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Revista Brasileira de Educação

versão impressa ISSN 1413-2478versão On-line ISSN 1809-449X

Rev. Bras. Educ. vol.26  Rio de Janeiro  2021  Epub 08-Ago-2021

https://doi.org/10.1590/s1413-24782021260052 

Artigos

A instrução pública em Condorcet e suas vicissitudes

LA INSTRUCCIÓN PÚBLICA EN CONDORCET Y SUS VICISITUDES

IUniversidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.


RESUMO

O projeto objetiva abordar a obra educacional de Condorcet a partir de dois problemas. O primeiro é a relação entre os princípios educacionais do autor, como: liberdade, laicidade, gratuidade e universalidade de ensino. O segundo é a comparação entre as suas duas obras: Cinco Memórias Sobre a Instrução Pública e Instrução Pública e Organização do Ensino, tendo em vista analisar semelhanças e diferenças entre ambas. Buscamos a comparação entre as obras devido à dissonância na literatura sobre o tema, pois, enquanto Cahen afirma que não há qualquer diferença substancial entre as duas obras, Albertone destaca que, em uma compração entre as duas obras, o Projeto parece ter maior sensibilidade social do que as Memórias, demonstrando, assim, uma descontinuidade entre as obras.

PALAVRAS-CHAVE Condorcet; instrução pública; filosofia da educação; história da educação; cultura escolar

RESUMEN

El objetivo del proyecto es abordar la obra educativa de Condorcet desde dos problemas. El primero es la relación entre los principios educativos del autor, como: libertad, laicidad, gratuidad y universalidad de la enseñanza. El segundo es la comparación entre sus dos obras: Cinco Memórias Sobre a Instrução Pública e Instrução Pública e Organização do Ensino, con el fin de analizar las similitudes y diferencias entre ambas. Se busca comparar las obras respecto la disonancia en la literatura sobre el tema, pues, ya que mientras Cahen afirma no haber ninguna diferencia sustancial entre las dos obras, Albertone destaca que, en una comparación entre las dos obras, el Proyecto parece tener una mayor sensibilidad social que las Memorias, demostrando aí una discontinuidad entre las obras.

PALABRAS CLAVE Condorcet; instrucción pública; filosofía de la educación; historia de la educación; cultura escolar

ABSTRACT

The project aims to address the educational work of Condorcet from two problems. The first is the relationship between the educational principles of the author, such as freedom, secularism, gratuity and universality of teaching. The second is the comparison between his two works: Cinco Memórias Sobre a Instrução Pública and Instrução Pública e Organização do Ensino, in order to analyze similarities and differences between the two. We seek to compare those works because of the dissonance in the literature on the subject, for while Cahen states that there is no substantial difference between the two works, Albertone highlights that, in a comparison between the two works, the Project seems to have greater social sensitivity than the Memoirs, thus demonstrating a discontinuity between the works.

KEYWORDS Condorcet; public education; philosophy of education; history of education; school culture

INTRODUÇÃO

É possível dizer que o direito à educação vem a público, num primeiro momento, visando estender a escola a toda a população infantil. Nesse sentido, a escola era tida como um alicerce na construção da nacionalidade e da ideia de pátria. A Revolução Francesa, emblematicamente, coroou tal ideário, legando para nosso tempo projetos pedagógicos que dialogam claramente com uma pedagogia de Estado, pública, destinada a forjar a acepção mais densa de cidadania. Condorcet é um autor que trilhou esse caminho. Seus trabalhos são sintomáticos de uma realidade de crise do Antigo Regime e de surgimento de uma nova ordem civil, dotada de novo estatuto; e que pretendia instituir-se sob o signo da democracia.

A respeito do nosso autor, é válido tecer algumas considerações. Condorcet viveu duas épocas, o auge do Iluminismo francês, participando inclusive na Enciclopédia de Diderot e d’Alembert; e o extremo da Revolução - O Terror. Nascido em Aisne na França, em 1743, desde cedo se interessou pela vida intelectual, primeiramente como matemático, publicando um ensaio sobre cálculo integral; seus escritos sobre matemática lhe renderam um lugar na Académie des Sciences. À idade de 31 anos, devido a sua proximidade com Turgot, ele assume o cargo de inspetor geral da Casa da Moeda de Paris; sua última grande contribuição antes da Revolução foi sua análise da probabilidade das decisões com respeito às eleições.

Após a Revolução, Condorcet passa a dedicar-se mais a questões emergentes de seu tempo, primeiro escrevendo Memórias Sobre a Instrução Pública e depois participando do comitê de instrução pública na Assembleia Legislativa - contribuindo decisivamente para o relatório final do comitê. À parte das questões prementes, Condorcet também se dedicou a uma última grande obra Esquisse d’um tableau historique des progrès de l’esprit humain, onde analisa as diferentes fases da humanidade e como podemos notar um progresso na história do homem.

A obra educacional de Condorcet é considerada pela crítica uma das melhores condensações teóricas sobre o ensino público estatal no período de seu surgimento, vindo a se tornar um marco para os projetos de educação nacionais posteriores: “Neste sentido, [a proposta de Condorcet] constitui uma obra clássica no desenvolvimento da educação pública e da pedagogia política” (Luzuriaga, 1959, p. 77).

Entretanto, essa primeira aproximação com a obra do autor, buscando o surgimento da educação escolar moderna e a comparação com os sistemas escolares precedentes, esconde algumas nuances no interior da sua própria obra.

Tendo vivido numa época de intensas transformações, é razoável pensarmos que o nosso autor não tenha saído ileso do turbilhão de acontecimentos. Mesmo havendo um intervalo de não mais que dois anos entre a escrita de seus principais textos educacionais, é bom lembrarmos que, em tempos revolucionários, isso é mais do que o suficiente para criar e destituir poderes seculares.

Essa indagação sobre a coerência de Condorcet em seus principais escritos pedagógicos levou-nos a analisar suas duas principais obras educacionais - Cinco Memórias Sobre a Instrução Pública e Instrução Pública e Organização de Ensino -, visando estabelecer possíveis semelhanças e diferenças entre as mesmas; e, assim, perceber mudanças nas concepções educacionais do autor.

Dado terem as Memórias uma abordagem mais filosófica e aprofundada, escolhemo-la como a obra base para reconstruirmos o pensamento educacional do autor. Em seguida, detivemo-nos na análise do Rapport para posteriormente efetuar a comparação entre os dois trabalhos.

