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Revista Brasileira de Educação

versión impresa ISSN 1413-2478versión On-line ISSN 1809-449X

Rev. Bras. Educ. vol.25  Rio de Janeiro ene./dic 2020  Epub 26-Ago-2020

https://doi.org/10.1590/s1413-24782020250036 

ESPAÇO ABERTO

Alfabetização científica versus letramento científico: um problema de denominação ou uma diferença conceitual?

“Alfabetização científica” versus “letramento científico”: a problem of denomination or a conceptual difference?

Alfabetización cientifica versus letramento cientifico: un problema de denominación o una diferencia conceptual?

IInstituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Santa Catarina, Jaraguá do Sul, SC, Brasil.


RESUMO

No Brasil, tem-se visto o uso tanto de alfabetização científica quanto de letramento científico para referir-se à educação científica. Pode-se perceber, ao ler os principais autores sobre o tema no país, que nem sempre há consistência de significação no uso do mesmo termo. A introdução de letramento nas ciências da linguagem e na educação, na década de 1980, buscava distinguir as habilidades necessárias à leitura e à escrita, como a decodificação e a codificação do alfabeto, e as práticas sociais de leitura e escrita. Considerando-se que alfabetização científica e letramento científico são conceitos ainda mais recentes, busca-se, em primeiro lugar, analisar as diferenças conceituais entre alfabetização e letramento e, em segundo lugar, analisar como autores e estudiosos da área de educação científica os têm utilizado. Conclui-se que, enquanto para alguns autores trata-se de uma mera variação de denominação, para outros há uma diferença conceitual.

PALAVRAS-CHAVE: letramento; letramento científico; alfabetização científica; educação científica

ABSTRACT

In Brazil, both alfabetização científica and letramento científico have been used to refer to scientific education. The reading of the main Brazilian authors on the topic shows that use of these terms may not present consistency of signification. The introduction of letramento (literacy) in language and education studies, in the 80’s, was intended to distinguish the abilities necessary for reading and writing, such as encoding and decoding the alphabet, from the social practices of reading and writing. Alfabetização científica and letramento científico are both translated to English as scientific literacy. Considering that alfabetização científica and letramento científico are even more recent concepts, we seek, first, to analyze the conceptual differences between alfabetização and letramento and, secondly, to analyze how authors and scholars in the field of science education have used them. In conclusion, while for some authors it is a mere variation of denomination, for others there is a conceptual difference.

KEYWORDS: letramento; letramento científico; alfabetização científica; science education

RESUMEN

En Brasil, se ha visto el uso tanto de alfabetización científica y letramento científico para referirse a la educación científica. Se puede percibir, al leer los principales autores sobre el tema en el país, que no siempre hay consistencia de significación en el uso de un mismo término. La introducción de letramento en los estudios de lenguaje y de educación, en la década de 1980, buscaba distinguir las habilidades necesarias para la lectura y la escritura, como la decodificación y la codificación, y las practicas sociales de lectura y escritura. Alfabetización científica y letramento científico son conceptos aún más recientes. Siendo así, se busca, primer, analizar las diferencias conceptuales entre alfabetización y letramento y, en segundo lugar, analizar cómo estudiosos del área de educación científica los han utilizado. En conclusión, mientras que para algunos autores es una mera variación de denominación, para otros hay una diferencia conceptual.

PALABRAS CLAVE: letramento; letramento científico; alfabetización científica; educación científica

INTRODUÇÃO

A crescente preocupação com a educação científica, seja de crianças em idade escolar, seja de adultos já escolarizados, fez surgir os termos alfabetização científica e letramento científico, ambos originados da extensão metafórica de outros conceitos complementares: alfabetização e letramento. A alfabetização, conforme Soares (2017a), é a ação de ensinar ou de aprender a ler e a escrever; trata-se da aquisição de uma tecnologia que permite ao leitor decodificar a linguagem escrita. O conceito de alfabetização, no entanto, não abrange os usos sociais da escrita. Um indivíduo pode, mesmo sem ser alfabetizado, ter algum nível de letramento.

O termo letramento surge entre os estudiosos brasileiros a partir da década de 1980, em uma tentativa de entender o quadro complexo em relação às expectativas de leitura no país da época, com muitos brasileiros adultos não alfabetizados, além de muitos adultos analfabetos funcionais. Apesar de a escola ensinar as crianças a decodificar a linguagem escrita, muitas delas terminavam o nível médio sem a capacidade de ler e escrever um texto.

Com base no conceito de letramento, é possível entender a alfabetização como uma etapa do letramento. Ser letrado implica ser alfabetizado; ser alfabetizado, no entanto, não é sinônimo de ser letrado. Enquanto o oposto da alfabetização é o analfabetismo, o letramento não pode ser dividido em pares opostos. Como aponta Soares (2017a), em sociedades tecnológicas como a nossa, dificilmente haverá algum falante com um grau zero de letramento, pois todos têm algum contato com a linguagem escrita, seja pela leitura bíblica, seja pelo noticiário televisivo.

