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Revista Brasileira de Educação

versão impressa ISSN 1413-2478versão On-line ISSN 1809-449X

Rev. Bras. Educ. vol.26  Rio de Janeiro  2021  Epub 25-Jul-2021

https://doi.org/10.1590/s1413-24782021260050 

Artigos

Cartografia de redes de conversação entre os profissionais da educação básica e superior nos estágios e práticas de formação docente

CARTOGRAPHY OF NETWORKS OF CONVERSATION BETWEEN BASIC AND HIGHER EDUCATION PROFESSIONALS IN INTERNSHIPS AND TEACHING TRAINING PRACTICES

CARTAGRAFÍA DE REDES DE CONVERSACIÓN ENTRE PROFESIONALES DE EDUCACIÓN BÁSICA Y SUPERIOR EN PASANTÍAS Y PRÁCTICAS DOCENTES

Rejane Conceição Silveira da Silva I  
http://orcid.org/0000-0003-3266-957X

Débora Pereira Laurino II  
http://orcid.org/0000-0002-3360-0374

ISecretaria da Educação do Estado do Rio Grande do Sul, Rio Grande, RS, Brasil.

IIUniversidade Federal do Rio Grande, Rio Grande, RS, Brasil.


RESUMO

O presente artigo discute e problematiza o espaço dos estágios e práticas dos cursos de formação docente sob o olhar dos professores orientadores da universidade e dos docentes que acolhem estagiários em escolas públicas. O estudo tem por base teórica e epistemológica a biologia do conhecer, proposta por Humberto Maturana e Francisco Varela, e utiliza a cartografia como método para mapear os territórios. Para compor a cartografia, valemo-nos das narrativas produzidas acerca de nossas experiências e dos dados resultantes das conversas realizadas com os professores. Na produção e análise desses elementos, percebemos que os estágios e o campo das práticas, por meio da constituição de redes de conversação, podem oportunizar experiências, reflexões e aprendizagens para todos os envolvidos. Além disso, são vias de acesso importantes para estabelecermos uma convivência coinspirativa capaz de contribuir para a melhoria da formação e do desenvolvimento da profissão docente.

PALAVRAS-CHAVE: cartografia; educação básica e superior; estágios e práticas docentes

ABSTRACT

The present article discusses and addresses issues pertaining to the scope of internships and practices of teacher training courses under the watch of the university's supervising professors and mentors who welcome interns in public schools. The study is based on the theoretical and epistemological basis of the Biology of Knowing, proposed by Humberto Maturana and Francisco Varela, and uses cartography as a method to map territories. To compose the cartography, we started with narratives produced about our experiences, together with the data resulting from conversations with professors. From the production and analysis of these elements, internships and the field of practices, through the constitution of conversation networks, were seen as providing experiences, reflections, and learning for all those involved. In addition, they are important access routes to establish an inspiration of coexistence capable of contributing to the improvement of training and the development of the teaching profession.

KEYWORDS: cartography; basic and higher education; teaching internships and practices

RESUMEN

El present artículo discute y problematiza el espacio de pasantías y prácticas de cursos de capacitación docente bajo los ojos de los profesores supervisores de la universidad y los mentores que dan la bienvenida a pasantes en escuelas públicas. El estudio se basa en la base teórica y epistemológica de la Biología del Conocimiento, propuesta por Humberto Maturana y Francisco Varela, y utiliza la cartografía como método para mapear los territorios. Para componer la cartografía, comenzamos con narraciones producidas sobre nuestras experiencias, junto con los datos resultantes de las conversaciones con los maestros. A partir de la producción y el análisis de estos elementos, nos dimos cuenta de que las pasantías y el campo de prácticas, a través de la constitución de redes de conversación, pueden proporcionar experiencias, reflexiones y aprendizaje para todos. Además, son importantes vías de acceso para establecer una convivencia inspiradora capaz de contribuir a la mejora de la formación y al desarrollo de la profesión docente.

PALABRAS CLAVE: cartografía; educación básica y superior; pasantías y prácticas docentes

INTRODUÇÃO

As rápidas transformações ocorridas nos últimos anos na sociedade incidiram fortemente nas instituições educacionais, exigindo de seus profissionais saberes e responsabilidades mais amplas para enfrentar as novas demandas da profissão docente. Veiga (2012) considera a docência uma atividade profissional complexa, pois, para o seu exercício, requer saberes diversificados que contemplam elementos teóricos e experienciais. “Isso significa reconhecer que os saberes que dão sustentação à docência exigem formação profissional numa perspectiva teórica e prática” (Veiga, 2012, p. 20). Considerando a importância da articulação entre teoria e prática, nos cursos de formação docente entendemos que os estágios e as práticas pedagógicas podem propiciar situações experienciais significativas ao aproximar o licenciando do mundo e da cultura da profissão o que permite ou possibilita desenvolver competências profissionais.

Segundo Pimenta e Lima (2012, p. 61): “O estágio como campo de conhecimento e eixo curricular central nos cursos de formação de professores possibilita que sejam trabalhados aspectos indispensáveis à construção da identidade, dos saberes e das posturas específicas ao exercício profissional docente”.

Os estágios e as práticas pedagógicas constituem momentos importantes na formação dos professores, pois propiciam aos futuros docentes a oportunidade de se inserirem no campo profissional observando a prática de profissionais mais experientes e de refletirem, articulando a teoria estudada com as situações cotidianas da profissão. Desse modo, o estágio, como afirmam Pimenta e Lima (2006), não deve ser percebido como um apêndice do currículo, mas como um instrumento pedagógico que contribui para a superação da dicotomia teoria-prática.

Além disso, o estágio constitui um espaço de aprendizagem em que participam os licenciandos e os profissionais das Instituições de Educação Superior (IES) e das Instituições de Educação Básica (IEB) que interagem com esses estudantes. É um lugar legalizado por protocolos interinstitucionais, favorável para estabelecermos redes de conversação recorrentes entre os professores que atuam nesses dois níveis de ensino. A construção de redes de conversação entre os profissionais da universidade e da escola, na aproximação de seus espaços de convivência, pode promover experiências significativas para a formação teórica e prática dos licenciandos, bem como enriquecer ambas as instituições mediante o contato mútuo. Para Maturana (2001), redes de conversação são distintos domínios de ações dos seres humanos, que, por sua vez, vivem e se desenvolvem nesse pertencimento.