Antes de adentrarmos nas minúcias das Memórias, notemos que as considerações mais específicas - por exemplo, o modo pelo qual serão escolhidos os professores de cada nível de ensino - estão fundamentadas em princípios filosóficos e valores morais, conforme exposto no seguinte trecho: “Vou agora traçar o plano de uma instrução comum, tal qual a concebo, e desenvolver os princípios que a servem de base, à medida que eles se tornarem necessários para motivar as diversas disposições de uma instrução comum” (Condorcet, 1993, p. 109). Não é por acaso que, com o fito de que se possa apreender as especificidades de seu projeto educativo, ele reserva sua primeira memória para tratar do valor social e humano da Revolução Francesa, das luzes que cresciam em sua época e do lugar fundamental da educação no desenvolvimento da sociedade.

PRIMEIRA MEMÓRIA: A NECESSIDADE DA INSTRUÇÃO ORGANIZADA PELO PODER PÚBLICO

Nessa memória, abordaremos dois temas: a necessidade de uma instrução organizada pelo poder público e a importância da limitação do poder público no que se refere à educação.

No que diz respeito à necessidade da instrução pública, Condorcet (1993) ressalta que somente através dela é possível realizar efetivamente a igualdade entre os cidadãos, uma vez que os direitos jurídicos não asseguram ao indivíduo o conhecimento necessário para que viva independentemente e com base em sua razão. Sem dúvida, a igualdade de direitos é uma conquista singular para o homem, símbolo das luzes. Porém, o autor nos adverte: “Aquele que não sabe escrever e que ignora a aritmética, depende realmente do homem mais instruído, ao qual ele é obrigado a recorrer a todo o momento” (Condorcet, 1993, p. 63).

No tocante a isso, é importante esclarecer que além de realizar a igualdade entre os cidadãos, a instrução pública também deve levar em conta a individualidade no processo educativo. Visto o autor confrontar a igualdade de direitos (enquanto uma possibilidade não efetivada) e a instrução (na qualidade de realização dessa igualdade), somos levados a pensar nessa última como um processo uniforme de formação. De maneira alguma é esse o caso, pois ela se dividirá por diversas profissões, ciências, aptidões e talentos individuais.

Ainda acerca da igualdade no sistema educativo, consideramos importante esclarecer uma dificuldade em sua obra: apesar de ele defender que a instrução pública deva ser um meio de garantir a igualdade entre os homens, essa garantia tem limites. Primeiramente, há o limite da liberdade dos pais de matricularem seus filhos nas escolas: o Estado não pode obrigá-los a isso1; seria corrigir um problema, criando outro.

Há ainda o limite da condição social de cada criança. Posto que a escola tomaria o tempo das crianças, os pais de origem social desfavorecida, muitas vezes, não desejariam que seus filhos frequentassem-na, visto serem eles necessários à manutenção da família. Condorcet busca resolver esse problema dizendo que, ao perceberem que a escolarização traria melhores condições de vida à família, os pais mandariam seus filhos às escolas. Sabemos, entretanto, que essa solução não era suficiente, dado que comumente os filhos eram, de fato, necessários à sobrevivência imediata da família e os pais não tinham a possibilidade desse investimento em longo prazo. Condorcet defende, pensando nisso, a oferta de bolsas aos melhores alunos: caso o filho de uma família desfavorecida fosse um bom aluno, ele teria a possibilidade de continuar seus estudos sustentado pelo tesouro público. Mesmo nessa situação, porém, o pai continuaria precisando de seu filho para seu provento, não garantindo, então, que ele enviaria a criança à escola. Além do mais, tais bolsas não seriam uma solução ao problema da desigualdade, pois, ainda que alguns filhos de pais pobres entrassem no segundo grau por meio de seus talentos excepcionais, diversos ricos entrariam sem esses mesmos talentos, confirmando, assim, a desigualdade no acesso à escola. Nesse sentido, mais do que uma igualdade limitada pelos talentos naturais de cada um, temos uma igualdade limitada pela condição social, nas Memórias.

Em seguida, Condorcet contrapõe a instrução à educação pública; a educação seria uma forma de impor valores particulares e arbitrários e representaria a invasão da liberdade do sujeito, pois, o poder político, mesmo não possuindo qualquer demonstração da validade de seus valores, imporia um modo de agir, privando o indivíduo da liberdade de seguir seu juízo. No caso da instrução, porém, dado que aquilo que é ensinado baseia-se, por suposto, em verdades objetivas, o sujeito, ao aderir a elas, não seria de alguma maneira forçado ou violado, visto que seguiria apenas o caminho natural do seu próprio ser. Também importa ressaltar que a educação pública feriria o direito dos pais, pois é direito apenas deles dirigir seus filhos naquilo que não é estabelecido.

SEGUNDA MEMÓRIA E A REFERÊNCIA DO ENSINO GRADUADO

Em sua segunda memória, Condorcet divide o ensino público em três níveis de ensino. O primeiro seria responsável por proporcionar à criança a possibilidade de assumir futuramente funções públicas e de desenvolver sua independência em relação aos outros. Esse nível teria duração de quatro anos. No primeiro ano se ensinaria a leitura e a escrita de forma gradual; das letras às palavras, destas às frases e aos textos. Além disso, se ensinariam histórias que possuíssem ensinamentos para que as crianças desenvolvessem seus sentimentos morais - fundamentos para seu desenvolvimento pessoal e para o bem-estar da sociedade. No segundo ano as histórias morais seriam mais refletidas e seriam transmitidas as regras da aritmética. No terceiro ano desenvolver-se-iam os princípios morais das histórias, de maneira que as próprias crianças os descobrissem, sem impor a elas um inequívoco sentido. No quarto ano explicar-se-iam os princípios morais, expor-se-ia a declaração dos direitos do homem e ensinar-se-ia um pouco de agricultura e de artes em geral.

É importante ressaltar que, embora Condorcet tenha enfatizado que a instrução deve se limitar ao universal, sem adentrar no domínio das opiniões individuais, ele defende a transmissão de valores morais. As opiniões religiosas poderiam ser deixadas ao arbítrio dos indivíduos, mas não a moralidade; esta seria fundamento para as luzes e impediria a corrupção da juventude.

Acerca dos requisitos a serem inseridos no segundo grau escolar, Condorcet (1993) não os esclarece. Sabemos que haveria uma seleção, pois, enquanto as primeiras escolas seriam distribuídas em cada povoado, haveria apenas uma escola de segundo grau em cada distrito. Apesar de a condição social ser um dos motivos do afunilamento, não é o único; também os talentos o são, o que se explicita em: “A soma dos conhecimentos que convém dar a cada homem deve ser proporcional não somente ao tempo que ele pode dar aos estudos, mas à força de sua atenção, à extensão e à duração de sua memória, à facilidade e à precisão de sua inteligência” (Condorcet, 1993, p. 76).

