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Revista Brasileira de Educação

versión impresa ISSN 1413-2478versión On-line ISSN 1809-449X

Rev. Bras. Educ. vol.25  Rio de Janeiro ene./dic 2020  Epub 15-Dic-2020

https://doi.org/10.1590/s1413-24782020250066 

Resenha

Gestão escolar e cidadania LGBT no Brasil

IUniversidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil.

SANTOS, E.. LGBTfobia na educação e a atuação da gestão escolar. Curitiba: Appris, 2019.


Émerson Santos é doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Campina Grande, mestre em Educação Contemporânea pela Universidade Federal de Pernambuco/Centro Acadêmico do Agreste e bacharel em Administração Pública pela Universidade Federal Rural de Pernambuco. Atuou como conselheiro do Conselho Nacional LGBT e atualmente é editor da Revista Debates Insubmissos1. Em 2019 lançou o livro LGBTfobia na educação e a atuação da gestão escolar pela editora Appris, fruto de sua dissertação de mestrado.

O livro trata de apresentar uma pesquisa de campo realizada em escolas da rede estadual de ensino do município de Caruaru, estado de Pernambuco. Seu objetivo geral foi “investigar qual o lugar que as questões de diversidade sexual e identidade de gênero ocupam na agenda da gestão escolar de escolas públicas” (Santos, 2019, p. 26). O autor adentrou em duas escolas que ofereciam o ensino médio regular (denominada de escola A) e integral (escola B). Nelas, dialogou com as gestoras de cada unidade, com o corpo docente e discente, além de ter realizado análise documental em cadernos de cursos de formação de gestores escolares.

A obra é bem sistematizada e seu conteúdo distribuído ao longo de sete capítulos. O primeiro apresenta a construção metodológica da pesquisa, focando tanto nas bases epistemológicas que orientaram o estudo como na descrição pormenorizada das técnicas de coleta de dados e dos sujeitos da pesquisa. Trata-se de uma pesquisa qualitativa de tipo exploratório e descritivo e parte do método do caso alargado, proposto pelo sociólogo Boaventura de Sousa Santos, que visa alargar experiências locais e entendê-las como fenômenos mais amplos. O autor também trabalha com os pressupostos da bricolagem, desenvolvido por Joe L. Kincheloe, cuja abordagem analisa e interpreta os fenômenos da sociedade levando em conta as relações desiguais de poder e torna inseparáveis objeto de pesquisa e contexto social. Assim, Santos anuncia honestamente tratar-se de uma pesquisa engajada.

O segundo capítulo inicia a discussão teórica empreendida. Seu esforço consiste em apresentar os estudos pioneiros sobre administração escolar no Brasil desenvolvidos por José Querino Ribeiro, Antônio Carneiro Leão, Anísio Spínola Teixeira, Manuel B. L. Filho e Myrtes Alonso, sem perder de vista a análise crítica sobre essas obras. Sua principal crítica a esses estudos decorre da importação sem maiores problematizações dos pressupostos da teoria geral da administração. Com base nos interesses do modo de produção capitalista, tal teoria não seria adequada às dinâmicas do processo educativo.

Essa discussão abre caminho para Santos chegar à vertente crítica dos estudos sobre gestão e administração da educação, assunto explorado no terceiro capítulo. Dialogando com Miguel Arroyo, Maria de Fátima Félix e Vitor Paro, o autor concorda com suas reflexões acerca dos problemas de uma teoria concebida como técnica e neutra e explica por que a adoção do termo gestão escolar seria mais propícia às dinâmicas escolares brasileiras. Aqui a sua conceitualização de gestão escolar nos é apresentada como

o conjunto de pessoas que realizam uma série de atividades que gerem a dinâmica cultural da escola, em consonância com as políticas públicas e diretrizes educacionais, com vistas a implementação e efetivação do projeto político-pedagógico das escolas. Assim, a gestão escolar constitui também a busca da promoção da organização escolar para garantir o avanço dos processos socioeducacionais, centrando seus esforços na promoção da aprendizagem e na construção cidadã dos discentes. (Santos, 2019, p. 69)

Também competiria à gestão escolar proporcionar condições adequadas para o acesso e a permanência de discentes pertencentes aos mais diferentes grupos e segmentos da sociedade, respeitando essas diferenças e promovendo iniciativas para enfrentar violências e segregações decorrentes dos conflitos e das tensões sociais em torno dessa diversidade sociocultural. Contudo, exercitando seu olhar reflexivo, o autor ressalta a ausência de análises em torno de desigualdades outras que não aquelas marcadas pelas questões de classe, tais como as iniquidades de gênero, sexualidade e raça, o que lhe permite avançar ao quarto capítulo.

Nele, Santos evoca Michel Foucault, Judith Butler e Berenice Bento para introduzir as densas teorias de gênero e sexualidade que vão subsidiar outros pesquisadores do campo da educação, como Guacira Lopes Louro, Anderson Ferrari, Marco Antônio Torres, Márcio Caetano, entre outros. Seus estudos utilizam conceitos e categorias analíticas que lançam luz às violências e discriminações presentes no cotidiano escolar motivadas pela orientação sexual e identidade de gênero, tais como heteronormatividade, heterossexualidade compulsória e LGBTfobia. Esses conceitos fortalecem o entendimento de que a sexualidade, mais do que uma mera característica biológica, é o resultado de uma complexa e histórica construção social forjada por meio das relações de poder e dos discursos dominantes nas diferentes áreas de produção do conhecimento.

