O conceito de estrutura centrada é com efeito o conceito de um jogo fundado, constituído a partir de uma imobilidade fundadora e de uma certeza tranquilizadora, ela própria subtraída ao jogo.
Derrida, 2011, p. 408.
INTRODUÇÃO
Este trabalho volta-se ao debate sobre o conhecimento no campo do currículo, para defender que o conflito em torno desse nome marca o dinamismo de um pensamento curricular que busca controlar aquilo que é lido como faltoso a si. Para conduzir tal discussão, apropriamos contribuições pós-fundacionais e pós-estruturalistas de Ernesto Laclau e Jacques Derrida, para interpretarmos a política curricular como constituída de processos contingentes de subjetivação na relação com a alteridade.
Com esse propósito, abordamos o nome “conhecimento” tensionando a recorrência de sua afirmação como propriedade ou resposta curricular à alteridade. No âmbito de uma lógica de controle, dinamizada por distintas e conflitantes visões de currículo, chamamos a atenção para a expectativa de um conhecimento hábil em construir um sujeito adequado e capaz de operar plenamente em contextos projetados como sociedade, mundo, experiência. Defendemos ser essa uma preocupação curricular que marca, como identificação, a contemporaneidade de um pensamento político-curricular mais amplo.
Focalizamos assim embates recorrentes no campo, argumentando em favor de uma tendência a circunscrever a discussão curricular na órbita do nome “conhecimento”. Destacamos duas leituras que nos parecem interessantes para tal argumentação no campo. A primeira, associada a vivências contextuais, volta-se à afirmação de uma propriedade de conhecimento no mundo capaz de, a priori da experiência, formar sujeitos para determinado contexto. A outra é pautada em uma leitura objetivista, centrada na ideia de valorização de conhecimentos produzidos pelo sujeito com base em dada vivência, afirmando, assim, uma oposição à visão de que o conhecimento seria algo objetivo. Nesse cenário, investimos no questionamento da manutenção do conhecimento como pressuposto curricular tanto nessas duas visões quanto nas críticas a elas.
Nossa expectativa é tensionar tais leituras genéricas e o quanto elas marcam o campo por meio de um binarismo, constituindo sentidos que podem limitar o debate curricular sobre conhecimento, ou seja, o debate sobre e na relação com esse nome. Tal dinâmica circunscreve o conhecimento como pressuposto, podendo levar a sua reiteração como base do currículo e, assim, projetar a dedução de que restaria decidir qual a forma de conhecer mais adequada ao sujeito, para constituí-lo do modo que se espera que esse sujeito precise vir a ser. Essa leitura, em nosso modo de interpretar, tende a sintomatizar a busca por aquilo que é sinalizado como um binarismo a ser conciliado: dado conhecimento objetivo (normalmente remetido à ciência) e aquele decorrente das práticas e experiências cotidianas/contextuais.
Nessa abordagem sobre o pensamento curricular, buscamos conjecturá-lo como subjetivação, processo contínuo de buscas por responder à alteridade, que não se encontra, mas que se visa controlar sem conhecer. Ao tomar os conflitos em torno do nome “conhecimento” como parte de uma busca por plenitude dessa subjetivação política, argumentamos que tal plenitude é supostamente alcançada pela afirmação da possibilidade de construção de um conhecimento básico, como em uma projeção de um dado que falta ao currículo, um sujeito projetado como faltoso na produção curricular, na subjetivação em que o currículo se constitui. Tal sujeito genérico tende a ser pensado como aquele que o currículo precisa ser capaz de constituir via um conhecimento adequado à vida. Nessa perspectiva, mundo e vida são pensados como horizontes para os quais o currículo deve formar sujeitos hábeis; mundo e vida são assumidos como coisas a serem solucionadas pela definição de um conhecimento. Desse modo, também conhecimento e sujeito se arriscam a serem limitados a objetos dados.
A tensão a que nos referimos não diz respeito a uma produção específica ou a dada defesa do nome “conhecimento”, mas à perspectiva de que, mesmo entre críticas e/ou alternativas a determinada visão de currículo, é possível ler uma recorrência a esse nome como proposta ou pressuposto. Diferentes perspectivas, sejam registradas como eficientistas, progressivistas, crítico-reprodutivistas, sejam ainda sobre a emancipação e a resistência, por exemplo, envolvidas com variadas agendas, tendem a se aproximar de uma propriedade de conhecimento capaz de alcançar certo horizonte curricular, na medida em que todas sinalizam um conjunto de conflitos em torno do nome “conhecimento”.
