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Revista Brasileira de Educação

versão impressa ISSN 1413-2478versão On-line ISSN 1809-449X

Rev. Bras. Educ. vol.26  Rio de Janeiro  2021  Epub 15-Dez-2021

https://doi.org/10.1590/s1413-24782021260094 

Artigos

Ordo et modo: os jesuítas e a difusão de uma pedagogia de governo da escrita

ORDO ET MODO: THE JESUITS AND THE DISSEMINATION OF A PEDAGOGY TO GOVERN THE WRITTEN WORD

ORDO ET MODO: LOS JESUITAS Y LA DIFUSIÓN DE UNA PEDAGOGÍA DE GOBIERNO DE LA ESCRITURA

IInstituto de Educação, Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal.


RESUMO

O artigo versa sobre a gênese e difusão de um dispositivo escolar caracterizado pelos princípios da ordem, da uniformidade e da totalização sistemática que foi conferindo particular ênfase ao governo da palavra escrita. Analisamos a instituição onde esse modelo foi aplicado, a Universidade de Paris de inícios do século XVI, para em seguida nos determos na ação pedagógica dos jesuítas. Incutindo-lhe a sua marca própria, a Companhia de Jesus acabaria por disseminar a experiência parisiense pelo mundo inteiro. O estudo da apropriação inaciana do modus parisiensis, tomando como fontes os textos fundadores da congregação (Constituições da Companhia de Jesus, Ratio Studiorum e Exercícios espirituais), permite-nos revisitar uma das mais decisivas proveniências da ordem do discurso que ainda hoje imperam nas nossas instituições de ensino. Procura-se dar sustento empírico à hipótese de que a cultura escolar se funda num imenso temor do nomadismo, da miscigenação, da fuga e da errância do pensamento.

PALAVRAS-CHAVE Companhia de Jesus; escrita escolar; modus parisienses; ensino superior; ensino religioso

ABSTRACT

This article focused on the inception and spread of a schooling apparatus founded in the notions of order, uniformity, and systematic totalization, which was developed with an emphasis on the need to govern the written word. We examine the institution where these routines were first applied, the University of Paris in the early 16th century, and then turn to Jesuit pedagogy. By imparting its distinctive mark, the Society of Jesus spread what had been a Parisian experience worldwide. Studying the Jesuit appropriation of the modus parisiensis, by using their founding texts (the Constitutions, the Ratio Studiorum and the Spiritual Exercises) as our main sources, allows us to revisit one of the most decisive points of descent for the order of discourse that still pervades our educational institutions. The goal is to provide empirical support to the idea that school culture is grounded on an immense fear of the nomadic, interweaving, and evading nature of thought processes.

KEYWORDS Society of Jesus; school writing; modus parisiensis; higher education; religious education

RESUMEN

El artículo trata sobre la génesis y difusión de un sistema escolar caracterizado por los principios de orden, uniformidad y totalización sistemática, que fue dando especial énfasis al gobierno de la palabra escrita. Analizamos la institución donde se aplicó este modelo, la Universidad de París a principios del siglo XVI, para nos detenernos en la acción pedagógica de los jesuitas. Al inculcar su propia marca, la Compañía de Jesús difundiría la experiencia parisina por todo el mundo. El estudio de la apropiación ignaciana del modus parisiensis, tomando como fuente los textos fundacionales de la congregación (Constituciones, Ratio Studiorum y Ejercicios espirituales), nos permite visitar uno de los orígenes más decisivos del orden del discurso que prevalece en nuestras instituciones de enseñanza. Se busca dar soporte empírico a la hipótesis de que la cultura escolar se basa en un inmenso miedo al nomadismo, al mestizaje, a la fuga y al deambular del pensamiento.

PALABRAS CLAVE Compañía de Jesús; escritura escolar; modus parisiensis; educación superior; educación religiosa

Mas o que há afinal de tão perigoso no facto de os discursos proliferarem indefinidamente? Onde está o perigo?

(Foucault, 1997, p. 9)

De modo geral, é preferível que os alunos de gramática não escrevam nada que não lhes tenha sido ordenado.

(Companhia de Jesus, 2009, p. 188)

INTRODUÇÃO

Este artigo visa contribuir para uma discussão historicamente situada acerca da organização e administração, na cultura ocidental, de um saber de base inteiramente escolar, estruturalmente caracterizado pelos princípios da ordem, da uniformidade e, como consequência direta, do governo1 da palavra escrita. A nossa análise recuará até os primeiros debates sobre a premência de um dispositivo de sistematização do conhecimento e levar-nos-á diretamente ao espaço universitário do Renascimento. Diagnosticamos aí um gesto educativo de dupla articulação: o currículo passa a ser o invariante que permite racionalizar todo conhecimento por meio de disciplinas unidas num plano de estudos, ao passo que o método constitui a possibilidade de estabilizar e simplificar, articular e graduar todos os conteúdos fornecidos aos alunos.

Há séculos que tomamos como certo que a função didática não pode prescindir da noção de sistema nem de um método que garanta o encurtamento coerente dos saberes, postule como eles se desdobrarão nos livros escolares e permita, ainda, a sua tradução em todos os expedientes expositivos na sala de aula. Ora, como salienta Julia Varela (1994), a pedagogização do conhecimento, crescentemente em articulação com as doutrinas da Igreja, em primeiro lugar, e do Estado-nação, em seguida, implicou “uma passagem da coerção da verdade à coerção da ciência”, isto é, “a passagem da censura dos enunciados à disciplina inscrita na própria enunciação” (Varela, 1994, p. 91). De facto, os emergentes sistemas de ensino que foram convertendo as crianças e os jovens em alunos, mediante esse conflito que opôs as reformas protestante e católica, ergueram uma autêntica maquinaria escolar que subordinou de forma implacável os saberes e a sua transmissão a padrões rígidos, fenômeno este que atingiria, embora com intensidades variáveis, todos os ciclos, desde o próprio ensino superior até os bancos em que se aprendiam as primeiras letras.

Observaremos, em primeiro lugar, a instituição onde esses princípios foram assimilados globalmente, a Universidade de Paris da primeira metade de quinhentos, para em seguida nos determos, com mais vagar, sobre a Companhia de Jesus, que dispersou pelos quatro cantos do mundo o que se havia experimentado na capital francesa. Foi, de resto, aí que o seu fundador, Inácio de Loiola, estudou e se fascinou pelo chamado modus parisiensis. Trata-se, em suma, de propor uma genealogia2 que procura revisitar uma das principais proveniências da ordem do discurso escolar, demonstrando como em torno de uma proliferação de zelos e cuidados com a escrita se gerou o aparente paradoxo, sob o qual ainda vivemos, de a escrita ser omnipresente nas aprendizagens e, ao mesmo tempo, inacessível e rarefeita no que concerne à apropriação dos seus processos inventivos.

Nesse particular, seguimos a pista do historiador André Petitat (1982), que, no seu já hoje clássico Production de l’école - Production de la société, sugere a emergência, no século XVI, de um conjunto de mecanismos estruturais do modelo escolar - como um “processo de seleção escolar” que “passou a estar ritmado pela gradação do ensino e a sua organização em classes ordenadas” (Petitat, 1982, p. 118-129) - constantemente ativados nas épocas moderna e contemporânea. O mesmo autor sublinha o papel que a Companhia de Jesus desempenhou na irradiação e universalização desse modelo. Os jesuítas contribuíram ainda, de modo substantivo, para a mobilização das belles-lettres da Antiguidade, colocando-as, pela primeira vez, ao serviço de uma “seleção-codificação dos conteúdos simbólicos de uma inculcação implícita” (Petitat, 1982, p. 118-129). Houve neles o vivo desejo de um humanismo escolarizado, que implicou uma seleção de saberes e valores que apenas o permanente controle das práticas de leitura e, em última análise, da escrita, poderia garantir (Petitat, 1982).

O MODUS PARISIENSIS

A cultura pedagógica e escolar de que somos herdeiros é tributária das noções de ordem e sistema. Ambos seriam intensamente problematizados na Universidade de Paris a partir da primeira metade do século XVI. Foi de fato nesse contexto preciso, pela primeira vez centrado no desígnio de alargar a escolarização, que se desbloqueou aquilo que podemos chamar de pedagogização dos conhecimentos, dominada pelo objetivo maior do disciplinamento interno dos conteúdos ministrados.

