Gomes e Aquino, 2019), demonstraremos algumas circunstâncias, estratégias e intenções que envolveram as crianças em suas relações afetivas (Le Breton, 2009, 2019) na escola, possibilitando-lhes experiências lúdicas. As relações afetivas produzidas pelas crianças em seus grupos de pares serão discutidas nos seus “estados transitórios, enquadradas num mosaico de movimentos permeado de ambiguidades e de sombreamentos, de fleuma e de arrebatamentos” (Le Breton, 2009, p. 209), uma vez que “os grupos de pares figuram um lugar de destaque na vida das crianças, pois é por eles que se dá a construção da ação social da infância” (Gomes e Aquino, 2019, p. 13).

No âmbito das observações, notamos que as relações afetivas (Le Breton, 2009, 2019), para as crianças foram fundamentais para a emergência de “produções coletivas inovadoras e criativas” (Corsaro, 2011, p. 39) nos ambientes constituídos delas. Pelo fato de conviverem diariamente, as crianças encontram soluções criativas para os desafios demandados pela ordem institucional adulta (Ferreira, 2004). Além disso, no contexto das relações afetivas estabelecidas entre elas, observamos a relevância dos ambientes (Forneiro, 1998). Arenhart (2016), por exemplo, em sua pesquisa, também reconhece a importância dos ambientes e destaca que “os diferentes lugares sociais em que se situam as crianças produzem modos, significações e referenciais distintos” (Arenhart, 2016, p. 176). Portanto, podemos afirmar que existe influência do espaço físico, dos objetos, do mobiliário, das diferentes decorações produzidas nas salas, dos cheiros, dos sons, enfim, dos diversos elementos que constituem os ambientes (Forneiro, 1998) na educação infantil, compartilhados pelas crianças com seus pares no desdobrar de suas relações sociais.

Com base nesses indicativos, apresentaremos um episódio no qual as crianças, brincando autonomamente, inspiradas nas práticas desenvolvidas de modo regular pela professora, organizam uma roda de histórias, conforme pode ser visto a seguir:

Episódio 1 - A roda de histórias das crianças

Em um momento descontraído de contação de histórias, aproximo-me de algumas crianças que, sentadas, formavam um círculo na sala. Sento-me junto a elas para escutar a menina Ana5, que entusiasmadamente iniciava a contação de uma história. Nesse instante, Júlia sai do seu lugar na roda, senta-se ao meu lado e me abraça, interrompendo a performance de sua colega. Ana, então, aguarda o reestabelecimento da atenção e recomeça. Logo em seguida, Ana é atrapalhada por Nicolas, que começa a bater com os pés no chão. Ele começa a rir, sozinho. Após mais algumas batidas no chão, Ana se irrita e solicita para Nicolas parar: “É feio!”, ela diz. Atento ao olhar repreensivo do grupo de crianças, o menino encerra as batidas, e Ana segue com sua história. Certo tempo depois, Melina se aproxima do grupo, perguntando o que estamos fazendo. Nicolas se ajoelha rapidamente e responde: “Isso aqui é uma divertida roda de histórias! Para participar, você também tem que respeitar”. (Diário de campo, out. 2018)

A leitura evidencia que, embora Nicolas estivesse se divertindo ao interromper a contação da história por diversas vezes, ele percebeu com o tempo que, naquela coletividade, seria preciso reavaliar seu comportamento. Durante a contação, as crianças que constituíram o grupo precisaram estabelecer determinados critérios para que aquele evento pudesse ocorrer de um modo que agradasse a todos. Nicolas, até certo momento, não compartilhava dessa sintonia coletiva. Foram necessárias algumas intervenções, como as realizadas por Ana, para que ele compreendesse que nem sempre aquilo que pensamos ser divertido é entendido da mesma forma pelos colegas.

Nesse âmbito, percebemos a fragilidade com que certos ambientes (Forneiro, 1998) foram constituídos das crianças no decorrer da pesquisa. Assim, com base no aprendizado de que “a interação social [entre as crianças] é algo que precisa ser desenvolvido” (Grigorowitschs, 2011, p. 121), observamos, durante a investigação, constantes readequações das condutas infantis na produção de suas culturas lúdicas. Tal compreensão também resultou no aprendizado de que as culturas lúdicas infantis têm seus limites, no entanto esses limites não são, necessariamente, universalizáveis. Eles se manifestam à medida que consideramos, em cada contexto, o “caráter singular dos sentimentos” (Le Breton, 2009, p. 162) que envolvem as relações afetivas partilhadas pelas crianças no desafiador aprendizado de convivência em grupo (Buss-Simão, 2012; Gomes e Aquino, 2019).

