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Revista Brasileira de Educação

versão impressa ISSN 1413-2478versão On-line ISSN 1809-449X

Rev. Bras. Educ. vol.26  Rio de Janeiro  2021  Epub 10-Jun-2021

https://doi.org/10.1590/s1413-24782021260040 

Artigos

Currículo e formação em pedagogia: o que dizem estudantes sobre os paradoxos que marcam o trabalho com relações de gênero e sexualidades?

CURRICULUM AND TRAINING IN PEDAGOGY: WHAT DO STUDENTS SAY ABOUT THE PARADOXES THAT MARK THE WORK WITH GENDER RELATIONS AND SEXUALITIES?

CURRICULUM Y EDUCACIÓN EN PEDAGOGÍA: ¿QUÉ DICEN LOS ESTUDIANTES SOBRE LAS PARADOJAS QUE MARCAN EL TRABAJO CON LAS RELACIONES DE GÉNERO Y LAS SEXUALIDADES?

IUniversidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, MG, Brasil.


RESUMO

O artigo apresenta discussões elaboradas a partir de uma pesquisa mais abrangente interessada nas relações entre formação docente, currículo, cultura visual e educação. Para este artigo, escolhemos como recorte as ausências e presenças das abordagens das relações de gênero e sexualidades na formação docente e no currículo da pedagogia de uma universidade pública federal, a partir das respostas de estudantes desse curso a um questionário qualitativo. A perspectiva teórico-metodológica que orienta nossas análises é a perspectiva foucaultiana que toma a problematização como uma forma de fazer pesquisa. O procedimento metodológico foi a aplicação de um questionário. Assim, a partir das respostas das estudantes, tomando como foco de análise a presença, a utilização e os efeitos na trajetória de formação e na problematização de seus processos de subjetivação no que diz respeito ao gênero e sexualidade, constatou-se um aspecto paradoxal no trato com as questões de gênero e sexualidade.

PALAVRAS-CHAVE: gênero; sexualidade; formação docente; pedagogia; currículo

ABSTRACT

The article presents discussions elaborated from a more comprehensive research interested in the relations between teacher training, curriculum, visual culture, and education. For this article, we chose as a cutout the absences and presences of approaches to gender and sexuality relations in teacher training and in the pedagogy curriculum of a federal public university, from the responses of students in this course to a qualitative questionnaire. The theoretical-methodological perspective that guides our analysis is the Foucaultian perspective that takes problematization as a way of doing research. The methodological procedure was the application of a questionnaire and based on the students’ answers, we took as the focus of analysis the presence, use and effects on the training trajectory and the problematization of their processes of subjectivation with respect to gender and sexuality. What we found was a paradoxical aspect in dealing with gender and sexuality issues.

KEYWORDS: gender; sexuality; teacher training; pedagogy; curriculum

RESUMEN

El artículo presenta discusiones elaboradas a partir de una investigación más completa interesada en la relación entre la formación del profesorado, el plan de estudios, la cultura visual y la educación. Para este artículo, se eligió como recorte las ausencias y presencias de los enfoques de las relaciones de género y las sexualidades en la formación docente y en el plan de estudios de pedagogía de una universidad pública federal, en base a las respuestas de los estudiantes en este curso a un cuestionario cualitativo. La perspectiva teórico-metodológica que guía nuestros análisis es la perspectiva foucaultiana que toma la problematización como una forma de hacer investigación. El procedimiento metodológico fue la aplicación de un cuestionario. Así, con base en las respuestas de los estudiantes, tomando como foco de análisis la presencia, el uso y los efectos sobre la trayectoria de formación y la problematización de sus procesos de subjetivación con respecto al género y la sexualidad, se encontró un aspecto paradójico en el lidiar con cuestiones de género y sexualidad.

PALABRAS CLAVE: género; sexualidad; formación docente; pedagogía; currículum

INTRODUÇÃO

Este texto é parte das provocações de uma pesquisa1 que tinha como principal objetivo problematizar a formação docente de estudantes dos cursos de licenciatura em história e pedagogia no que tange aos atravessamentos2 entre formação docente, currículo, cultura visual e educação. Para este artigo, trabalharemos com parte dos dados dessa pesquisa, a partir de questionários respondidos por estudantes da licenciatura em pedagogia (todas do gênero feminino), focando especialmente a questão em que era solicitado discorrer se as/os docentes de seu curso de graduação vinculavam a atuação na escola básica, na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental ao trabalho com as relações de gênero e sexualidades. Para analisar tais dados, remetemo-nos à ideia de paradoxo, para argumentar sobre as ausências e presenças das questões que concernem às relações de gênero e sexualidades, percebidas, ou não, pelas estudantes no currículo de formação em pedagogia.

Nosso artigo se organiza em quatro seções. Na primeira, abordamos os pressupostos e a organização da pesquisa cujos dados reverberam neste artigo. Na segunda, discorremos sobre os pressupostos que orientam nossas análises, discutindo formação docente, currículo, relações de gênero e sexualidades. Na terceira e na quarta, nos deteremos nas respostas das estudantes ao questionário, buscando problematizar alguns dos significados que elas podem apresentar. Tais respostas nos conduziram a um aspecto paradoxal, quando buscam lembrar os momentos em que reconhecem o trabalho com as relações de gênero e sexualidades na formação. O campo empírico mostrou que esse é o aspecto mais marcante na formação que se mostra paradoxal em três sentidos. O primeiro é que a discussão se mostra necessária, mas insuficiente. O segundo é que a discussão marca algumas das estudantes, mas não toca outras. E, por último, a discussão é silenciada em algumas disciplinas, mas se apresenta em outras, seja pela iniciativa de professoras e professores ou trazida pelas próprias estudantes.

A PESQUISA: FORMAÇÃO DOCENTE, CURRÍCULO, IMAGEM E EDUCAÇÃO

Quatro áreas do conhecimento que, em última análise, dizem do processo de constituição dos sujeitos. Uma pesquisa que se desenvolveu tendo duas frentes de investigação: uma interessada na presença e no uso das imagens, e outra que questionava sobre as relações de gênero e sexualidade, sendo que ambas se encontravam nos nossos interesses sobre as relações possíveis e resistentes no currículo e na formação docente. Neste artigo, mais especificamente, estamos interessados nas relações de gênero e sexualidades que estão sendo construídas no currículo desses cursos de graduação, inspirados nos estudos foucaultianos e nos autores e autoras das teorizações pós-críticas de currículo que discutem as experiências dos grupos socialmente marginalizados (Paraíso, 1997; Foucault, 1999).

Essa pesquisa mais abrangente, em sua metodologia, provocava as/os estudantes a revisitarem suas trajetórias escolares e de formação universitária, para pensar a inserção de imagens pelas/os docentes com suas finalidades curriculares e a presença da discussão das relações de gênero e sexualidades. É nesse sentido que este artigo mantém viva essa provocação, uma vez que nossa pretensão inicial também é provocar as/os leitoras/es a responderem a estas questões: em que momentos da trajetória escolar foi acionado o trabalho com as imagens? Quando identificam ou reconhecem a problematização das relações de gênero e sexualidade? E, ao responderem, entrem, estabeleçam encontros e desencontros com as/os participantes da pesquisa a partir do que iremos trazer para o debate.

Para nós, era importante investigar a relação entre formação e imagem porque acreditamos que somos educadas/os pelas imagens cotidianamente, sem nos darmos conta desse processo de construção de nossas subjetividades pelas imagens e os atravessamentos com saberes e símbolos. As/os estudiosas/os da cultura visual têm demonstrado que esse campo de conhecimento se constitui a partir da interpretação e da retórica das imagens e da arte (Martins, 2006; Hernández, 2010). Nesse sentido, queríamos saber das relações dessas imagens com a formação docente, ou seja, como as imagens significam enquanto signos e símbolos? Que tipo de poder está organizando seus usos e seus efeitos nas emoções e nos comportamentos das pessoas, nos seus processos de formação, sobretudo no que diz respeito às relações de gênero e sexualidades?