Um conjunto complexo de usos escolares, normas pedagógicas, princípios e modos de agir conferiu ao ensino universitário parisiense uma marca absolutamente distinta. É ponto assente entre historiadores que a divisão e gradação do corpo discente segundo os conhecimentos exibidos, a ordem e a progressão dos estudos construída sobre bases gramaticais, o controle da assiduidade, a frequência dos exercícios escolares, o nome e a designação das classes, os horários semanais e as repetições de conteúdos aos sábados, o regime de exames e promoções, a inspeção dos alunos pelos seus mestres, a forte autoridade dos superiores e a estrita regulamentação disciplinar, tudo culminando no regime de internato, constituíram a imagem de marca do modus parisiensis. É igualmente pacífico reconhecer-se que essa máquina se encontrava já em plena atividade na primeira metade do século XVI e que foi depois exportada para o estrangeiro (Codina, 1968, p. 148-150; Compère e Julia, 1981, p. 8-13; Gomes, 1994).

A marca distintiva de Paris assentou, em primeira instância, numa estrutura organizativa inteiramente singular, a dos collèges de lettres humaines. Sabemos que a sua universidade surgiu como um apêndice da catedral local ou da escola diocesana, mas que de início os seus professores externos teriam vivido numa espécie de regime de autogoverno corporativo - portanto, do controle direto do chanceler da catedral. Apenas por meados do século XIII começaram a surgir ao redor da universidade os colégios seculares, que imitavam, no seu figurino, os dos estudos teológicos conduzidos tradicionalmente pelas ordens religiosas e destinados à formação teológica dos monges. Os novos estabelecimentos de ensino foram fundados por benfeitores para albergar estudantes pobres e ficaram conhecidos como hospícios, pedagogias, pensionatos ou casas. As razões subjacentes à sua criação foram essencialmente disciplinares: os alunos passaram a estar submetidos às vigilância e supervisão constantes, posto que o regime exclusivo que se lhes aplicou passou a ser o do internato, ao passo que os seus professores perderam também a margem inicial de autonomia, ficando sob a alçada tanto do clero secular como das autoridades civis. Os mesmos princípios de ordem e regularidade implicaram o termo dos privilégios corporativos dos docentes, o fim da anarquia e da vida tumultuosa dos jovens. Por meados de quatrocentos, o rei e a jurisdição do parlamento impunham já a sua lei à Universidade de Paris, que assim foi saindo da órbita da Igreja de Roma para cair nas mãos dos interesses nacionais.

A casa de Sorbon, criada ainda em 1257, é apontada como a primeira organização do novo tipo de internato, tendo adotado então o sistema de ensino praticado pelos mendicantes. A marca distintiva dos colégios de Paris se relaciona com o ensino gramatical, que, desde a Idade Média, constituía um monopólio dos mosteiros e de outras pequenas escolas-externatos nas quais era ministrado o ensino do trivium, cujo domínio se fazia necessário para a entrada na faculdade das artes. Há que registrar aqui um processo de deslocamento inexorável desse tipo de ensino para os colégios, que nalguns casos se transformaram em instituições de pleno exercício, oferecendo todo o ciclo de aprendizagem, desde os rudimentos da gramática até as artes. Dois deles, o da Sorbonne e o de Navarra, chegariam a ministrar o ensino da própria teologia. Igualmente por meados do século XV, tanto a universidade como a faculdade das artes estimularam essa transferência para os colégios. No fim da centúria, a maior parte dos alunos, e já não apenas os mais pobres e os bolseiros, se encontrava submetida ao regime de internato.

A concentração do ciclo de estudos nos colégios deu origem a alterações na oferta curricular e, sobretudo, a uma nova lógica de encadeamento dos saberes. A distribuição dos alunos por classes, implicando a organização de grupos aproximadamente com a mesma idade e nível de conhecimentos em consonância com a divisão das matérias, numa ordem de complexidade crescente, reforçou o princípio de encadeamento, tendo-se mesmo transformado no elemento mais característico da pedagogia parisiense. Os historiadores do período datam dos anos 30 do século XVI o início do uso desse conceito em documentos da universidade, mas teria sido logo em 1509, e no programa do Colégio de Montaigu - por onde passaram Diogo de Gouveia, Erasmo de Roterdã, Inácio de Loiola, François Rabelais, João Calvino, entre outros -, que se exprimiu pela primeira vez e no sentido que se tornaria depois hegemônico.

Embora se continuasse a escrever regula ou lectio, mantendo-se assim a tradição dos séculos XIV e XV, é fato que as lectiones de Montaigu constituíam uma novidade. Nesse estabelecimento existiam ao todo sete classes diferentes, cada uma com o seu professor, e as matérias de ensino eram previamente fixadas e atendiam a um nível de conhecimento específico. Ora, nada disso acontecera em qualquer curso de gramática durante a Idade Média. Ademais, todos os outros princípios que identificam a instituição escolar no que se refere à administração e controle do saber se expressavam de igual maneira: prosseguia-se num curso por intermédio de provas determinadas, havia livros específicos a ler e estudar, patamares mínimos de conhecimento que era preciso alcançar para entrar em grau determinado. Os programas de Montaigu já eram também bastante detalhados e precisos, explicitando o que se deveria saber de cor em cada nível e a sequência pela qual os professores deviam assegurar os fundamentos superiormente determinados para cada classe.

É nesse preciso particular, assinala Gabriel Codina (1968, p. 103), “que Paris se separa das outras universidades do seu tempo”. Com efeito, os seus colégios passaram a adotar um número de ordem em vez do nome da disciplina que era estudada; só a filosofia ficava de fora da numeração que tinha no lugar primeiro, o de topo, a retórica. O modelo era, por fim, assegurado pela instituição de um sistema de promoções ou exames de passagem, sendo várias as provas e muitos os atos requeridos tanto para os diferentes graus das faculdades como até para o conjunto dos estudos gramaticais.

Os hábitos de dividir, distinguir, analisar e avançar progressivamente, hoje já incorporados e universalizados no regime escolar, foram pela primeira vez conjugados e ensaiados nos colégios de Paris durante a Idade Moderna. A exigência de em todas as matérias proceder com ordem e método se foi ali afirmando até impor a sua soberania a todas as práticas de ensino e aprendizagem. Constituiu a grande fronteira de demarcação diante da escolástica medieval e permitiu, igualmente, a abertura de um modelo de civilização, o da escola para todos. Desde então, na cultura escolar, ordem significa que se dispõe unicamente das coisas que serão tratadas, o que permite sempre ensinar melhor. Método, por sua vez, significa que se pode conduzir bem o conhecimento e que, portanto, só se tratam problemas bem delimitados e individualizados. Há sensivelmente meio milênio que o currículo não responde senão a dois princípios: sistema e graduação.

A REVOLUÇÃO INACIANA

Nenhuma história do presente da instituição escolar conseguirá alguma vez ser escrita sem registrar - nem deter-se sobre - a força estruturante e o pragmatismo pedagógico da Companhia de Jesus, organização fundada em 1534 por um grupo de estudantes da Universidade de Paris liderado por Inácio de Loiola. Aliás, é a intervenção dos jesuítas que melhor nos permite compreender como um conjunto de inovações e experimentações de âmbito curricular, até então bastante circunscritas no tempo e no espaço europeu, puderam alastrar-se vigorosamente, transformando-se de imediato num modelo inflexível e assaz duradouro de educação de massas. E isso mais de duas centúrias antes de se vir a iniciar o debate em torno da criação dos sistemas estatais de ensino. A Companhia de Jesus surpreende-nos com a mudança de escala e a internacionalização que conseguiu operar.

Referimos que Inácio de Loiola estudou na capital francesa. Por lá passou, efetivamente, entre 1528 e 1535. Paris vivia então o apogeu das ideias humanistas, e Loiola assistiu in loco a várias iniciativas reformadoras nessa direção, em primeiro lugar no colégio de Montaigu e, mais tarde, no de Santa Bárbara (Loiola, 2001, p. 136-141). Ficou desde essa altura convencido da superioridade do ordo et modo parisiensis (Pavur, 2016) e foi tomando como base esse modelo de estudos que ele e os seus companheiros viriam a fundar o primeiro colégio jesuíta no extremo sul da Europa, em Messina. Corria então o ano de 1548.

Os números subsequentes não deixam margem para dúvidas acerca do êxito e do raio de ação dos estabelecimentos de ensino da Companhia de Jesus. No ano da morte de Loiola estavam já em funcionamento 35 colégios e mais outros seis aprovados. A historiografia costuma assacar o sucesso inicial à gratuidade e à possibilidade de estudantes externos poderem beneficiar da mesma oferta de ensino que era ministrada aos internos (scolastici), todos membros da ordem e que viviam em regime de pensionato. Nas primeiras três décadas de existência, os jesuítas conseguiram inaugurar mais de 200 estabelecimentos de ensino, dando dessa forma origem a uma rede escolar sem qualquer comparação à época. Quando o Papa Clemente XIV suprimiu a companhia, em 1773, a oferta educativa já se dispersava por um total de 845 instituições, entre seminários, colégios e universidades, espalhados por toda a Europa e pelos continentes americano, asiático e africano.