Entendermos o estágio como oportunidade de diálogo, de construção e reflexão, e a troca de conhecimentos acerca da docência permite que não só estagiários, mas também professores orientadores das IES e professores das IEB, repensem a profissão e ressignifiquem sua prática pedagógica.

Diante dessas considerações, questionamos: Como o estágio é percebido pelos docentes orientadores nas IES e por aqueles que acolhem os licenciandos na escola? Quais são suas compreensões? Quais são os olhares sobre esse momento que articula a formação com o campo profissional? Tais indagações instigaram o desejo da investigação e impulsionaram o desenvolvimento desta pesquisa.

Na direção dessas preocupações, o texto que desenvolvemos decorre das trocas, discussões e dos debates de que temos participado no âmbito de nossas vivências no contexto das práticas e estágios da formação de professores e do estudo de doutorado (Silva, 2017). Assim, neste artigo, o objetivo é discutir e problematizar o espaço das práticas e estágios dos cursos de formação de professores, sob o olhar dos professores orientadores de estágios da universidade e dos docentes que acolhem estagiários nas escolas públicas. Além disso, também refletimos sobre as implicações das relações entre os profissionais da educação superior e básica, nesse momento formativo, para a profissionalização da docência.

Utilizamos a cartografia como método de pesquisa fundamentado nas ideias de Gilles Deleuze e Félix Guattari (2011). A cartografia é um modo de conhecer a realidade, de acompanhar processos de produção e de possibilitar o acompanhamento de movimentos, de modo que o observador está sempre compreendido no campo de observação. Como ressalta Rolnik (2014), a cartografia tem como eixo de sustentação do trabalho metodológico a invenção e a implicação do pesquisador, uma vez que ela se baseia no pressuposto de que o conhecimento é processual e inseparável do próprio movimento da vida e dos afetos que a acompanham.

No presente trabalho, colocamo-nos na posição de observadores envolvidos e exploramos o campo investigativo percorrendo as múltiplas alternativas que atravessam nossas experiências, construindo distintas possibilidades sem representar o objeto e separá-lo do sujeito.

CAMINHO INVESTIGATIVO

Ao pensarmos nos estágios e no desenvolvimento das práticas pedagógicas dos cursos de formação de professores como espaços possíveis para o conversar entre os profissionais da educação básica e superior sobre a docência, evocamos, primeiramente, lembranças de nossas experiências nesse contexto. Emergiram aí nossas vivências como estudantes de graduação em cursos de licenciatura, como docentes na formação de professores, em especial no contexto dos estágios e na educação básica acolhendo estagiários do curso de matemática. Assim, vimo-nos inseridas nas conversações sobre a formação docente por nossas lembranças, ações na docência, pesquisas e leituras. Para Maturana (2001), nós, seres humanos, existimos enquanto tais na linguagem, ou melhor, nas conversações:

Chamo de conversação nossa operação nesse fluxo entrelaçado de coordenações consensuais de linguajar e emocionar e chamo de conversações as diferentes redes de coordenações entrelaçadas e consensuais de linguajar e emocionar que geramos ao vivermos juntos como seres humanos. (Maturana, 2001, p. 131)

Para darmos voz à memória e às reflexões dessas experiências, construímos narrativas pelas quais apresentamos nossos entendimentos e percepções sobre o contexto dos estágios e da interação dos cursos de formação com o campo profissional. Tais narrativas estão imbricadas no texto, no conversar com os professores da educação básica e superior, de forma que construam um plano comum, um território imanente que envolve a ampliação e o desenvolvimento das subjetividades pela conexão com singularidades.

Na busca pelas singularidades, conversamos com sete professoras da educação básica sobre suas percepções em relação às práticas e aos estágios supervisionados. Escolhemos essas docentes por recorrentemente acolherem licenciandos para a realização de observações, entrevistas, atividades práticas e estágios supervisionados; por serem de diferentes áreas; por mostrarem-se receptivas à conversa, desde o primeiro contato; e por serem profissionais que atuam em um instituto de educação do estado do Rio Grande do Sul, na cidade de Rio Grande, no qual uma das autoras desenvolve sua prática docente há alguns anos. Esse instituto estadual localiza-se na zona urbana da cidade e atende à educação infantil, ensino fundamental, ensino médio e curso normal. Desse grupo, três professoras fazem parte da equipe diretiva da escola (diretor, vice-diretor e coordenador pedagógico) e quatro atuam no ensino fundamental e/ou médio, nas diferentes áreas do conhecimento: Linguagens, Matemática, Ciências da Natureza e Ciências Humanas.

Para balizar a conversa com essas colaboradoras da pesquisa, elaboramos um roteiro com as seguintes questões: Como você percebe a relação entre a universidade e a escola no campo das práticas e estágios curriculares? Como acontece a conversa no espaço dos estágios entre você, o licenciando e o professor orientador da universidade? Como a integração entre a universidade e a escola no espaço das práticas e estágios pode ser potencializada?

Após a leitura das discursividades desses profissionais, sentimos a necessidade de também conversar com professores responsáveis pelas práticas e pelos estágios dos licenciandos na universidade. A intenção era problematizar essas atividades e discutir as relações do ensino superior e básico nesse espaço. Para isso, dialogamos com sete professoras orientadoras de estágios atuantes em diferentes licenciaturas: química, letras, matemática (duas professoras), geografia, biologia e pedagogia de uma IES pública do Rio Grande do Sul, na qual uma das autoras exerce a docência. A escolha dessas profissionais levou em conta terem se mostrado receptivas a participarem da investigação e atuarem nos estágios de diferentes áreas do conhecimento. As questões que balizaram esse diálogo foram: Como são organizados as práticas e os estágios nos cursos de licenciatura que você atua? Como você percebe a relação entre a universidade e a escola no campo das práticas de estágios curriculares? Como pode ser potencializada a integração entre a universidade e a escola? Todas as professoras colaboradoras assinaram um termo livre e esclarecido que contém o objetivo do trabalho e o compromisso em relação à confidencialidade de sua identidade.