Esse caráter singular dos sentimentos, em contextos escolares, precisa gradualmente ser compreendido pelas crianças, levando a alterações na própria forma como elas expressam seus sentimentos na convivência com seus pares. Sobre essas alterações, Le Breton (2009, p. 162) argumenta que as mesmas circunstâncias podem determinar “comportamentos afetivos sensivelmente diferentes” caso estejamos sozinhos ou em meio a um grupo. Isso significa que “a percepção de que para estar no mundo social é preciso participar de interações sociais constituintes de um conjunto incontável de processos, é algo que não está dado de antemão” (Grigorowitschs, 2011, p. 121), mas que é aprendido no convívio com outras pessoas.

Conforme pôde ser observado no episódio, Ana e Nicolas passaram por um processo nomeado por Corsaro (2011, p. 185) de “acordos de negociação”. O autor entende que os conflitos e as discussões das crianças nos grupos de pares variam consideravelmente e que experiências coletivas podem ser determinantes para essas negociações. No episódio, verificamos, por um lado, Ana realizando um acordo de negociação ao informar a Nicolas que “é feio” atrapalhar os colegas que estão contando histórias. Desse ponto de vista, é possível perceber que “as crianças atualizam constantemente as regras, as normas e os valores sociais e fazem isso ao reorganizá-las nos e com seus grupos de pares” (Gomes, 2015, p. 140). Nicolas precisou readequar sua conduta para que ele próprio pudesse se divertir e compartilhar uma atividade prazerosa com o coletivo. Ele escutou, notou o descontentamento do grupo e, assim, ressignificou suas atitudes, participando da contação de história com seus colegas. O menino, ao dizer para Melina que “isso aqui é uma roda de histórias”, demonstrou a compreensão da existência de acordos coletivos que visam assegurar um ambiente propício à contação de história. Diante do exposto, concordamos com Grigorowitschs (2011) quando afirma que, no momento em que as crianças assumem “a perspectiva do outro, elas veem não apenas o mundo da perspectiva do outro, mas também a si mesmas como parte desse mundo” (Grigorowitschs, 2011, p. 121).

Prosseguindo as análises, compartilharemos um episódio em que as crianças recorrem às suas referências lúdicas6, evidenciando as relações afetivas que estabelecem com seus pares, bem como com os artefatos com os quais têm a oportunidade de lidar no cotidiano:

Episódio 2 - O desenho animado da Pantera!

Entro na sala e encontro as crianças sentadas nas almofadas, no chão, enquanto assistiam a um desenho animado em um televisor. Aparentando estarem muito concentradas, ao me enxergarem, algumas exclamam um sonoro “Sôôôrr...”. Três ou quatro crianças ensaiam levantar-se, mas a professora diz para ficarem nos seus lugares. Cumprimento, então, as crianças de modo mais amplo. Com a porta novamente fechada, a sala escura, iluminada apenas pela luz do televisor, as crianças voltam suas atenções para o desenho. Passado um tempo, César vem até minha direção, para em minha frente e comenta: “Professor, semana que vem é meu aniversário”. Em seguida, senta-se ao meu lado. O desenho continua, enquanto observo as reações da turma. A certa altura da história, Paulo ajoelha-se no chão, dizendo: “Ah, esse eu já vi!”. Instantes depois, ele se vira para o lado, na direção de Duarte, e o abraça, ao mesmo tempo [em] que dois dos personagens do desenho se abraçam também. O desenho acaba, e uma das professoras vai até o aparelho, dizendo para a turma que colocará o DVD da Pantera cor-de-rosa. As crianças demonstram alegria: “Oba!”. A seguir, algumas crianças começam a narrar trechos de outros episódios e até mesmo de outros desenhos umas para as outras. Paulo começa a narrar cenas do desenho que estava iniciando. Duarte, que o escutava, “antecipa” o final de Paulo, adiantando sua fala. Ambos riem. Lívia, que estava próxima, aparentando estar contrariada com a situação, manifesta-se para os dois: “Não pode contar o filme!”. Paulo e Duarte, então, se acalmam e voltam a prestar atenção no desenho, assim como o restante da turma. (Diário de campo, set. 2018)

Pode-se perceber que as crianças apresentaram relação afetiva com os desenhos animados. A maioria do grupo já conhecia as personagens e os roteiros, fato que produziu, para aquela sessão, um efeito de continuidade na relação entre as crianças e tais referências lúdicas. Algumas crianças acompanharam as aventuras das personagens expressando-se corporalmente por meio do movimento das mãos, dos braços e das pernas. Outras crianças divertiram-se assumindo a função de intérpretes, repetindo ou antecipando oralmente os diálogos entre as personagens.

Nesse contexto, para algumas crianças, até mesmo o anúncio da professora sobre qual desenho seria exibido foi motivo de alegria e celebração. Durante a seção, as crianças partilharam abraços e sorrisos, enquanto dialogavam umas com as outras acerca das cenas que ainda seriam exibidas. Com efeito, a troca de spoilers sobre os desenhos foi aproveitada pelas crianças como um modo de interação social.