Em uma sociedade imagética, problematizar os processos de subjetivação torna-se fundamental no sentido de questionarmos que imagens nos subjetivam, especialmente quando pensamos nas relações de gênero e sexualidades. De que modos as imagens nos educam? Que relações estabelecemos com as imagens, com os símbolos e os saberes que elas constroem? De que modos estamos implicadas/os na produção de imagens? Raimundo Martins (2010) argumenta que vivemos tempos de uma amplitude da experiência visual, distanciada, porém, de habilidades para compreender essa experiência. Imagens são produzidas e circulam como uma avalanche que nos sitia e interpela cotidianamente, “que nos arrasta, desnorteia e fragmenta sem que tenhamos tempo para refletir, analisar ou fazer algum tipo de crítica sobre elas” (Martins, 2010, p. 21). Trabalhando em um programa de pós-graduação em educação, consideramos necessário trazer para o debate essas relações das imagens, saberes, currículos e subjetividades, pois defendemos que a educação não é o lugar de permanência com um tipo de senso comum que nos distancia da necessária problematização e transformação do que sabemos. Ao contrário disso, é função da educação colocar sob suspeita nossas formas de saber, agir e ser no mundo, de maneira que apostamos na função problematizadora dos processos educativos.

Inspirando-nos no pensamento foucaultiano (Foucault, 2006), assumimos a perspectiva da problematização como uma forma de fazer pesquisa. Problematizar é uma operação que está inscrita na história do pensamento e nos convida a investigar nossas formas de pensar e agir. Assim, ao fazer pesquisa, dizemos que se trata de problematizar, ou seja, algo como “dar um passo atrás” em relação ao que se conhece e ao que somos, transformar isso em objeto de pensamento, tratando como um “problema”, ou seja, pensar de outros modos, questionar seus significados, seus efeitos (Marshall, 2008). Por que pensamos de certos modos? O que conhecemos e o que ignoramos? Quais os efeitos das maneiras de conhecer e desconhecer nos nossos processos de subjetivação? O que os saberes fazem conosco? Não se trata, portanto, de pensar o sujeito como apenas apático ou passivo diante da hipervisualização, como propõe Raimundo Martins (2010), ao analisar nossa experiência contemporânea com as imagens, mas o sujeito diretamente implicado nesses processos de subjetivação.

Sentimo-nos provocadas/os a problematizar as relações da cultura visual com os currículos de formação docente, considerando que tais relações impactam o campo da educação, as práticas pedagógicas e a formação de estudantes nas escolas. Sendo fiéis a nossa trajetória de pesquisas, combinamos essas preocupações com outras que nos são caras, como as relações de gênero e sexualidades, especialmente. A sociedade brasileira (e nos arriscaríamos a ampliar essa análise para muitas das sociedades ocidentais contemporâneas) produz e é produzida por imagens que educam para as sexualidades e os gêneros. Uma forma de pensar que está amparada na definição foucaultiana (Foucault, 1999) de sexualidade como um dispositivo, algo que se constrói em uma rede que envolve leis, normas, arquiteturas, tratados, discursos, imagens. Por meio das imagens, aprendemos e ensinamos o que é ser mulher e ser homem (e o que não é); aprendemos a valorizar e a desvalorizar certos modelos e a enquadrar corpos e sujeitos; aprendemos e ensinamos que as sexualidades podem ser vividas de certos modos, valorizados e consentidos por uma moral que organiza o cotidiano. Em revistas, jornais, outdoors, sites e blogs, aplicativos de celular, redes sociais (Facebook, Instagram, YouTube etc.), videogames, programas de televisão, propagandas, clipes musicais, filmes e séries, histórias em quadrinhos ou nas artes visuais, nos relacionamos com imagens que funcionam como potentes pedagogias dos gêneros e das sexualidades. Ao pesquisar a presença da discussão de gênero na formação e no currículo de um curso de magistério, Marlucy Paraíso (1997) argumenta que as experiências de gênero vividas pelas estudantes costumam estar invisibilizadas nos currículos ditos “formais”, embora sejam utilizadas pelas/os professoras/es como critério de seleção de conteúdos, constituindo-se, desse modo, como campo de exercício de potentes pedagogias que ensinam modos normatizados de ser mulher e de ser homem.

Pensando na relação com o que chamamos de “realidade”, algo que é diverso, as imagens constroem, reforçam e desconstroem sentidos e significados que se incorporam às nossas vidas, aos modos pelos quais nos relacionamos com os outros e conosco. Imagens, nas suas relações com os saberes, são, assim, pedagogias que são entendidas como processos de subjetivação, que formam todas/os e chegam às escolas e às universidades, atravessando as relações de ensino-aprendizagem, os materiais didáticos, os vínculos entre docentes e estudantes e das/os estudantes entre si, constituindo interesses e gostos, disciplinando corpos. Na relação entre escolas e universidades, a formação se torna algo importante a ser problematizado. Estaríamos diante de processos de mútua constituição? Nosso argumento nos conduz a pensar que sim, ou seja, os currículos escolares e os currículos dos cursos de licenciatura são resultados provisórios e inacabados de disputas e negociações. O que circula e se materializa nesses currículos é resultado de processos de seleção entre conhecimentos e imagens mais valorizados, algo considerado relevante e pertinente à formação dos sujeitos. Considerando-se que a cultura visual nos instiga a pensar na produção de imagens como uma rede de saberes e poderes sempre em atividade, as instâncias de educação escolar e universitária estariam implicadas politicamente com essas discussões? E, em se tratando do recorte temático que delimitamos para este texto, as pedagogias visuais das sexualidades e dos gêneros são tomadas como objeto de problematização por esses currículos?

Ressaltamos que a perspectiva que nos orientou na produção da pesquisa é a de uma investigação interessada, conduzindo-nos a pensar em nossa própria atuação na universidade, nos cursos de licenciatura. Assim, nos organizamos para problematizar as apropriações de estudantes dos cursos de licenciatura em história e pedagogia de uma universidade federal: elas/es identificam algum trabalho com imagens em sua formação escolar e universitária? Indo além, elas/es identificam alguma abordagem dos temas relativos aos gêneros e às sexualidades? A partir das concepções que essas/es estudantes expressam, de que modos podemos problematizar os currículos de formação docente?

Nosso modus operandi funciona colocando sob suspeita os processos formativos que não se limitam àqueles vivenciados na universidade, mas dizem respeito à inserção do sujeito no mundo, em uma cultura e em relações sociais, ou seja, como vão se tornando docentes e assumindo posições de sujeito que implicam disputas, negociações e alianças com outras formas de estar no mundo. Desse modo, pensamos a formação docente como mecanismo de constituição de sujeitos em meio às realidades contemporâneas dos contextos escolares, que apresenta o desafio de ampliar o foco, desconfiar do “natural” e do “comum”, substituir lentes desde sempre direcionadas a certas imagens por uma multiplicidade focal. Em se tratando dos gêneros e das sexualidades, o desafio pode se intensificar, tendo em vista a pluralização crescente das expressões de feminilidades, masculinidades, desejos, prazeres e práticas corporais vividas, algo que remete aos conhecimentos científicos, mas que também passa pelos saberes das experiências e histórias de vida. Em última análise, acreditamos que há certa necessidade de deseducar o olhar para poder olhar de outra forma.