O sucesso desse empreendimento decorreu menos das facilidades de acesso concedidas pela Companhia de Jesus a setores alargados da classe média do que das capacidades evidenciadas de absorver e redimensionar o modelo de ensino desenvolvido em Paris, adaptando-o às necessidades, sempre instantes desde a hora da fundação, de formar os novos membros da ordem. A noção de método inscreveu-se no epicentro do seu programa educativo, e o currículo visava aos mesmos níveis de eficácia e rendimento na administração dos saberes. Os jesuítas adotaram o regime de classes, foram estritos na separação e sequenciação nivelada dos programas de ensino, apostaram fortemente nas bases gramaticais e na cultura literária na formação dos seus teólogos. Até aqui, as diferenças eram mínimas. Todavia, a necessidade de constituírem um habitus religioso de tipo novo os conduziu a intensificar práticas e a introduzir mesmo rotinas que o modus parisiensis não consagrava. Os seus estudantes deparavam com inusitados patamares de exigência, tanto no plano intelectual quanto no pessoal, e, para a sua consecução, os jesuítas ampliaram notavelmente as situações que envolviam as práticas de escrita.

Doravante, a escrita passou a estar relacionada com o trabalho operoso de memorização, tendo sempre como pano de fundo a tese segundo a qual um conhecimento global do homem se podia obter diretamente nos autores da Antiguidade Clássica, fossem eles filósofos, historiadores, poetas ou astrônomos, mas uma vez expurgados de toda e qualquer reminiscência pagã. Os inacianos abriram-se às novas ideias pedagógicas do tempo, mas começaram por ignorar os autores e os textos que glorificavam e ofereciam como fontes incontornáveis aos seus alunos.

Com os jesuítas, começou todo um jogo sutil de incorporação, adaptação e transformação do modelo educacional que tomaram para si. A aliança que os jesuítas das primeiras gerações propuseram entre as belas-letras e a piedade religiosa já recusava explicitamente o gosto pela erudição, tão próprio do imaginário renascentista, e bem assim o conhecimento das situações reais em que as ideias do passado haviam germinado. Ao converter os textos clássicos da Grécia e de Roma em autênticos panegíricos da fé católica, os inacianos do século XVI idealizavam uma civilização remota que optaram por não querer conhecer de fato. É importante compreender que não apenas contribuíram para formar a ideia que atualmente temos da literatura, ao fazerem-se herdeiros e grandes divulgadores da retórica latina por meio do ensino que ministravam e ao insistirem na prática do escrever bem, mas que os jesuítas submeteram também toda a herança clássica a uma visão estática e descontextualizada (Barthes, 1999, p. 45). A mesma orientação de tipo disciplinar-censório determinou que, em vez de autores e de obras integrais, se trabalhasse apenas sobre excertos autorizados.

Nos colégios e universidades da Companhia de Jesus, falavam-se apenas as línguas da Antiguidade, imitavam-se as passagens de vários dos seus poetas, oradores e filósofos, porém não havia já nenhum espaço para diferenças de pensamento ou sequer para as variações, ambivalências e sutilezas de sentido que entre si pensadores haviam exprimido. O desígnio dos jesuítas nunca foi forjar espíritos sensíveis; tão somente formar soldados capazes de evidenciar em qualquer circunstância e em qualquer lugar da Terra, mesmo nas paragens mais remotas e hostis do Novo Mundo, uma fé inabalável nas tradições e na moral cristã.

Em L’évolution pédagogique en France, o sociólogo Émile Durkheim (1969) foi dos primeiros investigadores a dar-se conta de que o grande objetivo da Companhia de Jesus consistiu em que os seus alunos aprendessem a escrever e a falar em latim e grego e que, nessa tarefa, já por si de altíssima dificuldade, absorvessem ato contínuo os necessários preceitos éticos para que pudessem tornar-se membros ativos da ordem. Daí a grande importância que atribuíram às produções escritas e à sua natureza, com numerosas e variadas tarefas sempre à volta da gramática, das palavras, das combinações verbais e dos exercícios de estilo.

O desejo de compreender as civilizações antigas nunca esteve na agenda das suas preocupações; recorriam a esses enunciados como quem recorre a um catálogo das modalidades de conduta possíveis. Do fundo literário antigo, retiravam os exemplos bastantes para afirmarem e se sentirem cobertos de autoridade legítima sempre que lhes acontecia discorrer acerca da natureza humana. Os traços distintivos de caráter retirados da literatura greco-latina eram fornecidos aos alunos e dissecados como ideais-tipo e modelos de conduta a seguir ou a evitar. As personalidades, biografias, ações e formas de pensamento emergiam do fundo do tempo para revelarem com grande clareza e minúcia aquelas facetas, ângulos e propriedades da humanidade que não se podiam vislumbrar nem se imaginaria que existissem por meio da experiência contemporânea. Os jesuítas recorriam às letras antigas como meio de veicular uma representação mais credível e completa das ideias, dos sentimentos e das pulsões que assaltavam a alma humana.

Dir-se-ia que praticaram um humanismo intransigente, como os seus antecessores italianos da centúria anterior, posto que nos seus estabelecimentos de ensino não se podia falar nem escrever senão em grego e latim. Todavia, o que acima de tudo procuraram fazer foi “desnaturalizar o mundo antigo”, reduzi-lo a mero exemplo dos preceitos exigidos pela Igreja coeva.

A gigantesca empresa que por seu intermédio se serviu da cultura pagã foi árdua e implicou uma vigilância extrema e sem tréguas, a fim de que todas as concepções religiosas da Antiguidade Clássica adquirissem uma significação que todo o bom cristão pudesse aceitar sem tergiversar. Aquiles seria a coragem, Ulisses a prudência, César a ambição, e por aí adiante, num desfile das grandes paixões contrastadas da alma. Percebemos assim como o ambiente das escolas jesuíticas se esvaziou de tudo quanto havia “de grego e romano, transformando-se numa espécie de meio irreal, idealizado e povoado de personagens que haviam existido na história, mas que, apresentadas dessa forma, nada tinham de histórico”, sublinhou ainda Durkheim (1969, p. 285-287). O sociólogo francês descobriu aqui um gesto inaugural da relação que a instituição escolar viria a ter com as épocas pretéritas. Com efeito, dos jesuítas recebemos essa posição tão natural de atribuir ao passado longínquo “um valor educativo mais elevado que ao presente”.

Não passe sem registro que a Companhia de Jesus praticamente baniu as ciências históricas dos seus colégios e que mesmo a história literária lhes era bastante estranha. A regra nunca foi a de estudar afincadamente um autor, uma obra ou um tema, mas a de fazer o aluno trabalhar sobre extratos ou fragmentos dispersos, rigorosamente escolhidos, de modo que estes pudessem aparecer apenas como a reverberação de um modelo de vida preexistente tanto a si como a toda e qualquer pessoa. Porque nos contempla de muito longe e se nos oferece de maneira tão generosa, não reclamando nenhuma contestação sobre o que dele fazemos ou dizemos, os jesuítas teriam compreendido que o passado se presta a todo o tipo de interpretações. Rejeitaram abordar a Antiguidade Clássica como aquele território em que as ideias e as práticas sociais irrompiam na maior diversidade, se moviam ora flutuantes, ora indecisas, ora contrastantes. Ao contrário, obstinaram-se em transformar essa plasticidade ontológica num instrumento exclusivo e de sentido único na constituição e no governo das almas jovens. O passado adquiriu um mero valor de uso socializante, e os antigos foram todos convertidos em instrumentos dessa ilusão do nós-mesmos-humanidade. A constituição dessa operação de poder alocada à escola, que intenta plasmar o ontem no hoje, a devemos em grande medida aos inacianos, que, de fato, conseguiram o milagre de transformar o vastíssimo acervo textual pagão no maior instrumento de educação cristã (Durkheim, 1969, p. 285-287).

De todas as formas, e como já afirmamos, a marca mais distintiva da educação jesuítica se relacionou com a escrita e o peso que esta veio a adquirir no conjunto das atividades escolares. Sob a alçada dos jesuítas, o aluno passou a ser aquele ator social que não cessa de tomar notas do que o professor diz, que transcreve, corrige e é corrigido, que repete nas suas composições e alocuções conteúdos textuais previamente distribuídos, tanto na sala de aula quanto fora dela. Foi a tendência crescente desses exercícios que levou à rotura com o mundo oral da escolástica e a afirmar a hegemonia das práticas de escrita na escola do porvir.