A diferença entre alfabetização, como uma ação mais pontual que envolve um analfabeto, e letramento, como atividade social e contínua que não implica um falante iletrado, leva Cunha (2017a) a rechaçar o termo alfabetização científica. Assim, o objetivo deste artigo é discutir, mediante análise de algumas obras de autores brasileiros, se de fato há diferenças conceituais entre alfabetização científica e letramento científico, ou se se trata apenas de uma diferença de denominação. Para tanto, parte-se da definição do conceito de letramento abordando sua introdução no Brasil, na década de 1980, pela tradução de literacy, em inglês, para analisar como autores brasileiros têm utilizado alfabetização científica e letramento científico e se estes representam conceitos diversos.

Para tratar a respeito desse tema, o presente artigo foi dividido em quatro seções. Em “Alfabetização ou letramento?”, discute-se a adoção relativamente recente da concepção de letramento na educação e nos estudos linguísticos. Na seção “Alfabetização, letramento e escolaridade”, discute-se o papel da escola na manutenção de algumas práticas de letramento especificamente escolares. Já na seção “Alfabetização científica e letramento científico no Brasil” mapeia-se o uso de ambos os termos por escritores brasileiros e amplia-se a discussão sobre os usos de alfabetização científica e letramento científico, mostrando-se que mesmo em língua inglesa scientific literacy, que deu origem à discussão de alfabetização e letramento científico, não apresenta uma concepção única. Nas “Considerações finais”, as diferentes propostas analisadas são sumarizadas a fim de se comprovar que alfabetização científica e letramento científico não são meras variações de denominação. Trata-se de uma diferença conceitual fundamentada nas discussões promovidas pela educação e pelas ciências linguísticas acerca das diferenças entre alfabetização e letramento.

ALFABETIZAÇÃO OU LETRAMENTO?

O termo letramento passa a ser utilizado na educação e nas ciências linguísticas a partir dos anos de 1980. Em Letramento: um tema em três gêneros, publicado em 1998, Magda Soares (2017a, p. 16) se pergunta: “Que novo fato, ou nova ideia, ou nova maneira de compreender a presença da escrita no mundo social trouxe a necessidade desta nova palavra, letramento?”. De fato, à época em que a autora publica a primeira edição de sua obra, essa palavra ainda não era registrada pelos principais dicionários de língua portuguesa do Brasil. O Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa não trazia o vocábulo, e o Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa Caldas Aulete apresentava-o como um arcaísmo. Atualmente, a quinta edição do Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (2010) não só inclui o novo vocábulo como também faz referência a Magda Soares.

Letramento trata-se de um neologismo criado pela tradução da palavra inglesa literacy (Soares, 2017a). A língua inglesa, no entanto, não possui palavras diferentes para discorrer sobre alfabetização e letramento. A definição apresentada pelo Longman Dictionary of Contemporary English (1995) para literacy é “the state of being able to read and write”, ou seja, “o estado de quem é capaz de ler e escrever”. O Dicionário Oxford Escolar (2002), por sua vez, registra a palavra alfabetização como equivalente de tradução de literacy. Isso não significa que os países anglófonos estejam menos preparados para discutir alfabetização e letramento, mas que a significação de literacy engloba tanto a concepção de alfabetização quanto de letramento.

Segundo Soares (2017a), conhecemos há muito tempo a realidade do analfabetismo, ou seja, a condição de não dispor da tecnologia da leitura e da escrita. Assim, sempre nos foi comum falar de analfabetismo. No entanto, a condição de quem responde adequadamente às necessidades sociais de uso da leitura e da escrita só recentemente se tornou uma realidade no contexto social brasileiro (Soares, 2017a). Segundo a autora, a dimensão do problema do analfabetismo no Brasil não deixava espaço para preocupações com as condições de leitura e escrita. À medida que o analfabetismo diminuía, passou-se a perceber que somente ler e escrever não bastava. Dessa forma, as novas demandas sociais de leitura e escrita acabaram motivando o surgimento do termo letramento.

A alfabetização, diferentemente do letramento, é vista por Soares (2017a) como a ação de ensinar ou o ato de aprender a ler e a escrever. A autora ainda afirma que “aprender a ler e escrever significa adquirir uma tecnologia, a de codificar em língua escrita e de decodificar a língua escrita; apropriar-se da escrita é tornar a escrita ‘própria’, ou seja, é assumi-la como sua ‘propriedade’” (Soares, 2017a, p. 39). O letramento, por sua vez, “é o estado ou a condição de quem sabe não apenas ler e escrever, mas cultiva e exerce as práticas sociais que usam a escrita” (Soares, 2017a, p. 47). Para Soares (2017b), a alfabetização é uma prática de letramento cujo objetivo é a aquisição do sistema convencional de escrita; portanto, como a própria autora defende, não se pode conceber alfabetização e letramento como processos opostos, mas sim como complementares. A autora ainda levanta a dificuldade de distinguir o apenas alfabetizado do letrado, uma vez que o letramento envolve duas habilidade ― ler e escrever ―, e estas podem desenvolver-se em diferentes continuuns, como ler um romance, uma lei, ou, ainda, escrever um bilhete, um artigo científico.