Do ponto de vista da condução de possíveis leituras no campo do currículo, lançamos mão das contribuições de Pinar et al. (1995) e Lopes e Macedo (2011), considerando tais obras sinópticas do pensamento curricular como possibilidade de mapear produções curriculares com impacto no Brasil, país onde a influência norte-americana sobre o currículo já foi amplamente destacada. Com base nesses trabalhos, suas referências e a organização que propõem para pensar as produções acadêmicas, argumentamos que, mesmo quando negado, o conhecimento tende a ser pressuposto como identificação curricular ou algo - uma propriedade - a que o currículo deve responder. Nossa expectativa ao revolver momentos do pensamento curricular não está em afirmar um fundamento ou caminho de leitura obrigatório. Ao pinçá-los, buscamos demonstrar como dada leitura circula no campo do currículo, de modo a pensar uma construção discursiva constitutiva do que conjecturamos como um pensamento político-curricular, expressando a impossibilidade de separação do que vêm a ser as produções acadêmicas e a produção de políticas de currículo. Pensamos, nesse sentido, que há um campo discursivo curricular dinamizado por distintas leituras em constante tradução (Lopes, Cunha e Costa , 2013), remarcando a impossibilidade de uma origem na política.
Nossas apropriações de Derrida e Laclau ajudam a conjecturar uma interpretação do campo do currículo com vistas a defender esse nome como uma subjetivação precipitada em resposta a uma alteridade desconhecida, imponderável (Derrida, 2006). As aproximações entre os autores incorporadas a este trabalho tentam dar conta de pensar a subjetivação como movimento de hegemonização de uma leitura de currículo marcada por um movimento contínuo de afirmação e perda de si. Como pontua Laclau (2011), ao mesmo tempo em que é afirmada uma leitura hegemônica, essa hegemonia é subvertida na revisitação do que se julga ser um mesmo significado. Com isso, a hegemonia nunca é plenamente alcançada, permanecendo também como horizonte político.
Outra associação importante entre esses autores está na impossibilidade de transparência ao outro na política, haja vista ser desconhecida a alteridade à qual se responde em precipitação, como pondera Derrida (2006), ou ser trapaceira e furtiva ao controle, como assinala Laclau (1990). A articulação dessas leituras possibilita uma abordagem negativada sobre a subjetivação. Dessa forma, não sendo possível conhecer plenamente a que o currículo se constitui em resposta, restaria buscar interpretar, pelas respostas dadas, o que é significado como seu exterior ou ameaça.
Ponderados esses aspectos, este artigo organiza-se de maneira a focalizar na primeira seção a organização teórico-estratégica por meio da qual procuramos pensar oportunidades interpretativas da problemática em questão. Introduzimos operadores interpretativos da dinâmica da política, dos processos de subjetivação constituintes dessa política, por meio de decisões em resposta à alteridade questionadora que escapa ao cálculo. Pontuamos os processos de subjetivação como movimentos caros às significações contextuais, traduções executadas em resposta ao que se toma por ameaça ou questionamento em dado contexto. Com a incorporação dessas discussões aos estudos curriculares, na seção seguinte, organizamos uma leitura curricular por meio da qual pensamos as produções no campo, as políticas de currículo.
Apoiados em tal discussão, visamos destacar como distintos trabalhos considerados icônicos no pensamento curricular enfatizam uma perspectiva de precisão sobre a significação do conhecimento no e para o currículo. Defendemos, em nossas considerações, tratar-se de uma dinâmica hábil em conferir amplitude ao debate, de modo a reiterar uma relação binária no pensamento curricular, qual seja, a de projetar o conhecimento como atado a um mundo objetivo ou como relacionado à experiência produtora de sujeitos. Essa dinâmica estaria entrelaçada a uma subjetivação curricular que tenta se afirmar de uma vez por todas, fechando a significação de si como (e em resposta) controle do outro (não só aluno, professor, indivíduo vislumbrado, suposto, mas tudo/todos aquilo/aqueles que não se pode/podem cogitar e que podem estar questionando, ameaçando, decidindo, relacionando-se com o cosmo curricular).