Condorcet (1993) enfatiza o estreitamento da escolaridade ao longo dos anos e rejeita a possibilidade da sua universalização em todos os níveis. De maneira análoga a Talleyrand, ele defende que apenas o primeiro grau de ensino deva ser universal, enquanto os demais atenderiam a um número reduzido de pessoas. Esse afunilamento, porém, nem sempre é percebido em sua obra, uma vez que todos os níveis de ensino são financiados pelo poder público, sendo portanto gratuitos para os beneficiários, ao contrário de Talleyrand que defende um ensino pago a partir do grau mais elementar.

O afunilamento não pode ser compreendido, nas Memórias, como reflexo do gradualismo com que o projeto pretende ser implementado (defendendo melhores condições ao sistema educativo ao longo do tempo), conforme observado em: “Nos enganaríamos se acreditássemos que podemos recolher, desde os primeiros anos, os frutos da instrução melhor combinada, ou de a levar, no momento de seu estabelecimento, à toda a perfeição que ela é susceptível” (Condorcet, 1993, p. 218). Não encontramos aí uma proposta de universalização de todos os níveis de ensino, pois a progressão se refere apenas à formação dos pais, melhoraria a qualidade dos livros e dos recursos necessários ao ensino público. O afunilamento no acesso à educação, por outro lado, seria um princípio da concepção educativa de Condorcet (1993), baseado na diferença de talentos entre os indivíduos. A ideia era a de que, resguardada o que Condorcet (1993) compreenderia ser a igualdade de oportunidades, os mais talentosos fossem promovidos de um grau inferior para o nível seguinte da escolarização.

Acerca do segundo grau escolar, Condorcet (1993) o divide em dois segmentos, um ensino comum, que é a continuação do primeiro grau, e um ensino científico. Em relação ao ensino comum, o curso abordaria de maneira elementar as matemáticas, a história natural, a física, a ciência política, a história, a geografia, a metafísica, a lógica e a moral. O objetivo dessa parte comum seria de transmitir mais profundamente os conhecimentos gerais necessários à vida pública.

O ensino científico é dividido em quatro partes: ciências morais e políticas, ciências físicas, matemáticas e, por fim, história, geografia e gramática. Ele dispensa o tratamento sistemático dos conteúdos que serão ensinados nesse segundo grau. Ao invés disso, ele discute princípios gerais do ensino das ciências. Esse segundo grau da instrução estabelece como princípio para a escolha dos conteúdos aquilo que se relaciona com o cotidiano; assim, a matemática deve ser ensinada tendo em vista a aritmética política, o comércio e as manufaturas. Porém é preciso ressaltar que não se trata de especializar o aluno, ensinando a ele apenas os usos práticos desses conhecimentos; mas de enfatizar também o fundamento teórico das ciências.

Em seguida, Condorcet (1993) trata do terceiro grau escolar. Haveria uma escola em cada departamento2 (o qual possuiria de três a nove distritos) e as disciplinas seriam as mesmas do segundo grau, com a diferença de que seriam mais abrangentes e haveria mais mestres para ensinar cada parte das ciências.

Temos nessa Memória, ainda, a defesa de que o sistema educacional deva ser sustentado pelo poder público em todos os níveis, mesmo nos mais avançados. Os recursos proviriam da contribuição proporcional das famílias - os ricos pagariam mais em quantidade, embora o mesmo que os pobres, proporcionalmente ao seu salário. Esse seria o único modo de resguardar o interesse da nação, pois, se o poder público deixasse a instrução a cargo da família, os ricos contratariam os melhores professores para os seus filhos, enquanto os pobres não teriam acesso a uma instrução de qualidade.

Acerca dos mestres, o autor vê, enquanto elemento corruptor da educação, a formação de corporações ou associações entre os professores. Segundo ele, caso permitíssemos essas associações, os mestres tenderiam a se proteger, elegendo apenas seus colegas e rejeitando as teorias que não lhes fossem particularmente aprazíveis, impedindo o aprimoramento da ciência e dos homens. Apesar disso, ele defende a existência de companhias de sábios (seria necessária uma companhia em cada departamento francês). Tais companhias teriam por finalidade o desenvolvimento das ciências, dos métodos, das teorias e das observações científicas; são elas que têm a tarefa de desenvolver as luzes da nação.

Segundo Condorcet (1993), as companhias não seriam corrompidas pelo comportamento corporativo, ainda que seus membros elegessem seus pares, visto que, caso elegessem teorias falsas, a opinião pública os ridicularizaria com o tempo, destruindo aquilo que eles mais prezam: o reconhecimento de seu trabalho.

TERCEIRA MEMÓRIA E A FORMAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS

Na terceira memória, Condorcet (1993) aborda o tema da instrução dos homens. Essa parte do ensino seria destinada àqueles que não conseguiram percorrer o caminho anterior, àqueles que precisam de ajuda para desenvolver as luzes, tanto adultos quanto jovens; as aulas seriam dadas todos os domingos.

Segundo o autor, esse ensino ajudaria os homens a destruírem o charlatanismo, a rotina e o atraso; pois todos os cidadãos (não apenas as crianças) teriam a oportunidade de conhecer os princípios e as leis que regem seu país; teriam a capacidade de julgar suas ações de acordo com princípios morais; seriam capazes de substituir suas práticas ultrapassadas por ações mais produtivas em suas profissões; e, finalmente, saberiam cuidar de sua própria saúde e de seus filhos. Esse aspecto ativo que a instrução deve promover pode ser encontrado em:

Segundo Condorcet, a instrução não deve provocar nos homens uma admiração por uma legislação imposta a eles, porém, um de seus objetivos é tornar os homens capazes de apreciar e corrigir a legislação. Uma constituição verdadeira livre, pela qual todas as classes da sociedade gozassem dos mesmos direitos, não poderia subsistir se uma parte dos cidadãos não lhes permitissem conhecer a natureza dos seus limites, os obrigasse a se pronunciar sobre o que eles não conhecessem e escolhessem quando não podem julgar. (Santos, 2007, p. 12)

Algo que precisa ser destacado nessa memória é a possibilidade que Condorcet (1993) oferece às instituições particulares de influenciarem nos assuntos da instrução, oferecendo livros, jornais etc. Os particulares poderiam financiar, até mesmo, instituições, embora com a limitação de que elas seriam disponibilizadas gratuitamente e só poderiam durar enquanto seu financiador vivesse.

QUARTA MEMÓRIA: A INSTRUÇÃO RELATIVA ÀS PROFISSÕES

Nessa memória, Condorcet (1993) trata da instrução relativa às profissões, as quais podem ser divididas em duas classes: profissões que têm a função de servir aos homens isolados (aumentando seu bem-estar) e outras que têm uma utilidade comum e servem à sociedade em geral.

