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Revista Brasileira de Educação

versão impressa ISSN 1413-2478versão On-line ISSN 1809-449X

Rev. Bras. Educ. vol.25  Rio de Janeiro jan./dez 2020  Epub 28-Abr-2020

https://doi.org/10.1590/s1413-24782020250017 

Resenha

Brinquedos, livros e acampamentos na Alemanha no início do século XX: uma análise de Raising Germans in the age of empire

IUniversidade Estadual de Maringá, Maringá, PR, Brasil.

BOWERSOX, J.. Raising Germans in the age of empire:, youth and colonial culture, 1871-1914. Oxford: Oxford University Press, 2013.


Em pesquisas sobre a história da educação corporal no início do século XX, tendo como foco os variados movimentos formativos voltados à juventude, tomei contato com Raising Germans in the age of empire, publicada no final de 2013 pela Oxford. O autor, Jeff Bowersox, é professor da University College of London e possui como interesse de pesquisas a cultura alemã e sua relação com o processo de mundialização econômica e cultural que teve espaço na virada ao século XX.

Embora reconheça haver na Alemanha do período variadas questões que se distanciavam das ambições expansionistas coloniais então existentes, Bowersox parte do pressuposto de que, no início do século, “alemães de todos os setores da sociedade começaram a encontrar o mundo colonial regularmente na vida cotidiana” (p. 7). Dizendo de outro modo, a penetração de justificativas variadas sobre a necessidade de conquistar e manter colônias tornou-se um poderoso leitmotiv das visões dos alemães sobre eles mesmos e sobre o mundo em que viviam, impactando muitos aspectos da vida societária, entre eles a educação. Ou seja, o que significou “formar alemães” em um contexto (1871-1914) marcado pela exposição da juventude ao que é chamado no livro de “cultura colonial”? Para abordar essa problemática, o estudo sobre a relação entre a referida cultura e a educação de crianças e jovens alemães é feito em cinco capítulos.

O primeiro deles intitula-se “Playing empire: toys, games, and the German colonial imaginary”. Nele, Bowersox investiga o modo como os ímpetos colonizadores impactaram o cotidiano de crianças por meio dos brinquedos e dos jogos utilizados por elas. Salta aos olhos a riqueza da documentação material utilizada e apresentada em fotos pelo autor, em que se evidenciam representações sobre o que era ser “selvagem”, “colonizador”, “colônia” e “metrópole”. Por meio dessa documentação e da condução analítica feita de uma expressiva gama de brinquedos de diferentes ordens e voltada a crianças de todas as faixas etárias, é possível verificar como muitos estereótipos foram construídos e sedimentados na sensibilidade infantil e juvenil sobre o que era ser civilizado e o que era ser selvagem. No decorrer das análises podemos verificar o modo como a produção, a divulgação e o consumo desses brinquedos acarretaram um mercado bastante pujante e relacionado tanto com o entretenimento quanto com a educação dos alemães. Isso, utilizando-se de uma “linguagem” (p. 22) pautada em “hierarquia imaginárias” (p. 52), aprendida desde cedo pelas crianças já em suas brincadeiras, repletas de exploradores corajosos no embate com a “selvageria”.

A educação formal é o foco do segundo capítulo: “Studying empire: classroom instruction, school geographers, and pedagogical reform”. Embora todo o ambiente escolar tenha sido influenciado pela expansão colonial alemã, Bowersox coloca em evidência o modo como essa influência se materializou nas aulas, nos professores, nos procedimentos pedagógicos e nos materiais utilizados no ensino de geografia. A escolha dessa disciplina é justificada pela sua ênfase na relação “território-povo” (p. 61), algo assumido como fundamental para a inteligibilidade dos desafios da expansão colonial às jovens gerações. No estudo desse relacionamento, o autor destaca como livros didáticos, mapas e assuntos estudados pautavam-se na assunção de determinada naturalidade da expansão colonial alemã. Nessa expansão, os “encontros exóticos” com pessoas e lugares que sedimentavam uma “narrativa colonial” (p. 66), que consistia na propagação da ideia de que povos fracos não poderiam manter a possessão de suas riquezas territoriais, o que criou para as aulas de geografia não apenas seus conteúdos, mas também sua principal “ferramenta pedagógica” (p. 80) para legitimar sua importância formativa para a juventude alemã de então.