Assim, percorremos esse território com a atenção cartográfica sugerida por Kastrup (2012, p. 39): “Concentração sem focalização, abertura, configurando uma atitude que prepara para o acolhimento do inesperado”, sentindo emoções e nos deixando envolver por sensações, gestos, palavras orais e escritas que nos afetam e despertam nosso interesse. A cartografia propõe conhecer e acompanhar processos e sua constituição, o que torna necessário um mergulho das cartógrafas no plano da experiência, percorrendo múltiplos caminhos em rede que, em algum momento, se conectam. Cartografar é, primordialmente, estar implicado no próprio movimento do pesquisar como algo em aberto, em fluxo, ao multiplicar possibilidades de entrada e de saída. É, sobretudo, a narrativa da habitação de um território que, como pesquisador/cartógrafo, permeamos durante o processo investigativo que vamos compondo por meio de nossas relações constitutivas de imersão.

Para a escrita que seguimos, utilizamos o material produzido, composto de nossas narrativas e das conversas realizadas com as professoras da educação básica e superior. Partilharmos as percepções dessas experiências criando dois personagens que se diferenciam pelos domínios cognitivos e experienciais em que estão envolvidos; são eles: a professora orientadora de estágio e a professora da educação básica. Para evidenciarmos as falas das professoras da escola, marcamos seus textos com aspas simples e itálico, seguidos de uma letra maiúscula do alfabeto entre parênteses, e, da mesma maneira, ao referenciá-los, e as falas das professoras orientadores de práticas e estágios nos cursos de licenciatura foram marcadas com aspas simples e itálico, seguidas de um nome próprio fictício. Na sequência, trazemos as percepções e os aprenderes que emergiram e coemergiram dessas experiências.

PERCEPÇÕES E APRENDERES NO EXPERIENCIAR AS PRÁTICAS E OS ESTÁGIOS

Nossas experiências estão repletas de percepções, de memórias e de histórias que se articulam, produzem compreensões e constituem aprendizagens. Dessa maneira, como aponta Varela (2003, p. 78), “a percepção e a ação são, basicamente, inseparáveis na cognição vivida, e não estão simplesmente conectadas de maneira casual nos indivíduos”, ou seja, aprendemos ao corporificarmos nossas experiências, ao atuarmos de acordo com nosso organismo, que percebe, atua e cria mundos.

É com base na abordagem enativa da cognição humana que compartilhamos aqui os conhecimentos que construímos de nossas experiências com o contexto dos estágios e do conversar com profissionais atuantes nesse espaço. Compreendemos que as práticas e os estágios proporcionam ao futuro professor uma aproximação do contexto escolar, além de oportunizarem experiências e reflexões que lhe permitem fazer relações e estreitamentos entre a teoria e a prática.

Entendido como momento privilegiado na formação de futuros professores, o estágio propicia aproximações com a escola (ambiente de trabalho dos professores), com as práticas didático-pedagógicas (quando professores e alunos estabelecem relação com o conhecimento por meio de ações coletivamente desenvolvidas) e com os professores e alunos (aproximando-se das compreensões e atitudes dos sujeitos envolvidos na aula). (Almeida e Pimenta, 2014, p. 15-16)

A esse respeito, a professora da educação básica observa que o estágio é o momento no qual as experiências profissionais começam a ser vivenciadas pelo estagiário, e a relação teoria e prática se articula. “É um momento privilegiado na formação de professores, que propicia a articulação entre a teoria e a prática” (M).

Além disso, o estágio, como um campo de conhecimento formativo, que propicia ao futuro profissional a aproximação e a inserção no ambiente de trabalho no qual irá atuar, permite ao estagiário construir conhecimentos a partir do experienciar. De acordo com Maturana (2001), o conhecimento não é algo externo, que possa ser captado por alguém. O mundo e o conhecimento emergem no processo de viver, isto é, só conhecemos aquilo que experienciamos, e, por isso, cada um de nós é autor do seu próprio conhecimento. Assim, o estagiário, ao articular, refletir e analisar teorias estudadas em relação às situações práticas vivenciadas, constrói conhecimentos e avança em seu desenvolvimento profissional.

Nesse sentido, a professora orientadora de estágio salienta que a construção de uma atitude reflexiva conciliando teoria e prática apresenta-se fundamental para a compreensão da complexidade da profissão. “O estágio é um tempo para refletir sobre tudo o que vem sendo estudado e discutido no curso” (Tania). Segundo Barreiro e Gebran (2006, p. 22), “a aquisição e a construção de uma postura reflexiva pressupõem um exercício constante entre a utilização dos conhecimentos de natureza teórica e prática na ação e elaboração de novos saberes, a partir da ação docente”. O ato de refletir sobre a experiência possibilita ressignificar e aprimorar as práticas docentes, além de estimular a autonomia e a melhoria das aprendizagens profissionais.

Outra professora orientadora de estágio também entende esse momento como um tempo de aprendizagem da profissão, tecido nas redes de conversações que se estabelecem entre os envolvidos nesse processo. Ela destaca o fato de não ser o estágio somente um espaço do aprender da profissão pelo estagiário, mas de todos os professores envolvidos. “Vejo o estágio como um espaço de aprendizagem para o estagiário, para mim como professora e também para a escola, porque ela tem contato com a universidade e poderá repassar o que é necessário para a formação do futuro professor” (Mara). Corroboramos a discussão com o fato de a professora Rita apontar o estágio como um campo de conhecimento que, em decorrência de sua reconfiguração na formação de professores, pode possibilitar na formação inicial a interação do licenciando com a profissão e também trazer uma oportunidade de formação continuada para os professores formadores das IES e para os professores das escolas que acolhem estagiários.