Desde as classes mais inferiores até a universidade, é fato que no cotidiano dos colégios da ordem o dispositivo escritural se tornou imperioso, vergando o escolar à repetição, à recitação e à interiorização. A noção corrente de que o estudante é aquele sujeito que se acomoda, conforma, ajusta, adapta e se sujeita à regra; que observa, respeita e cultua os preceitos que lhe são fornecidos, seguindo a trilha palmilhada por todos os outros condiscípulos, só tinha efetivas condições de se impor e universalizar pela requisição permanente da atividade escritural. Os jesuítas chamaram escrita ao movimento de constituição da uniformidade e da invariabilidade. Por seu intermédio, escrever passou a corresponder ao ato de reinscrição - e não de inscrição - de uma qualquer matéria. O texto era o lugar em que se conservava a verdade, e em que esta jamais poderia ser estilhaçada ou objeto de uma interpretação plural.

Destarte, os alunos da Companhia de Jesus passariam rapidamente a confundir-se com o crente, o discípulo e o paciente. As rotinas em que se viram envolvidos davam já conta da íntima correspondência entre a cópia e o retorno ativo da punição professoral sempre que os seus escritos patenteassem algum tipo de desconformidade com a fonte. A solução jesuítica equipou os seus alunos com uma escrita ornamental e instrumental, afastando-os, simultaneamente, de cultivar um gosto pela problematização e pelo gesto autoral.

A esse respeito, Durkheim (1969) teve o cuidado de cotejar as disposições regulamentares da Companhia de Jesus com as ideias reformadoras promulgadas por Henrique IV para a Universidade de Paris no fim do século XVI. Concluiu que as concepções pedagógicas “não diferiam no essencial”, mas logo percebeu que, se a aprendizagem e o domínio da escrita permaneciam um objetivo central para ambas, as diferenças de tempo e de investimento diferiam bastante. É que os alunos dos padres jesuítas viviam “num turbilhão de deveres escritos” em relação aos quais a Universidade de Paris se apresentava “bastante menos exigente”. A cultura que dominava a corporação religiosa, continuava Durkheim (1969), era, em absoluto, “intensiva e compulsória”, capaz mesmo de desencadear “um imenso esforço para forçar quase violentamente os espíritos a um tipo de precocidade artificial e aparente” (Durkheim, 1969, p. 285-287). Havia que romper com todos os “segredos das línguas antigas” por intermédio dos mais variados exercícios de estilo. Nesse importante particular, a Universidade de Paris era “menos pressionadora, menos vertiginosa”. O princípio era o de que o aluno da Companhia de Jesus “jamais pudesse ser abandonado a si próprio” (Durkheim, 1969, p. 285-287). Havia que ser submetido a uma ação prática que não podia conhecer “nem eclipses nem falhas, uma vez que o espírito do mal estava sempre à espreita” (Durkheim, 1969, p. 285-287).

Ora, cumpre compreender, a esse propósito, como a rotina do exame extravasava os trabalhos escritos para atingir todos os domínios da conduta. Nesse contexto, a escrita tornava-se o maior aliado de uma cultura altamente disciplinar: a cadeia ininterrupta de trabalho textual mantinha o aluno isolado, submetido aos livros e papéis, mas ao mesmo tempo o tornava visível por intermédio dos documentos que produzia diariamente e que passavam todos pelo crivo das avaliação e correção sistemáticas. Ser e saber eram assim fundidos e submetidos ao princípio da exposição obrigatória, o qual transbordava da escrita e da classe para a igreja, para o refeitório, para o recreio, para o dormitório. O aguilhão desse dispositivo normalizador era um “estado de competição perpétua” entre os pares, com um sistema de recompensas bastante sofisticado, no qual as produções escritas eram valorizadas por nelas se espelharem recursos da inteligência e da vontade (Durkheim, 1969, p. 292-298).

As peças de natureza doutrinária e programática, com origem tanto na pessoa do fundador quanto na própria Companhia de Jesus, são muito esclarecedoras acerca da extraordinária complexidade desse sistema pedagógico construído em redor das exigências escriturais. Foram paulatinamente trabalhadas e revistas ao longo de várias dezenas de anos, a fim de que os objetivos, a missão, a estratégia, assim como os meios e os fins de os concretizar, se tornassem transparentes aos olhos de provinciais e reitores, de prefeitos e professores dos colégios (Pavur, 2016). Espelham essa ambição de codificar e conter toda a experiência da vida intramuros em regras universalizáveis, porque já devidamente testadas.

Esse acervo, que tomaremos a partir daqui como fonte, inclui as Constituições da Companhia de Jesus, oficialmente aprovadas e publicadas pela primeira vez em 1558, mas redigidas e corrigidas ao longo de 16 anos por Loiola e seus companheiros. Refletiam a experiência dos primeiros anos e foram convertidas em norma diretiva da ordem religiosa durante os quatro séculos seguintes. O livro Exercícios espirituais será outro texto a que deitaremos mão. Teve origem no fundador e foi, também ele, alvo de um processo de reescrita ao longo de duas décadas, precisamente entre 1522 e 1541. O conjunto documental fica enfim completo com a Ratio Atque Institutio Studiorum Societatis Iesu (Plano e Organização de Estudos da Companhia de Jesus), normalmente abreviada para Ratio Studiorum, e que foi publicada em 1599. Embora considerado um texto seminal, uma espécie de magna carta da organização e “cânone de estudos obrigatório da vasta rede de colégios jesuíticos” (Miranda, 2001, p. 84), esse extenso documento teve a montante cerca de cinco décadas de reuniões, consultas, correções, recolhas de experiências, e nele intervieram muitas e diferentes mãos. Existiram mesmo duas versões anteriores da Ratio - datadas, respetivamente, de 1586 e 1591 - antes da fixação do texto definitivo, o qual se manteve em vigor até 1773, sofrendo apenas ligeiras alterações no primeiro quartel de seiscentos.

Até então, o Ocidente não havia conhecido nenhuma peça textual que articulasse, com idêntica minúcia, um regime de estudos integral - as classes, os níveis, os graus e os cursos, com os respetivos conteúdos, codificavam-se desde a base até o fim da universidade - com uma metodologia pedagógica e um conjunto de indicações didáticas e atividades acadêmicas, tanto para o uso de mestres quanto para o conhecimento dos escolares. A Ratio foi, assim, fruto direto da experiência escolar acumulada nos estabelecimentos de ensino nas primeiras décadas de existência da Companhia de Jesus e transformou-se num poderoso instrumento da sua regulação no futuro (Miranda, 2001, p. 84-85). Ao perscrutá-la, logo reconhecemos que a sua força estruturante e durabilidade nos conduzem a pensar não apenas nas nossas raízes, mas também nas concepções curriculares que circulam vivíssimas no tempo presente. Nesse ponto, acompanhamos ainda a tese essencial exposta por Fernando Álvarez-Uría e Julia Varela (1991) em Arqueología de la escuela, de acordo com a qual “a ocupação do espaço e do tempo” no modelo inaciano é de tal forma regulamentada que

o aluno fica aprisionado numa quadrícula e dificilmente poderá questionar a separação por secções, os frequentes exercícios escritos, os distintos níveis de conteúdo, os prémios, recompensas e certames aos quais se vê submetido. Terá que estar permanentemente ocupado e ativo. (Álvarez-Uría e Varela, 1991, p. 33)

As Constituições da Companhia de Jesus já exprimiam a necessidade de serem fundados colégios e algumas universidades de iniciativa própria com as missões de programar e produzir um sujeito-padre de novo tipo, capacitado para enraizar a ordem religiosa nas mais longínquas paragens. Aos seus membros era exigida uma “vida exemplar, capaz de conhecer e servir a Deus nosso Criador e Senhor” (Loiola, 1975, p. 123). Dava-se cumprimento à tese de Loiola, segundo a qual “a abnegação de si mesmo e o progresso na virtude” seriam apenas alcançáveis pela frequência dos vários “graus de instrução” (Loiola, 1975, p. 123). Para ele, a alma transformava-se no ponto de convergência e de aplicação de toda a atividade escolar, não havendo outra forma de as crianças e jovens talentosos cooptados pela companhia se virem a tornar homens feitos, “instruídos, bons e sábios” (Loiola, 1975, p. 123).

Nessa conformidade, os trabalhos e os dias passados nos seus diferentes estabelecimentos de ensino deveriam ser projetados para o desenvolvimento da identidade, isto é, para o autoconhecimento e a condução de si do futuro membro. A substância do ser passou, portanto, a ser entendida como atividade e, nesse sentido, a ordem religiosa continuava a tradição das artes de existência das escolas filosóficas da Antiguidade, designadamente o platonismo e o estoicismo.