Com o avanço de sociedades tecnológicas, os cidadãos se veem envolvidos diariamente em práticas de letramento, desde o momento em que procuram no celular a melhor linha de ônibus para chegar ao trabalho até quando retiram dinheiro em um caixa eletrônico. Em sociedades tecnológicas, a demanda pela linguagem escrita supera as antigas necessidades de saber apenas escrever seu próprio nome, ou mesmo de saber “tanto ler quanto escrever uma frase curta e simples em sua vida cotidiana” (UNESCO, 1978, p. 4). A necessidade de se buscar um nova expressão na tratativa de questões sociais de leitura e de escrita em um mundo cada vez mais tecnológico assemelha-se à necessidade de se alcançar uma educação científica que possibilite ao cidadão ler o mundo à sua volta e exercer sua cidadania em decisões que envolvam ciência, tecnologia e sociedade. É no âmbito dessas discussões que surgem no Brasil os termos alfabetização científica e letramento científico.

ALFABETIZAÇÃO, LETRAMENTO E ESCOLARIDADE

Se alfabetização e letramento são conceitos distintos, embora relacionados, e se letramento é um empréstimo do inglês literacy, cabe aqui investigar também a concepção do vocábulo literacy em textos fundadores para a quantificação do analfabetismo e do letramento no mundo, como as resoluções da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). Em 1957, ao tentar quantificar o analfabetismo no mundo, a UNESCO assim define o que seria letramento: “letramento é a característica adquirida pelos indivíduos em graus variados, iniciando-se logo acima de nenhum letramento e indo a níveis superiores indeterminados” (UNESCO, 1957, p. 18)1. O letramento é concebido, portanto, não como uma característica final a ser atingida, mas como um desenvolvimento contínuo e progressivo das habilidades de escrita e leitura. Esses diversos níveis de letramento para a UNESCO (1957) são divididos em mínimo e funcional: “Uma pessoa é funcionalmente letrada quando adquiriu o conhecimento e as habilidades em leitura e escrita que a capacitam a engajar-se efetivamente em todas aquelas atividades em que o letramento é normalmente assumido em sua cultura ou grupo” (UNESCO, 1957, p. 20)2. A mesma perspectiva de letramento como sendo uma capacidade de ler e escrever, que pode variar desde um nível mais básico até níveis indeterminadamente elevados, é encontrada nas recomendações para a padronização de estatísticas educacionais feitas pela UNESCO (1978). No referido documento, define-se o nível mínimo de letramento: “É letrada aquela pessoa que pode, com compreensão, tanto ler quanto escrever uma frase curta e simples em sua vida cotidiana” (UNESCO, 1978, p. 4)3. Ainda, a concepção de letramento funcional é ampliada, incluindo não apenas a escrita e a leitura, mas também o cálculo. Assim, uma pessoa funcionalmente letrada seria aquela capaz de usar a escrita, a leitura e o cálculo tanto para o seu desenvolvimento quanto da comunidade.

Buscando alçar o Brasil para níveis de letramento um pouco mais próximos dos países desenvolvidos, várias campanhas de alfabetização foram realizadas entre as nas décadas de 1980 e 1990. A respeito de o fracasso dessas campanhas em ir além da alfabetização, Magda Soares afirma que “uma primeira condição [para o letramento] é que haja escolarização real e efetiva da população [...]. Uma segunda condição é que haja disponibilidade de material de leitura” (Soares, 2107a, p. 58). A alfabetização promovida na escola, seja de crianças em escolas regulares ou de adultos em programas de alfabetização de jovens e adultos, sempre esbarrou no acesso real à leitura. Pouco incentivo à leitura, poucas bibliotecas públicas, pouca variedade de leitura nas bibliotecas existentes, além de livros muito caros, sempre foram obstáculos para o letramento da população brasileira. Dessa forma, a expectativa depositada na escola de que o alfabetizado se torne um letrado acaba nunca se concretizando de forma homogênea no país.

A alfabetização e o letramento têm sido vistos, de forma geral, como um fator de desenvolvimento econômico e social, e a escola, conforme Kleiman (1995), tem sido considerada a mais importante agência de letramento. O trabalho de letramento realizado pela escola, no entanto, é frequentemente contestado por não preparar o estudante para a vida fora dos muros escolares. Essa tensão se aprofunda ainda mais na discussão de Cook-Gumperz (2006) acerca do papel do letramento na escola. A autora afirma que, desde a ampliação do sistema escolar no século XIX (nos países desenvolvidos), o papel da escola tornou-se muito mais testar e certificar determinado tipo de conhecimento, uma vez que tal ampliação foi em grande parte motivada pela necessidade de controlar o letramento das classes trabalhadoras. O argumento frequentemente levantado de que a escolarização, em especial a alfabetização e o letramento promovidos pela escola, trará grandes impactos econômicos e sociais para a vida do aprendiz é contestado por Brian Street (1999), que chama essa visão redentora de letramento autônomo.