O estágio é um espaço de formação inicial para quem está cursando a licenciatura e de formação continuada para professores da escola, na medida em que eles sejam parceiros no processo, que acompanhem o estagiário. Isso possibilita que eles entrem em contato com outros materiais, outras possibilidades. Também é formação continuada para professores da universidade, porque a gente continua aprendendo a ser professor com cada estagiário com quem a gente atua. (Rita)

Os estágios dos cursos de licenciatura são espaços/tempos privilegiados para uma aproximação entre as IES e as IEB, uma vez que podem favorecer um trabalho cooperativo que permite a seus interlocutores que vivenciem e reflitam sobre a docência, seu desenvolvimento e significação para o aprimoramento da profissão. Nos estágios, as conversações estabelecidas de forma cooperativa podem levar até a escola aquilo que está sendo discutido na formação e produzido pela pesquisa acadêmica, assim como propiciar que questões cotidianas relativas à profissão sejam compartilhadas na formação. Maturana (2002) chama de conversar o entrelaçamento da emoção e a linguagem e explica que os seres humanos vivem em diferentes redes de conversações, que se entrecruzam em sua realização, por intermédio das corporalidades. Entretanto, a constituição dessas redes não se estabelece somente por encontros pontuais, mas na coordenação de ações que ocorrem na escola e na formação, como algo que é recorrente e que poderá dar rumo à profissão. Dependendo da forma como os estágios se organizam e das redes de conversações que se efetivam no campo do exercício profissional, pode-se promover mudanças no cenário da profissão e contribuir para o aperfeiçoamento da formação docente. Assim, como afirma Diniz-Pereira (2015), as mudanças estruturais e culturais efetivadas nas escolas e nos programas de formação de professores podem possibilitar a construção de identidades docentes mais colaborativas.

No entanto, apesar de sabermos quanto esse movimento proporcionado pelo estágio pode qualificar a formação de professores e o desenvolvimento do campo profissional, nem sempre é fácil estabelecer parcerias e construir a interlocução entre os profissionais da educação superior e básica. A esse respeito, a professora da educação básica ressalta que

a distância entre a academia e a escola é grande e antiga, ainda que os docentes da escola tenham passado pela universidade e a formação só tenha razão de existir por causa da profissão. (C)

Em continuação, a professora orientadora de estágio acrescenta que avançaremos na profissionalização do trabalho docente à medida que universidade e escola se enxergarem como espaços de formação e compreenderem que o saber está nos dois lugares, nas duas esferas. De acordo com a professora,

colocou-se a universidade como lugar do saber, dos especialistas, mas no momento que tu tens na escola professores experientes, tu tens sim saberes que não estão sendo escutados. (Ana)

Encontramos ressonância em relação a essa afirmativa nas ideias de Tardif (2002), quando considera que reconhecer os professores de profissão como sujeitos do conhecimento significa reconhecer que esses devam ter o direito de dizer algo sobre sua própria formação profissional.

Sendo assim, destacamos que o campo de trabalho possibilita espaços em que a profissão docente se desenvolve e prepara na e pela licenciatura o futuro professor. Logo, a escola como um dos espaços de formação é muito mais que o lugar da prática, pois é aí que a profissão se situa e se concretiza. Segundo Nóvoa (2009), o que caracteriza a profissão docente é um lugar no qual as práticas são investidas do ponto de vista teórico e metodológico, dando origem à construção de um conhecimento profissional docente emergente da prática e da reflexão sobre ela.

Diante do exposto, é importante ressaltarmos que a formação de professores não pode restringir-se a teorias educacionais e práticas didático-pedagógicas de sala de aula; a formação necessita estar imersa na profissão, discutindo os desafios para a melhoria da docência, assumindo o compromisso de promover a sua profissionalização. As questões relacionadas aos desafios de ensinar e de aprender e às condições difíceis que as universidades e escolas, em especial as públicas, vêm enfrentando precisam ser debatidas e mobilizadas em conjunto pelos licenciandos, pelos formadores das licenciaturas e pelos profissionais que atuam na educação básica. É a partir de uma reflexão da real situação do exercício profissional e por meio de uma postura crítica ante a realidade que poderemos estabelecer relações de cooperação que propiciem construir caminhos para o avanço da educação como profissão e como formação.

Para isso, não podemos permanecer isolados. Precisamos interagir, criando espaços de convivência profissional coinspirativa, isto é, espaços constituídos na dinâmica da legitimidade e da escuta sensível, sem julgamentos. Para Maturana (2001), quando o outro tem presença enquanto outro, isto é, quando aceito o outro como outro, estou em uma conspiração, ou melhor, em uma coinspiração. “A palavra conspiração vem de coinspiração, ou seja, podemos fazer coisas juntos, mas o elemento fundamental que nos une no fazer coisas juntos é uma coinspiração na aceitação mútua” (Maturana, 2001, p. 109).

É mediante a convivência baseada na aceitação do outro, como um legítimo outro na convivência, que conseguiremos ouvir e refletir sobre nosso fazer e responsabilidade nesse processo, sobre nossa autonomia e corresponsabilidade (Maturana, 2002). E é pela consciência de corresponsabilidade de todos ⸻ licenciandos, formadores e profissionais da educação básica ⸻ que construiremos a valorização da profissão.

Na mesma linha de pensamento, a professora da educação básica reitera que a articulação entre a universidade e a escola no espaço dos estágios é fragmentada e reservada ao período da realização de uma prática e/ou do estágio de regência do aluno na escola. Ela explica que, em geral, durante esse período são instituídas redes de conversação independentes com o estagiário: uma na escola e outra na universidade, que se entrecruzam, de forma esporádica, com a visita do professor da universidade na escola, para acompanhar alguma aula ou prática do licenciando. “Durante o estágio conversei apenas com a estagiária, meu contato foi muito rápido com a orientadora dela da universidade” (E), comenta a professora, ao fazer referência a sua relação com a professora da universidade durante o tempo em que acolheu um estagiário.