ESTRATÉGIA INTERPRETATIVA DA POLÍTICA
Concordamos com Laclau (2011) ao compreender a exclusão e o antagonismo como constitutivos na política: a subjetividade é precipitada como efeito de uma decisão política, sempre relacional diante daquilo com o que se antagoniza. A subjetivação deixa de ser desdobramento de um trabalho de reconhecimento do que a estrutura organizaria e passa a ser uma construção política para além de fundamentos. O foco de uma pesquisa sobre a política estaria, assim, na discussão sobre as subjetividades produzidas nas articulações de demandas estabelecidas, contingencialmente, em torno de determinadas lutas/nomes da política. O sujeito não é concebido de uma essência ou história de vida, experiência, engajamento a priori a uma causa que lhe coordena as decisões. O sujeito é discursivamente constituído de demandas sociais articuladas em um momento equivalencial: um efeito dos sentidos circulantes e articulados, provisoriamente, na relação com um significante.
Com base nessa abordagem da subjetivação, pontuamos, com vistas à lógica da diferença (Laclau, 2011), um caráter de não consciência da decisão política. O sujeito constitui-se nessa decisão, transitoriamente, em dinâmicas que jamais cessam, justamente por serem incontroláveis (são desconhecidas). Por meio de uma lógica equivalencial, operam movimentos de coalizão, de busca por reconciliação. Tais fechamentos da significação só ocorrem quando é encontrado seu limite, definido a partir do momento em que é determinado um exterior ou um antagonista aos elementos diferenciais envolvidos no processo articulatório. Para Laclau (2011), o sistema é resultado direto de seu limite excludente, constituído em resposta a algo exterior que o bloqueia ou nega.
Esse antagonismo a outras diferenças dispersas no todo social oportuniza uma cadeia na qual tais diferenças se tornam equivalentes, ainda que nunca sejam iguais (Laclau, 2011). Ou seja, formam uma equivalência na oposição ao que as exterioriza, ao mesmo tempo em que estão produzindo sentidos diferenciais furtivos como infrações silenciosas, como pontua Derrida (1991) ao tratar da différance.
Um duplo movimento consiste em articulações de singularidades que, visando ao impossível lugar comum, sempre o afirmam, afastando-se dele. Uma vez que o significado da própria comunidade de sujeitos não é acessível (Costa e Lopes, 2018a), não há possibilidade de acesso a algo concebido como próprio, só há ilusão de equivalência entre diferenças em um nome julgado antagônico. Como uma eventual propriedade do pleito, da demanda, aquilo que o fundamentaria seria de ordem inacessível (Laclau, 1990, 2011), uma lógica de deslocamento: um movimento de irreconciliação, de relação impossível entre objetos, o inominável contido em uma pulsão na decisão, na constituição de demandas. Nesse sentido, um enfoque teleológico deixaria de estar no cenário das políticas, passando a apresentar-se como mais um nome. Ler o social como constituído de processos de significação é conceber a inexistência de centros fixos capazes de determinar anterioridades e posterioridades à decisão política, a uma subjetividade.
Importa destacar que, se a significação não é estancada, isso se dá pela performance em falar, tratar, acusar, defender, reaver; são significações provisórias de nomes tidos como importantes em determinado momento da política. Com essa visão, pensamos ser possível enfocar a política curricular, o sujeito e o conhecimento como nomes importantes de serem abordados nos termos das disputas por sua significação, como adiamentos de um vir a ser propriedade, como estruturação.
A estruturação discursiva consiste na tentativa constante de fechamento, assim como o é a abertura do campo da discursividade como surplus de sentido. Todo discurso ambiciona dominar o campo discursivo, fixar e deter o diferir e, contingencialmente, definir o cerne da significação.
A perspectiva derridiana de uma alteridade toda outra (Derrida, 2006) auxilia na compreensão desse dínamo externo a um “eu” na política. Trata-se de uma total e estranha alteridade, nunca acessada, mas somente cogitada desde que se suponha seu questionamento. Derrida constitui, por intermédio de sua visão de inscrições no mundo como texto, a perspectiva de tradução como única forma de interação com a alteridade.