O tema do terceiro capítulo é a atenção dada à educação por parte da sociedade colonial alemã. Tendo como título “Seeing the empire: colonialist expertise and spectacular lessons outside the classroom”, o capítulo possui análises que escrutinam a relação existente entre escolas e a referida sociedade, em um contexto no qual ambas se procuravam mutuamente: a sociedade colonial alemã dirigia-se às autoridades escolares oferecendo materiais, palestras e atividades formativas para professores, ao passo que diretores e professores, atendendo a pressões culturais relacionadas à expansão colonial alemã, bem como a ambições pedagógicas pautadas pela ideia de renovação de práticas, conteúdos e materiais, viam na referida sociedade um locus privilegiado para o processo de modernização e sintonização das práticas escolares com o tempo que viviam. Assim, são alvos do autor as exposições coloniais organizadas pela sociedade colonial alemã, na qual boa parte do que era exposto voltava-se à glorificação das conquistas e das possessões alemãs, materializada na copiosa produção de imagens e materiais pedagógicos distribuídos ou vendidos para escolas. Além dessas exposições, vemos a relevância da criação do Museu Colonial Alemão, em 1896. Fotos ilustram algo do que era exposto, além de apresentar um panorama bastante convincente da intensa programação oferecida, composta de palestras dirigidas, em sua maioria, a escolares de Berlim e região. Em uma época em que a conquista da atenção da juventude já era mais difícil em razão da expansão de outras formas de lazer e entretenimento, o fato de esses eventos serem demonstrados como geradores de interesse é mais um indício de como a “cultura colonial” aglutinava agendas socioculturais e formativas na Alemanha.

O campo da literatura infantil e juvenil também é outra dimensão cultural alemã que foi influenciada pela “cultura colonial”. Em “Reading empire: politics, gender, confession, and class in commercial youth literature”, o autor chama atenção para o florescimento de um grande mercado de livros e de outras publicações voltadas a crianças e adolescentes. Essa importância se materializou na constatação de ser ela uma das responsáveis pela “expansão do público leitor alemão”, estimulada também pelo motivo cultural da expansão das colônias alemãs. Conforme visto nos capítulos anteriores, analistas da época constatavam a presença de motivos expansionistas nesse mercado literário em crescimento, não sem se preocupar com a qualidade artística das obras. Bowersox percorre as publicações mais destacadas do período argumentando que, em uma época de grandes e agudas discussões pedagógicas, o equilíbrio entre ganho econômico do mercado editorial e a qualidade formativa pedagógica das obras era uma preocupação de muitos pedagogos inquietos com a propriedade educacional das narrativas e de sua qualidade formal. Comum à vasta maioria das obras publicadas e lidas no período era sua sustentação na popularidade de roteiros baseados nas aventuras coloniais com a necessidade de formar a juventude alemã para um “mundo que mudava rapidamente” (p. 163).

Fechando o livro, o quinto capítulo aborda a expansão do movimento escoteiro naquele país. Indubitavelmente, trata-se da parte mais documentada e extensa, se comparada aos capítulos anteriores. Intitulado “Living empire: pathfinders and conflicts between patriotism and pedagogy”, nele lemos uma narrativa sobre a história do escotismo em solo alemão. Como anuncia o subtítulo do capítulo, vemos na Alemanha uma tensão existente nos rumos, práticas e discursos do movimento escoteiro, atinentes aos limites entre pedagogia e patriotismo de cariz militarista. Em várias partes do planeta, a associação do escotismo ao militarismo, então em voga, era alvo de acalorados debates, tema escrutinado de forma interessante por Bowersox nessa parte do livro. Diferentemente do que acontecera nos capítulos anteriores, a problemática da “cultura colonial” ficou secundarizada, sendo assumido tacitamente, porém, que a expansão do movimento criado por Baden-Powell era uma consequência inevitável dos câmbios na “fronteira colonial”. Por essa razão, o centro das análises retoma uma tradição analítica educacional que vê no escotismo uma tentativa imponente de reformar a educação infantil e juvenil objetivando a superação da decadência moral que era vista existir na vida das grandes cidades.

É notória a rica e variada base documental utilizada para a construção das reflexões. Se esse mérito deve ser ponderado na disponibilidade e organização dos arquivos existentes na Alemanha, há que ser reconhecido que Bowersox se esmerou em uma profunda escavação de documentos de variadas tipologias para a construção de sua ágil e envolvente narrativa, bem como na contundência de suas inferências.

Do ponto de vista analítico, há que ser notada a valia da obra para estudos que se pautam em pesquisar dimensões históricas educacionais ligadas ao processo de renovação pedagógica vivenciado nas primeiras décadas do século em sua costura com os dilemas políticos, econômicos e militares do período. Nesse sentido, é exitosa a postura de Bowersox ao atribuir vínculos entre dimensões sociais diferentes entre si, mas sem pecar por esquematismos simplificadores. Com efeito, Bowersox não focalizou a educação alemã como um “produto de agitação política em qualquer sentido mais estreito”, mas a tomou na combinação da “normalização da esfera comercial do império” (p. 271) com “diversos esforços para preparar a juventude para uma idade global” que, então, dava seus primeiros sinais na Alemanha do início do século XX.

Por essas razões, avalio que a obra em tela pode ser um estímulo a pesquisadores brasileiros que estudam temas e períodos correlatos no campo da história educacional.

REFERÊNCIA

BOWERSOX, J. Raising Germans in the age of empire: youth and colonial culture, 1871-1914. Oxford: Oxford University Press, 2013. [ Links ]

Recebido: 19 de Agosto de 2019; Aceito: 04 de Novembro de 2019

Carlos Herold Junior é doutor em educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professor da Universidade Estadual de Maringá (UEM). E-mail: carlosherold@hotmail.com

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