Todavia, destacamos o fato de que as crianças não experimentam da mesma forma os ambientes (Forneiro, 1998) que compartilham com seus pares. Conforme evidenciado, embora Lívia estivesse alegre por saber qual seria o próximo desenho, ela acabou posteriormente aborrecendo-se ao ouvir o seu colega narrar a cena que seria exibida. Portanto, veem-se algumas crianças alegres e outras aborrecidas, ao mesmo tempo e em um mesmo evento. Por outro lado, por meio de relações afetivas, as crianças estabeleceram negociações que tornaram a sessão de desenhos aprazível a todas.

Em acordo com Grigorowitschs (2011, p. 121) quando argumenta que “nós precisamos ser outros se queremos ser nós mesmos, pois é apenas ao assumir o papel dos outros que somos capazes de voltamos para nós mesmos”, ressaltamos que, no episódio em análise, as crianças, mediante negociações, estabeleceram critérios de conduta que visavam a um ambiente agradável para todos. Nessas negociações, os envolvidos não apenas aprenderam quais desenhos seus colegas poderiam conhecer e apreciar - o que, do nosso ponto de vista, é uma referência lúdica -, como houve também aprendizagem a respeito dos modos como poderia ser realizada uma sessão de desenhos. Isso significa que as crianças, mediante um processo que envolve “autonomia e interdependência em relação a cultura global” (Salgado, 2005, p. 153), se constituem como grupo social. Esse processo envolve a apropriação de conhecimentos que são exteriores às crianças para a construção de uma realidade compartilhada (Ferreira, 2004).

Desse modo, compreendemos que as negociações ocorridas entre as crianças se relacionam ao que Ferreira (2004) denomina de ordem instituinte, o que, como define a autora, são “ordens de existência reguladas por princípios e lógicas de ação relativamente autônomas, alicerçadas numa integração social” (Ferreira, 2004, p. 104). Isso não quer dizer que as crianças sigam de maneira estrita essas ordens de existência (Ferreira, 2004), mas que, coletivamente, estabelecem uma convenção social que serve de parâmetro para avaliarem suas posturas e as de seus colegas. Lívia, por exemplo, fez uso de uma aprendizagem pessoal ao compartilhar com o grupo o fato de que eles não deveriam antecipar as cenas do desenho animado. A esse respeito, Corsaro (2011) destaca o caráter ativo das crianças “na produção e na mudança social enquanto criam, suas próprias culturas” (Corsaro, 2011, p. 97).

Por fim, é possível afirmar que a sessão de desenhos se desdobrou de maneiras diferentes, sendo perceptível que, além das relações afetivas instituídas pelas crianças com as personagens e os roteiros, elas compartilharam sensações prazerosas com seus colegas, materializadas por gestos, risadas, abraços e sorrisos.

GESTUALIDADES: MODOS DE COMUNICAÇÃO E INTERAÇÃO

As crianças, com seus gestos, olhares, posturas corporais e movimentos, nos “revelam que falam muito por meio de seus corpos” (Arenhart, 2016, p. 104) no que diz respeito à produção das culturas lúdicas. É pela expressão de suas gestualidades (Le Breton, 2019) que elas utilizam o corpo como suporte de comunicação em suas interações sociais. Nos ambientes experimentados pelas crianças na pesquisa, por exemplo, houve momentos em que suas gestualidades ficaram em evidência nos registros de campo. Na observação de imitações, cumprimentos secretos, troca de acenos, caretas, sorrisos, entre outras expressões, foi possível compreender a importância da comunicação corporal para elas. Desse modo, ratificamos o argumento de Arenhart (2016, p. 104) de que “as crianças não só têm um corpo, mas também são um corpo: vivo, brincante, contestador, um corpo capaz de enunciar valores, críticas e proposições diante da realidade”.

Com base nessas considerações, pode-se afirmar que o “corpo é também o seu entorno” (Goellner, 2003, p. 29), pois, além de possuir uma “história própria” (Buss-Simão, 2012, p. 111), ele se configura como “uma superfície e uma espessura de inscrição cuja forma e sentido são delineadas pelas injunções culturais que sobre ela se apõem” (Le Breton, 2009, p. 37). Nesse contexto, faz-se imprescindível entender que, assim como consiste em “um conjunto de músculos, ossos, vísceras, reflexos e sensações, o corpo é também a roupa e os acessórios que o adornam, as intervenções que nele se operam, a imagem que dele se produz, os sentidos que nele se incorporam” (Goellner, 2003, p. 29). Por conseguinte, “o corpo não é o primo pobre da língua, mas seu parceiro homogêneo na permanente circulação de sentido, a qual consiste na própria razão de ser do vínculo social” (Le Breton, 2019, p. 49).