Para Derrida (2006), importa entender a leitura/tradução como produtora de sentido, de discurso, como prática de subjetivação. A tradução/textualização/escrita é a aceitação do compartilhamento, do trânsito e da abertura de canais de comunicação na direção do outro. Por essa lógica, os significantes não têm sua unidade garantida, não têm um centro reconhecível, ainda que jamais cessem as tentativas de gerá-los. A alteridade sempre irrompe de modo singular, interpelando a identidade a decidir, traduzir, suplementar a escrita. Tal concepção implica ter em mente que, ante a textualização do mundo, ao esvaziamento/ruptura dos contextos e dos significantes (e a simultaneidade das demandas mobilizadas pela busca em responder àquilo sobre o que não se tem conhecimento), é que iteramos na política.
Vale considerar que, com tal leitura, Derrida não está propondo uma postura anticálculo, a qual poderia ser lida em determinados contextos como anticiência ou anticonhecimento. Reiteramos Lopes (2018) em sua afirmação do cálculo e de suas substituições metonímicas - a razão, o conhecimento, a ciência - como discursos situados em dadas relações de poder capazes de nos possibilitar saber o máximo possível para orientar - nunca programar - uma decisão, ainda que não seja possível saber tudo. Esse tudo é sempre inalcançável não por ser inacessível - algo que nos espera no ponto ao qual não podemos chegar -, mas por estar sempre submetido à tradução.
O acontecimento da tradução do conhecimento é acenado na produção do novo sobre o intraduzível. Não decorre de uma amostra ou trampolim da interpretação: é a produção de outro texto. Para Derrida (2001), ainda que suponhamos falar a mesma língua, como em uma ideia de operarmos de maneira transparente na linguagem, no máximo conseguiríamos idiomatizar diferencialmente, fazendo inscrições traduzidas indefinidamente na opacidade da linguagem. Toda produção é sempre uma relação artesanal com a língua, sempre desdobrada em diferentes idiomas, como em diferentes inscrições na escrita em uma contextualização radical. Ainda segundo Derrida, a diferença é o que não pode ser apropriado, é o que resiste ao controle.
O possível é a tradução, que interdita a constituição plena do significado, ao mesmo tempo em que concede, pela iteração, a produção de sentidos. Trata-se de um jogo sempre marcado com lances cujas regras são desconhecidas da história, da razão e do cálculo, de uma economia do jogo. A ideia de responsabilidade, assim como as de singularidade e alteridade, é introduzida por Derrida (2006) também como elemento reflexivo sobre a constituição ou promessa de sujeito/subjetividade. Não falamos de um outro identificado como ou no antagônico, mas um estranho todo outro que é todo outro (Derrida, 2006). É uma subjetivação acontecida na/da resposta contemporânea à questão imprevista que irrompe e impõe a urgência de uma resposta, de um preenchimento daquilo que passa a vagar na estrutura - a esta altura e desde sempre alterada.
Para Derrida, ao se ver vista pelo olhar do absoluto todo outro (Derrida, 2006), a subjetividade constitui-se em resposta nessa aporia, dando a primeira resposta possível: eis-me aqui. Essa resposta delineia todo um momento do pensamento ocidental de exposição à alteridade divina questionadora (Derrida, 2006, p. 84). A resposta, segundo Derrida (2006), é a única forma de apresentação de si àquele/àquilo que conhece intimamente e prova/testa e que assinala a suposição de toda responsabilidade. Responder à invocação daquilo que escapa e está para além do conhecimento e do cálculo sobre tudo é um esforço e temor contínuo disso que diz ser sujeito.
A falta de controle e de meios de saturação sobre a vida, no pensamento aporético derridiano, possibilita a leitura de que se impõe, sem racionalização ou cálculo, um dever absoluto, uma obrigação de responder ao todo outro irrefreavelmente. Um dever absoluto é a resposta que não se pode negar à potência de uma toda outra alteridade. Responder ao não racional é condição à interação. Não se sabe sequer se a resposta ou mesmo a pergunta é isso que se supõe tangenciar, mas um dever impele à decisão. Para Derrida (2006), essa ocasião de resposta é o momento da responsabilidade (irresistível movimento de resposta) que precipita o sujeito, que matiza a incapacidade de apropriação de um conhecimento sobre tudo ou de que não se pode saber tudo; resta uma apreensão frágil, diferencial e parcial de uma verdade, de uma realidade, de um social, do sujeito, do próprio conhecimento.