Como prática, normalmente, a interlocução começa quando o estagiário ou professor do curso de licenciatura faz contato com a escola para verificar a possibilidade de se realizar o estágio naquela instituição. Esse acordo realizado, as redes de conversação instituem-se na escola entre estagiário, alunos e professor regente da turma.

No período de estágio, na maioria das vezes, o professor da escola não participa da rede de conversação estabelecida entre o estagiário e sua comunidade de formação na universidade; por conseguinte, esse professor não compartilha da reflexão do aluno sobre sua prática, nem de sua avaliação. Além disso, não discute nem reflete sobre o papel que desempenha nesse processo, a forma como o estagiário vem sendo preparado, a concepção de sua formação acadêmica, entre outras questões profissionais que pudessem emergir desse conversar. Assim, quando o estágio termina e o aluno vai embora da escola, a continuidade do processo que envolveu essa prática é discutida e socializada na instituição formadora, não havendo mais nenhum tipo de interlocução com a escola, até que ela seja novamente solicitada para outro estágio.

Diante do exposto e discutido, percebemos que nessa dinâmica os estágios se estabelecem apenas como espaços de acolhimento do estagiário pela escola e, por isso, constituem-se em relações breves e pontuais, que pouco contribuem para a interlocução da formação com a profissão. Há de se considerar que nesse contexto, na melhor das hipóteses, o licenciando se envolve com a escola, com a turma, com o professor regente, e este com o estagiário, mas não se chega a construir uma relação de integração entre escola e universidade, reforçando a concepção da racionalidade técnica, em que o campo de estágio é visto apenas para a aplicação da teoria e cumprimentos institucionais normativos. Como aponta Diniz-Pereira (2008), essa concepção é alicerçada em uma visão aplicacionista e no discurso prescritivo. Do ponto de vista da racionalidade técnica, o ensino é tido como uma ciência aplicada, em que o professor executa programas previamente elaborados pelos especialistas. Nessa perspectiva, os conhecimentos teóricos são produzidos por um grupo de especialistas ou pesquisadores, no espaço da universidade, e são implementados nas escolas pelos professores.

Diferentemente disso, nossas compreensões reiteram a importância da construção de uma relação que incorpore a formação com a profissão. Uma relação profissional, porém baseada na aceitação mútua e no respeito de todos, que, como explica Maturana (2002, p. 71), torna-se social ao “operar-se numa congruência de condutas que se vive como espontânea, porque é o resultado da convivência na aceitação mútua”.

Além da disponibilidade do espaço na escola para a realização das práticas e dos estágios, percebemos que constituir redes de conversação entre os coletivos de profissionais das instituições que atuam no ensino superior e no básico integrará essas comunidades, que poderão ressignificar as relações entre formação e profissão. Acreditamos, ainda, que, para a troca de saberes e a interação entre esses profissionais, precisa-se da participação de todos os envolvidos e o compartilhamento dos conhecimentos, dos contextos e dos processos de atualização dos cursos em vigência nos distintos níveis. A exemplo de Aroeira (2014, p. 114), “identificamos que é no sucesso das responsabilidades compartilhadas entre universidade e escola que avançamos para a formação de profissionais da educação de qualidade”.

Ainda nessa direção, a professora orientadora de estágio discute a implicação da organização curricular da licenciatura para os estágios em que atua e a organização do ano letivo da maioria das escolas que recebem estagiários.

O fato de o estágio ser uma disciplina semestral para nós é um problema, porque o colégio é anual e as escolas geralmente se organizam trimestralmente, então o segundo semestre para nós, que é o de regência do aluno, fica no meio do segundo trimestre da escola. Isso é um problema causado dessa desconexão que existe entre nós e a escola. (Clara)

Corroboramos esse debate com a assertiva da professora da educação básica, que acrescenta:

Outra questão que às vezes incomoda é o período que o estagiário vem, porque ele não pode vir naquele período que a universidade acha melhor ou que ele mesmo ache melhor, porque a escola tem sua própria organização. (A)

Os relatos anteriores revelam a dissonância entre a formação e o campo da profissão, marcado muitas vezes pela ausência de diálogo, de interação e, até mesmo, pela própria desarticulação entre o tempo que a formação se organiza e institui o estágio e o tempo de organização do calendário escolar, ocasionando o afastamento das licenciaturas com o contexto profissional docente.

Para a universidade se aproximar da escola, consideramos interessante que a instituição reveja suas concepções e a maneira como seus cursos de formação são organizados, a fim de ultrapassar limites ao construir currículos e projetos de acordo com o contexto da profissão para a qual está (trans)formando seus profissionais. Nas palavras da professora orientadora de estágio, “a universidade tem que ir até a escola, lá é o campo de trabalho de quem ela está formando. Essa aproximação precisa partir dela” (Clara). Essa maneira de conceber o papel da formação no cenário da profissão remete ao pensamento de Gatti (2011), quando explica que a questão não é atribuir hegemonia à universidade quanto à formação de professores, mas preparar a universidade para desempenhar o papel que corresponde as suas características, alterando seu modo de operar, integrando em todas as atividades os professores e os técnicos que estão na prática escolar, como parceiros efetivos, trazendo-os para dentro do campus e indo a seus locais de trabalho. Assim, quando os cursos de licenciatura assumem que o protagonismo de sua ação é a formação do profissional professor, contribuem para uma valorização desse profissional e, consequentemente, da profissão.