A pesquisa mencionada desenvolveu-se a partir de questionários qualitativos, constituídos por questões abertas organizadas em dois conjuntos: o primeiro dizia respeito às experiências com as imagens e com as sexualidades e os gêneros antes da graduação, ou seja, na escola básica; o segundo tratava das experiências na universidade, considerando-se que o público-alvo era composto de estudantes cursando os últimos períodos de seus respectivos cursos de licenciatura. O contato e o aceite das/os estudantes se deram a partir das disciplinas que ministramos na faculdade de educação. O questionário foi respondido por 50 estudantes. Para este artigo, conforme anunciado na introdução, trabalharemos apenas com os dados de 26 questionários, respondidos por estudantes da licenciatura em pedagogia (todas do gênero feminino), focando especialmente a questão em que era solicitado discorrer se as/os docentes de seu curso de graduação vinculavam a atuação na escola básica, na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental ao trabalho com as relações de gênero e sexualidades.

Importante mencionar que buscamos nos aproximar da perspectiva dos estudos foucaultianos e pós-estruturalistas de gênero, sexualidade e educação, o que nos faz tomar os sujeitos como constituídos discursivamente, a partir de contextos socioculturais e históricos que produzem e fazem circular concepções e visões de mundo. Assim, o que as estudantes escrevem nos questionários nos remete a pensar nos discursos que compõem uma formação, que não diz respeito apenas ao curso de licenciatura, mas aponta para a construção de sujeitos que se dá pelo investimento em certos discursos e práticas, pela imputação de identidades e pelo enquadramento em formas de existência. Porém, considerando-se as relações consigo mesmo e com os outros como relações de forças, é possível sempre resistir e produzir outros modos de vida, algo que diz do investimento que pode ser realizado pela educação escolar e pela formação universitária.

RELAÇÕES DE GÊNERO, SEXUALIDADES, CURRÍCULO E FORMAÇÃO DOCENTE INICIAL

Que imagens acionamos quando pensamos na docência? Ser professora, ser professor: algo que circula em nossa cultura como representações ligadas ao exercício profissional, ao desempenho de atividades ligadas às escolas, às/aos estudantes, aos conteúdos, enfim, algo que nos é familiar, já que, se não todas, a grande maioria das pessoas passa pelas escolas e tem contato com professoras/es. Além disso, essas imagens circulam por um extenso número de artefatos, como programas de TV, filmes, músicas, jogos, revistas, jornais, literatura, artes, e fazem parte de rituais costumeiros, tais como as brincadeiras da infância. Desse modo, consideramos importante pensar nos processos que nos tornam docentes, que chamamos de formativos, dentre os quais situamos os cursos de formação inicial nas universidades. Que imagens da docência são apresentadas nesses cursos de graduação? As imagens da docência previamente construídas são problematizadas?

Os processos formativos podem ser compreendidos desde as microrrelações constitutivas de sujeitos, ou seja, os modos pelos quais constituímos o que somos e como nos constituímos docentes, na relação conosco mesmos e, por conseguinte, na relação com outros. Portanto, pensamos essa formação como algo mais que uma relação de aprendizagem direta de elementos da profissão docente, ou seja, mais que conteúdos conceituais a serem ensinados (“transferidos”, algumas/uns diriam) e técnicas sobre como ensinar. Sem desconsiderar tais aspectos, desejamos enfatizar a complexidade dessa formação, pensando-a como processo ético-estético-político de constituição de sujeitos-docentes. A docência seria, assim, um dos aspectos desse processo constitutivo, ou seja, parte do que somos e de como nos posicionamos no mundo (Castro, 2014).

A “formação”, nesse sentido, é processo de constituição de subjetividades, no qual estamos envolvidas/os no curso de nossa existência, considerando-se que os modos de “ser” e de “estar” no mundo e as posições de sujeitos que ocupamos não são fixas, únicas, mas permanecem em constante transformação. A partir dessa ideia, podemos pensar a formação docente como mecanismo de transformação da docência e problematização do “ser docente”, com a produção de uma ética e de uma estética de existência (Foucault, 2006) que não se restringe à docência como “função profissional”, mas que se estende para o compromisso ético-político com a vida, com as relações sociais, com a construção de relações menos pautadas em assujeitamentos e hierarquias das diferenças.

As preocupações que vêm nos conduzindo em nossos estudos e pesquisas fazem atravessar a discussão dos processos formativos com as relações de gênero e sexualidades. Os cursos de graduação discutem essas questões? A universidade possibilita que problematizemos nossas identidades sexuais e de gênero? Como as construímos e de que modos lidamos com os outros a partir desses marcadores socioculturais? Que relações podemos fazer entre a discussão desses temas nos cursos de formação docente inicial e os modos como as escolas lidam com eles? Para nós, mais do que temas, as relações de gênero e sexualidades constituem campos de estudos e pesquisas que apontam para a construção social, cultural e histórica dos sujeitos. A partir dos estudos foucaultianos, Louro (2001) argumenta que a produção de sujeitos é um processo plural e permanente. Nesse processo, os sujeitos não são “meros receptores, atingidos por instâncias externas e manipulados por estratégias alheias” (Louro, 2001, p. 25), mas estão implicados, sendo participantes ativos da construção de si mesmos, a partir dos modelos fixados por meio das estratégias e táticas de investimento cultural. Há, nesse caso, a relação da constituição de si com um saber que organiza as relações sociais e produz posições de gênero, de sexualidade, de docência. Constituir-se como sujeito de gênero e como sujeito de sexualidade é algo que se faz, assim como a docência, em processos formativos. Com isso, argumentamos que não haveria qualquer essência ou elemento que seja anterior a esses processos. Desejamos conduzir nossa argumentação de modo a problematizar a vinculação dos gêneros e das sexualidades às “leituras” biológicas que naturalizam e hierarquizam posições de sujeito, instaurando relações de saber e poder.

A famosa e célebre frase que inicia o livro O segundo sexo, de Simone de Beauvoir (1967, p. 9), representa o que estamos argumentando: “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher”. Que significados são colocados em jogo com esse enunciado? O que determina a distinção “mulher” e “homem”? É a mesma que distingue “fêmea” e “macho”? O “tornar-se”, nesse caso, não remete a uma essência do gênero, algo que exista a priori nos sujeitos e que vai sendo descoberto ou desenvolvido. O “tornar-se” se contrapõe à ideia de que nascemos homens e mulheres, de que as genitálias definem o que nos tornaremos. Nesse sentido, podemos, por exemplo, problematizar a ideia de que o exame de ultrassom “revelaria” e definiria um sujeito como “fêmea” (e, portanto, menina) ou “macho” (e, portanto, menino). Por que essa definição importa tanto à maioria das sociedades? Por que é uma “revelação”? A marca que esse corpo em formação carrega informa à sociedade o lugar que esse sujeito passará a ocupar ao nascer (ou já ocupa desde o interior do útero materno). A anatomia é o destino? Há escapatória para esse enquadramento binário? Como argumenta Louro (2007, p. 21), não são propriamente as características sexuais, “mas é a forma como essas características são representadas ou valorizadas, aquilo que se diz ou se pensa sobre elas que vai constituir, efetivamente, o que é feminino ou masculino em uma dada sociedade e em um dado momento histórico”.

Na mesma direção é que trabalhamos com as sexualidades: não como um a priori contido em um corpo pré-cultural, mas como um investimento que as sociedades e as culturas realizam sobre os sujeitos, construindo desejos, prazeres, práticas corporais, modos de se relacionar com o outro, de compreender nossos próprios desejos e prazeres. Um investimento que funciona no exercício de poder, em uma perspectiva foucaultiana, como ações sobre as ações dos outros, vigiando, disciplinando e punindo desvios, instituindo classificações e hierarquias que enquadram os sujeitos em identidades fixas, homogêneas. Na contramão dessas ideias, apostamos na pluralidade dos modos de viver as sexualidades, sendo, portanto, relevante a problematização dos enquadramentos e hierarquias.