Ante o exposto, cremos importante esclarecer que concebemos o corpo “para além da visão mecanicista e dualista do senso comum que comumente nos ensina que cada pessoa tem um corpo, como se fosse um suporte material a serviço da mente” (Arenhart, 2016, p. 100). As discussões abordadas evidenciam que “não são, portanto, as semelhanças biológicas que definem o corpo, mas fundamentalmente, os significados culturais e sociais que a ele se atribuem” (Goellner, 2003, p. 29). Como indica Arenhart (2016, p. 123), o corpo é “essa materialidade em que se inscrevem experiências e estatutos do sujeito (de classe, de gênero, de idade, de raça, etnia etc.), que o configuram como uma variável na interação social”.

Durante a pesquisa, recorrentemente observamos as crianças mobilizando seus corpos por meio da expressão de suas gestualidades. Ou seja, os gestos das crianças eram utilizados por elas enquanto “figuras de ação e não simplesmente como acompanhamento decorativo de suas palavras” (Le Breton, 2019, p. 47). Baseados nesses indicativos, a seguir compartilharemos um episódio de brincadeira em que as crianças expressam suas gestualidades por meio da invenção de cumprimentos:

Episódio 3 - “Conchinhas!”

A tarde chegava ao fim. Restavam poucas crianças na turma, que brincavam em pequenos grupos. Fui convidado por um dos grupos para brincar com blocos de montagem. A certa altura, Melina se aproxima, pedindo que eu a cumprimentasse: “Professor, bate aqui!”, enquanto estendia sua mão. Quando vou “bater”, ela puxa a mão, exclamando: “Conchinha!”, formando uma concha com a sua mão. Melina começa a rir. Percebo, então, que outras crianças também estão dando gargalhadas. Melina olha para esses colegas, e as risadas aumentam. “Ah! Como se faz isso?”, pergunto. Então Melina pega a minha mão, dobrando-a, como fez com a sua e me ensina, logo em seguida, o restante dos movimentos. As demais crianças que nos observam escutam também a explicação de Melina, dando sugestões sobre os movimentos. Então percebi que as crianças sabiam que Melina faria esse cumprimento comigo e se divertiram por ver que eu ainda não o conhecia. Então digo para Melina: “Vamos ver se eu aprendi”. Chamo Nicolas, que brincava com outro grupo. Quando ele chega, estendo a mão para ele, dizendo “Bate aqui!”, como havia feito Melina comigo. Quando ele vai bater, repito o gesto que as crianças me ensinaram, dizendo: “Conchinha!”. Nicolas imediatamente olha para os colegas que estão conosco e ri muito. Gargalhadas novamente são compartilhadas! Nicolas conhecia o cumprimento, mas não esperava que eu também o conhecesse! (Diário de campo, out. 2018)

Como lembra Agostinho (2019, p. 123), “as crianças participam de corpo inteiro em seus contextos”. Com efeito, o cumprimento nomeado pela turma de “conchinha” foi um dos mais recorrentes durante a pesquisa, “evidenciando que o corpo das crianças é suporte para ação social das mesmas” (Agostinho, 2019, p. 126). O cumprimento em questão, por causa de suas características, acabava tornando-se uma espécie de “apresentação” que denotava “a relação das crianças com o corpo, como fonte e recurso para agência” (Arenhart, 2016, p. 123).

Nas ocasiões em que as crianças ensinavam o cumprimento para alguém que ainda não o conhecia, como no caso descrito, elas se preparavam para tal evento, porque normalmente causava divertimento aos espectadores da situação. Como foi possível perceber no episódio, para Melina, assim como para as demais crianças que observavam a cena interativa, houve expectativa em conhecer a reação do pesquisador, pelo fato de, em geral, naquele tipo de situação, ocorrer confusão por parte do aprendiz, o qual, em um primeiro momento, julgava equivocadamente se tratar de um cumprimento convencional. A confusão em questão, quando percebida, enseja gargalhadas e, de modo correlato, o divertimento de todos os envolvidos. Nessa lógica, consideramos que o cumprimento da conchinha representa, para a turma, uma referência lúdica, em função das diversas vezes em que as crianças se divertiram ao ensiná-lo. Ademais, esse cumprimento possibilita depreendermos que “é o corpo nas suas atitudes de posturas, que primeiramente evidencia a presença do outro na interação” (Agostinho, 2019, p. 124).

Em relação aos cumprimentos criados, é importante nos referirmos à investigação de Buss-Simão (2012), pois a pesquisadora argumenta que as crianças não desempenham “apenas ações motrizes, mas exprimem emoções e manifestam significados [por meio de suas gestualidades] tanto para elas mesmas, como para os outros” (Buss-Simão, 2012, p. 188). No episódio apresentado, por exemplo, fica claro o modo como as crianças se envolveram afetivamente ao compartilhar as gestualidades que compõem o cumprimento. É precisamente nesse sentido que gestualidades, como o cumprimento conchinha, se consolidaram como referências lúdicas para a turma.