Ainda nesse processo, existe a preocupação de buscar uma aproximação entre a universidade e a escola por meio da concretização de projetos. No entanto, notamos que muitos desses projetos não são construídos com a escola, são projetos concebidos, planejados e organizados na universidade para serem aplicados na escola, como observamos pelo comentário da professora da educação básica: “Muitas vezes o aluno vem na escola apenas para aplicar um projeto que já está pronto, sem conhecer a realidade da escola” (B). Desse modo, mesmo que os projetos em tese possam ser ações que contribuam para a aproximação da universidade com a escola, consideramos que há pouco avanço na constituição e no entrelaçamento de parcerias. Primamos, pois, por um processo de coinspiração, de construção em rede coletiva e fundada em diferentes realidades que precisam engendrar-se na e para a constituição do professor. Na mesma linha de pensamento, a professora orientadora de estágio considera coerente a crítica à situação real ao justificar que muitos projetos são concebidos e realizados em uma visão aplicacionista, em que a escola é compreendida apenas como local de aplicação de conhecimentos e/ou de coleta de dados para projetos ou pesquisas:

Eu considero a crítica da escola (“Lá vem a universidade coletar dados, saber o que nós fazemos e pronto”) certíssima, porque o modo como a universidade se organiza como pesquisa é o modo que a ciência positivista nos colocou, que a gente tem que ter um monte de dados, que se analisa e sai dizendo coisas na qual quem está na escola nem sabe o que está acontecendo, não participa dessa discussão. (Ana)

Compreendemos a relevância do conversar entre escola e universidade nesses processos de construção. Afinal, apreendemos somente o que faz sentido na nossa constituição do ser docente, que ressignificamos de acordo com as vivências, leituras e desafios nos movimentos de ensinar e de aprender.

Ainda discutindo possibilidades de ampliar a interlocução entre a formação e o campo profissional, a professora orientadora de estágio argumenta que a construção de um espaço interinstitucional reconhecido pela universidade e pela escola pode possibilitar o conversar entre os responsáveis pelo estágio nas IES e nas IEB:

É a universidade e as redes públicas de ensino garantindo esses espaços como importantes para o professor receber e orientar estagiários, entendendo que isso vai além das relações interpessoais (Tânia), defende a professora.

Com isso, seria possível colaborar para a melhoria das condições de trabalho dos professores, abrindo possibilidades para a realização de encontros sistemáticos organizados dentro de suas respectivas cargas horárias. Um espaço interinstitucional, que proporcionasse um tempo para que professores supervisores, estagiários e professores regentes das escolas pudessem organizar planejamentos em conjunto, compartilhar as aprendizagens construídas, problematizar a realidade dos cursos de formação e das escolas, discutir o sentido da profissão na sociedade em que vivemos, entre outras questões. A garantia desse espaço/tempo contribuiria para o entendimento do significado do estágio como uma relação de troca de saberes entre esses sujeitos e legitimaria o professor da escola também como um formador.

Para além disso, a criação desse espaço favoreceria a discussão sobre o papel e a atribuição dos responsáveis pelo acompanhamento do estágio (professor regente da escola e professor orientador da universidade), nem sempre objetivamente definidos nesse processo. Referindo-se às funções a serem desempenhadas pelos profissionais da escola no acompanhamento dessa atividade, a professora da educação básica comenta: “Eu recebo estagiários, mas não tenho clareza do meu papel, porque nunca conversamos sobre as minhas atribuições” (F). Tal fala revela a falta de compreensibilidade em relação às atribuições de quem desempenha uma importante função no processo de formação do estagiário. Mobilizar os professores das escolas como coformadores dos futuros docentes e reconhecer a contribuição dessas instituições nesse processo implica legitimar saberes que por elas transitam e circulam.

Ademais, esse desenvolvimento exige o comprometimento desses profissionais e a preparação/orientação para exercer essa função, como explica a professora orientadora de estágio, quando ressalta que o professor, ao acolher um estagiário não estando consciente de suas responsabilidades como coformador, pode dificultar e desqualificar o processo de formação envolvido.

A escola às vezes também tem um discurso em relação à universidade que traz certo prejuízo para as nossas orientações, do tipo: “O que vocês aprendem lá não dá certo, não vai funcionar. Isso é só lá na universidade, aqui é de outra forma”. (Nara)

Esse discurso demonstra o descompasso de dois contextos que deveriam se complementar, mas que na prática não ocorre, prejudicando a aprendizagem do estagiário. Diante disso, o licenciando pode sentir uma emoção de frustração que o desestimule e o leve até mesmo a desistir da profissão.

Do mesmo modo, é necessário haver condições de trabalho para que o professor da escola possa cumprir com as funções de receber, acompanhar e orientar os estagiários, isto é, a garantia de um espaço/tempo para dedicar-se às atividades relacionadas à formação dos futuros docentes. Essas questões precisam ser debatidas no intuito de encontrar possibilidades reais para o acompanhamento e para a orientação do estágio supervisionado pelos profissionais da escola.

Além disso, destacamos que a reflexão de cada sujeito sobre o próprio papel que desempenha na formação de professores e o compartilhamento de suas reflexões são fundamentais para a construção de um projeto de estágio planejado, executado e avaliado no coletivo pelas instituições que assumam responsabilidades e mutuamente se auxiliem de maneira cooperativa e coinspiradora.

Com isso, apreendemos que a realização das práticas e do estágio envolve muito mais que acolhimento e orientação, trata-se de um exercício que requer a participação de todos em um projeto coletivo, em que cada um de seus protagonistas desempenhe um papel específico, de acordo com suas atribuições e responsabilidades, que vise contribuir para a profissionalização do estagiário e o desenvolvimento profissional da própria docência. A geração de um projeto conjunto nos unifica no espaço dos desejos, que, conforme Maturana (2002), constitui uma atmosfera de aceitação mútua na qual se pode dar a convivência: esta fundada no respeito que reconhece a legitimidade do outro em um projeto comum. Por isso, somente a assinatura de convênios não garante o conversar, é preciso o envolvimento, as discussões e o comprometimento dos professores participantes e as mudanças estruturais e organizacionais nos contextos de trabalho que contemplem carga horária diferenciada para essas atividades, além de uma política de ações construída coletivamente. É um transformar na concepção do estágio que ultrapassa a ideia de acolhimento e de acompanhamento para assumir um caráter essencialmente formativo, em que a parceria escola e universidade assume um trabalho coletivo baseado em conversações e práticas coinspirativas docentes, que constituem espaços profissionais em que todos são legitimados na e pela rede escola e universidade, ressignificando práticas, experiências e saberes.