O arcabouço teórico apresentado, tanto nos estudos a respeito de gestão escolar como nos de gênero e sexualidade, será útil para as análises desenvolvidas sobre o campo empírico. No quinto capítulo são realizados três relatos empíricos: o primeiro consiste em uma caracterização das modalidades de ensino e da estrutura organizacional da rede estadual de ensino de Pernambuco, o segundo são notas de campo sobre as duas escolas pesquisadas, e o terceiro é uma explanação acerca dos processos de seleção de gestores escolares.

A escola A chamou a atenção de Santos pela quantidade de grades, portas e portões desde a entrada até a sala da direção, pela quantidade de turmas e pelo desconforto inicial da gestora com seu tema de pesquisa. Ele também notou um exemplar da Bíblia em sua mesa. Em relação à escola B, o autor narra que foi bem recebido pela gestora, que as salas eram climatizadas, com ar-condicionado, que os banheiros eram limpos e conservados, que a secretaria possuía cartazes com bons resultados da unidade em avaliações institucionais e que contava com uma disciplina obrigatória sobre Direitos Humanos e Cidadania no currículo. Também havia símbolos religiosos cristãos nessa escola. Ambas as gestoras demonstraram pouco conhecimento sobre gênero e sexualidade.

Outro achado da pesquisa foi o percurso que habilita os profissionais da educação a ocuparem a função na direção escolar, composto de três etapas: processo seletivo, processo consultivo e processo formativo. Ele demonstraria uma política educacional mais criteriosa no que diz respeito à composição e ao recrutamento de diretores das unidades escolares. Como sabemos, em muitas localidades, gestores são indicados pela classe política, sem maiores preocupações pedagógicas, quer seja da legitimidade eleitoral pela comunidade, quer seja da qualificação para o exercício dessa função, representando uma violação aos princípios de gestão democrática previstos na Constituição Federal e na Lei de Diretrizes e Bases, e essa qualificação do sistema educacional pernambucano é problematizada pelas falas das gestoras entrevistadas no sexto capítulo.

O referencial teórico e o campo empírico do livro confirmam que existem muitas dificuldades por parte da gestão escolar em compreender as questões que envolvem gênero e sexualidade e que também falta uma política de formação continuada sobre a temática, prejudicando sua atuação e a perspectiva de inclusão social. Esse cenário parece responder a outra descoberta da pesquisa: a de que iniciativas da gestão para enfrentar a violência e a discriminação são escassas, incluindo a ausência de orientações adequadas por parte da gestão ao corpo docente. O máximo de orientação apurada foi a de que os professores não devem tecer comentários constrangedores a estudantes lésbicas, gays, bissexuais e transexuais (LGBT).

Dessa maneira, o autor conclui que, “no que diz respeito aos processos de violências motivadas por LGBTfobia na escola, a gestão escolar pode ser parte do problema e parte da solução” (Santos, 2019, p. 191). A gestão é parte do problema quando ocorre omissão perante denúncias de violências LGBTfóbicas, não se desenvolvem ações pedagógicas, não se atendem adequadamente vítimas e quando a própria gestão assume a autoria de violações de direitos de sujeitos LGBT na escola. Por sua vez, é parte da solução quando adota uma política de intolerância contra esse tipo de violência, se esforça para construir uma cultura de paz e se propõe a apurar casos de LGBTfobia denunciados por atores escolares, protegendo vítimas e reprimindo agressores.

No sétimo e derradeiro capítulo, Santos evidencia as lacunas do curso de Aperfeiçoamento de Gestão Escolar ofertado pela Secretaria Estadual de Educação de Pernambuco. Em seguida, nota a precariedade dos instrumentos de participação da comunidade escolar, que poderiam constituir espaços de promoção da cidadania LGBT. Reflete como as práticas pedagógicas são interpeladas pela cultura, pela heteronormatividade e por valores morais e religiosos. Uma conclusão importante da sua pesquisa é a de que a escola com ensino integral se saiu melhor que aquela com ensino regular no que se refere à abordagem de gênero e sexualidade.

Como toda pesquisa, é possível notar pontos fortes e fracos. Entre os pontos frágeis, estão:

  • o título do capítulo 2, “Da administração até a gestão escolar: construindo um conceito”, que gera a expectativa de que a definição de gestão escolar seria abordada, o que só vai ocorrer no capítulo seguinte;

  • a quantidade de citações diretas no capítulo 4, que tornam a leitura cansativa;

  • a apresentação conjunta dos depoimentos dos sujeitos, no capítulo 6, em vez de apresentá-los separadamente como escola A e escola B, o que permitiria potencializar um caráter comparativo entre escolas de tipo regular e integral.

Como pontos fortes da obra, destaco:

  • o desenho da pesquisa bem construído e detalhado, possibilitando o entendimento dos passos metodológicos percorridos e a sua replicação em outros contextos educativos;

  • a riqueza empírica compartilhada, possibilitando uma interpretação mais próxima da realidade educacional e dos seus desafios contemporâneos;

  • o esforço teórico ao unir dois campos de pesquisa - os estudos sobre gestão escolar e os estudos acerca de gênero e sexualidade;

  • o ato de evidenciar o papel da gestão e dos gestores como agentes relevantes na reprodução da LGBTfobia nas escolas ou no combate a ela.

Trata-se, portanto, de leitura recomendada para aqueles que estudam os temas abordados ao longo da obra ou trabalham com eles.

REFERÊNCIA

SANTOS, E. LGBTfobia na educação e a atuação da gestão escolar. Curitiba: Appris, 2019. [ Links ]

1 Essas informações foram extraídas do seu currículo lattes, que pode ser acessado em: http://lattes.cnpq.br/3827569775357370. Acesso em: 28 dez. 2019.

Recebido: 29 de Dezembro de 2019; Aceito: 08 de Junho de 2020

Cleyton Feitosa é doutorando em ciência política pela Universidade de Brasília (UnB). E-mail: cleyton_feitosa@hotmail.com

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