Em convergência a essa perspectiva, Laclau (1990, 2011) pensa a subjetivação como precipitada na decisão, na busca por responder na política fora de um registro de razão ou condução teleológica. A resposta não racional em Derrida e a decisão na interpretação de uma alteridade lida como ameaçadora em Laclau operam a visão do sujeito como momento na política, como resposta à suposição de um questionamento ao qual não se pode escapar.
Consideramos que uma apropriação possível da teoria do discurso se organiza na perspectiva de interpretar a subjetividade como em relação a um para além, um adiamento constante. Em Laclau (2011), o para além, que limita uma plenitude subjetiva, ao mesmo tempo que auxilia na refutação de um horizonte, questiona todo fazer como implicado nas articulações voltadas à hegemonização de horizontes singulares. O para além é uma interdição, é o que escapa, é uma alteridade radical/todo outro ao que diz (ou quer dizer) eu. Pelo estranhamento que causa, pela impossibilidade de deter seus próximos passos/movimentos, impõe a identificação/subjetivação, imprecisamente, na decisão.
O temor que incita a identidade ao cálculo, à expectativa de controle, aproxima-se do que Laclau propõe ser a tentativa de fechamento do discurso, do significado, do sujeito. Essa tentativa jamais encontra sucesso, pois sempre lida com uma estranheza dinâmica que altera as regras do jogo a cada jogada (Laclau, 1990). Por sempre haver sentidos que escapam à articulação, fundando novas articulações, sempre há simbolização provisória do antagônico, de um centro ou estabilização.
A decisão que marca a subjetivação é considerada por Laclau como o momento da articulação política. O autor pontua que, em uma condição de não saber, decide-se ante a ameaça (o não conhecido, interpretado como opressivo), enlaça-se naquilo desconhecido (a cadeia de equivalência) que se lê como oportunidade de intervenção, de influência sobre determinada questão, sem saber o devir da política, sem controlar as sucessões dessas decisões, um contexto (Derrida, 1991).
Há incontáveis respostas constitutivas/expressivas de antagonismos simbolizados no texto de qualquer política, entre elas a política de currículo examinada por nós. Entre tais antagonismos, chamamos a atenção para o que se desenha na relação entre duas perspectivas aqui focalizadas como disputando a significação do currículo como conhecimento. Interpretamos esse movimento como hábil em projetar uma restrição do debate curricular tendo o conhecimento como fundamento.
Essa tensão, como construção contextual na política, possibilita questionar o que, nesse movimento de denegação de tudo o mais diferencial possível de ser pensado como conhecimento, estaria fora ou não seria dito no debate curricular sobre conhecimento. Tais identificações hegemonizadas e conflitantes nessa política operam respostas incessantes, em diferentes momentos de um texto geral da política, a isto que parece querer bordejá-las: uma alteridade imponderável, um estranhamento em relação àquilo que é lido como questionamento do significado do currículo, do conhecimento, do sujeito.
Apresentamos tais argumentos como respostas àquilo que se quer combater, como marcas das lutas pela denegação do conhecimento no currículo, um movimento de cálculo/controle sobre o sujeito que se supõe estar restrito a esse conflito. Consideramos, todavia, que o embate e sua definição tendem a constituir um cerceamento da significação do conhecimento como acontecimento contextual e provisório, como decisão/precipitação subjetiva.
Nossa preocupação é chamar a atenção para isso que é insondável, mas passível de simbolização: todo outro simbolizado no antagônico, mas que opera o inenarrável pensamento curricular; aquilo que dinamiza a produção discursiva do que é o currículo, da política curricular; o motivo de todo movimento de significação do que é ou deve ser o conhecimento, o sujeito, o mundo.
CURRÍCULO E CONHECIMENTO
O conhecimento e as próprias concepções de currículo mudam no pensamento curricular em função dos contextos e das finalidades sociais projetadas (Lopes e Macedo, 2011). As autoras também apontam o quanto é recorrente no âmbito do pensamento curricular brasileiro, a despeito das diferentes perspectivas, o questionamento sobre os conhecimentos que importam ao currículo.