Para a primeira classe de profissões, temos as artes mecânicas e liberais. Segundo o autor, não é necessário criar lugares específicos para ensinar essas profissões; os locais de ensino geral poderiam comportá-las. Condorcet (1993) não explicita se a criança deve ser formada em algum grau de ensino para aprender uma profissão. Ele apenas se reporta aos jovens aprendizes. Essas aulas, apesar de serem concomitantes com o ensino comum, não fazem parte do mesmo; elas são de tal forma específicas, que são destinadas a espíritos de certas qualidades: “Essa classe numerosa de homens úteis não oferecerá mais o espetáculo aflitivo de pessoas de um verdadeiro talento, de uma grande coragem, de uma infatigável atividade, miseráveis por conta dessas qualidades” (Condorcet, 1993, p. 233).

No campo das profissões destinadas ao bem-estar público, Condorcet (1993) situa a arte militar e a arte das construções, quando exercidas para a utilidade comum. Tais profissões possuiriam lugares de ensino e mestres próprios, podendo ser divididas em diversos graus, conforme observamos em:

Da mesma forma, para a marinha, um primeiro grau de instrução dará os conhecimentos necessários àqueles a quem sua inclinação, sua falta de gosto pelo trabalho, sua falta de fortuna, enviaria ao mar ao sair da infância. Outra instrução seria combinada nos portos, com a intenção de aperfeiçoar esses primeiros estudos (Condorcet, 1993, p. 239).

Tamanha é a separação do ensino dessas profissões em relação ao ensino comum que existiria uma sociedade destinada aos progressos das artes - distinta da sociedade dos sábios: essa sociedade investigaria os aspectos mais práticos das ciências.

Aqui, podemos ver que o sistema escolar não exigiria a uniformidade de percurso, pois o primeiro grau de escolaridade, que era o grau mais abrangente, não é requerido (pelo menos Condorcet não acena essa necessidade) para as profissões militares, por exemplo.

De fato, ao tratar do ensino comum para as crianças, Condorcet (1993) utiliza o termo généralité, segundo o seguinte trecho: “O primeiro grau de instrução comum tem por objetivo colocar la généralité dos habitantes de um país em estado de conhecer seus direitos e deveres” (Condorcet, 1993, p. 109). Como sabemos, o termo pode ser utilizado tanto no sentido de universalidade, quanto no sentido de a maior parte, a maioria. Dados os argumentos expostos tanto na Segunda Memória quanto em relação às profissões, pensamos que o sistema educacional público comum, nas Memórias, se dirige à maior parte dos cidadãos (ao menos o primeiro grau de ensino), embora não se pretenda universal, pois existiria um ensino específico para as profissões, a instrução nas instituições particulares, a liberdade dos pais de decidirem matricular seus filhos e o afunilamento social e dos talentos.

QUINTA MEMÓRIA: A SOCIEDADE DOS SÁBIOS

Em sua última memória, Condorcet (1993) estabelece um último grau de ensino: “Destinado àqueles que são chamados a aumentar o corpo de verdades por observações ou por descobertas” (Condorcet, 1993, p. 255), isto é, os homens de ciência; esses estabelecimentos também seriam destinados aos professores que desejassem aumentar suas luzes; a esse grau de ensino haveria uma instituição na capital.

Também as sociedades dos sábios instruiriam os homens, não através de aulas, mas com suas descobertas. Elas desenvolveriam um quadro geral das ciências que auxiliariam os homens de gênio a terem acesso a problemas resolvidos e em aberto. Enquanto a instituição tratada no parágrafo anterior existiria apenas na capital, as sociedades de sábios existiriam ao menos em cada departamento, distribuindo melhor o conhecimento científico.

Apesar de ser o último grau da escolarização, o ensino científico não é concebido na qualidade de uma continuação do ensino comum. Não apenas por ser destinado a uma classe de pessoas bem específica (os que desejam aumentar o número de verdades), mas também por haver diferença de finalidade nas duas instruções: enquanto o ensino comum visa a formação do cidadão, o ensino científico aperfeiçoa a espécie humana integralmente - não apenas enquanto membros de uma comunidade política.

INSTRUÇÃO PÚBLICA E ORGANIZAÇÃO DO ENSINO: RELATO DA COMISSÃO DE INSTRUÇÃO PÚBLICA DA ASSEMBLEIA LEGISLATIVA FRANCESA

Há aproximações muito claras, mas há também diferenças entre o texto das Memórias e o Rapport (traduzido na versão portuguesa como Instrução pública e organização do ensino) de Condorcet (1943). O Rapport inicia fazendo referência aos objetivos de uma instrução geral e pública: “Facultar a todos os indivíduos da espécie humana os meios de proverem às suas necessidades, de conseguirem o seu bem-estar” (Condorcet, 1943, p. 5), assim como “que um maior número de homens se habilite ao desempenho de funções necessárias à sociedade” (Condorcet, 1943, p. 6). Constatamos, assim, que, da mesma forma que nas Memórias, a instrução pública é importante tanto para bem realizar a vida em sociedade, quanto para que os homens se realizem a si mesmos.

Para que a escolarização se tornasse uma realidade nacional, seria necessária uma organização do ensino por parte do Estado. O modelo que vigorou por séculos na França pré-revolucionária - onde não havia unidade institucional da educação, deixando-a sob encargo da Igreja - foi rejeitado por Condorcet. Esse modelo atendia um reduzido número de pessoas e não contribuía para o progresso da nação.

Além disso, a organização se mostraria necessária pelo próprio conteúdo a ser transmitido. Como ele ressalta continuamente, a instrução deve transmitir a verdade e formar os cidadãos de acordo com a natureza. Caso ela fosse deixada aos particulares, esses ideais mais nobres poderiam ser corrompidos. Assim, é o conteúdo mesmo: a verdade, que demanda uma organização superior do ensino.

Condorcet (1943), no Rapport, divide a instrução pública em cinco graus: escolas primárias, escolas secundárias, institutos, liceus e Sociedade Nacional das Ciências e das Artes. Do mesmo modo que nas Memórias, todos esses níveis de ensino seriam gratuitos: a gratuidade

é um meio, não só de assegurar à pátria mais cidadãos em estado de a servir e à ciências mais homens capazes de contribuir para o seu progresso, mas ainda de diminuir essa desigualdade que nasce da diferença de fortunas e fundir entre si as classes que esta diferença tende a separar. (Condorcet, 1943, p. 52)

Fica claro, dessa forma, que a gratuidade é uma estratégia para garantir a universalidade, isto é, alcançar a todos. Além disso, caso a instrução fosse transmitida através do investimento privado, os professores se submeteriam a agradar seja às crianças seja aos pais - impedindo o ensino da verdade intransigente dos professores.

Ademais, Condorcet (1943) defende a liberdade da instrução com relação ao poder público; isto é, o governo não determinaria conteúdos ou métodos a serem ensinados. Essa independência garantiria a incorruptibilidade da busca desinteressada pela verdade; caso a escola se submetesse ao governo, poderíamos ter a perpetuação de uma tirania - o governo formaria súditos.