Sylvia Scribner (1984) afirma que o letramento costuma ser compreendido em diferentes culturas ou grupos sociais como adaptação, poder ou estado de graça. Na concepção de letramento como adaptação, a alfabetização e o letramento são vistos como necessários para a adaptação do indivíduo às demandas da sociedade. É essa compreensão de letramento que fundamenta o conceito de letramento funcional nos mencionados documentos da UNESCO (UNESCO, 1957, 1978). Na concepção de letramento como poder, a alfabetização e o letramento são capazes de mudar a realidade das pessoas. Essa concepção é constantemente explorada por campanhas de alfabetização de jovens e adultos: não ser letrado é ser vítima, é não ter boas condições de vida ou boas oportunidades de trabalho; é ser enganado por quem sabe ler e escrever, ou não ser capaz de pegar o ônibus correto. Já na concepção de letramento como estado de graça é atribuído ao letramento o desenvolvimento intelectual do indivíduo. Nessa perspectiva, alimentam-se visões equivocadas acerca da relação entre aquisição da escrita e desenvolvimento cognitivo: uma pessoa analfabeta não tem a mesma capacidade de raciocínio lógico de uma pessoa plenamente letrada. Kleiman (1995) critica a associação da escrita ao desenvolvimento cognitivo, pois, ao defender que o letramento altera as habilidades cognitivas de pessoas escolarizadas, os estudiosos acabam comparando grupos escolarizados com não escolarizados. Nos experimentos desenvolvidos por pesquisadores membros de culturas ocidentais letradas, em geral, é avaliada a capacidade de verbalizar conhecimentos e processos envolvidos em uma tarefa, como a habilidade de identificar conceitos superordenados e subordinados, por exemplo, água e sangue são líquidos. Conforme Kleiman (1995, p. 26-27), confunde-se uma prática discursiva privilegiada no letramento escolar com uma capacidade cognitiva: “A maior capacidade para verbalizar o conhecimento e os processos envolvidos numa tarefa é consequência de uma prática discursiva privilegiada na escola que valoriza não apenas o saber mas o ‘saber dizer’”. Essas concepções, muitas vezes errôneas do letramento, frequentemente têm guiado o trabalho realizado por professores em sala de aula.

ALFABETIZAÇÃO CIENTÍFICA E LETRAMENTO CIENTÍFICO NO BRASIL

Nos Estados Unidos, a discussão sobre scientific literacy no ensino de ciências inicia-se, conforme Hurd (1998), durante a década de 1950 como uma resposta do governo norte-americano ao lançamento do satélite russo Sputnik. O programa espacial dos Estados Unidos, para competir com a União Soviética, necessitaria do apoio dos cidadãos, e, como gastos com ciência e tecnologia nem sempre produzem resultados imediatos, era preciso levar os cidadãos não cientistas a compreenderem o funcionamento da ciência para justificar os custos com pesquisas que à primeira vista não impactariam na vida cotidiana do norte-americano.

Já a introdução dos termos alfabetização científica e letramento científico no Brasil, conforme indicam as publicações pesquisadas, parece ter ocorrido no final da década de 1990. Cunha (2017a) e Sasseron e Carvalho (2011) apresentam a existência de termos semelhantes em inglês, espanhol e francês: scientific literacy, alfabetización cientifica e alphabétisation scientifique, respectivamente. A diferença denominativa no Brasil, no entanto, não parece estar relacionada à tradução, pois, como aponta Cunha (2017b), 33% de trabalhos e artigos sobre alfabetização científica citam entre suas referências estudos em inglês sobre scientific literacy, enquanto nos trabalhos sobre letramento científico esse percentual é 35%, ou seja, uma diferença muito pequena para explicar, pela tradução, uma variação terminológica. Percebe-se na revisão da literatura que os autores investigados optam por um termo ou outro mais influenciados pela concepção de alfabetização e letramento que por questões de tradução.

Attico Chassot (2016), em Alfabetização científica: questões e desafios para a educação, reconhece a dificuldade de encontrar em língua portuguesa uma expressão adequada: “O termo inglês literacy parece mais apropriado. Um bom termo em português seria letrado, mas este apresenta conotações pernósticas. O termo iletrado também não tem uma exata correspondência com analfabeto” (Chassot, 2016, p. 67). O autor também discute a inadequação do uso de alfabetização para falar de culturas letradas, como a chinesa ou a japonesa, que não possuem um alfabeto como o grego ou o latino: “Veja-se a inadequação de classificarmos como alfabetizada a maioria da população da Terra que sabe ler e escrever, como chineses, indianos, japoneses, russos, etc., que não têm alfabeto no sentido estrito da palavra” (Chassot, 2016, p. 67).

Apesar de adotar alfabetização científica, Chassot (2016) reconhece a distinção entre os conceitos de alfabetização e letramento, fazendo até mesmo referência aos estudos de Magda Soares sobre letramento. No entanto, o autor entende alfabetização em um sentido freiriano de leitura, como um ato político em que a leitura do mundo precede a leitura da palavra. Assim, opta por usar alfabetização científica, por entender a ciência como uma linguagem que facilita a leitura do mundo. Para Chassot (2016, p. 70), a alfabetização científica seria “o conjunto de conhecimentos que facilitariam aos homens e mulheres fazer uma leitura do mundo onde vivem”.