Interessa-nos recuperar a ideia de uma perspectiva de substituição de estruturações do currículo e, consequentemente, da função estruturante do conhecimento para determinado sujeito operante/projetado em dado contexto. Em dado momento, diferentes leituras curriculares aglutinaram-se em torno de uma perspectiva de conhecimento científico como base para a construção de sujeitos para a atuação em um projeto de sociedade. As críticas a essas visões levam, em linhas gerais, a duas outras linhas interpretativas, as crítico-reprodutivistas e as de emancipação e resistência, que, apesar das diferenças, preconizam formas de conhecer capazes de conscientizar/formar sujeitos para uma leitura social crítica, para o reconhecimento de si na estrutura social de classes e com sua consequente capacidade de se mobilizar visando à transformação social e ao envolvimento com propósitos contra-hegemônicos. Isso é a emancipação que uma estrutura curricular via conhecimento, por exemplo, tenderia a propor como finalidade para o currículo.
Conhecimentos científicos, crítica à seleção do conhecimento imposto e reprodutivista, conhecimento emancipatório, mas ainda assim uma propriedade de conhecimento. Não a esmo, mas para dinamizar uma função curricular que instaria à formação, preparação, construção de um sujeito; para um mundo que possivelmente não se conhece, mas que se precisa conhecer, criticar; para que seja o sujeito/cidadão, tenha consciência, saiba tomar atitudes, saiba produzir, possa subverter, produza seu próprio conhecimento, sinta, perspective o mundo. Estas são leituras recorrentes, como assunções no e para o currículo que marcam, ainda que constituindo uma bruma quanto à definição última sobre o conhecimento, o que é essa propriedade. Tomamos como uma impossibilidade última de fixação, mas uma hegemonia da defesa de certo conhecimento para um sujeito em contexto.
Os trabalhos de Franklin Bobbitt são considerados majoritariamente como a corporificação de sensos eficientistas no currículo (Kliebard, 2011). Como curso de vida, o currículo consistiria num conjunto de “coisas que as crianças e jovens devem fazer e experimentar para desenvolverem capacidades para fazerem as coisas bem feitas, que preencham os afazeres da vida adulta, e para serem, em todos os aspectos, o que os adultos devem ser” (Bobbitt, 2004, p. 74). Ainda que, como assinalam Pinar et al. (1995), Bobbitt não tenha discutido diretamente uma perspectiva de conhecimento, sua teorização aproxima-se da administração científica pela defesa de um conhecimento derivado da ciência, capaz de orientar a produção de sujeitos para uma atuação produtiva, cujo cerne estaria na ideia de uma cidadania adulta. Tanto o conhecimento como o contexto no qual o sujeito deve se inserir são considerados dados passíveis de cálculo.
Sob o pressuposto de falta de eficiência social via escolarização, Bobbitt defende a necessidade de que a escola crie meios para que tal preparação ocorra de modo funcional, fazendo uma conexão direta, por meio do conhecimento objetivo da ciência, entre os estudantes e a sociedade, lida como produção, como atividade econômica. Como destacam Pinar et al. (1995), entre as principais respostas críticas à leitura objetivista de Bobbitt estão as abordagens curriculares progressivistas, em muito associadas ao nome de John Dewey. Segundo Lopes e Macedo (2011), por meio de conceitos centrais, como inteligência social e mudança, Dewey defende que a finalidade social da escola deveria ser a compreensão dos interesses das crianças pela experiência escolar. Para o autor, a visão de Bobbitt marca uma lacuna entre a escola e as demandas estudantis, negligenciando os pleitos das crianças em prol de uma formação para a vida adulta/produtiva.
Para Dewey (1959), o conhecimento precisa estar envolvido com a experiência, de maneira a ser apropriado gradualmente e em função dos desafios vividos pelas crianças. Nesse sentido, ele pontua a necessidade de vinculação dos fenômenos cotidianos aos reconstruídos pelo conhecimento, este cuja constituição seria a meta da construção, pensado como algo que deve ser, então, aplicado na solução de problemas.