ENSINO PRIMÁRIO E A CAPACITAÇÃO PARA AS PESSOAS GUIAREM-SE POR SI MESMAS

Esse nível capacitaria os cidadãos para que fossem capazes de se guiarem por si mesmos na plenitude de seus direitos e possibilitaria a eles a candidatura em cargos públicos de pouca complexidade. Garantir-se-ia, assim, tanto a boa formação do indivíduo quanto da sociedade.

É válido ressaltar que, desde o primeiro nível, os conteúdos deveriam ser transmitidos com base na razão e no intelecto da criança, e não numa autoridade que apelaria às emoções do aluno, consoante evidenciado em: “Nem a Constituição francesa, nem ainda a Declaração dos Direitos serão apresentados a nenhuma classe de cidadãos, como tábuas descidas do céu, que é preciso adorar e crer” (Condorcet, 1943, p. 13). A superioridade da razão em relação às emoções deveria ser observada até mesmo na sociedade, seguindo o princípio iluminista: “Não é porque a maioria é majoritária que ela tem razão, é porque ela tem razão que ela deve ser majoritária” (Kintzler, 1984, p. 87).

Outro aspecto a ser destacado é a utilização de livros didáticos destinados a despertar o interesse da criança: “Colocai ao alcance dos homens mais simples uma instrução agradável e fácil e, sobretudo, uma instrução útil e eles a aproveitarão” (Condorcet, 1943, p. 16). Além disso, os livros também contribuiriam para a organização dos conteúdos e dos métodos a serem ensinados.

Condorcet (1943) se preocupa com o problema do interesse na educação, pois não sendo a instrução uma obrigação, mas apenas uma oferta do Estado, é preciso que os homens se interessem por ela, que eles aceitem o presente ofertado. Do contrário, teríamos um sistema de ensino completamente organizado, mas vazio.

ESCOLAS SECUNDÁRIAS E A INSTRUÇÃO DEPENDENTE DA DESIGUALDADE SOCIAL

Para adentrar nesse nível, as crianças precisariam apenas “prescindir de mais largo tempo do seu trabalho e consagrar à sua educação um maior número de anos e alguns rendimentos” (Condorcet, 1943, p. 18). Vemos, então, que a efetiva completude da instrução dependeria de um fator social, mais do que de talento: não seriam provas de aptidão que selecionariam os alunos; seus pais, de acordo com critérios econômicos, decidiriam se seus filhos continuariam ou não.

É válido apontar, ainda, que se o ensino primário no Rapport pode ser relacionado com o primeiro grau nas Memórias, o mesmo não ocorre com as escolas secundárias. Conforme visto, nas Memórias, as escolas secundárias seriam divididas entre ensino geral e formação científica; aqui, porém, temos apenas o ensino geral.

INSTITUTOS E LICEUS PARA FORMAÇÃO DOS FUNCIONÁRIOS PÚBLICOS E DOS SÁBIOS

Os institutos seriam o terceiro grau escolar, responsável por abarcar os elementos de todos os conhecimentos humanos. Eles seriam, portanto, responsáveis por capacitarem os cidadãos para exercerem as funções públicas mais complexas, bem como para serem professores de escolas secundárias.

Além dos conhecimentos para as funções públicas, se aprofundariam as formações científicas mais diversas como as artes mecânicas, a arte militar e a agricultura.

Novamente, aqui, a comparação com as Memórias pode ser problemática, dado que, se os institutos se assemelham ao ensino secundário, visto abarcarem o ensino científico de maneira mais profunda, no Rapport, não temos mais a separação entre a formação geral e a formação científica; esta, de acordo com o que foi dito, podia ser seguida conforme as aptidões e interesse do aluno. Aqui, porém, ambas, formação geral e científica, estariam ligadas num mesmo currículo unitário e contínuo, destinado a todos os alunos.

Os liceus formariam os sábios, eles seriam os mais altos representantes da excelência de um povo: neles se ensinariam as ciências de maneira mais profunda. Isso pode ser notado através da ênfase que Condorcet (1943) confere ao papel dos liceus em relação aos estrangeiros; se até os três níveis precedentes, a instrução visava à formação da própria nação francesa, os liceus são pensados como uma oportunidade para aumentar a reputação francesa junto a outros países, da mesma maneira que espalhar os ideais de igualdade e liberdade tão caros aos franceses.

SOCIEDADE NACIONAL DAS CIÊNCIAS E DAS ARTES: O ÚLTIMO DEGRAU DO ENSINO

Por fim, no último grau de ensino, temos a Sociedade Nacional das Ciências e das Artes, responsável por supervisionar os estabelecimentos escolares e também por aplicar e divulgar as descobertas úteis aos homens. Ela seria dividida em quatro ramos principais: ciências matemáticas, ciências morais e políticas, aplicação às artes das ciências matemáticas e físicas e uma classe que reuniria a gramática, as letras, as artes recreativas e a erudição.

Podemos observar, dessa forma, que, muito embora não seja um nível escolar propriamente dito, oferecendo cursos regulares, a Sociedade Nacional ofereceria uma instrução indireta, visto que, ao desenvolver as ciências e supervisionar os estabelecimentos educacionais, ela decidiria sobre os conteúdos e a metodologia do ensino empregados.

COMPARAÇÃO ENTRE AS MEMÓRIAS E O RAPPORT

Antes de percorrermos mais detidamente comparações entre as Memórias e o Rapport, gostaríamos de reconstruir, em linhas gerais, as principais análises sobre o tema por parte dos comentadores de Condorcet. Essas análises podem ser divididas em duas perspectivas principais: a primeira defendendo que as duas obras apresentariam uma continuidade e semelhança tamanhas que não conviria analisá-las separadamente (posição defendida por Cahen), enquanto a segunda afirmaria que, apesar das inúmeras semelhanças entre as obras, há entre elas divergências consideráveis que merecem análise especial (tese defendida por Albertone e Vial).

Em Cahen (1904), temos a interpretação de que ambas as obras de Condorcet conservam o mesmo pensamento, conforme mostrado em: “O Comitê aceitou previamente, em suas linhas gerais, o sistema das Memórias” (Cahen, 1904, p. 371), “sobre todos os pontos essenciais, sobre as linhas gerais e mesmo sobre os detalhes importantes de sua organização futura, seu pensamento prevaleceu intacto, e o projeto de decreto que foi submetido ao Comitê é a obra pessoal do autor das Memórias” (Cahen, 1904, p. 373) e “a semelhança dos dois documentos aparece ainda mais completa se penetramos nos detalhes das duas obras” (Cahen, 1904, p. 371). Embora Cahen (1904) admita que em pontos específicos há uma mudança: número de liceus e mudança do ensino secundário dividido em duas partes para apenas uma; elas seriam “mudanças pouco consideráveis”.