Nas anotações que abrem os seus Exercícios espirituais, Loiola (2012) definiu o plano geral de uma prática destinada a intersectar o entendimento com a vontade e os afetos. O tornar-se jesuíta impunha um sem-número de tarefas de si para consigo, da ordem da meditação e da contemplação, o que não constituía propriamente uma novidade, mas agora se postulava como necessária a presença de uma terceira figura ante a qual era mister fazer-se o relato, extremamente bem organizado, de toda a matéria que fosse assaltando o pensamento. Os exercícios espirituais transformaram-se, de fato, numa experiência relacional, simultaneamente interior e exterior, de constituição e transfiguração existencial mediante a ordenação e comunicação do material discursivo. Mesmo na condição de aprendiz ou iniciado, a necessidade de discernir e explicar de modo convincente devia identificar todos quantos frequentavam esses estabelecimentos. A sua pedagogia absorveu, de par com o modo de vida filosófico clássico, as técnicas argumentativas da retórica. Atente-se, então, nas primeiras palavras de Inácio de Loiola (2012, p. 13-14):

Por este nome, exercícios espirituais, entende-se todo o modo de examinar a consciência, de meditar, de contemplar, de orar vocal e mentalmente, e de outras operações espirituais, conforme adiante se dirá. Porque, assim como caminhar e correr são exercícios corporais, da mesma maneira todo o modo de preparar e dispor a alma, para tirar de si todas as afeições desordenadas e, depois de tiradas, buscar e achar a vontade divina na disposição da sua vida para a salvação da alma, se chamam exercícios espirituais.

A pessoa que dá a outrem modo e ordem para meditar ou contemplar, deve narrar fielmente a história dessa contemplação ou meditação, discorrendo somente pelos pontos, com breve ou sumária explicação. Porque, quando a pessoa que contempla toma o fundamento verdadeiro da história, discorre e raciocina por si mesma, e acha alguma coisa que faça declarar um pouco mais ou sentir a história, quer pelo próprio raciocínio quer porque o entendimento é iluminado pela força divina, é-lhe de mais gosto e fruto espiritual do que se quem dá explicasse e desenvolvesse muito o sentido da história; porque não é o muito saber que sacia e satisfaz a alma, mas o sentir e gostar as coisas internamente.

Como se verifica, o processo de constituição espiritual do escolástico jesuíta supunha, ao lado da hermenêutica de si, um permanente estado de enunciação. Parecia evidente que a universalização de um modo de vida em harmonia com o cristianismo reclamava o mais perfeito domínio das técnicas de argumentação. Os jesuítas foram mais longe que todas as agremiações religioso-educativas suas contemporâneas nessa ideia de que a verdadeira conversão do sujeito se objetivava pela explicitação incessante de uma narrativa coerente.

As Constituições já assumiam “os estudos humanísticos” como “de muito proveito” para os escolásticos (Loiola, 1975, p. 137). A oferta formativa da Companhia de Jesus não diferiu muito ao longo dos séculos, e a sua formação acadêmica dividia-se em três ciclos de estudos: humanidades (estudos inferiores), filosofia ou artes, e teologia (estudos superiores), correspondendo a um conjunto de dez classes. No primeiro ciclo, o aluno percorria três classes de gramática (inferior, média e superior), seguidas de uma de humanidades e por fim de outra, a retórica. Um estudante cujo percurso decorresse de forma normal demoraria em média cinco ou seis anos a percorrer essa etapa dos estudos humanísticos, e o seu domínio era condição necessária para prosseguir nos subsequentes. O segundo ciclo dividia-se também em três classes - a que correspondia igual número de anos -, em que eram sucessivamente tratados os conteúdos de lógica e matemática elementar, na primeira; física, química e ética, na segunda; culminando com a metafísica, a psicologia e a matemática na superior. Por fim, o ciclo da teologia era destinado àqueles que manifestavam a intenção de entrar no sacerdócio e durava entre quatro e seis anos.

Importa, agora, penetrar no interior das disposições regulamentares a fim de se poder avaliar com rigor a marca diferenciadora e o respectivo alcance do currículo jesuíta. A primeira nota que assinalamos é a que se refere a esse medo, amiúde explicitado, quer da palavra escrita, quer da divagação ou do livre pensamento, e aos mecanismos censórios que, em função dele, foram continuadamente ativados pelos inacianos. Logo nas Constituições, e a abrir o capítulo intitulado “Os textos das aulas”, ficou convencionado que se seguiriam os que expusessem “a doutrina mais sólida e mais segura”, não adotando-se todos quantos fossem “suspeitos” nem os respectivos autores. Estes só nas universidades poderiam ser citados, mas nunca usados. Na parte relativa às matérias que os alunos haviam de estudar, Loiola era também já peremptório ao exigir que se seguisse invariavelmente “a doutrina mais segura e mais aprovada”, assim como os autores que a ensinavam. Sobre os pagãos, as Constituições afirmavam que não se podiam ler “passagens imorais”. Já sobre os cristãos, e ainda que a obra fosse “boa”, interditavam a leitura se o escritor fosse “mau”, para que o jovem escolar não viesse em algum caso a “simpatizar com ele”. Ponto essencial era o de se poder determinar quais os livros que se haviam de ler e quais os que se iriam excluir, “quer na literatura quer nas outras matérias” (Loiola, 1975, p. 138 e 163).

O controle do discurso pelo mecanismo da censura foi vertido para a Ratio em vários momentos. Logo nas indicações a cada provincial da companhia se considerava da “maior importância” que este pusesse “todo o seu cuidado” em que fossem “totalmente suprimidos” nas escolas sob sua jurisdição aqueles “livros de poetas (ou de qualquer outro autor)” que pudessem “ferir a honestidade e os bons costumes”, a não ser que fossem “previamente expurgados de conteúdos ou de palavras desonestas” (Companhia de Jesus, 2009, p. 76). Havia até casos, como Terêncio, em que essa recomendação deixava de ser aplicável, sendo preferível não o ler de todo, para que a natureza dos assuntos por si versados não viesse a “ofender a pureza das almas” em formação (Companhia de Jesus, 2009, p. 76).

Ao lado da poesia, a filosofia foi outro dos territórios a inspirar as mais instantes desconfianças e suspeitas. Aristóteles permanecia a grande autoridade, como já o fora para a filosofia escolástica e para São Tomás de Aquino, mas nem essa longa tradição de contato assíduo impediu os educadores jesuítas de rodearem o acesso aos seus escritos das maiores cautelas. Havia que saber afastar-se deles sempre que as posições do estagirita contradissessem de algum modo “a doutrina aprovada pelas universidades” da Companhia de Jesus ou se opusessem “à verdadeira fé”. Em caso algum, o professor de filosofia podia ler passagens ou levar para as suas aulas livros de comentadores de Aristóteles “sem ter feito uma rigorosa seleção” dos respetivos conteúdos, devendo, outrossim, impedir que os jovens estudantes a eles se afeiçoassem.

A esse respeito, a Ratio recusou com veemência o acesso ao principal estudioso medieval de Aristóteles, o árabe Averróis, de resto já condenado pelo Concílio de Latrão, de 1513. Acrescentava até mesmo que, quando houvesse absoluta necessidade de mencionar as digressões de Averróis ou “alguma coisa boa de sua autoria”, havia que demonstrar que ele as havia “colhido de outro lugar”, qual mero usurpador.

Quanto à escolha dos professores de filosofia, o mesmo regulamento determinava que, salvo “grave necessidade”, eles deviam ser recrutados de entre os alunos que tivessem concluído todos os ciclos de estudo oferecidos pela companhia - era a melhor maneira de afiançar que tinham os conhecimentos “mais seguros e mais proveitosos ao serviço da teologia” (Companhia de Jesus, 2009, p. 132) - e se, mesmo nessas condições ótimas, algum deles se revelasse “mais inclinado às novidades” ou evidenciasse um “espírito mais livre”, devia, “desde logo, ser afastado do ensino” (Companhia de Jesus, 2009, p. 62). Aos docentes de filosofia, como de resto a todos os das faculdades superiores, era exigida obediência ao superior imediato, o prefeito, o qual devia conhecer previamente as teses a serem propostas aos alunos; nenhum deles podia explicar “livro algum ou autor fora do programa”, tampouco introduzir “nenhuma novidade na maneira de ensinar” (Companhia de Jesus, 2009, p. 144).

O ciclo de edificação e distribuição do saber doutrinal se aprofundou pelo esvaziamento da autonomia do professor, que para os jesuítas não mais representaria o espaço da dúvida ou sequer da especulação. Passou a cumprir a função de representante da ortodoxia, a sua voz correspondendo tão só a um eco rigorosamente enquadrado e conforme o texto escrito. O princípio geral defendido pela Companhia de Jesus era o de que não fazia parte das atribuições do professor “divagar” sobre as ideias dos autores, mas replicá-las “douta e gravemente” (Companhia de Jesus, 2009, p. 128). Todos os problemas teriam de ser apresentados com “ordem e método”, resolvidos “sem artificialismos escolásticos”, encontrando-se sempre “uma resposta” para cada “dificuldade”. No âmbito das “regras para todos os professores das faculdades superiores”, a tese central da inflexibilidade ficou a esse respeito bem vincada (Companhia de Jesus, 2009, p. 144).