A respeito das relações afetivas, Le Breton (2009, p. 43) alega que “os gestos, as mímicas, as posturas, os deslocamentos exprimem emoções, desempenham atos, acentuam ou nuançam um discurso, manifestando significações em permanência, para si e para os demais”. No episódio apresentado, o cumprimento da conchinha parece convergir com a proposição de Le Breton (2009), já que pode ser entendido como gestualidade que evoca referências lúdicas compartilhadas pelas crianças. Ao compartilharem esse cumprimento com pessoas que ainda não o conheciam, as crianças ampliaram o alcance da referência lúdica em questão. O que ocorria, de fato, era uma espécie de rito de passagem, que envolvia, além das crianças que se cumprimentavam, os demais indivíduos que observavam o desenrolar das gestualidades para se divertirem com a confusão de gestos que poderia ser instaurada entre os novos participantes.

Prosseguindo a discussão e assumindo a perspectiva de que “as crianças são atores sociais de corpo inteiro” (Agostinho, 2019, p. 131), apresentaremos a seguir um episódio que também focaliza as gestualidades como indício das culturas lúdicas, assim como as relações de amizade entre as crianças durante a realização da brincadeira do cumprimento secreto:

Episódio 4 - O cumprimento secreto

Após terem se desentendido, Duarte toma a iniciativa e resolve falar com Nicolas. Inicialmente, Nicolas demonstra estar aborrecido e não responde. Mas, com a insistência de Duarte, algumas palavras são respondidas. Duarte, então, faz um convite: “Vamos fazer o cumprimento secreto?”, estendendo sua mão ao colega. Relutante, Nicolas responde o gesto de Duarte, devolvendo o cumprimento. Duarte, a seguir, dá um giro, erguendo a mão: “Agora assim!”. Surpreso, Nicolas parece não esperar tal movimento, mas responde apesar disso. Duarte segue nas inovações: “E assim!”, passando então a mão por baixo de sua perna. Nicolas começa a rir do que Duarte está inventando. Logo em seguida, as risadas voltam a fazer parte do ambiente. (Diário de campo, out. 2018)

No desenrolar do episódio, Duarte utilizou a reinvenção do cumprimento como uma estratégia para se reaproximar de Nicolas. Tal fato salienta que “o corpo é mobilizado nas relações sociais empreendidas pelas crianças” (Arenhart, 2016, p. 123). Todavia, diferentemente do episódio anterior, no qual o cumprimento conchinha divertiu as crianças envolvidas, durante o cumprimento secreto, o menino precisou reinventar as gestualidades, já que, naquele contexto, elas não foram suficientes para restabelecer o ambiente lúdico que havia entre ele e seu colega. Ao observar o colega chateado, Duarte procurou mudar a situação, buscando condições para que aquele ambiente estabelecido após o desentendimento dos dois fosse alterado. A estratégia de utilizar o cumprimento secreto, o qual envolvia uma gestualidade singular conhecida apenas por eles, se mostrou incapaz de alegrar Nicolas em um primeiro momento, no entanto Duarte inovou o antigo cumprimento para restabelecer a sintonia com seu colega. Nesse caso, podemos afirmar que houve a compreensão de Duarte quanto à diferença entre conhecimentos compartilhados e situações prazerosas.

De alguma forma, Duarte procurou reinventar uma referência que, apesar de já estar vinculada a certas experiências lúdicas passadas - uma referência lúdica -, se mostrou insuficiente para aquela ocasião. Tal episódio confirma que, embora “haja inúmeras práticas, valores e rotinas que as crianças possam compartilhar entre si” (Corsaro, 2011, p. 32), são as relações afetivas presentes nas interações sociais estabelecidas que definem a produção de suas culturas lúdicas.

Nesse sentido, percebemos que as relações de amizade (Ferreira, 2004; Fians, 2015) das crianças durante a pesquisa se manifestaram, em convergência com a percepção de Fians (2015), de que essas relações “se reestabelecem e se redefinem constantemente, culminando, ao menos na maioria absoluta dos casos, na retomada de uma relação amistosa, mas nunca completamente estável” (Fians, 2015, p. 89). No episódio, é possível notar como diferentes situações interativas se manifestam no decorrer da variação de um cumprimento, podendo até mesmo se alternarem constantemente, de maneira instável, conforme se desenrolam as relações entre os meninos. As “relações de amizade, por vezes, são conflituosas” (Corsaro, 2011, p. 182), e a produção de culturas lúdicas pelas crianças nem sempre é marcada por relações amistosas. Como lembra Ferreira (2004), as amizades entre as crianças envolvem relações sociais estratégicas, as quais “contribuem para o processo de reprodução cultural dentro do grupo, ou seja, é com outras crianças que se brinca, conversa, troca-se ideias, se constrói e se expande a sua cultura” (Ferreira, 2004, p. 194).