Albertone (1984), por outro lado, apesar de reconhecer na obra de Condorcet semelhanças consideráveis, vê que, por vezes, essa atitude pode causar mal-entendidos na interpretação, pois, ao analisarmos apenas uma das obras, seja as Memórias ou o Projeto, não perceberíamos mudanças e, possivelmente, uma evolução do pensamento de Condorcet e da própria escolarização pública. Ela nos mostra sua posição através de alguns exemplos, embora não de maneira exaustiva.

Comparado com as Memórias, o Projeto demonstra uma formulação política mais compacta e uma sensibilidade mais aguda acerca da coletividade. A despeito de uma perspectiva individualista estar ainda presente desde as frases iniciais, o relato de Condorcet dirige-se para os cidadãos como um corpo unitário, e refere-se a necessidades sociais, bem-estar geral e avanço humano. Como membro do Comitê de Instrução Pública, nascido já do processo revolucionário, ele era mais consciente da responsabilidade política nacional. (Albertone, 1984, p. 134)

Constatamos, assim, que nas Memórias Condorcet defendia uma visão mais individualista da instrução e da sociedade, enquanto que no Rapport ele passou a se preocupar com o bem-estar geral e com a responsabilidade política nacional.

Segundo Albertone (1984), essa diferença não se justificaria apenas em uma mudança psicológica ou epistemológica de Condorcet, mas no próprio desenrolar histórico:

Apesar de serem contemporâneas e fundamentadas no mesmo espírito, as duas obras denotam dois momentos distintos e particulares de sua reflexão e oferecem substancial evidência da evolução processada por seu pensamento. Tomadas pelo entusiasmo revolucionário, as Memórias eram baseadas na perspectiva de demolição das estruturas do Antigo Regime. Apesar de esboçarem uma nova e exaltada realidade, elas persistem sendo o eco do grito de batalha das Luzes contra o mundo velho, no qual Condorcet fora formado e contra o qual ele havia lutado. No Projeto, por seu turno, a consciência de se lidar com uma realidade revolucionária estava já presente, embora não sem uma intuição presciente de seus possíveis futuros excessos. (Albertone, 1984, p. 134)

As Memórias, escritas ainda sob os fundamentos do Antigo Regime (não havia ainda sido declarada a Constituição), apesar de criticá-lo, partilhava de um ideal revolucionário ainda dominado pelo signo das Luzes; enquanto o Projeto, por ter sido escrito já sob a novidade do movimento republicano, acabou por absorver os ideais da república em construção naqueles tempos de revolução.

Vial (1970), por sua vez, ao tratar do pensamento pedagógico de Condorcet, concentra sua análise no Rapport, segundo o seguinte trecho: “Nós seguiremos, para essa apresentação, o Rapport e o Projeto de Decreto. Pois, obrigado a propor ao voto do Legislativo um conjunto de medidas práticas, Condorcet deu ao seu pensamento uma forma mais concreta” (Vial, 1970, p. 67).

Contudo ele assume abertamente que, apesar dessa opção pedagógica, as duas obras possuem diferenças:

É, sobretudo, nas Memórias e no Esboço que buscaremos o verdadeiro pensamento de Condorcet. No Rapport, lido à Assembleia Legislativa em 20 e 21 de abril de 1792, em nome do Comitê de Instrução Pública, Condorcet teve de expor as visões do Comitê que, sobre alguns detalhes ao menos, diferiam dos seus. (Vial, 1970, p. 20)

Merece ser ressaltado, porém, que apesar de assumir a diferença entre as obras, Vial (1970) não as enxerga abundantes, visto mencionar “alguns detalhes ao menos”.

Tendo em vista a divergência interpretativa acerca da evolução do pensamento pedagógico de Condorcet, analisaremos as principais diferenças que pudemos observar em cada obra, procurando evidencias suas similitudes e suas discrepâncias.

Concordamos que, em suas linhas gerais, as duas obras apresentam o mesmo projeto educacional: uma instrução para a igualdade, que deva ser acessível a todos, laica etc. Em conformidade com o exposto, esse ponto é aceito por todos os comentadores: nenhum propôs uma mudança radical no pensamento de Condorcet; assim, é nos pontos divergentes, que acreditamos haver entre as duas obras, que decidimos nos deter.

As primeiras diferenças podem ser encontradas já nos primeiros parágrafos dos dois textos; enquanto nas Memórias ele escrevia: “A instrução pública é um dever da sociedade para com os cidadãos” (Condorcet, 1993, p. 61) e aos indivíduos cabia apenas a preocupação com seus direitos. No Rapport, a instrução deve aumentar tanto os direitos quanto os deveres dos cidadãos, o que se evidencia em: “Oferecer a todos os indivíduos da espécie humana os meios de proverem às suas necessidades, de assegurarem seu bem-estar, de conhecerem e de exercerem seus direitos, de compreenderem e realizarem seus deveres” (Condorcet, 1989, p. 8).

Essa preocupação com os deveres nos parece estar atrelada ao sentido mais profundo de comunidade que Condorcet defende em sua obra, conforme vemos em: “Comparado às Memórias, o Rappport mostra uma formulação política mais compacta e uma sensibilidade mais abrangente em direção à coletividade” (Albertone, 1984, p. 134).

A diferença entre os excertos nos revela a diferença de tom com que Condorcet passa a defender a realização da sociedade, dos indivíduos e da nação. Se nas Memórias, a individualidade era uma marca constante de sua preocupação, no Rapport ele se preocupará também com a comunidade ou coletividade. A instrução deveria não apenas esclarecer os cidadãos acerca dos direitos que gozassem segundo a lei, mas também exortá-los acerca dos seus deveres para com a comunidade.

Se encontrávamos nas Memórias uma importante ênfase na sensibilidade moral em relação aos homens e aos animais, esses conteúdos deveriam ser abordados ainda por e para os indivíduos; a comunidade, seja dos homens universalmente, ou da nação, não era considerada um polo importante da instrução.

Podemos constatar ainda essa ênfase na comunidade, pois, embora nas Memórias Condorcet enfatizasse a iluminação dos indivíduos, não somente para uma evolução universal, mas também para o desenvolvimento da sociedade, é só no Projeto que ele utiliza o termo instrução nacional. Apesar de desde as Memórias enfatizar a importância do Estado na escolarização, esse Estado era apenas um ente abstrato (uma instância de poder) - dificilmente ele utiliza expressões como: a nação francesa, o Estado francês etc. Ao nosso ver, é a partir da condensação de seu projeto educacional na fórmula instrução nacional que Condorcet aproxima definitivamente a instrução de uma tarefa política do Estado Nacional.