A escrita deste texto se faz a partir de certas preocupações concernentes à pesquisa sobre a qual discorremos na seção anterior. Ao nos propormos a pensar nas questões que atravessam formação docente, currículo, cultura visual e educação, trazemos mais preocupações que nos instigam: que docentes estão se formando? Que formação nosso curso de pedagogia e nossa universidade estão chancelando? Essas preocupações repercutem nas relações entre a formação e a “realidade”: de que modos essa formação pode contribuir para a produção de relações “permeáveis” às diferenças? De que modos uma formação pode considerar a produção imagética, tendo em vista uma concepção problematizadora de nossas relações com as imagens? E de que modos esses processos podem incorporar discussões a respeito de questões ligadas às relações de gênero e sexualidades?

Pensar nos cursos de licenciaturas desenvolvidos nas universidades é problematizar os significados e os sentidos produzidos sobre a docência e a formação docente, tendo em vista as múltiplas configurações arquitetadas para a formação profissional, entre as expectativas formativas e os anseios das/os estudantes em formação, dentre outros aspectos. No caso dos cursos de licenciatura em pedagogia, a proposta é formar profissionais que atuarão, majoritariamente, na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental, podendo também atuar na educação de jovens e adultos, na gestão dos espaços escolares e em outras áreas nas quais sejam previstos conhecimentos pedagógicos (Brasil, 2006). Pensando nos contextos escolares como uma composição complexa e múltipla de sujeitos e relações, cabe problematizar a homogeneidade atribuída a essas instâncias educacionais, ou seja, assim como os conceitos de docência e formação docente, o que se compreende como educação infantil, infância, criança, jovem, adulto, escola, aprendizagem, ensino etc. faz parte de redes discursivas cujos significados vão se sedimentando ao longo do tempo, a partir do investimento de políticas, artefatos e práticas pedagógicas e constituindo os currículos desses cursos (Castro, 2014).

Em sua “condição linguajeira”, os currículos articulam significados, conceitos, imagens, representações, posições discursivas, histórica e socialmente construídas, com função constitutiva daquilo que enuncia (Corazza, 2001). Sendo assim, analisamos que os temas que frequentemente se colocam como cerne de políticas, currículos e práticas pedagógicas, tais como “educação de qualidade” para uma “sociedade democrática, justa e inclusiva”, passam pela garantia de que os sujeitos possam experienciar relações de gênero e sexualidades como construções dinâmicas e complexas, situando-as na equidade de condições de vida e igualdade de direitos (Castro, 2014). Isso implica o reconhecimento da legitimidade e da pluralidade de expressões dos corpos e das sexualidades, e da educação como atividade não normalizadora, “em que as experiências até hoje invisibilizadas, não-reconhecidas ou, mais comumente, violentadas, passassem a ser incorporadas no cotidiano escolar”, ou seja, a educação menos como “um dos braços de normalização biopolítica para o Estado” e mais como “veículo social de desconstrução de uma ordem histórica de desigualdades e injustiças” (Miskolci, 2012, p. 51).

Como analisa Castro (2014), o currículo da formação docente inicial compõe-se de documentos, políticas, cursos, disciplinas que se constituem como materializações de teorias, de discursos, de textos que não se limitam a descrever e explicar “a” realidade, mas que estariam “irremediavelmente” implicadas na produção disso que tomamos por realidade (Silva, 2007). Assim, precisaríamos tomar os currículos na sua função ativa de constituição dos sujeitos, como currículos-subjetividades: envolvidas/os naquilo que somos, naquilo que nos tornamos. O currículo de formação inicial em pedagogia é, portanto, produtor de sujeitos, constituído a partir de jogos de poder e verdades entre saberes pedagógicos e entre as diversas concepções de pedagogia, educação, formação, docência, escola, sujeito etc.

Nesse jogo, pode ser oportuno problematizar os investimentos de currículos que se aliam aos significativos normatizados e normatizantes sobre as relações de gênero, as sexualidades, as diferenças. Aliando-nos aos argumentos de Ferre (2001), tensionamos a produção de sujeitos-docentes experts, seguros e livres de toda a dúvida, em processos de formação baseados na eficácia da resposta imediata, pretendendo formar profissionais que devem saber, a todo o momento, a “solução a ser aplicada”, a “resposta a ser dada”. Nesse sentido, como argumenta Castro (2014), a discussão sobre questões como as sexualidades e as relações de gênero ficaria relegada à demarcação e ao diagnóstico de comportamentos moralmente adequados e sadios bem como à definição de categorias desviantes homogêneas para enquadrar os sujeitos - homossexual, gay, lésbica, sapatão, viado, afeminado, bicha, travesti, entre tantas outras.

Nesse sentido, de que modos os temas das sexualidades e relações de gênero circulariam nos currículos de formação inicial? Consideramos relevante apontar três principais possibilidades: a primeira é de que esses temas não estariam diretamente contemplados nos projetos formativos das diferentes disciplinas de licenciatura. Isso construiria uma espécie de “silêncio naturalizado”, como se não fizessem parte das situações experienciadas por docentes e estudantes nas escolas, como se não fossem aspectos sociais, políticos, relevantes para a educação. A segunda é de que esses temas apareceriam nos conteúdos de algumas disciplinas na forma de teorias essencialistas, que instituem modos de expressar as sexualidades e os gêneros naturalmente corretos e adequados às “etapas etárias” (infância, juventude, idade adulta), incentivando a produção de diagnósticos de “precocidade” e/ou de “desvios” do curso de um “desenvolvimento natural e progressivo”. A terceira, a partir do interesse pessoal e político de algumas/alguns docentes formadoras/es que atuam na produção de conhecimento no campo das sexualidades e relações de gênero, com o oferecimento de disciplinas específicas sobre os temas ou a inclusão deles nas propostas de outras disciplinas (didática, estágio, fundamentos etc.) e, ainda, com o fomento de atividades de pesquisa e extensão (Castro, 2014).

As possibilidades elencadas são apenas algumas referências para pensar nas disputas e negociações que envolvem a discussão das questões das relações de gênero e sexualidades na formação docente. Em pesquisas e em nossas experiências com essas discussões na universidade, ouvimos as “denúncias” e os “‘anúncios” de que as temáticas não vêm sendo contempladas em espaços “próprios”3 de discussão, algo que vem sendo debatido em diferentes eventos da área, em conversas com estudantes e docentes de diferentes universidades, com docentes da educação básica, e em práticas de formação continuada, além das conversas tecidas com as estudantes de pedagogia. Trata-se de um indicativo da complexidade das temáticas e da necessidade de mais espaços de problematização, mesmo em outras instâncias externas às universidades, em especial pela visibilidade que a multiplicidade de sujeitos, corpos, práticas, desejos e prazeres vem adquirindo nas relações sociais, nas mídias e nas escolas.

A partir dos argumentos construídos anteriormente, pensamos que há uma rede de saberes-poderes em funcionamento nos currículos universitários de formação inicial docente, que constrói as condições de existência das discussões sobre relações de gênero e sexualidades. Considerando-se, em uma perspectiva foucaultiana, o poder como relacional, que pode emanar de todos os lados, os currículos podem se constituir em lugares de resistência às normatizações, a partir das disputas e negociações que produzem práticas de liberdade. O currículo compõe-se, nesse sentido, de jogos de poder, saber, verdade e significação. Saberes em disputa, em negociação. Discursos que invadem e colonizam os currículos, que os constituem. Currículos que constituem sujeitos pelos discursos que por eles “correm”, que neles “habitam”. Currículos que pretendem constituir sujeitos - docentes e discentes - em diferentes “posições” (sociais e culturais).