Nessa perspectiva, consideramos importante destacar que o conceito de culturas lúdicas infantis possibilita evidenciarmos as relações de amizade entre as crianças e os desafios que Duarte precisou enfrentar durante a interação com seu colega. Por mais que nós, adultos, possamos supor que existam atividades ou ações que sejam naturalmente lúdicas para as crianças - como o brincar, conceitualmente entendido -, essas premissas não se sustentam, muitas vezes, diante da observação empírica das relações estabelecidas entre as crianças. Assim, prosseguindo a discussão, na próxima seção, serão apresentados episódios que enfatizam as musicalidades das crianças.

MUSICALIDADES: ENTRE CIRANDAS, CANTOS E PRODUÇÃO DE SONORIDADES

Durante a pesquisa, evidenciamos, conforme as observações realizadas, que “as crianças protagonizam constantes experiências musicais que transcendem a organização institucional” (Werle e Bellochio, 2017, p. 255). Independentemente das propostas planejadas pelos docentes, as crianças cantavam, exploravam sonoridades, realizavam apreciações musicais e performances de maneira reiterada no cotidiano institucional. Com efeito, podemos afirmar que a expressão musical das crianças se manifestava, entre outros, “no bater dos talheres ao comer, no cantar, no som dos passos num trajeto, nas gargalhadas, no barulho, nas músicas” (Strapazzon, Pillotto e Voigt, 2017, p. 29). Nesse sentido, abordar musicalidades na educação infantil “implica em considerar os inúmeros significados que as crianças atribuem às sonoridades com que convivem, conhecem, exploram e tem contato” (Werle e Bellochio, 2017, p. 248). Ao se relacionarem com música, as crianças não apenas compartilham os seus repertórios, como também os ressignificam, porque “o significado musical é construído culturalmente, em dadas condições contextuais” (Lino, 2008, p. 36). Ora, à sua maneira, as crianças expressam-se por meio de musicalidades de formas distintas.

Por tudo isso, nesta última unidade, apresentaremos episódios que visibilizam como diversas expressões sonoras produzidas pelas crianças, ao contribuírem na constituição de ambientes mobilizadores de interações entre pares, se tornaram significativas no processo de produção de culturas lúdicas. Os registros a serem compartilhados se referem ao que denominamos de musicalidades, ou seja, momentos em que cirandas, músicas tradicionais e/ou contemporâneas, cantos solitários ou em grupos, entre outras sonoridades, tiveram centralidade nas práticas da turma. As musicalidades expressas pelas crianças ritmaram as experiências do cotidiano. Nessa direção, na sequência contaremos o episódio da brincadeira das cirandas, tendo em vista evidenciar a manifestação das musicalidades das crianças.

Episódio 5 - Cirandas

As crianças retornam para a sala, após a realização de propostas envolvendo a linguagem escrita no laboratório de informática. Há um clima agradável, e algumas crianças narram com entusiasmo suas conquistas em relação ao uso dos programas. Em seguida, sou surpreendido por Lívia, que pega as minhas mãos e começa a girar em círculos, fazendo uma ciranda. A menina canta e sorri. Alegro-me também, embora não conheça a letra da música. Amanda se aproxima, entra na ciranda e canta junto com Lívia. Ana, que acompanha a cena desde o início, resolve entrar na ciranda também. Entre cantos e sorrisos, continuamos a rodar e a cantar da ciranda. (Diário de campo, set. 2018)

Como é possível observar, os ambientes podem ser constituídos quando menos se espera. Na situação descrita, o pesquisador foi surpreendido pela alegria de Lívia, que prontamente o conduziu a uma ciranda. Ao ser afetado pela alegria da menina, o pesquisador, apesar de não saber a letra da música, contou com o auxílio de outras crianças que se aproximaram para participar daquele contexto. Nessa situação, embora reconheçamos a argumentação de Corsaro (2011) de que, para acessar o espaço interativo, as crianças utilizam “estratégias de acesso mais indiretas, como assistir à distância para descobrir a natureza do que está ocorrendo” (Corsaro, 2011, p. 66), entendemos também que, por vezes, os ambientes de interação podem ser constituídos do ímpeto de determinadas crianças.