Dewey afirma ainda que o conhecimento não pode ser pensado como contemplação de um espectador descompromissado (Dewey, 1959); implica uma forma de controle pautada na relação teoria-prática, em uma relação entre currículo e conhecimento (Biesta, 2014), com vistas a empoderar sujeitos para lidar com diferentes situações em distintos contextos e a projetar futuros com propósito. O conhecimento socialmente acumulado é tomado como corpo social capaz de dar propósito à vida social, cabendo ao sujeito a construção de um significado voltado à expansão e ao melhoramento da experiência pessoal e social, que teria como horizonte o desenvolvimento de atitudes democráticas (Lopes e Macedo, 2011; Biesta, 2014). As experiências produzidas nas escolas, os conhecimentos definidos para a escolarização com base em sua interação com os alunos são princípios de organização curricular, opondo-se, assim, ao encadeamento de procedimentos para uma suposta vida adulta produtiva, como ponderado por Bobbitt, ou outro tipo de horizonte que não aquele constituído dos interesses e questões alheias aos estudantes.
Segundo Jackson (1992), no que diz respeito ao conhecimento, os diferentes teóricos eficientistas e progressivistas tendem a se aproximar, o que de certa forma contribui para que se entenda a abordagem eclética, envolvida com o eficientismo e o progressivismo, do pensamento de Tyler (Lopes e Macedo, 2011; Kliebard, 2011). Além de supor o conhecimento científico como propriedade inexorável, para Tyler (1949) as formas de controle sobre o processo de produção do conhecimento visam garantir o êxito curricular. Segundo o autor, devem ser consideradas as experiências externas à escola, a fundamentação científica (elaborada por especialistas), a psicologia comportamental e a avaliação, para aferir a apropriação do conhecimento definido a priori. O currículo reduzido à metodologia e ao controle sistemático da formação de sujeitos funcionaria como mecanismo social de garantia da transmissão do conhecimento e de combate à dispersão do fazer escolar.
Para Jackson (1992) e Pinar et al. (1995), os autores associados ao pensamento progressivista e eficientista operam a ideia de que os conteúdos ministrados na escola precisam estar baseados nos conhecimentos dos especialistas acadêmicos, em seus saberes e em referência filosófico-científica. Tal leitura, embora projete finalidades sociais e conceba a significação do conhecimento por vias distintas, pensa metodologias e sistemáticas precisas para o ensino de uma forma de conhecer considerada indiscutível e crítica a outras formas de conhecer, pois envolvidas em um propósito lido como seguro e desejável a todos.
Assinalados esses argumentos, salientamos debates que, de algum modo, permitem localizar um movimento comumente nomeado como crítico, interpretado como oposição às visões eficientistas e progressivistas. Seguimos a sugestão de leitura de Lopes e Macedo (2011) e Pinar et al. (1995), ao organizar os trabalhos envolvidos com abordagens macro e microssistêmicas em estudos crítico-reprodutivistas e de emancipação e resistência, mas que possuem na afirmação da centralidade do conhecimento um ponto reconhecível.
Consideramos o pensamento althusseriano como emblemático e influente na construção de uma comunidade crítico-reprodutivista. Na visão de Althusser, o caráter de aparelho ideológico da escola está em funcionar na cooptação das diferentes classes por meio da função formadora de trabalhadores e, indiretamente, pela atuação na difusão ideológica via conhecimento e atitudes baseadas na identificação com ele (Lopes e Macedo, 2011). Pontuamos que o pensamento althusseriano oportunizou a construção de um filão crítico, com eixo na problematização da ideologia, no qual foram produzidos diferentes trabalhos, de distintas leituras de currículo e de ideologia, tais como os de Michael Apple, Peter McLaren e Henry Giroux (Pinar et al., 1995).
Para Apple (1989, 2006), a reprodução é construída no cotidiano dos indivíduos, que são constrangidos por mecanismos controladores de suas atividades e formas de conhecer. O autor defende a necessidade de que o encaminhamento de uma reflexão curricular crítico-reprodutivista se desenvolva em pesquisas capazes de atentar para a escola, algo desconsiderado pela maioria dos pensadores reprodutivistas. Lopes e Macedo (2011) argumentam que, para Apple, importa a tensão sobre as relações entre o conhecimento dado como oficial e os interesses dominantes na sociedade (Apple, 1989). Para Apple (2006), o conhecimento não está restrito ao conjunto de conteúdos oficialmente definidos, mas também às normas e valores constitutivos do currículo.