A alfabetização científica proposta por Chassot (2016) propõe a avaliação crítica dos conteúdos ensinados pelas disciplinas de ciências na escola: “Devemos fazer do ensino de Ciências uma linguagem que facilite o entendimento do mundo pelos alunos e alunas” (Chassot, 2016, p. 108). Segundo o autor, “temos de formar cidadãs e cidadãos que não só saibam ler melhor o mundo onde estão inseridos, como também, e principalmente, sejam capazes de transformar este mundo para melhor” (Chassot, 2016, p. 109). Chassot ainda advoga que as ciências têm sido tratadas como um tema esotérico reservado a uma comunidade seleta de iniciados: “usualmente, conhecer a ciência é assunto quase vedado àqueles que não pertencem a essa esotérica comunidade científica” (Chassot, 2016, p. 94). O autor defende a necessidade de os professores de ciências passarem do esoterismo, ou seja, do hermetismo, para o exoterismo, isto é, tornar a linguagem científica compreensível à sociedade em geral, àquela considerada tradicionalmente externa à comunidade científica.

Sasseron e Carvalho (2011) afirmam que os autores nacionais que utilizam letramento científico fundamentam sua escolha baseados no conceito de letramento defendido por Angela Kleiman e Magda Soares, mas optam por alfabetização científica e alicerçam essa preferência na concepção de leitura de mundo de Paulo Freire. Freire (2017) concebe a alfabetização como um ato político muito além do domínio das letras do alfabeto, pregando que a leitura do mundo deve preceder a leitura da palavra. Para as autoras, a alfabetização científica deve visar à formação cidadã dos estudantes. Sasseron e Carvalho (2011, p. 61), no entanto, equivocam-se ao definir a função da alfabetização: “a alfabetização deve desenvolver em uma pessoa qualquer a capacidade de organizar seu pensamento de maneira lógica, além de auxiliar na construção de uma consciência mais crítica em relação ao mundo que a cerca”. Essa associação da escrita ao desenvolvimento cognitivo está, segundo Scribner (1984), arraigada na cultura educacional de países industrializados. Assim como a sociedade ocidental tem reservado à alfabetização a função de redenção do ser humano, ou seja, o cidadão alfabetizado é aquele que se encontra em um estágio cognitivo superior aos não alfabetizados, algumas leituras da alfabetização científica tendem a reproduzir essa metáfora, isto é, o cidadão detentor de conhecimentos científicos tem maior desenvolvimento intelectual que aqueles que não entendem a ciência.

Sasseron e Carvalho (2011) identificam, de acordo com revisão da literatura, três eixos estruturantes da alfabetização científica. No eixo da compreensão de termos e de conceitos científicos fundamentais, está a concepção de que a alfabetização científica deve instrumentalizar os estudantes a entenderem os conhecimentos científicos necessários para suas atividades diárias. No eixo que diz respeito a fatores éticos e políticos das ciências, entende-se que o ensino de ciências deve capacitar o futuro cidadão a entender as implicações éticas e morais que devem embasar os avanços científicos. Já no eixo do entendimento das implicações sociais e ambientais da ciência e da tecnologia entende-se alfabetização científica como a formação crítica do cidadão para compreender a relação entre sustentabilidade e o avanço da ciência e da tecnologia.

Cunha (2017a), fundamentando na concepção de letramento de Kleiman (1995), opta por utilizar letramento científico por dois motivos:

  • letramento, segundo o autor, implica uma gradação, ou seja, não se pode falar de letrados versus iletrados, enquanto se pode falar de alfabetizados versus analfabetos;

  • o autor propõe que o letramento científico aborde não apenas os conceitos científicos, mas a leitura e a escrita de textos relacionados às ciências, como as notícias científicas.

Cunha (2017a) ainda critica a opção de Chassot por alfabetização científica: “É um analfabeto científico aquele incapaz de uma leitura do universo” (Chassot, 2003, p. 91). Para Cunha, pensar em um alfabetizado cientificamente significaria pensar em um analfabeto científico, e, consequentemente, considerar o aluno um analfabeto científico é considerar inválidos os conhecimentos tradicionais que esse sujeito possa trazer de sua casa ou comunidade: “a pressuposição do ‘analfabetismo’ para toda leitura de mundo que não seja a ‘científica’ tira toda a legitimidade do conhecimento tradicional” (Cunha, 2017a, p. 179). A escolha por letramento científico, para Cunha (2017a), busca levar em consideração esses conhecimentos tradicionais trazidos pelos alunos como um continuum entre a tradição e a ciência.

Baseando-se na distinção entre alfabetização e letramento apresentada por Magda Soares, Davel (2017) defende que o emprego de letramento científico é conceitualmente mais apropriado à área de ciência, tecnologia e sociedade. O autor associa a alfabetização ao conhecimento da linguagem científica e o letramento ao uso social feito dessa linguagem. Santos (2007), também inspirado na distinção entre alfabetização e letramento defendida por Magda Soares, diferencia alfabetização científica e letramento científico. Para o autor, alfabetização científica seria um processo mais simples de domínio da linguagem científica, enquanto o letramento envolveria, além do domínio da linguagem científica, a prática social. Santos (2007) propõe também um modelo de educação científica segundo a perspectiva do letramento, levando em conta o conhecimento da natureza da ciência, da linguagem científica e dos aspectos sociocientíficos envolvidos no fazer científico. Assim, uma educação científica fundamentada na concepção de letramento teria de explorar o ensino da metodologia da ciência e das limitações do conhecimento científico, o reconhecimento das especificidades dos gêneros textuais e do discurso desse domínio e as relações possíveis entre ciência e tecnologia e suas conexões com questões ambientais, políticas, econômicas, éticas, sociais e culturais. Santos (2007), Davel (2017) e Cunha (2017a), ao optarem por letramento científico, advogam que o ensino de ciência não pode dissociar-se da leitura de textos sobre ciência. Cunha (2017a) propõe não apenas a leitura de textos sobre ciência, mas também a escrita de notícias científicas.