AUSÊNCIA DAS RELAÇÕES DE GÊNERO E SEXUALIDADES NA FORMAÇÃO EM PEDAGOGIA

Paradoxalmente, o uso do termo “ausência” para dizer do que apareceu nas respostas das estudantes participantes da pesquisa diz do próprio movimento do campo de estudos e pesquisas em gênero, sexualidade e educação. Hoje, temos um campo de conhecimento constituído e consolidado, ao mesmo tempo em que temos uma insistência em não falar do assunto nos cursos de formação. O debate é intenso no Grupo de Trabalho (GT 23) organizado na Anped4, nos seminários e eventos nacionais e internacionais, nos grupos de pesquisa e estudos nas universidades, nas linhas de pesquisa dos programas de pós-graduação, de maneira que fica cada vez mais aparente que as questões em torno das discussões de gênero, sexualidade e educação vêm ganhando espaço não somente nas universidades, mas em outros espaços que dialogam com a formação. No entanto, também aparecem, a todo momento, ataques discursivos quase como uma “resposta” a esse avanço da discussão, sobretudo no campo da educação, demonstrando que vivemos, hoje, um movimento de avanços e recuos dessas discussões no campo da educação.

Diante desse quadro de disputa em torno do gênero e da sexualidade na formação docente, queríamos saber das estudantes sobre as relações de gênero e sexualidades nos currículos de formação docente das universidades: quais questões aparecem ou não? Se aparecem, de que modos? Que implicações há no aparecimento, desaparecimento, silenciamento? As respostas das estudantes mostram ora o que identificam como uma ausência ou um aparecimento tímido e casual, ora apontam a existência de iniciativas de professoras e professores do curso de pedagogia em buscar relacionar suas disciplinas com as questões aqui debatidas.

Importante destacar que as respostas das estudantes se limitaram a comentários breves, do tipo “não”, “nenhum”, “muito raro”, “não me recordo”. Isso nos diz sobre a dificuldade dessas futuras pedagogas em identificar abordagens das relações de gênero e sexualidades nas disciplinas curriculares e, mais do que isso, certa dificuldade de falar mais sobre essa ausência, de entender os efeitos dessa ausência na formação e nas suas constituições como sujeitos. Não queremos dizer, com isso, que as disciplinas, de forma geral, não são atravessadas pelas questões de gênero e sexualidade. Ao contrário, elas trazem questões de gênero e sexualidade que, no seu conjunto, constituem um currículo de gênero e sexualidade do curso. Podemos pensar que os currículos, exercendo funções de ensinar e aprender, vêm ensinando sobre as relações de gênero e sexualidades e que, muitas vezes, acabam por dificultar o aprender na escola, o aprender de outra forma. Quando dizem que “não se recordam”, ou mesmo que “muito raramente” se lembram das questões de gênero e sexualidade na formação, as estudantes que participaram da pesquisa parecem demonstrar que também tiveram pouca oportunidade de questionar o que já sabiam sobre relações de gênero e sexualidade, antes de entrarem na universidade. Isso porque também é função da universidade colocar sob suspeita nossas formas de saber, ser e estar no mundo, de maneira que o currículo também diz das possibilidades de deseducar o olhar para olhar diferente, desaprender o que já sabiam sobre as relações de gênero e sexualidades, “abrindo os currículos para as ‘subversões performáticas’, para ‘o falar das fronteiras’ e para o ‘conectar com alegria’” (Paraíso, 2016, p. 208).

Partindo-se do pressuposto de que os gêneros são organizadores sociais (Scott, 1995), podemos dizer que todos nós, quando entramos nos cursos de formação docente, já trazemos um sentido de gênero, assim como lidamos com o que significa ser professora ou professor. Nossos entendimentos das relações de gênero com seus atravessamentos com as sexualidades e com as funções de ser professora e professor se encontram nas disciplinas que teriam como objetivo nos “preparar” para a função docente. A questão parece ser esta, ou seja, até que ponto os cursos de formação estão afetando essas visões de gênero e sexualidade que nos educaram antes de entrarmos na graduação? Como eles estão nos formando para o trabalho com a problematização dessas normas de gênero e sexualidade na constituição dos sujeitos nas escolas?

Dialogando com Judith Butler (2006, p. 70), que define gênero como “um mecanismo através do qual se produzem e se naturalizam as noções de masculino e de feminino”, podemos dizer que as respostas das estudantes dizem dessa norma produtora, reguladora e normalizadora dos corpos que marca nossa sociedade e nossos currículos. O “não lembrar” e o “não ver tratado” também dizem de um entendimento do que é gênero e sexualidade. Talvez não tenham reconhecido o trabalho com gênero e sexualidade porque não foi um trabalho anunciado, nomeado como tal, que tenha trazido discussões que fogem da norma, do comum, do “natural”. Elas tiveram disciplinas que mantiveram a norma, que ensinaram formas de se colocar, de ser e de entender o que é feminino e masculino, enfim, normas relativas à construção do gênero como algo binário, as quais vão regular suas condutas como professoras nas escolas e que vão agir constituindo meninas e meninos, alunas e alunos em processo de construção nas salas de aula. A universidade e a escola se encontram nessa formação, visto que são espaços sociais em que as normas de gênero estão presentes, ensinando a essas estudantes o que é certo e o que é errado, o normal e o anormal, mesmo que não tratem diretamente disso.

Ao tecermos essa argumentação, destacamos que todas as disciplinas educam e formam para questões de gênero e sexualidade, tendo em vista que essas são categorias historicamente situadas, social e culturalmente constituídas em diferentes campos de saber e relações de poder. Assim, como acontece nas disciplinas que compõem o currículo escolar, mesmo que essas questões não se tornem objeto de problematização de forma direta e sistemática, elas circulam pelos currículos, a partir das experiências e das curiosidades dos sujeitos, de seus saberes e práticas socioculturais.

Diante do cenário de ausência ou da pouca vinculação da abordagem das relações de gênero e sexualidades na formação em pedagogia, deparamo-nos com o questionamento do papel da formação acadêmica de profissionais da educação que irão lidar com as diversidades das pessoas em seu trabalho e não se permitem pensar sobre essas diversidades, ou não lhes é proporcionado esse espaço. Essa questão se coloca ao pensarmos que são ofertadas disciplinas na academia com o objetivo de possibilitar o debate acerca de concepções engessadas, distorcidas e padronizadas no que tange aos gêneros e às sexualidades. Todavia, percebemos que as disciplinas que apresentam propostas de discussão sobre as relações de gênero e sexualidades não são obrigatórias5, o que inviabiliza uma formação mais abrangente, como se tais conhecimentos fossem menos importantes que outros colocados como obrigatórios. Há implicações nesse processo seletivo que se organiza por operações de poder que incluem, excluem, classificam, hierarquizam, subordinam, valorizam, desvalorizam, visibilizam, invisibilizam, silenciam, vozeiam, privilegiam certos conhecimentos, destacando, entre múltiplas possibilidades, certas subjetividades como ideais (Silva, 2007). Mais do que aparecer, ou não, como fato ou tema de discussão, as relações de gênero e sexualidades constituem currículos, conhecimentos, saberes, sujeitos.