Ainda outro elemento importante sobre sua crescente preocupação com a coletividade é o papel que a Assembleia dos Representantes do Povo vai adquirir em sua segunda obra. Embora ele não ressalte o papel preciso que ela teria em seu sistema educacional, vemos que Condorcet defende que esse órgão tivesse uma grande influência representando o poder público, pois defende que a Assembleia seja a detentora do maior poder político em matéria educacional.

Acerca da universalização do ensino, é preciso dizer que ela aparece de maneira mais clara apenas no Rapport:

Dessa forma, a instrução deve ser universal, isto é, estender-se a todos os cidadãos. Ela deve ser repartida com toda a igualdade que permitam os limites necessários das despesas, a distribuição dos homens sobre o território e o tempo mais ou menos longo que as crianças podem lhe consagrar. (Condorcet, 1943, p. 5)

É apenas nele que vemos o termo universelle sendo empregado (esse termo guarda uma relação maior com a totalidade); nas Memórias, como dissemos anteriormente, o termo generalité era o mais utilizado. Essa mudança de palavras por si só não justificaria a defesa de uma transformação no pensamento de Condorcet, é preciso ver se há uma mudança no que se refere ao escopo de pessoas que a instrução deve abarcar.

A primeira alteração que podemos notar é a expansão da instrução comum; se nas Memórias somente o primeiro nível pretendia ser realmente universal, no Projeto esse desejo se estende para o segundo nível, de acordo com o seguinte trecho: “Este grau de instrução (secundário) pode ainda, sob certos aspectos, ser visto enquanto universal, ou antes como necessário para estabelecer no ensino universal uma igualdade mais absoluta” (Condorcet, 1989, p. 11).

Como vimos nas Memórias, o primeiro grau de ensino tinha a tarefa de formar a generalidade dos cidadãos; ele deveria capacitá-los para a independência de sua vida cotidiana, do mesmo modo que para as profissões públicas mais importantes. Porém, dado que esse primeiro grau de ensino durava apenas quatro anos, o Rapport defende que esse período seria insuficiente para as tarefas a que se propõe. Assim, sua solução é dobrar o tempo e os conteúdos desse grau geral de ensino - estendê-lo por mais quatro anos (criando outro grau de ensino).

Testemunha dessa mudança é a transferência da divisão entre formação geral e científica, que nas Memórias ocorria no segundo grau de ensino, para os institutos (terceiro grau no Projeto). Além disso, o Projeto aumenta os níveis de ensino: de quatro (primeiro, segundo, terceiro e Sociedade dos Sábios ou Sociedade destinada aos progressos das artes) passamos a cinco (instrução primária, secundária, institutos, liceus e Sociedade Nacional).

Prevaleceu no Rapport a distinção entre níveis de instrução destinados à formação geral e graus superiores que comportariam afunilamentos; a diferença é que nas Memórias já após quatro anos de estudos teríamos o início dos afunilamentos, enquanto no Rapport isso aconteceria apenas após oito de anos de formação. Concluímos, então, que a inserção de um grau em seu projeto não foi despropositada, mas visava a estender a formação geral dos cidadãos.

A partir da extensão da formação geral, podemos notar uma ambiguidade na obra educacional de Condorcet. Se nas Memórias a instrução sofria um afunilamento constante a cada novo grau de ensino, impossibilitando o desejo pela universalização da mesma; no Rapport, Condorcet sinaliza que, ainda que ela não seja universal, dado haver ainda a liberdade dos pais, a possibilidade do ensino particular, ela deve prosseguir aprofundando-se e estendendo-se em público e em conteúdo. Se, literalmente, continuamos a ver em sua obra uma divisão entre formação geral e específica; ao compararmos a evolução de seu pensamento entre as duas obras, constatamos haver uma busca crescente pela universalização do ensino, pois notamos uma preocupação em estender o ensino geral.

Note-se, porém, que, como dissemos ao analisar o Rapport, a seleção para as escolas secundárias ainda ocorreria baseada na dificuldade econômica dos pais em condição desfavorável de preterirem da ajuda de seus filhos (Lopes, 2008); contudo, tal dificuldade não seria suficiente para invalidar a tentativa de universalização, testemunhada pela defesa do ensino comum ao longo de oito anos.

Ligado ao desejo pela universalização, temos a busca pela completude do ensino, pois a expansão da formação geral, não ocorre pela supressão de um grau de ensino, mas pelo acréscimo. Isso significa que o Rapport demonstra uma preocupação em aumentar o tempo de ensino e, consequentemente, aprofundar o conhecimento transmitido nas instituições de instrução nacional; a preocupação pela completude é encontrada em: “O nosso primeiro cuidado deve consistir em tornar a educação, não só tão igual e tão universal, mas também tão completa, quanto as circunstâncias o permitam” (Condorcet, 1943, p. 7, grifo nosso).

Outro aspecto a ser ressaltado é que no Rapport há uma maior organização do sistema educacional. Se nas Memórias tínhamos estabelecimentos independentes para determinadas funções (o caso máximo seria para as profissões públicas como a Marinha), vemos no Rapport um sistema educacional centralizado que englobaria os mais diversos aspectos da formação: desde a formação inicial dos indivíduos até a formação mais elevada para o gênero humano, passando pelas profissões e ciências.

As instituições independentes que formariam partes da sociedade, por exemplo, a marinha, a construção civil etc., acabam, dando lugar aos institutos que seriam então responsáveis por qualquer formação profissional dos cidadãos: toda e qualquer formação do cidadão seria mediada pela instrução pública geral; além do mais, somente vencendo os níveis mais elementares de ensino, a escola primária e secundária, é que se poderia galgar uma especialidade profissional. Essa mudança reflete a preocupação com a especialidade prematura dos alunos, preocupação essa que se manifestava desde as Memórias:

Quanto mais as profissões mecânicas se dividissem, mais o povo seria exposto a contrair essa estupidez que é natural aos homens limitados a um pequeno número de ideias de um mesmo gênero. A instrução é o único remédio para esse mal, tanto mais perigoso em um Estado, quanto as leis tenham estabelecido nele a igualdade. Com efeito, se essa estupidez se estende além dos direitos puramente pessoais, a sorte da nação depende, então, em parte, de homens incapazes de serem dirigidos por sua razão e de ter uma vontade que os pertença. (Condorcet, 1993, p. 78)

Outro ponto a ser considerado é que nas Memórias tínhamos, a partir das escolas secundárias, uma divisão entre formação geral e formação científica, onde esta última seria determinada de acordo com as habilidades e interesses da criança (os cursos científicos não teriam qualquer relação com a formação geral, podendo ser repetidos de acordo com o interesse do aluno); no Rapport, por outro lado, formação geral e formação científica se entrelaçam num mesmo currículo. Essa mudança confere, sem dúvida, uma menor liberdade no ensino, mas maior unidade e organização da formação.