Gomes e Santos (2018) realizaram levantamento bibliométrico a fim de verificar a frequência com que a alfabetização científica e letramento científico aparecem em publicações brasileiras. Também baseados na distinção entre alfabetização e letramento, conforme Magda Soares, propõem uma diferença conceitual entre ambos os termos. Segundo os autores, alfabetização científica “relaciona-se com a capacidade de compreender, utilizar e refletir sobre um tema, utilizando a linguagem científica, promovendo a participação ativa e adequada nas práticas sociais e profissionais”, e letramento científico “se relaciona com a função e prática social de um indivíduo utilizando o conhecimento científico” (Gomes e Santos, 2018, p. 1). No entanto, em seu levantamento bibliométrico, Gomes e Santos (2018) apenas contabilizaram as ocorrências dos termos, sem analisar se os autores pesquisados traçavam alguma distinção conceitual entre ambos.

Lorenzetti e Delizoicov (2001), ao tratar do ensino de ciência nas séries iniciais do ensino fundamental, optam por alfabetização científica, apesar de reconhecerem uma proximidade com o conceito de letramento de Magda Soares: “estamos aproximando o conceito de alfabetização científica ao que tem sido denominado de letramento” (Lorenzetti e Delizoicov, 2001, p. 52). Os autores consideram a alfabetização científica um processo “que tornará o indivíduo alfabetizado cientificamente nos assuntos que envolvem a Ciência e a Tecnologia, ultrapassando a mera reprodução de conceitos científicos, destituídos de significado, de sentidos e de aplicabilidade” (Lorenzetti e Delizoicov, 2001, p. 48). Ainda, prosseguem em sua relação com o letramento afirmando: “A categoria letramento em Ciências refere-se à forma como as pessoas utilizarão os conhecimentos científicos, seja no seu trabalho ou na sua vida pessoal e social, melhorando a sua vida ou auxiliando na tomada de decisões frente a um mundo em constante mudança” (Lorenzetti e Delizoicov, 2001, p. 52). Ou seja, alfabetização científica está relacionada ao processo de ensino e de aprendizagem da ciência, enquanto letramento científico seria o uso que o futuro cidadão faria desses conhecimentos. Os autores acreditam que a alfabetização científica deva promover nos alunos a compreensão sobre o seu universo e que o processo de alfabetização científica pode ocorrer simultaneamente à alfabetização: “a alfabetização científica pode e deve ser desenvolvida desde o início do processo de escolarização, mesmo antes que a criança saiba ler e escrever” (Lorenzetti e Delizoicov, 2001, p. 57).

Yamada e Motokane (2013) empreendem uma análise linguística fundamentada no conceito de dialogismo de Bahktin, de enunciados produzidos em aulas de ciência no ensino fundamental. Os autores defendem a importância da leitura e da escrita no ensino de ciências: “um ponto importante para o processo de alfabetização científica é o desenvolvimento das habilidades de leitura e escrita do aluno, uma vez que as formas textuais da ciência são bastante peculiares e distantes da linguagem do nosso cotidiano” (Yamada e Motokane, 2013, p. 29). Ao analisarem as marcas enunciativas da fala de professores na escrita dos alunos, os autores identificam que estes tendem a reproduzir os enunciados produzidos pelos professores. Apesar de a análise envolver pressupostos teóricos compartilhados pelos estudiosos da linguística, como o conceito de dialogismo, os autores não aprofundam a discussão sobre alfabetização versus letramento, além de o termo letramento científico não aparecer ao longo do texto.

A revisão da literatura mostra que, mesmo autores que optam por alfabetização cientifica, como Chassot (2003, 2016), reconhecem a existência dos dois conceitos. Outros ainda, como Lorenzetti e Delizoicov (2001) e Gomes e Santos (2018), fundamentados nos estudos de Magda Soares, buscam uma distinção entre alfabetização científica e letramento científico. De fato, a maioria dos artigos que se analisou aqui compreende as diferenças conceituais entre alfabetização e letramento, também indicando Magda Soares como referência teórica de suas definições de letramento.

Para além da variação terminológica, encontra-se também uma imprecisão conceitual no emprego desses termos. Tanto alfabetização científica quanto letramento científico podem abranger uma variedade de habilidades esperadas do aluno, como reconhecimento e compreensão de sentenças científicas ou capacidade de leitura e escrita de textos sobre ciência, ou desejadas para o futuro cidadão, como o pensamento crítico acerca dos impactos da ciência e da tecnologia na sociedade ou o engajamento político e ambiental. Essa imprecisão conceitual é observada também no uso de scientific literacy: “‘Scientific literacy’ é um daqueles termos que é frequentemente usado e raramente definido” (Miller, 1983, p. 29).4