As respostas das estudantes nos aproximam de uma discussão que não é nova no campo do currículo, aquela em torno de uma “neutralidade”, que vez ou outra insiste em aparecer, como é o caso atual da BNCC6, que, em nome de um combate à “ideologia de gênero7”, recupera essa ideia de um currículo neutro, além do argumento de que gênero e sexualidade sejam questões do campo do privado. Michael Apple (1987, 1988) e outros autores brasileiros, como Thomaz Tadeu da Silva (1995), já demonstraram que os currículos não são neutros, mas diferente disso, estão atrelados à história dos conflitos de gênero, raça, classe, religião etc. Chamar a atenção para a existência desses conflitos nos currículos é uma forma de defender a necessidade de construção de currículos que contemplem essas questões. Para Thomaz Tadeu da Silva (1995), por exemplo, o currículo é masculino e, portanto, machista, o que contribui para reforçar e “reproduzir o domínio masculino sobre as mulheres” (Silva, 1995, p. 4). Podemos pensar também que o currículo é lgbti+fóbico8, uma vez que não discute e invisibiliza esses sujeitos, seus corpos, desejos, identidades. Essa análise amplifica as respostas das estudantes, que são mulheres, com diferentes identidades de gênero e sexuais, em um curso (pedagogia) majoritariamente feminino, que mantém uma lógica de não colocar em discussão as questões de gênero e sexualidade, como se elas não determinassem suas posturas como professoras nas escolas.

O silenciamento e a negação das discussões sobre as relações de gênero e sexualidades dialogam com dados de outra pesquisa (Castro, 2014), em que ouvimos das estudantes de pedagogia que são raras as oportunidades dessa abordagem, sendo relatada a existência de uma ou duas disciplinas opcionais, as quais não aparecem na grade curricular presente na proposta pedagógica do curso de pedagogia da instituição. Outros relatos apontaram que algumas questões sobre “a sexualidade infantil” são comentadas na disciplina de psicologia da educação. Foram frequentes também os relatos de situações vivenciadas nos estágios e que não encontram espaços de problematização no que se refere a essas questões, como, por exemplo, professoras proibindo meninos de se aproximarem de bonecas; crianças “se tocando” e sendo conduzidas ao castigo na direção da escola; crianças que fazem perguntas “cabeludas” propositalmente porque sabem que a professora fica constrangida em tentar responder; professoras temerosas em relação aos familiares porque os meninos têm interesse por maquiagem e por dança.

Tais questões, que estão nas escolas, que surgem nos debates em sala de aula, demonstram que não podemos mais abandonar essas discussões sob o risco de continuarmos construindo o que é “anormal” e “abjeto”, em benefício da construção do normal. Para Judith Butler (2001), o abjeto diz dos corpos que escapam das normas valorizadas, corpos que são considerados errados, inadequados, estranhos e que, embora nos chamem a atenção, como é relatado por professoras e estudantes em formação, são deixados à margem nos currículos, não sendo acionados para problematizarmos o currículo e tampouco para colocar sob suspeita nossas formas de pensar, ser e estar nas escolas. No entanto, como nos ensina Guacira Lopes Louro (2004), esses mesmos corpos inadequados são necessários para o currículo e para a pedagogia, na medida em que são tomados para circunscrever as/os meninas/os ditas/os “normais”, aquelas/es que importam. Perguntar sobre a existência dessas discussões na formação e trazer esse debate para este artigo é uma forma de defender a urgente necessidade dessa discussão, se quisermos construir uma sociedade mais democrática e uma escola voltada para o trabalho com a problematização das nossas formas de ver e saber.

Reiteramos nosso argumento de que essa abordagem não precisa ser, necessariamente, realizada em disciplinas específicas que se destinam a tais campos de conhecimento, já que relações de gênero e sexualidades atravessam os conteúdos discutidos em muitas das disciplinas curriculares, como estágios, metodologias do ensino, psicologia, filosofia, sociologia e história da educação. Assim, reconhecemos que a articulação com gênero e com sexualidade parte de docentes que se dedicam a essas temáticas ou que, de algum modo, sentem-se ligadas/os a elas, seja por entenderem sua relevância, seja por terem tido um contato com pesquisas ou estudos específicos. A discussão mais personificada em determinada/o professora/or pode fragilizar uma formação que se abriria para compreender gêneros e sexualidades como elementos das subjetividades dos sujeitos, que impactam a vida social e constituem práticas de exclusão e violência dentro e fora das escolas. Argumentamos, portanto, que essas abordagens sejam assumidas como incumbência institucional, fazendo-se presentes nos componentes curriculares obrigatórios e na proposta pedagógica do curso. Destacamos também uma questão que carece ainda de maior debate nas instâncias acadêmicas: se a discussão sobre a inserção de temáticas ligadas aos gêneros e sexualidades é algo demandado em documentos e políticas, como os Parâmetros Curriculares Nacionais, Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil, Programa Brasil sem Homofobia, Políticas de direitos das mulheres e da população LGBTTI, Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica, talvez isso possa ser mais discutido no âmbito da formação inicial de professoras e professores.

Estamos defendendo o currículo como possibilidades de aprender, entendendo esse “aprender”, no caso das relações de gênero e sexualidades, como vinculado à necessidade de desaprender, uma vez que somos construídas/os em diferentes espaços-tempos generificados.

Um currículo é um território de ensinar e de aprender por excelência. Ensinar é transmitir, informar, ofertar, apresentar, expor e explicar conhecimentos e saberes pensados, pensáveis e aceitos. Aprender é abrir-se e refazer os corpos, agenciar atos criadores, refazer a vida, encontrar a diferença de cada um e seguir um caminho que ainda não foi percorrido. Um currículo é um artefato que ensina porque uma de suas funções é transmitir conteúdos, saberes, conhecimentos, conceitos, habilidades, competências, culturas, valores, condutas, modos de ser, estar e viver já pensados e aceitos. (Paraíso, 2016, p. 209-210, grifos do original)

Tomando as respostas de negação e de “falta de lembrança” das estudantes a respeito das discussões acerca da temática de gênero e sexualidade na pedagogia, sob inspiração da citação acima, podemos dizer que o currículo do curso se interessa mais por ensinar do que aprender, de maneira que o curso se torna mais voltado ao conteúdo e menos ao exercício da problematização daquilo que é ensinado. Um currículo que tem efeitos sobre os sujeitos, tanto as futuras professoras quanto suas/seus futuras/os alunas e alunos nas escolas.

A ABORDAGEM DAS RELAÇÕES DE GÊNERO E SEXUALIDADES NA FORMAÇÃO EM PEDAGOGIA

Se na parte anterior nos debruçamos sobre as ausências que apareceram nas respostas, nesta parte vamos nos dedicar a analisar os questionários em que as estudantes afirmam que tiveram algumas abordagens ao longo do curso, mantendo o aspecto paradoxal que o campo empírico nos mostrou como marca dessa formação. Embora tenhamos notado uma ênfase das estudantes em afirmar que relações de gênero e sexualidades estariam “ausentes” ou sem abordagem relevante, ou seja, não conseguem identificar, nas disciplinas cursadas, um trabalho da/o professora/or sobre essas questões, as respostas aos questionários também nos mostraram iniciativas dessa abordagem. Em 10 questionários (de um total de 26), observamos indicações de que essa discussão foi realizada, em disciplinas diversas, ao longo do curso (relevante dizer que as respondentes se encontram nos períodos finais da graduação), como “em metodologia de história”, “em sociologia”, “em metodologia de geografia”,em história da educação”. A maioria das respostas foi rasa e limitou-se a essas indicações, a nomes de dois ou três docentes que incorporaram esse debate em suas aulas ou a situações específicas, como “em debate em sala de aula” ou “através de imagem trazida por aluno”.