De acordo com os fatos narrados, o pesquisador aprende a ciranda enquanto ela acontece. Ou seja, ele aprende não apenas a letra da música, como também os movimentos que devem ser realizados. Ademais, Lívia ensina o adulto, conduzindo seus movimentos nas trocas de direção demandadas pela ciranda. De fato, o desfecho da situação aponta para pelo menos três aspectos:

  • a compreensão da música como “comunicação, como uma prática que as pessoas fazem juntas” (Beineke, 2009, p. 138);

  • a notória “interdependência existente entre a música, a escuta, o corpo e as paisagens sonoras de seu entorno” (Lino, 2008, p. 129);

  • o fato de que os “significados da música parecem estar sempre conectados à participação ativa das crianças no fazer musical” (Beineke, 2009, p. 129).

Tais considerações figuraram em inúmeras situações envolvendo as musicalidades produzidas pelas crianças durante o desenvolvimento da pesquisa.

Além das cirandas realizadas recorrentemente e da produção constante de sonoridades com os materiais cotidianos existentes na sala referência da turma, as crianças também cantavam diferentes músicas em todos os momentos do dia. A trilha sonora cantada pelas crianças era composta de uma variedade de estilos musicais (entre os quais figuravam o funk, o sertanejo e o pagode), e, por causa do teor das letras, nem sempre tinha a concordância da professora. Nesse sentido, compartilharemos um episódio em que duas crianças discutem a respeito de qual seria o jeito certo de cantar funk:

Episódio 6 - “Eu canto funk do meu jeito”

É início de tarde na escola. Faz muito calor. Percebo o desconforto das crianças com o clima. As crianças estão envolvidas em uma proposta de recorte e colagem. Em uma das mesas, escuto Isabela cantar um funk enquanto realiza seu trabalho. Minhas atenções se voltam para aquele grupo. Duarte, que está sentado na frente de Isabela, começa a cantar a mesma música. Isabela, ao perceber, interrompe seu canto, dizendo: “Não é assim que se canta”. Ela fala sem tirar os olhos de seu recorte. Os dois têm um rápido debate a respeito de qual seria a letra correta do funk, até que Duarte diz: “Eu canto funk do meu jeito”. No fim, os dois encerram a cantoria e continuam com suas atividades. (Diário de campo, nov. 2018)

O episódio apresenta uma situação na qual Isabela se sentiu incomodada ao perceber que Duarte estava cantando o mesmo funk que ela. No episódio narrado, as crianças estavam individualmente realizando a proposta de recorte e colagem prevista na rotina quando Duarte decidiu cantar a mesma música que Isabela. O incômodo da menina deu-se, porque, segundo ela, o colega estava cantando errado. Ao ouvir a intervenção de Isabela, o menino irritou-se com a colega e rebateu que “cantava funk do seu jeito”. Quanto a esse aspecto, cabe lembrar que “os significados da música e sua função na vida humana são encontrados na performance e nas apreciações musicais das quais as pessoas participam” (Beineke, 2009, p. 129). Nesse contexto, conforme o ocorrido, Duarte escutou Isabela cantar e, em seguida, manifestou-se musicalmente, por seu interesse individual em expressar tal canção por meio de uma performance particular. Também é importante destacar o processo de ressignificação do menino no que concerne à canção, já que, como criança, sua relação com as músicas apresenta “formas singulares de perpetuá-las, compreendê-las, significá-las, afrontá-las ou transformá-las” (Lino, 2008, p. 130).

A produção de musicalidades ocorreu com frequência nos ambientes experimentados pelas crianças. Entendemos que, talvez em outro tipo de ambiente que não aquele apresentado no episódio utilizado para ilustrar a situação, Isabela pudesse interagir com Duarte de outro modo. Isso implica a compreensão de que, embora tratemos das musicalidades com base nas experiências das crianças, o diálogo entre Isabela e Duarte aponta para a diversidade de possibilidades que esse aspecto pode promover.

Nessa direção, pode-se afirmar que as crianças compartilham musicalidades mediante suas singularidades e a descoberta do novo, no reencontro com certas referências culturais e, sobretudo, “nas relações que estabelecem entre suas experiências musicais e as situações do dia a dia” (Beineke, 2009, p. 129). Em suma, inferimos que é por meio dos seus modos de manifestação - pelas trilhas sonoras dos desenhos e filmes, pelas músicas tocadas no rádio, pelas canções compartilhadas com os colegas, por algum solfejo aprendido ocasionalmente, pelas sonoridades produzidas pelos materiais em aula etc. - que as crianças, durante a pesquisa, desenvolveram densas relações afetivas com a produção de musicalidades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As culturas lúdicas infantis dizem respeito a um processo que decorre de relações sociais. Conforme Pino (2005, p. 106), “um sistema de relações sociais é um sistema complexo de posições e de papéis associados a essas posições, as quais definem como os atores sociais se situam uns em relação aos outros” em determinado contexto. Tal processo, por um lado, compreende a capacidade das crianças, no contexto das relações sociais, de se apropriarem de referências culturais que possuem ligação com alguma afetividade lúdica sua, ou seja, as referências lúdicas. Ao se apropriarem desse conjunto estável de referências - desenhos animados, cumprimentos secretos, músicas etc. -, as crianças ampliam seu background de experiências lúdicas (Salgado, 2005), o que possibilita que estabeleçam relações com outros sujeitos. Ora, “dispor de uma cultura lúdica, é dispor de um certo número de referências” (Brougère, 1998, p. 108).