Quando seguimos o trilho dessa estratégia de controle e procuramos atentar especificamente à natureza ou ao alcance dos textos postos a circular para uso dos escolares, a ideia que podemos reter é a de uma estabilidade inteiramente nova, sem quaisquer precedentes e jamais alcançada por qualquer instituição educativa em qualquer tempo ou lugar, passado ou futuro, dos métodos, conteúdos e processos formais de trabalho. Como se as portas dos seus colégios jamais se abrissem às modas do tempo e essa resistência à mudança tivesse a alimentar uma confiança inabalável na eficiência do regime cognitivo que souberam tomar para si desde a primeira hora, com base nas experiências parisienses.

Mais do que nos conteúdos ministrados, embora a escolha deles fosse assaz criteriosa, parece-nos que o essencial da sobrevivência da agremiação - e não é demais recordar que todo o sistema de ensino visava, antes de mais nada, à produção de novos teólogos para alimentar as próprias fileiras, um trabalho ad intra vocacionado para propósitos ad extra (Pavur, 2016) - assentou precisamente na uniformização e manutenção dos processos básicos de organização e transmissão encadeada do saber. O fundador já preceituara nas Constituições a necessidade de, nas várias disciplinas, e não apenas nas de humanidades, se adotarem “livros compostos na Companhia” sempre que estes fossem “mais úteis do que os seguidos comummente” (Loiola, 1975, p. 163). Era para ele nítido que os exercícios de ler e escrever adquiriram uma dimensão instituinte e vital. Que poderia significar a manutenção dos mesmos manuais escolares de gramática e retórica ao longo de mais de três centúrias senão a certeza de que, para os jesuítas, o gesto educativo consiste em criar a prótese do pensar no pensamento de quem se descobre a aprender a pensar? No ciclo das humanidades, os jesuítas trabalharam exclusivamente para a unidade da narrativa e da argumentação. Em várias dezenas de gerações sucessivas, estima-se que para lá de cinco milhões de crianças e jovens tenham aprendido a língua latina por intermédio dos mesmos modelos textuais.

No que respeitava à disciplina de gramática, a Ratio mandou adotar o De institutione grammatica libri tres, da autoria do padre português Manuel Álvares, obra publicada pela primeira vez ainda em 1572 e que nos séculos ulteriores viria a conhecer mais de 500 edições por todo o mundo. A insistência no chamado método alvarístico de ensinar a ler e a escrever latim, que terá reativado a cada dia os gestos de pontuar, conjugar, virgular, declinar, adverbiar e classificar as orações, mostra que os modelos e as sequências por meio de que se aprendiam as leis da narrativa estavam situadas no plano do intocável. Eram administradas como se não houvesse outro modo de aprender e como se estivessem estado lá desde sempre. Ora, se verificarmos que a aprendizagem da retórica conheceu outro manual - De arte rhetorica libri tres, ex Aristotele, Cicerone et Quintiliano praecipue deprompti, assinado por Cipriano Soares, dado à estampa em 1562 na cidade de Coimbra e reimpresso mais de 150 vezes até o fim do século XVIII -, podemos concluir que o mesmo princípio sagrado de governo dos fluxos do discurso esteve também na base da estruturação do estilo verbal dos escolares da Companhia de Jesus (Miranda, 2001, p. 102-103).

Era também necessário limitar as virtualidades de abertura do texto escrito e do conjunto dos traços expressivos ou afetivos da língua pela escassez dos exempla fornecidos e trabalhados no dia a dia. O dispositivo destinado a impor e a manter ativo o mesmo jogo de prescrição e limitação da linguagem não se concebia fora da presença constante do manual. Este viria a cumprir para os jesuítas uma decisiva função social, duplamente articulada: a de transformar-se num código rígido e interindividual de aprendizagem de uma língua morta e, ao mesmo tempo, a de constituir um paradigma, primeiro e exclusivo, para todas as crianças e jovens que começavam a servir-se da linguagem, a fim de se exprimirem com estilo literário e eloquência retórica.

Com maior ou menor intensidade, ainda reconhecemos que os trabalhos e o cotidiano da escola supõem um viver habitualmente e em conformidade e que este se alimenta da presença de um modelo textual, seja um manual escolar, seja qualquer outro formato. Salienta-se, pois, que devemos à experiência jesuítica da segunda metade de quinhentos a estruturação desse traço irredutível, desse axioma que, no plano da epistemologia histórica, delimitou com grande rigor e veemência as condições de possibilidade do saber, aqueles princípios de ordenação e latitude que ainda enformam a substância das práticas de formação escolar na atualidade. Como se o livro escolar, por si só ou na relação com os das disciplinas vizinhas, já conseguisse então dar corpo a uma nova epopeia, aquela em que a totalidade da vida dos homens e das coisas poderia ser capturada de forma imanente. O texto escolar surge-nos, assim, ainda fechado, plenamente significativo por si e em si mesmo.

Todavia, os processos de formação interna do pensamento e a operatividade mesma do modelo curricular concebido pela Companhia de Jesus reclamavam muito mais do que a presença do livro escolar, a fim de eliminar qualquer possibilidade de investir no objeto de conhecimento haja vista caprichos e exigências subjetivas. O desígnio de impor duradouramente o saber e a cultura legítimos a essa máquina da desordenação discursiva que sempre parecia acometer as almas jovens, tão atreitas a fragmentos, impressões rápidas e impulsos imponderáveis, fez com que os jesuítas trabalhassem com grande afinco noutros domínios da prática. Para tanto, os exercícios de escrita foram colocados no epicentro do dispositivo disciplinar, e as prescrições a que passaram a estar sujeitos marcaram profundamente o cotidiano das suas escolas.

A esse propósito, a Ratio Studiorum descreve uma operação microfísica tão proliferante e performática que nos faz imediatamente perceber como o ritmo e a pulsação da instituição eram determinados pela procura da ordem do discurso. O jesuíta concebeu-se como um sujeito de conhecimento que não cessava de regressar ao preceito, ao já expresso. Os devires da sua aprendizagem escolar, assim como de toda a sua existência, deviam traduzir essa conformação, constante e, todavia, jamais terminada, à regra previamente estabelecida. Pense-se por um momento no alcance dessas afirmações acerca do encargo das universidades da companhia e que constavam já das Constituições: “O fruto difundido por meio delas será mais universal, tanto pelas matérias que se ensinam, como pelas pessoas que as frequentam e pelos graus que se dão” (Loiola, 1975, p. 156). Nesses termos, os conceitos de uniformização e universalidade começaram a ser apostos e indistintamente utilizados como correlatos aos de ordem e método herdados de Paris. Só a escrita e o permanente regresso a ela poderiam dar corpo à grande utopia do tudo e do todo em conjunto. Nas “regras comuns para os professores das classes inferiores”, lia-se:

Trabalhos escritos

Nas classes de gramática, encomendem-se todos os dias trabalhos escritos, excepto ao sábado. Nas outras, levar-se-á um trabalho em prosa todos os dias (excepto nos dias da pausa semanal e ao sábado); duas vezes por semana, nos dias subsequentes (isto é, a seguir aos domingos e aos dias da pausa semanal), um trabalho em verso; e, por fim, ao menos uma vez por semana, uma composição de grego, no dia em que o professor considerar mais conveniente, da parte da tarde.

Correção dos trabalhos escritos

Em regra, os trabalhos escritos deverão ser corrigidos individualmente e em voz baixa, com cada um dos alunos, para que, entretanto, os outros tenham tempo de aperfeiçoarem o seu estilo. Também será útil que, todos os dias, no princípio ou no fim da aula, o professor recite em público uma composição, de entre as melhores ou de entre as piores, e faça o seu comentário.

Modo de correção

O modo de corrigir uma composição consiste, em geral, no seguinte: indicar os erros eventualmente cometidos contra as regras; perguntar de que modo eles podem ser emendados; mandar que os pares de adversários corrijam publicamente o erro, logo que dele se apercebam, e enunciem a regra transgredida; e, por fim, louvar as composições bem-feitas. Enquanto esta correção se faz publicamente, cada aluno irá lendo e emendando individualmente a primeira cópia do seu trabalho (que deverá sempre existir, além daquela que se entrega ao professor).