Segundo DeBoer (2000), as tentativas de definir o que seria scientific literacy não lograram uma aceitação universal entre os pesquisadores da área, e a razão para isso é que esse conceito tem abarcado uma série de temas significativos para a educação científica, os quais sofrem mudanças ao longo do tempo. Assim, se nos Estados Unidos dos anos de 1950 o letramento científico visava à obtenção do apoio dos cidadãos aos programas de ciência e de engenharia espacial norte-americanos, hoje talvez letramento científico possa ser fazer melhores escolhas alimentares ou buscar sustentabilidade e fontes renováveis de energia. O emprego de scientific literacy passa a ser recorrente nos Estados Unidos durante a Guerra Fria: “o impulso para o interesse em letramento científico no fim da década de 1950 deve ter sido a preocupação da comunidade científica norte-americana sobre o apoio público à ciência para responder ao lançamento soviético do Sputnik” (Laugksch, 2000, p. 72). Nesse momento histórico, ampliar a compreensão dos cidadãos sobre a ciência e obter o apoio do público em geral para os programas governamentais de ciência e tecnologia era garantir o emprego de impostos públicos em projetos que permitiriam a hegemonia científica para o “vencedor” da tensão geopolítica então instaurada entre União Soviética e Estados Unidos. Assim, diferentemente dos textos brasileiros, em que alfabetização científica e letramento científico são empregados majoritariamente para se referir ao ensino de ciências na escola, scientific literacy é utilizado também para se referir ao nível de conhecimento que estudantes e cidadãos possuem acerca da ciência, os quais podem ser medidos em testes internacionais, como o Programme for International Student Assessment (PISA) (Bybee, McCrae e Laurie, 2009). O conceito de scientific literacy também importa aos pesquisadores de opinião pública em geral, que estão interessados em avaliar a percepção do público sobre ciência e políticas públicas para ciência e tecnologia.

Hurd (1998), ao discutir a reformulação do ensino de ciências nas escolas dos Estados Unidos, apresenta 25 pontos que definem uma pessoa cientificamente letrada. Essas características vão desde distinguir teoria de dogma até reconhecer que soluções de curto e de longo prazo para problemas podem não apresentar a mesma resposta. Para o autor, o conceito de scientific literacy tem um caráter cívico, de construção do pensamento crítico e de compreensão dos impactos da ciência e da tecnologia na vida dos indivíduos. Miller (1983) enfatiza o sentido metafórico de scientific literacy ao afirmar que ser letrado (to be literate) tem dois significados em inglês: ser instruído ou ser capaz de ler e escrever. A autora afirma que “o segundo significado de letrado ― ser capaz de ler em um nível funcional ― pode ser estendido para sugerir que o letramento científico se refere à capacidade do indivíduo de ler, compreender e expressar uma opinião sobre questões científicas” (Miller, 1983, p. 29-30).5 Para ler, compreender e expressar opinião sobre questões científicas, o aluno ou o cidadão necessita entender as normas e os principais construtos científicos; e, segundo Miller (1983), o entendimento das normas da ciência e o conhecimento dos construtos científicos constituem o significado tradicional do conceito de scientific literacy. A autora, no entanto, alerta que a interpretação atual do conceito deveria levar em conta os impactos da ciência e da tecnologia na sociedade.

Norris e Phillips (2003), por fim, argumentam que é necessário se recuperar o sentido original de letramento do termo letramento científico. Os autores afirmam que o termo engloba diversas concepções, tais como habilidade de distinguir o científico do não científico, compreensão das aplicações da ciência ou compreensão acerca dos benefícios e riscos da ciência, e poucas delas levam em conta o sentido original de letramento. Os autores ainda aprofundam a importância da leitura e da escrita para a ciência ao afirmarem: “a leitura e a escrita estão profundamente ligadas à natureza e à tecitura da ciência e, por extensão, ao aprendizado da ciência” (Norris e Phillips, 2003, p. 226).6 Os autores defendem que a linguagem escrita é a forma mais essencial de codificação, divulgação e preservação da ciência, mas que não basta saber decodificar a linguagem escrita para compreender os textos científicos, pois a compreensão textual depende das inferências feitas pela integração entre as informações trazidas pelo texto e o conhecimento do leitor (Norris e Phillips, 2003). A concepção de scientific literacy apresentada pelos autores está, portanto, intimamente relacionada à leitura de textos de ciência: “O letramento científico deve compreender as estratégias interpretativas necessárias para lidar com o texto da Ciência” (Norris e Phillips, 2003, p. 231).7

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo, buscou-se responder à seguinte questão: Alfabetização científica e letramento científico são uma variação de denominação ou uma diferença conceitual? A resposta que se obtém, no entanto, não é simples e demonstra a complexidade de se investigar a linguagem em uso. Para tanto, apresentou-se primeiramente uma revisão dos conceitos de letramento e alfabetização. Na sequência, realizou-se um levantamento dos usos dos termos alfabetização científica e letramento científico em textos brasileiros dedicados ao ensino de ciências, buscando verificar se ambos constituem apenas uma variação de denominação ou se apresentam de fato diferenças conceituais. Tomando como base os textos analisados, pode-se chegar a três diferentes respostas para a pergunta.