Por outro lado, as culturas lúdicas infantis, nesse mesmo processo que decorre de relações sociais, incluem também a sensibilidade das crianças de reconhecer o lúdico naquilo que escapa às suas próprias referências culturais. Isso significa que elas, ao se perceberem envolvidas afetivamente em situações ainda não experimentadas nos diversos ambientes dos quais fazem parte, não apenas experimentam situações que podem se configurar em experiências lúdicas, como também criam condições de compartilhamento dessas aprendizagens no futuro, enquanto referências lúdicas.

Desse modo, ao ampliarmos a compreensão das culturas lúdicas infantis, as quais vêm sendo discutidas geralmente como um “conjunto de procedimentos” (Brougère, 1998, p. 24) a serviço dos jogos ou das brincadeiras, procuramos dissociar as experiências lúdicas das crianças dos limites dessas atividades. Assim, ao não reconhecermos o lúdico como aspecto exclusivo das brincadeiras, defendemos que a ludicidade não se encontra a priori nas ações ou atividades propostas pelas professoras em si, mas sobretudo nas relações sociais que podem ser estabelecidas pelas crianças, nas condições existentes para elas realizarem as propostas, nas relações possíveis de se instituir em suas rotinas cotidianas, as quais poderão (ou não) lhes proporcionar experiências consideradas lúdicas.

Diante do exposto nas unidades analíticas, as quais nomeamos de relações afetivas, gestualidades e musicalidades, destacamos momentos específicos de produção de culturas lúdicas infantis em episódios que narram pontos de vista sobre um processo que a todo o momento pode ser reinventado por intermédio dos ambientes constituídos das crianças em suas interações sociais. Tais ambientes são concebidos nas interações sociais promovidas pelas crianças entre si e/ou com outros elementos que os compõem - espaço físico, mobiliário, objetos, cores, sons, cheiros, entre outros. Como pôde ser observado no decorrer do artigo, as crianças, ao se manifestarem ludicamente - como, por exemplo, por meio de um cumprimento secreto, em uma alegre e contagiante ciranda ou em uma performance musical durante a realização de uma proposta -, ampliaram as possibilidades de constituição de ambientes lúdicos.

Por fim, com base nas discussões empreendidas, inferimos que, enquanto pesquisadores, quanto mais nos aproximarmos das crianças, das formas como interagem socialmente, dos modos como constituem seus ambientes na escola (não apenas quando falam, mas também quando se expressam mediante suas diferentes linguagens), mais potentes poderão se tornar nossas reflexões sobre a produção de suas culturas lúdicas. O desafio que se apresenta para nós, pesquisadores, é no sentido de produzirmos reflexões que considerem, além dos pressupostos teóricos que convencionalmente vêm definindo modos de entender a produção de culturas lúdicas na educação infantil, as singularidades das crianças como sujeitos históricos, geográficos e de direitos que habitam o tempo presente em uma miríade de lógicas de ação social (Buss-Simão, 2012; Agostinho, 2019).

REFERÊNCIAS

AGOSTINHO, K. A. O corpo como componente das formas de participação das crianças na Educação Infantil. Páginas de Educación, v. 12, n. 1, p. 120-133, maio 2019. https://doi.org/10.22235/pe.v12i1.1773 [ Links ]

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1 O conjunto das interações estabelecidas pelas crianças no cotidiano da instituição é constituidor de relações sociais (Buss-Simão, 2012). Desse ponto de vista, ocorrem processos de socialização mediante “um compêndio de interações entre seres humanos, das quais estes participam ativamente e assim tornam-se membros de determinada sociedade e cultura” (Grigorowitschs, 2011, p. 77).

2 Um todo indissociável de elementos que permeiam as relações sociais das crianças.

3 Referências culturais com as quais as crianças estabelecem relações (vínculos) afetivas e lúdicas.

4 Embora o artigo tenha sido escrito em coautoria, a pesquisa de campo foi realizada apenas por um dos pesquisadores.

5 Os nomes das crianças participantes da pesquisa são fictícios, tendo em vista a manutenção do anonimato e a preservação de suas identidades.

6 Referências culturais com as quais as crianças estabelecem vínculos afetivos.

Recebido: 26 de Dezembro de 2019; Aceito: 21 de Maio de 2020

Sandro Machado é mestre em educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: sandrodarione@gmail.com

Rodrigo Saballa de Carvalho é doutor em educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor da mesma instituição. E-mail: rsaballa@terra.com.br

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