Essas respostas nos apontam para duas entradas das discussões, que são importantes para pensarmos como esse debate chega às salas de aula e como se organizam. Uma entrada é pela ação das professoras responsáveis pelas disciplinas nomeadas, ou seja, um debate organizado em meio à aula, como constituinte da aula. A outra entrada é pelas estudantes, que “trazem imagens” ou ampliam o debate na sala de aula a partir de outra temática. Dois caminhos que são importantes para pensar como aparecem ou não essas discussões, visto que as dificuldades de falar de gênero e sexualidade no campo da educação dizem de uma dificuldade histórica: não faziam parte dos currículos, são entendidos como do campo do privado, não tinham professoras e professores que se sentiam preparadas/os para tal, enfim, questões que não são do hoje, mas dizem de um processo histórico de afastamento. O movimento de rompimento com essas dificuldades foi sendo construído também em processos históricos que dizem da abertura política no Brasil, da organização dos grupos LGBTI+, sobretudo após o advento do HIV/aids e da necessidade de se organizarem a partir do desafio do combate à doença e seus efeitos colaterais, como o preconceito e a discriminação, da presença de pessoas LGBTI+ nas universidades, em grupos de pesquisa, em programas de pós-graduação em educação, demonstrando que as questões de pesquisa se ligam às questões da vida, dos corpos, dos desejos e das identidades.

As respostas anunciam a universidade como instância que vem se dedicando ao debate no campo dos estudos de gênero, dos estudos feministas, dos estudos de sexualidades, em diversas áreas, especialmente nas ciências humanas, sociais e da saúde. Um debate que se expressa na atuação de pesquisadoras e pesquisadores implicadas/os com temas que dizem das relações de gênero e sexualidades, incorporando-os nas suas atividades de ensino, de pesquisa e de extensão, na graduação e na pós-graduação. No caso da faculdade de educação, instância em que a pesquisa foi realizada, há docentes que atuam nessas questões e as estudantes conseguiram vincular o trabalho delas/es em suas respectivas disciplinas com uma abordagem de gênero e sexualidade. Como argumentamos, nas últimas décadas, ocorreu um investimento nesse debate no campo da educação, incluindo práticas de formação docente inicial e continuada. Desde documentos como os Parâmetros Curriculares Nacionais às Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica, sexualidade e gênero são apontados como temas abrangentes e contemporâneos, que devem ser articulados aos componentes curriculares, uma vez que afetam a vida social global, regional e local. A crescente visibilidade dos direitos e das experiências de mulheres e de pessoas LGBTI+ vem produzindo demandas para as escolas e para os processos de formação docente, materializando-se em políticas e diretrizes que foram elaboradas por instâncias governamentais, como a Secretaria de Políticas para as Mulheres, de Direitos Humanos, passando por programas como o Brasil sem Homofobia e Gênero e Diversidade na Escola.

Hoje, o momento é outro. Essas políticas foram sendo desmobilizadas e mesmo atacadas. Talvez por isso as respostas das estudantes tenham sido tímidas, talvez elas tenham incorporado as dificuldades de falar das questões de gênero e sexualidade no campo da educação em um momento de ofensiva reacionária que estamos atravessando atualmente e que não é exclusividade no Brasil, mas diz de um investimento transnacional (Junqueira, 2018), de cunho religioso por meio do pânico moral que a “ideologia de gênero” é capaz de construir. Mas, ao mesmo tempo, esses ataques estão em uma relação de forças e de poder, de maneira que eles também têm organizado uma ação de professoras e professores que não reconhecem a “ideologia de gênero” como um conceito do campo de gênero, sexualidade e educação, reforçando que trabalhamos com relações de gênero e sexualidade nos processos de constituição dos sujeitos. Um movimento de professoras e professores que percebem que essas questões atuais acionam um contexto político e social importante de serem discutidos nas formações. Não é por acaso que as respostas das estudantes apontam para as disciplinas como “em metodologia de história”, “em sociologia”, “em metodologia de geografia”, “em história da educação”, ou seja, disciplinas que dizem de um contexto histórico. A entrada das discussões de gênero e sexualidade na educação reivindicava, desde o seu início, uma revisão histórica do conceito (Scott, 1995) e uma defesa da necessidade de inclusão dos sujeitos não somente na história, mas em uma outra forma de fazer história. Como nos lembra Joan Scott (1995), não basta incluir as mulheres na história, há necessidade de as mulheres escreverem a história a partir de suas construções de gênero. Quando as estudantes reconhecem que essas disciplinas discutiram as relações de gênero e sexualidades, elas estão nos dizendo que essas professoras e professores das disciplinas incorporaram o debate atual de disputa e se propuseram a pensar essas questões no cotidiano da sala de aula, visto que são disciplinas que têm a sala de aula como foco de ação.

Mas as respostas também dizem da abordagem a partir do que as estudantes trazem para a sala de aula, trazendo a vida cotidiana para o debate na formação. Considerando-se o quadro de disputa discursiva em torno das relações de gênero e sexualidades que apontamos, podemos pensar que trazer as discussões para sala de aula é um processo de resistência (Foucault, 1999). Há um currículo que surge das professoras e dos professores, que diz dos seus conteúdos, que está nos programas de discussão, que está nos textos escolhidos, mas também há um currículo que surge das estudantes, que liga a vida, que está nos seus cotidianos e relações pessoais, que atravessa seus conflitos, que aprende e discute em outros espaços sociais em que circula, como família, igrejas, clubes etc. Currículo que resiste, como uma força que é capaz de inventar outras discussões, que mobiliza as estudantes, fazendo-as propor outras vias de discussão, fazendo-as dar outra direção para as aulas e para aquilo que as disciplinas propõem. Foucault (1999) nos mostra como a história da sexualidade diz da história dos discursos que somos capazes de produzir, atravessados por saber-poder, por forças e estratégias que vão constituindo a sexualidade como dispositivo. O viés da resistência como uma estratégia nessas relações de saber-poder pode ser entendido como uma reação ao poder. É esse o entendimento de resistência que estamos acionando para olhar para as respostas das estudantes, como uma reação ao poder, como algo capaz de inventar o possível. Resistência que só é possível em meio à ideia de liberdade.

Assim, podemos pensar que, quando as estudantes trazem a discussão para a sala de aula, estão associando esses dois conceitos, ou seja, estão resistindo ao quadro atual em que gênero e sexualidade encontram dificuldades de discussão, mas também estão nos dizendo que necessitam de liberdade, que querem trazer para a universidade um debate que incomoda, que sentem necessidade de ampliar as discussões e seus entendimentos do que vivenciaram ou do que as constituiu, que querem desabafar, compartilhar as inquietações. Mais do que isso, parece que estão reconhecendo a universidade e a formação como espaços de acolhimento, como locais que têm como função a contestação do senso comum, como momentos de formação que passam por desconstruir, deseducar, desaprender e colocar sob suspeita suas formas de pensar, agir e ser no mundo. Dizer que se lembram de que a discussão surgiu na aula, tanto advinda da ação das professoras e professores como das estudantes, diz de algo que foi capaz de marcá-las nos seus processos de formação. Elas não estão dizendo que foram elas que trouxeram as discussões, mas que, de alguma maneira, participaram desses debates. Mesmo não sendo as protagonistas, elas aprenderam com aquilo que aconteceu na sala de aula, como espaço do debate, da inquietação, do convite a pensar diferente. De alguma maneira, aprenderam o que é o espaço da sala de aula, como lugar do debate, da liberdade e da proposição do novo, do possível. Nossa aposta é que esses debates tenham afetado suas atuações nas escolas, como futuras professoras.