Além do mais, notamos uma mudança em relação ao ensino particular; na Terceira Memória, Condorcet via a possibilidade de particulares colaborarem com livros, doações, e até mesmo fundarem instituições; enquanto que no Rapport ele não menciona essa possibilidade.

Nas Memórias, ao lado do sistema estatal de instrução se encontravam instituições particulares para salvaguardar a liberdade dos cidadãos; essas instituições, porém, se abstinham do dever de oferecerem uma formação à altura do projeto revolucionário: toda a divisão entre formação geral e específica, profissional e científica, laica ou religiosa, encontraria aí seus limites.

No Rapport, porém, quando Condorcet trata da liberdade do ensino, ele aborda apenas a liberdade em relação ao domínio político da instrução pública. Posto que o autor não menciona a importância do ensino particular, concluímos que essas instituições se tornaram irrelevantes; para ele, é pela cientificidade da instrução e da não-interferência do Estado em matéria educativa, que haveria uma verdadeira liberdade no ensino; não sabemos ao certo a razão para tal mudança, contudo, acreditamos se tratar de um reflexo da crescente necessidade de centralização e nacionalização do ensino.

A exclusão das instituições particulares no Rapport diminui, consequentemente, a liberdade dos pais, pois esses teriam de aceitar a instrução pública sem outras possibilidades de ensino. Vale ressaltar que ele não proíbe nem condena tais estabelecimentos, muito menos estabelece a obrigatoriedade de os pais matricularem seus filhos em instituições públicas; mas, ainda assim, percebemos uma defesa mais enfática da instrução pública (nacional) tal qual o único modo de ensino adequado à República.

Acerca do papel da Sociedade Nacional, devemos dizer que ela não interferiria diretamente em todos os níveis de ensino, mas apenas nos liceus. Contudo, sendo os liceus o lugar de formação dos professores dos institutos, e estes o lugar de formação das escolas primárias e secundárias, vemos que é da Sociedade Nacional que surgiria o corpo docente e as diretrizes escolares; ela seria a responsável última pela formação de professores e do currículo.

É importante ainda salientar que no Projeto não temos mais a separação de duas sociedades: uma dos sábios (responsável pela fundamentação teórica das ciências) e outra destinada aos progressos das artes (encarregada das utilizações práticas das novas descobertas científicas); mas somente a Sociedade Nacional que seria incumbida tanto do desenvolvimento das profissões quanto das ciências - mostrando, mais uma vez, o aumento da centralização da instrução pública.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente projeto propôs-se a analisar a relação entre as duas principais obras educacionais de Condorcet. Como vimos, apesar de ambas as obras apresentarem grandes semelhanças, elas oferecem, também, consideráveis diferenças. No Rapport, a instrução pública adquire maior rigidez e organização, fazendo com que o percurso escolar se mostre mais homogêneo e centralizado. Além disso, temos uma maior universalização e completude do ensino, aumentando o ensino geral em quatro anos. No tocante à liberdade do ensino, Condorcet manteve a independência da instrução com relação ao poder público, porém excluiu a possibilidade de instituições particulares.

Seja como for, Condorcet é um autor que expõe com clareza a atualidade da matéria da instrução pública, laica e gratuita na pauta da política contemporânea. Trata-se de temática que tem a ver com uma herança da Ilustração, com um exemplo de construção revolucionária e com uma dívida histórica nos países como o Brasil que, ainda, estão em vias de universalizar todos os graus de sua educação básica. Nesse sentido, pensar Condorcet, nas suas duas obras educacionais, é um dever cívico e uma esperança pedagógica. Trata-se de um legado para com as novas gerações que se traduz em um aceno para a construção de um mundo público onde a esfera da política inverta suas prioridades para pensar os setores majoritários da população. Só então teremos uma democracia de direito e de fato. A Educação acompanha essa meta.

REFERÊNCIAS

ALBERTONE, M. Enlightenment and Revolution: the evolution of Condorcet’s ideas on education. Nova Jersey: Humanities Press, 1984. [ Links ]

CAHEN, L. Condorcet et la Révolution Française. Paris: Félix Alcan, 1904. [ Links ]

CONDORCET, J. A. N. C. Instrução pública e organização do ensino. Porto: Livraria Educação Nacional, 1943. [ Links ]

CONDORCET, J. A. N. C. Rapport et projet de décret sur l’organisation générale de l’instruction publique; présentés à l’Assemblée Nationale, au nom du Comité d’Instruction Publique, par Condorcet, Député du Département de Paris. Paris: Imprimerie Nationale, 1793. Enfance, Paris, v. 42, n. 4, 1989. [ Links ]

CONDORCET, J. A. N. C. Cinq mémoires sur l’instruction publique. Paris: Flammarion, 1993. [ Links ]

KINTZLER, C. Condorcet : l’instruction publque et la naissance du citoyen. Paris: Le Sycomore, 1984. [ Links ]

LOPES, E. M. T. Origens da educação pública: a instrução na Revolução Burguesa do século XVIII. Belo Horizonte: Argumentum, 2008. (Coleção Educere). [ Links ]

LUZURIAGA, L. História da educação pública. São Paulo: Companhia Editorial Nacional, 1959. [ Links ]

SANTOS, R. R. Igualdade, liberdade e instrução pública em Condorcet. 142f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007. [ Links ]

VIAL, F. Condorcet et l’éducation démocratique. Genebra: Slatkine Reprints, 1970. [ Links ]

1 Isso não significa, porém, que o Estado não possa impor normas no sistema educacional, posto que, conforme veremos, todos os pais teriam de pagar um valor proporcional à sua renda para a manutenção da instrução pública.

2 Nesse momento, a França havia sido dividida em 83 departamentos.

Financiamento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), na forma de Bolsa Produtividade e de Bolsa de Iniciação Científica, e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) (Projeto Temático).

Recebido: 16 de Janeiro de 2019; Aceito: 15 de Outubro de 2020

Carlota Boto é doutora em história social pela Universidade de São Paulo (USP). Professora da mesma instituição. E-mail: reisboto@usp.br

Leonardo Marques de Souza é graduado em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). E-mail: leo_comeje@hotmail.com

Conflitos de interesse: Os autores declaram que não possuem nenhum interesse comercial ou associativo que represente conflito de interesses em relação ao manuscrito.

Contribuições dos autores: Conceituação, Curadoria de Dados, Metodologia, Investigação, Supervisão, Obtenção do Financiamento, Administração do Projeto, Validação, Escrita - Edição e Revisão: Boto, C. Escrita - Primeira Redação, Conceituação, Investigação, Metodologia: Souza, L. M.

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