Ainda compreendendo o professor regente da escola como um parceiro importante para o processo de formação realizado no espaço do estágio, Clara, professora orientadora de estágio, convida esse professor para acompanhar o processo de construção da proposta do estágio, bem como seu desenvolvimento e significação. Para isso, ela cria um grupo em que participam com ela o professor supervisor de conteúdo do curso de formação, o aluno estagiário, a professora regente e a coordenadora pedagógica da escola.

Nesse grupo, o aluno manda para nós, por e-mail, o planejamento. Eu leio e faço minhas contribuições, assim como os demais colegas também podem interagir, contribuir dentro daquele planejamento, todos podem dar sugestões. (Clara)

Por meio dessa dinâmica, a professora entende que oportuniza aos envolvidos no processo do estágio um diálogo e considera que essa é uma forma de minimizar o distanciamento que fragiliza os processos formativos entre universidade e escola. Acreditando nessa integração e na importância da participação do professor regente como um coformador, a referida professora submeteu, para apreciação de seu instituto, um projeto de extensão universitária para certificar os professores que acolhem alunos nas escolas parceiras. Ela explica as justificativas para a construção desse projeto: “Porque ele é um coformador, ele é um sujeito que participa de todo processo, ele recebe o aluno na escola, dá todo suporte, acompanha-o nas atividades. Ele responde pelo aluno dentro da escola em qualquer momento” (Clara). No fluxo desse pensamento, a professora orientadora Ana também entende ser relevante o reconhecimento do professor regente por esse trabalho e propõe, igualmente, uma certificação. “É um reconhecimento para esse professor que não é financeiro, mas é um reconhecimento em termos de certificação” (Ana).

Em nossa cultura atual, marcada ainda por uma relação distante entre universidade e escola, entendemos que a certificação é uma forma de reconhecer e de valorizar o professor da educação básica como um dos partícipes do processo formativo do estagiário. Contudo, percebemos que reconhecer e valorizar não necessariamente legitima esse profissional, pois a legitimação se efetivará em sua participação do processo como um todo. Por isso, mais uma vez reafirmamos nosso posicionamento e nossa compreensão da necessidade de avançarmos no sentido de construir uma nova cultura cooperativa entre a formação e o campo da profissão. Uma cultura que se consolide por meio do diálogo e da cooperação interpares, que nos permita lançar novos olhares e práticas sobre a formação e a profissão.

De acordo com Maturana (2014, p. 211), “uma cultura é uma rede de conversações que define um modo de viver, um modo de estar orientado no existir tanto no âmbito humano quanto no não humano, e envolve um modo de atuar, um modo de emocionar, e um modo de crescer no atuar e no emocionar”. Assim, as mudanças culturais só ocorrem quando há transformações no emocionar que guia as ações de seus membros e que define as redes de conversações em que se vive.

Para tais transformações, sabemos que serão necessários muitos esforços empreendidos, porém nada se fará sem o desejo de mudança. Será que, de fato, estamos dispostos a mudar e a aceitar as consequências geradas no nosso modo de viver a profissão provocadas pelo nosso desejo de mudança? Queremos melhorar as condições para o exercício da profissão? De que modo contribuímos para sua valorização social? Os desejos de mudança surgem a partir da tomada de consciência resultante de uma reflexão que nos leva a querer viver de outra maneira. Quando nos damos conta da nossa participação com o outro na configuração do mundo em que vivemos ou que queremos viver, fazemo-nos responsáveis pelos nossos atos e aceitamos as consequências que podem ter.

Em outras palavras, não basta ter um projeto de estágio que reconheça a importância de um trabalho coletivo para transformar as aprendizagens, se não houver o desejo e a responsabilidade de seus participantes em mudar suas ações e em aceitar as consequências disso. Em concordância com Maturana (2001), importa-nos saber sobre nossos desejos e se queremos ou não ser responsáveis por eles, isto é, se queremos os resultados que irão emergir ao realizarmos nossos desejos.

A atualização e a melhoria da profissão docente, dos cursos de formação e da organização da educação podem ser impulsionadas e repensadas pela via dos estágios. No entanto, esse espaço não é visto e reconhecido por sua importância nem pela escola nem pelos cursos universitários. Isso seria pelas consequências geradas por esse repensar em nossas ações? Pelas consequentes mudanças geradas em nossa profissão? Pela consequência gerada pela predisposição de cooperar?

Para falar desse assunto, a professora orientadora de estágio relata que no curso em que atua a coordenação tem parceria com algumas escolas e adota a seguinte sistemática para organizar os estágios:

Primeiramente é feita uma reunião com os representantes das escolas. Quem costuma vir é o coordenador pedagógico ou o diretor, mas é o coordenador que fica responsável por essa interlocução de receber o estagiário e de encaminhar para as turmas. (Nara)

Contudo, a professora percebe que existe dificuldade na organização interna das escolas para receber esses estagiários:

Muitas vezes a informação fica no nível de coordenação e da direção, e os professores não ficam sabendo sobre os estagiários que vão chegar; já teve caso de o estagiário ser encaminhado para uma turma que não tinha sido acordada, porque o coordenador não estava na escola naquele momento [...]. Então a gente vê que às vezes a informação que é repassada aqui na universidade não chega até o professor mesmo que é de sala de aula. (Nara)

Assim, é possível perceber que falta comunicação a respeito desse processo dentro da escola. O estágio é um dos momentos mais importantes para a formação docente, porque nele o licenciando tem a oportunidade de observar, de investigar e de intervir no contexto profissional. Todavia, como a escola está distante da formação e se acostumou a considerar essa dinâmica uma normalidade, o acompanhamento do estágio de um futuro profissional, embora legalizado por protocolos, nem sempre é visto como parte de suas atribuições. Apreendemos e temos vivenciado o estágio como algo burocrático, uma exigência legal, um acolhimento do licenciando, e não o percebemos ainda como uma oportunidade de refletir e de contribuir para a profissão. Nesse sentido, problematizamos: Será que ao usarmos esse espaço apenas para ajudar o estagiário a cumprir uma obrigatoriedade, ou, de outro modo, quando permitimos que esse licenciando realize suas práticas e estágios na escola, em uma relação de compensação, de ajuda para suprir as carências da escola ⸻ como a falta de professores e de recursos materiais e humanos ⸻, não estamos sendo coniventes e perpetuando a situação de precarização na qual a profissão e a educação pública brasileira se veem mergulhadas ao longo de tantos anos?