A vinculação das relações de gênero e sexualidades à atuação das pedagogas nas escolas de educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental pode ser entendida como uma abordagem mais abrangente no que diz respeito ao conhecimento dos processos de constituição das crianças e jovens. Mais do que seres passivos diante de influências de artefatos como os programas de televisão e a internet, crianças e jovens estão ativamente envolvidas/os em processos de subjetivação, recusando, incorporando ou negociando com modelos socioculturais circulantes. Desde a infância, somos partícipes de processos pedagógicos que investem deliberadamente em modelos de feminilidade e masculinidade que são, em geral, limitados às experiências previamente delimitadas para homens e mulheres. Esses processos baseiam-se na vigilância dos corpos e na punição de atitudes que fogem ao desejado. Assim, iniciativas de discussão dessas temáticas podem conduzir as estudantes a uma problematização dos discursos que organizam as relações sociais e produzem diferenças como enquadramentos e hierarquias.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Podemos concluir que analisamos o que as estudantes são capazes de lembrar quando questionamos sobre o trabalho nas relações de gênero e sexualidade no curso de licenciatura em pedagogia. Segundo Foucault (1999), somos sujeitos de experiência, ou seja, somos capazes de construir discursos sobre nós mesmos e, ao fazermos isso, acionamos alguns fatos que nos marcaram, nos dessubjetivaram/subjetivaram, sempre na articulação entre objetivação e subjetivação. As experiências só existem a partir da relação com a memória e a narrativa. Essas estudantes serão capazes de falar como se constituíram como professoras e, para isso, construirão suas lembranças da formação, as marcas da formação. De forma geral, é essa relação que era provocada pela pesquisa, quando perguntávamos sobre o que eram capazes de lembrar no que diz respeito à formação docente. Ao responderem às perguntas do questionário, iam estabelecendo suas lembranças e seus esquecimentos sobre a trajetória de formação, de maneira que iam respondendo, para elas mesmas e para nós, como estavam saindo da universidade, que professoras eram naquele momento, como essa constituição do sujeito professora se encontraria com as escolas e com outras meninas e meninos. Daí o paradoxo da lembrança, em que umas se lembravam do trabalho com gênero e sexualidade e eram capazes de se lembrar, inclusive, das disciplinas em que tal temática era discutida e outras estudantes que não se lembravam dessas situações. Podemos pensar que isso ocorre em função de a discussão estar dispersa entre as disciplinas, sendo entendida como uma temática, e não como um campo de conhecimento, que mereceria uma disciplina específica no currículo do curso. Talvez as lembranças e as marcas nas estudantes fossem mais fortes, caso tivessem uma disciplina que assumisse como foco o campo das relações de gênero, sexualidade e educação.

Outro ponto importante que a pesquisa nos mostrou foi a relação do currículo que o curso propõe e o cotidiano das estudantes, suas relações para além da sala de aula. O currículo proposto foi sendo alterado na medida em que as estudantes dialogavam com o que era trazido para a sala de aula pelas professoras e professores, pelo menos no que diz respeito às relações de gênero e sexualidade. Gênero e sexualidade são um campo que convida a nos colocar, a pensar nas nossas relações interpessoais, nossos vínculos afetivos-amorosos, nossa articulação com a cultura e a história, enfim, nos convoca à problematização do que somos, como nos tornamos o que somos. Um convite que Foucault (1999) explorou para dizer que problematizar o que somos não significa ficar no que somos, mas pensar em outras formas de ser e estar no mundo. No nosso entendimento, essa é uma proposta importante no campo da educação e da formação, visto que acreditamos ser esse o trabalho que deve ser realizado desde a educação básica, ou seja, os currículos, os conteúdos e as disciplinas que organizam as escolas deveriam investir na problematização do que é o conhecimento, do que é a escola, do que é o processo de ensino-aprendizagem, do que é a sala de aula, para pensar outras formas de pensar a partir desse trabalho de colocar sob suspeita nossas formas de pensar e de se organizar. As estudantes traziam, nas suas lembranças, aulas em que elas apresentavam situações para as discussões, quando a questão era gênero e sexualidade, em um processo de liberdade que influenciava nos caminhos do currículo.

Mostramos também como a discussão da formação docente e do currículo no campo das relações de gênero e sexualidade não diz exclusivamente sobre a formação das professoras, mas de um processo mais amplo de formação dos sujeitos. Nosso entendimento de gênero e sexualidade e nossa defesa desse trabalho na formação docente consistem um investimento em outro tipo de sujeito, aquele que consegue articular os conhecimentos na formação e na escola com suas formas de ser, pensar e agir. A educação adquire, assim, um novo sentido que vai para além daquilo que é tipo como conteúdo, mas uma educação vinculada nos processos de subjetivação, na constituição dos sujeitos que são capazes de desconstruir relações tóxicas de gênero e sexualidade para construir outros tipos de envolvimento e de entendimento de si e dos outros.

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1 Pesquisa intitulada “Cultura visual, formação docente, currículo e educação”, financiada pelo CNPq e vinculada às ações do grupo de estudos e pesquisas que coordenamos.

2 O sentido de atravessamento diz respeito a passar (entre/por/um pelo outro), cruzar-se, penetrar, perfurar. Afetar-se mutuamente. Atravessamento que transforma: ao passar, carrega um pouco, deixa um pouco, agita, mistura, desorganiza, desfaz barreiras.

3 Por “espaços próprios” de discussão entendemos os espaços-tempos constituídos com o objetivo de pesquisar, estudar, debater, intercambiar experiências com as temáticas que envolvem relações de gênero e sexualidades, em especial nas disciplinas dos cursos de licenciatura, mas também nos projetos de extensão, mostras de cinema, peças de teatro, entre outros.

4 O GT 23 - Gênero, Sexualidade e Educação -, da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped), foi construído em 2003, durante a 26ª Reunião Anual, a partir da constatação de que a discussão estava dispersa nos outros GT, além da demonstração de que já tínhamos, naquela ocasião, um grupo considerável de pesquisadoras e pesquisadores nos programas de pós-graduação em Educação, desenvolvendo suas pesquisas.

5 Aqui tomamos como referência a universidade em que foi realizada a pesquisa.

6 A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é um documento oficial que pretende instalar um currículo comum para todo Brasil definindo, assim, o que deve ser ensinado como conteúdos nas escolas brasileiras. Um documento aprovado e homologado em dezembro de 2017. Nesse documento houve uma “caça” aos temas de gênero e sexualidade, que foram retirados do documento sob o argumento que eram questões do campo do privado, cabendo as famílias esse processo educativo.

7Ideologia de gênero é um termo que foi incorporado ao discurso conservador, religioso fundamentalista, que nega o gênero, a sexualidade e o sexo como construções sociais, históricas e culturais.

8 Denominamos de lgbti+fobia uma junção de termos que buscam descrever e analisar processos sociais de expressão do preconceito, práticas discriminatórias e múltiplas violências dirigidas a pessoas LGBTI+ (lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, intersexuais e outras identidades sexuais e de gênero em desacordo com normas socialmente impostas).

Financiamento: O estudo não recebeu financiamento.

Recebido: 04 de Maio de 2020; Aceito: 28 de Setembro de 2020

Roney Polato de Castro é doutor em educação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Professor da mesma instituição. E-mail: roneypolato@gmail.com

Anderson Ferrari é doutor em educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). E-mail: aferrari13@globo.com

Conflitos de interesse: Os autores declaram que não possuem nenhum interesse comercial ou associativo que represente conflito de interesses em relação ao manuscrito.

Contribuições dos autores: Administração do projeto, Análise Formal, Conceituação, Curadoria de Dados, Escrita - Primeira Redação, Escrita - Revisão e Edição, Investigação, Metodologia: Castro, R. P.; Ferrari, A.

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