Corrigir o maior número possível de composições

Todos os dias, o professor deveria corrigir os trabalhos escritos por cada aluno, pois dessa correção resultaria o melhor e o maior proveito. Se, contudo, o elevado número de alunos o não permitir, corrija o maior número possível, de modo que aqueles que no primeiro dia tiverem ficado por corrigir sejam corrigidos no dia seguinte. Por esta razão, sobretudo nos dias em que se trazem composições em verso, o mestre distribuirá alguns trabalhos para serem corrigidos pelos adversários e, para facilitar este procedimento, cada um deverá escrever nas costas do seu texto o seu nome e também o do seu adversário. Alguns trabalhos poderão ser corrigidos pelo professor da parte da tarde, enquanto os alunos recitam de cor a lição; outros, poderá, se quiser, corrigi-los em casa. (Companhia de Jesus, 2009, 184)

Para a Companhia de Jesus era o regresso ao já dito que a aprendizagem da escrita devia transportar. Por isso se passavam os dias no seu convívio assíduo e, também por isso, tantos cuidados foram postos ao serviço do seu policiamento.

Mas é impossível passar por essas mesmas considerações sem nos darmos conta de que elas apontam igualmente, na parte ou no todo, para o cotidiano da população infantojuvenil escolarizada no seu conjunto, estando por isso muito longe de se referirem apenas à situação dos colégios jesuítas de fins do século XVI.

As disposições regulamentares da Ratio nos fornecem a oportunidade de compreendermos por que caminhos o mundo da escola se forjou como heterotopia ou realidade-outra apartada da vida social. O documento devolve-nos essa artificialidade consubstancial, que o tempo da escola haveria de naturalizar ao longo de centenas de anos, acerca do gesto escrevente e da relação mais geral com o uso da linguagem. O muro de separação começava desde logo a erguer-se com as prescrições relativas à língua latina, cuja obrigatoriedade sabemos não ser exclusiva dos estabelecimentos de ensino jesuíticos, porém que neles adquiriu “especial rigor”. De fato, aos alunos dos colégios da companhia não era permitido “nunca o uso da língua materna”, e todos os que viessem a descurar tal norma seriam, por essa razão exclusiva, “desclassificados”. Nas classes de gramática, humanidades e retórica, a preleção (praelectio) incidia apenas sobre “os autores antigos e nunca os modernos”, e tudo quanto o mestre nela viesse a afirmar estaria de “pleno acordo com um plano” que ele teria previamente “pensado e escrito”, o qual estava ainda obrigado a ler em voz alta no início de cada aula. Nada sairia da sua boca “sem ordem nem preparação” prévias (Companhia de Jesus, 2009). Em matéria textual, os acasos, os desvios ou as trocas inesperadas não constituíam sequer uma possibilidade, e qualquer veleidade interpretativa estava de antemão proscrita pela Ratio. Cada preleção nas classes inferiores devia decorrer segundo as indicações que seguem:

Em primeiro lugar, o professor recitará em voz alta todo o texto, sem interrupção (excepto na classe de humanidades e de retórica, quando o texto for demasiado longo).

Depois explicará, de modo muito breve, o seu argumento e, se for o caso, as suas relações com o contexto precedente.

Em terceiro lugar, se fizer a explicação em latim, leia os períodos um por um, esclareça os passos mais obscuros, relacionando-os uns com os outros, e torne o seu sentido compreensível, não por meio de paráfrases impróprias (isto é, substituindo cada palavra latina por outra palavra latina), mas expondo o mesmo pensamento em frases mais simples. Se fizer a explicação em vernáculo, o professor respeitará, quanto possível, a colocação das palavras, para que os ouvidos se habituem à cadência. Se isso não for compatível com a língua materna, primeiro o professor traduzirá todo o processo à letra, depois explicá-lo-á de acordo com as exigências da língua corrente.

Em quarto lugar, retome [o texto] desde o início e acrescente as observações apropriadas a cada classe (a não ser que prefira introduzi-las na própria tradução). No meio da tradução ou, separadamente, no fim da preleção, dite os apontamentos que considerar mais dignos de serem memorizados - os quais não deverão ser muito minuciosos. (Companhia de Jesus, 2009, p. 187-188)

Os alunos haveriam de crescer e formar-se homens e padres da companhia como ouvintes e espectadores. Era nessa cenografia muito específica que começava o jogo do conhecimento, e era a ela que se regressava ininterruptamente até o fim dos estudos. Na sala de aula, os escolares começavam por conformar uma mole oca e vazia ante o enunciado apresentado, assim como a sua elucidação, não podendo tomar nenhum tipo de apontamento, a menos que o professor o ditasse diretamente. Toda a questão, dúvida ou problema que nessas ocasiões lhes assomasse ao espírito ou fora previamente antecipada e resolvida pela instituição, ou teria de permanecer muda. O entendimento do aluno começava por ser uma realidade - ou patrimônio - pertencente por inteiro ao professor. A aclaração e interpretação de todo e qualquer assunto estavam sempre a cargo do professor; ao escolar, cabia adequar-se e trabalhar com diligência, sozinho ou na relação com os colegas, para incorporar o que já fora estruturado, delineado e digerido pela instituição. O ritual da sala de aula não mais era do que o permanente regresso ao já dito e escrito, e era nessa cadência minuciosamente teatralizada que se aprofundava e alicerçava a intimidade do escolar com a herança textual. A imagem mais remota que temos da sala de aula é, assim, a de um espaço de comunicação de via única, aquele em que a mão e a mente do aluno se fazem absolutamente no já feito.

Não se fique, todavia, com a ideia de que o objetivo de uma escrita individual esteve ausente ou que permaneceu sequer num plano secundário. Pensar nessa suposição seria elaborar com base em um grande equívoco. Nunca será demais lembrar, como já Durkheim (1969) salientou, que os jesuítas se celebrizaram por terem produzido um robusto sujeito escrevente, tendo também, nesse sentido, continuado e levado até outros limiares o legado pedagógico humanista. Com eles, o florescimento textual foi uma realidade, havendo sido criados nos seus colégios prêmios e academias literárias nas classes de humanidades e de retórica, entre outras medidas incentivadoras da criação literária. Simplesmente, tudo quanto se relacionou com o uso da palavra escrita foi, como se verifica, alvo ab initio de uma vigilância tal que o improviso, a surgir alguma vez na pena de um qualquer aluno, não podia senão desconhecer a verdade da norma que o estava a atravessar, o molde sobre que cada peça textual ia tomando corpo, não obstante o sentido, a forma e o nome que a identificasse.

O modelo de escrita desenvolvido pelos jesuítas passou a ser dominado pela economia da regra estrita, por um inabalável rigor e, acima de tudo, pela brevidade do argumento e um mínimo de estilo ornamental. Tomemos como exemplo maior dessa política de vigilância o exame, peça fundamental no dispositivo curricular jesuítico. A prova escrita de exame adquiriu caráter obrigatório e viu-se investida de todo aquele complexo normativo que tão bem conhecemos: pontualidade nas entradas e saídas, controle dos materiais usados, dos livros e dos instrumentos de escrita, silêncio, precaução e vigilância sobre o colega do lado, atenção a todo o tipo de fraude. Acerca dos exames escritos, o regulamento geral determinava que o aluno começasse por “transcrever com rigor o argumento da composição” (Companhia de Jesus, 2009, p. 170). Depois, exigia-lhe que escrevesse “de forma adequada”, de acordo com o nível da respectiva classe, e sempre “com clareza, com os termos e com as regras prescritas pelo argumento” (Companhia de Jesus, 2009, p. 170). “As frases ambíguas” passavam invariavelmente a ser “entendidas no sentido menos conveniente”, e também “as palavras omitidas ou usadas sem ponderação, para evitar as dificuldades”, eram já “consideradas incorreções” (Companhia de Jesus, 2009, p. 170). O erro transformou-se desde então na moeda de troca característica da relação pedagógica, essa superfície concreta em que se exprimem a ignorância, a preguiça e a culpa do aluno. Os jesuítas não se pouparam a esforços para precisar a sua inserção, articulando a prática constante e sistemática da correção com a geografia de temas a explorar. Esse vaivém entre o policiar e o incitar, entre erradicação do erro e conformação autônoma do discurso, ficou expresso com particular clareza nas recomendações que a Ratio fornecia aos professores de retórica.

Todavia, os mecanismos de controle, confinamento, rarefação e censura do texto não se esgotam no exame. Duas outras importantes práticas conheceram um notável incremento sob o modelo jesuítico, apontando ambas para o grande objetivo estratégico de produzir vocabulários e narrativas com elevados índices de autocensura.

Referimo-nos aos exercícios de memorização/repetição e de disputa escolar que, no currículo inaciano, conheceram uma nova centralidade e um desenvolvimento considerável. Ao aluno era, por estoutra via, dada a possibilidade de tomar a palavra em público, exibindo nessa sua performance o investimento individual feito na recapitulação. Ao pronunciar-se ante os condiscípulos, o próprio professor ou até vários outros, dir-se-ia que o aluno exibia a sua nudez por intermédio da palavra e, desse modo, se apresentava mais disponível à ação normalizadora. Ninguém estava definitivamente a salvo, e a todos era exigido intenso esforço de memorização.