Ainda, na mesma perspectiva, a professora orientadora de estágio reafirma o menor status acadêmico com que o estágio é reconhecido pelos formadores da licenciatura, quando comparado com as disciplinas científicas.

A carga horária do estágio já é um desafio, porque é uma carga horária grande, e dentro do nosso instituto nós também ministramos disciplinas científicas, e isso às vezes gera desconfortos com os colegas. Então falta também um reconhecimento da área da educação. (Ana)

Como vivenciamos historicamente na universidade, o ensino tem tido menor prestígio que as atividades de pesquisa, reservando às licenciaturas um lugar inferior ao bacharelado. Em decorrência, o que temos visto é que não existe uma valorização dos estágios na IES, pois, em geral, a área de ensino é desprestigiada na carreira universitária. Portanto, concordamos com Pimenta e Lima (2012, p. 195), quando afirmam que “pensar o estágio é repensar os cursos e a importância da pesquisa na formação docente”, de modo que se possa valorizar as licenciaturas. Além disso, ultrapassar a visão da fragmentação do saber e o isolamento das disciplinas promovendo um relacionamento mais próximo dos professores, que atuam nos estágios das licenciaturas com os docentes das demais disciplinas, poderá conferir mais qualidade ao curso.

Assim, desacomodar os docentes formadores da universidade e os profissionais das escolas para um conversar reflexivo sobre a importância e o lugar do estágio na formação de novos professores e na profissionalização da docência representa, a todos nós, envolvidos no processo, um desafio que sugere, sobretudo, disposição gerada pelo querer que nos movimenta em nossas práticas docentes. Compreendemos, diante disso, possibilidades de caminhos para um trabalho cooperativo que prime por integrar formação e profissão em movimentos recursivos de ressignificação para que o novo se instaure como potencial para transformar.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

As práticas pedagógicas e os estágios nos cursos de formação de professores propiciam a aproximação e a inserção dos futuros docentes nos contextos de atuação da docência, em especial nas escolas de educação básica. Esses momentos formativos podem oportunizar experiências e reflexões que articulem teoria e prática, o que contribui para a formação profissional do estudante. Além disso, por meio das redes de conversação estabelecidas, podemos constituir espaços de discussão, estudo, troca de experiências e aprendizagens para os professores das IES e IEB, colaborando para a aproximação entre os cursos de formação e a profissão docente.

No entanto, percebemos que, geralmente, essas redes de conversação são pontuais, (instituídas durante o período de permanência do estagiário na escola) e independentes (estagiário, alunos e professores da escola; estagiário e professores da universidade), não acontecendo como algo recorrente nas coordenações de ações, tanto na escola como na formação. Concluímos que essa situação se dá porque esses níveis de atuação da profissão docente estão afastados. Não existe interação entre os professores que atuam nas IES e nas IEB; em outras palavras, não vivenciamos a profissão e a formação em coordenações de ações no domínio profissional, e em decorrência disso os estágios se estabelecem apenas como relações de acolhimento pela escola.

Reconhecer que os saberes gerados e que transitam nos movimentos em rede entre escola e universidade, embora os domínios de ação dos sujeitos professores sejam distintos, por pertencerem a espaços educacionais diferentes, poderá transformar o ambiente da formação e da profissão e abrir espaço para o escutar e para o compartilhar.

O estágio e o campo das práticas pedagógicas são vias de acesso importantes para a construção de redes de conversação recorrentes entre os coletivos profissionais da universidade e da escola, por isso não podemos permanecer isolados. Estabelecer uma convivência profissional, constituída mediante redes de conversação baseadas na aceitação do outro como legítimo na convivência, que mudem o modo de viver, de atuar e de emocionar, pode transformar essa cultura de isolamento e integrar a formação e o contexto profissional.

Contudo, não há fazer que transforme destituído de querer, que constitui o docente como profissão que legitimamos no e pelo fazer coletivo. A transformação da cultura do isolamento para uma cultura cooperativa somente ocorrerá se houver o querer e a responsabilidade dos profissionais em mudar suas ações e aceitar suas consequências. É a consciência da corresponsabilidade que poderá levar à valorização da profissão independentemente do nível de atuação dos profissionais.

Com isso, compreendemos que é na construção recorrente de redes de conversação, baseadas no respeito mútuo, na legitimidade do outro e na validação dos saberes, gerados pelo desejo de mudanças e da corresponsabilidade dos profissionais atuantes na educação básica e superior, que estabeleceremos uma convivência coinspirativa. Em decorrência dessa convivência, o estágio poderá avançar para além de uma relação protocolar, de orientação e de acolhimento, e poderá contribuir para a emergência de uma cultura cooperativa entre os profissionais e para o desenvolvimento, a valorização e a (trans)formação da profissão docente.

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Financiamento: O estudo não recebeu financiamento.

Recebido: 03 de Junho de 2020; Aceito: 15 de Outubro de 2020

Rejane Conceição Silveira da Silva é doutora em educação em ciências: química da vida e saúde pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Professora da Secretaria da Educação do Estado do Rio Grande do Sul (SEE/RS). E-mail: rejanesilveira1@hotmail.com

Débora Pereira Laurino é doutora em informática na educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). E-mail: deboralaurino@vetorial.net

Conflitos de interesse: Os autores declaram que não possuem nenhum interesse comercial ou associativo que represente conflito de interesses em relação ao manuscrito.

Contribuições dos autores: Conceituação, Investigação, Metodologia, Escrita - Primeira Redação, Escrita - Revisão e Edição, Validação e Visualização: Silva, R.C.S.; Laurino, D.P.

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