Há um grupo de estudiosos da educação científica, como Chassot (2003, 2016) e Sasseron e Carvalho (2011), que trata alfabetização científica e letramento científico como uma variação de denominação. Identificou-se que esses autores, apesar de conhecerem as diferenças conceituais entre alfabetização e letramento e os autores da área de letramento, optam por empregar alfabetização científica em virtude da influência da concepção freiriana de leitura do mundo. Para esses estudiosos, a ciência é uma linguagem que permite aos alunos lerem de uma forma crítica o mundo em que vivem.

Identificou-se, também, uma segunda tendência que trata alfabetização científica e letramento científico como conceitos distintos. Gomes e Santos (2018), fundamentando-se na distinção entre alfabetização e letramento proposta por Magda Soares, buscam diferenciá-los: alfabetização científica “relaciona-se com a capacidade de compreender, utilizar e refletir sobre um tema, utilizando a linguagem científica, promovendo a participação ativa e adequada nas práticas sociais e profissionais”; e letramento científico “se relaciona com a função e prática social de um indivíduo utilizando o conhecimento científico” (Gomes e Santos, 2018, p. 1). Os autores, no entanto, não exploram, ao longo de texto, os limites conceituais dos termos. Ficam perguntas em aberto: Alfabetização científica e letramento científico são conceitos complementares ou indicam processos distintos no desenvolvimento do conhecimento científico e do uso da ciência? A função da escola é trabalhar com a alfabetização científica ou com ambos? É possível estabelecer uma divisão precisa entre os escopos da alfabetização científica e do letramento científico? Por isso, considera-se essa tendência ainda muito incipiente, carecendo de mais aprofundamento teórico.

Por fim, um terceiro grupo distingue alfabetização científica de letramento científico não por acreditarem que se trata de dois processos distintos, mas por negarem a pertinência da relação metafórica entre alfabetização e educação científica. Considerando o letramento como um processo de construção de conhecimento baseado na linguagem escrita, que dificilmente parte de um nível nulo, esse grupo julga que o conhecimento prévio do aluno deva ser respeitado. Além disso, propõe um trabalho integrado entre o ensino de ciência e a linguagem. Incluem-se nesse grupo autores como Cunha (2017a), Davel (2017) e Santos (2007), mais fundamentado nas ciências da linguagem, os quais propõem uma concepção mais aberta de letramento científico, que inclua, além do ensino dos conceitos científicos, a exploração da leitura de textos sobre ciência. Essa proposta, aliás, é muito próxima à reinvindicação de Norris e Phillips (2003) para que scientific literacy retomasse o sentido original de literacy, ou seja, de letramento. Observa-se nesse terceiro grupo a influência dos estudos em educação e em ciências da linguagem na opção dos autores analisados por letramento científico. Essa constatação vai ao encontro das descobertas feita por Cunha (2017b) em pesquisa sobre o uso de alfabetização científica e letramento científico: 54% dos trabalhos que optavam por letramento científico citavam autores dos estudos da linguagem; nos que optavam por alfabetização científica, o índice caia para 22%.

Apesar de não haver uma uniformidade no uso de alfabetização científica e letramento científico, é significativa a análise da ampliação metafórica que alfabetização e letramento sofrem ao serem ressignificados. Certamente, essa metaforicidade está relacionada a uma aproximação feita entre a importância da alfabetização e do letramento para o educando com a importância atribuída pelos autores ao ensino de ciências para a vida tanto do aluno quanto do futuro cidadão. É necessário, porém, estar atento para não se reproduzir uma visão de letramento autônomo: não basta ao aluno saber ler e escrever para que ele tenha melhores oportunidades e melhores condições de vida, ou seja, não basta ao aluno entender de ciência para ter melhores condições de vida e poder participar de forma mais equitativa nas decisões sobre políticas públicas para ciência e tecnologia. Para finalizar, ressalta-se a importância de se pensar no ensino de ciência como uma forma de letramento, destacando a estreita relação entre ciência, discurso científico e linguagem escrita. Pensar na constituição da ciência pela escrita é abrir espaço na escola para um trabalho interdisciplinar envolvendo o ensino de ciências associado ao trabalho com a língua materna.

REFERÊNCIAS

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1 Todas as traduções apresentadas neste artigo são de responsabilidade do autor. No original: “literacy is a characteristic acquired by individuals in varying degrees from just above none to an indeterminate upper level”.

2 No original: “A person is functionally literate when he has acquired the knowledge and skills in reading and writing which enable him to engage effectively in all those activities in which literacy is normally assumed in his culture or group”.

3 No original: “A person is literate who can with understanding both read and write a short simple statement on his everyday life”.

4 No original: “‘Scientific literacy’ is one of those terms that is often used but seldom defined”.

5 No original: “The second meaning of literate ― to be able to read at a functional level ― can be extended to suggest that scientific literacy refers to the ability of the individual to read about, comprehend, and express an opinion on scientific matters”.

6 No original: “Reading and writing are inextricably linked to the very nature and fabric of science, and, by extension, to learning Science”.

7 No original: “Scientific literacy must comprise the interpretive strategies needed to cope with Science text”.

Recebido: 09 de Maio de 2019; Aceito: 06 de Abril de 2020

Anderson Bertoldi é doutor em linguística aplicada pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Santa Catarina (IFSC). E-mail: anderson.bertoldi@ifsc.edu.br

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