Quem ler os Exercícios espirituais, de Inácio de Loiola (2012), esse manual da ascese continuamente enaltecido, cedo perceberá que a repetição surgia ali como o único método capaz de disciplinar as chamadas três faculdades da alma: memória, entendimento e vontade. Ao adormecer e ao acordar, o exercitante deveria sempre resumir e refletir sobre o exercício que teria de fazer, a fim de que, quando despertasse, não desse lugar “a outros pensamentos” que não aqueles que o fizessem regressar ao pensamento anterior, evitando assim “a confusão de tantos pecados” que o iriam assaltar caso procedesse de outra forma (Loiola, 2012, p. 52-53).

Ora, dando corpo precisamente à mesma operação, a Ratio descobriu no trabalho de expansão e consolidação da memória a condição sine qua non de todo o processo de aprendizagem. Nas suas páginas, amiúde se apelava a que os alunos, a cada dia - exceto ao sábado, dias de festa e feriados -, recitassem de cor tanto a preleção da véspera como trechos ou até mesmo um livro inteiro. O princípio era simples - aquilo que mais vezes se repete mais profundamente se grava -, mas as vantagens que dele se extraíam eram decisivas a todos os títulos, posto que não haveria nenhuma outra técnica de inflexão que melhor permitisse permear o estudante e atingi-lo na sua própria interioridade. Os exercícios de memória insinuavam-se a toda a hora e instante, estando presentes nos vários ciclos de estudo até a universidade.

No que respeitava aos estudos inferiores, todo o segundo semestre era consagrado a repetir o primeiro e, no termo do ano letivo, havia igualmente lugar às repetições gerais das lições dadas. Já quando observadas em casa, as repetitiones eram também percepcionadas pelos jesuítas como o “método” que melhor exercitava cotidianamente o intelecto e mais contribuía para que as dificuldades do aluno fossem sendo “elucidadas”. Pela constante revisão e repetição de conteúdos, o aluno tornava-se ainda visível a todos, fosse na exibição pública das suas falhas, que eram imediatamente corrigidas, fosse nas conquistas alcançadas, tendo em vista um domínio pleno dos conteúdos das lições e dos textos, pose que a Companhia de Jesus muito valorizava, ora fazendo o aluno falar de “cátedra” para os condiscípulos o que aprendera de cor, ora distinguindo-o com uma variedade de prêmios.

Ainda relativamente às classes iniciais, estipulava-se que os “discípulos” recitassem aos “decuriões” todas as matérias dadas e que, além disso, “o mestre” fizesse narrar todos os dias a lição “a algum dos mais preguiçosos” ou dos que chegassem “atrasados à escola”. Então, além de surgir como um autêntico envelope inscrito e aberto na mente e no espírito do aluno, a repetição pressionava fortemente cada um a cumprir o “seu dever”. A memória cultivava-se “decorando todo os dias alguma coisa e lendo com muita atenção”, e por isso se pode defender, de novo, que a pedagogia jesuítica se ancorou no postulado do fluido absoluto e da elasticidade permanente do sujeito, não tratando-se somente de ministrar conteúdos, mas antes de preencher, de constituir o material do pensamento do aluno (Companhia de Jesus, 2009).

Os mesmos objetivos levaram os jesuítas a lançar mão da velha prática da disputa, herdada da escolástica. Foi mais uma técnica usada no cotidiano para rarefazer o livre desdobramento do pensamento. A reciprocidade, a troca e a arguição alimentavam um permanente estado de enunciação entre os alunos, é fato, mas o argumento era calibrado por uma terceira figura, o professor, que observava o seu fluxo e intervinha sutilmente para tudo encaminhar até a síntese e uma solução definitiva que o próprio já conhecia de antemão. Mais uma vez, a Ratio é completamente explícita na intenção de fazer da técnica do debate um potente instrumento a serviço da correção do erro e da equalização da narrativa, levando ao mesmo tempo o aluno a organizar o seu pensamento com ordem e correção, ou seja, a exprimir o verdadeiro de forma precisa e contundente no jogo da emulação (Companhia de Jesus, 2009, p. 214).

CONCLUSÃO

No termo dessa breve incursão ao modus parisiensis e aos fundamentos da pedagogia inaciana, fica-se com a firme sensação de que esse dispositivo educacional assentou em princípios que depois se tomariam como os de uma instrução universal, baseada essencialmente na coordenação e na ordem sequencial, para que todos os assuntos sugiram fundamentalmente a ideia de totalidade; na gradação das matérias do mais geral para o mais particular, o que supõe a existência de classes que espelham a passagem dos níveis por graus de dificuldade crescente do próprio conhecimento; em horários fixos, de forma que a cada unidade de tempo, hora, dia, semana ou ano sejam atribuídas tarefas específicas. Esse mesmo realismo epistêmico de unificação do múltiplo e de referência à estrutura lógica global foi aplicado também ao sujeito do saber, que a cada momento do percurso deveria compreender melhor o seu lugar em função do todo e encontrar a própria razão de ser nesse projeto de totalização sistemática. Por meio da Companhia de Jesus, podemos contemplar a matriz do modelo escolar moderno e contemporâneo, com as suas constantes exigências de ordem, método, exatidão e validade universal.

Acreditamos que este artigo dá sustento empírico à hipótese de que a nossa cultura escolar, entre outros componentes, se funda explicitamente em um grande medo. Os programas das disciplinas e os materiais didáticos, os métodos de ensino, a circulação da palavra e as estratégias usadas para a sua avaliação, assim como as políticas da identidade, refletem e reiteram de forma cristalina uma solicitude causada pelo pavor que a instituição escolar tem de tudo o que se relacione com a migração, a miscigenação e a fuga do pensamento. Por essa essencial razão, o aluno foi incessantemente concebido como aquela figura que é intimada e intimidada a ter apenas ideias em conformidade, que dia após dia deve exercer o melhor das suas faculdades sobre um objeto que se supõe inalterado, que apenas procura respostas para perguntas e problemas já sancionados. Foi para esse desígnio de involução, de volta circular, que os jesuítas laboraram com determinação e persistência inusitadas.

Com essa ordem discursiva por eles edificada, e que tão extensamente discorreu sobre o problema da escrita, ficou efetivamente estabelecido que as noções de método, imitação, comentário e interpretação deveriam transformar-se nos mais eficazes instrumentos a serviço da asfixia, da esterilidade e do fechamento súbito a qualquer ensejo de se experimentarem combinações ou orquestrações outras.

Com este artigo, procurou-se, em suma, isolar algumas invariantes e práticas seminais do currículo e do modelo escolar inaciano, que, embora fortemente criticadas pelas suas modalidades de inculcação disciplinar, normas e valores universais - crítica encarnada pelo movimento da educação nova, nos alvores do século XX -, ainda hoje nos mostram a sua força operativa e capacidade de permanecer.

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1 Utilizamos a noção de governo no sentido que lhe dá Michel Foucault, de “condução da conduta”. Veja-se, por exemplo, a discussão em torno desse termo no curso Segurança, território, população (Foucault, 2008, p. 164). Como se verificará adiante, nunca se tratou, quer na Universidade de Paris, quer no modelo jesuítico, de banir a escrita ou fazer dela um grande tabu, mas antes de produzir determinados tipos de sujeito por recurso a um imersivo e intensivo conjunto de rotinas e práticas escriturais.

2 Procuramos trazer para a arena do conhecimento histórico um problema teórico respeitante à história do presente da escola que temos hoje, na acepção empregada por Foucault em Vigiar e punir e retraduzido para a história da educação em diversos trabalhos (inter alia, Ó, 2003).

Financiamento: O estudo não recebeu financiamento.

Recebido: 08 de Janeiro de 2021; Aceito: 19 de Agosto de 2021

Jorge Ramos do Ó é doutor em história da educação pela Universidade de Lisboa (Portugal). Professor da mesma instituição. E-mail: jorge.o@ie.ul.pt

Tomás Vallera é doutor em história da educação pela Universidade de Lisboa (Portugal) e membro colaborador do Instituto de Educação da mesma instituição. E-mail: tomasvallera@gmail.com

Conflitos de interesse: Os autores declaram que não possuem nenhum interesse comercial ou associativo que represente conflito de interesses em relação ao manuscrito.

Contribuição dos autores: Administração do Projeto, Análise Formal, Conceituação, Curadoria de Dados, Escrita - Primeira Redação: Ó, J. R. Escrita - Revisão e Edição: Vallera, T.

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