Segundo Apple (2006), subjaz ao currículo formal todo um conjunto de relações políticas operantes nos cotidianos das escolas capazes de sustentar as decisões curriculares, a construção de suas tradições e o desenho de suas finalidades sociais. Com esse constructo teórico, o pensador projeta sua crítica a autores progressivistas e eficientistas, defendendo que o foco metodológico oculta uma dimensão ideológica hegemônica de conhecimento do mundo pautada na segregação classista. Sua crítica, entretanto, ressalva que a escola não é espaço de reprodução de diretividades, afastando-se de visões como a de Bowles e Gintis, por exemplo. Para Apple (1989, 2006), o conhecimento deve ser concebido para a construção de consciência crítica. O autor pondera que as redes de escolas são atravessadas, via trabalho de professores, por conhecimentos não criticados, capazes de distribuir valores e compromissos alheios a uma agenda crítica e/ou contra-hegemônica.
Tal como assinalado por Macedo (2012), Apple reforça a discussão sobre o conhecimento ao supô-lo propriedade sobre a qual deve ser produzida uma consciência emancipadora do sujeito. Ou seja, não haveria outro conhecimento capaz de emancipar o sujeito, mas uma forma de refletir com base nele, esta dinamizadora de um horizonte transformador. Com a perspectiva de ideologia como falsificadora das formas de conhecer, uma posição crítica de currículo inseriria a possibilidade de emancipação ao substituir um conhecimento por outro. Seria mantida a abordagem à estrutura, só que por meio de uma apropriação crítica do conhecimento, e isso levaria à possibilidade de, jogando o jogo do outro (muitas vezes significado pelo autor como a orientação política de direita ou o mercado), operar formas de emancipação do sujeito que não pode ser enquanto não é submetido à conscientização por uma nova forma de conhecer.
Também em uma abordagem crítica, Michael Young, um dos principais pesquisadores envolvidos no movimento da Nova Sociologia da Educação (NSE), volta-se igualmente para a relação entre currículo e conhecimento. Para ele, que assume uma atualização de perspectivas defendidas em seus trabalhos anteriores, urge a consideração das mudanças sociais e a modificação dos próprios estudos e propostas curriculares. O questionamento sobre uma atualidade curricular deve, segundo o autor, atentar para que tipo de conhecimento os jovens têm recebido. Young pontua haver atualmente um movimento de valorização das experiências dos sujeitos capaz de levar a um esvaziamento dos conteúdos escolares ministrados via disciplinas escolares.
Para Young (2007, 2011), a organização curricular por disciplinas segue sendo a forma mais confiável de produção de conhecimento. O autor pondera que, apesar de o conhecimento estar sujeito a críticas e mudanças, é a propriedade mais segura a que se pode recorrer em termos de formação de sujeitos para a sociedade. Para ele, a segurança das disciplinas está em sua íntima vinculação aos conhecimentos produzidos pelas comunidades de especialistas (pesquisadores dos campos de conhecimento acadêmico-científico associados às disciplinas). Nesse sentido, o autor considera que, por vivermos em uma sociedade do conhecimento, o conhecimento especializado deve ter centralidade no currículo.
Se na visão tradicional o conhecimento é defendido como algo a ser cumprido, na lógica de Young (2007, 2011) ele é algo a ser engajado na formação de sujeitos para a sociedade do conhecimento. Na revisitação de sua obra, o autor assinala uma visão de conhecimento como propriedade a ser assegurada aos estudantes, que, uma vez de posse do que denomina conhecimento poderoso, seriam capazes de alcançar uma leitura confiável de mundo. Isso conferiria legitimidade social à escola. Assim, não só o conhecimento é assumido como um dado transparente, passível de aquisição e de construção do sujeito que o possui, como o mundo, definido por esse mesmo conhecimento, passa a ser dado como critério de leitura de realidade.
A circunscrição do mundo à visão especializada de conhecimento tende a limitar leituras outras de currículo, do nome “conhecimento” e do ser sujeito no mundo. Diferentemente de autores como Apple, e mesmo daqueles envolvidos com o progressivismo como Schwab e Stenhouse, Young faz nova inscrição no pensamento curricular, desta vez retomando suas defesas entre os estudos da NSE, só que para lançar o conhecimento acadêmico-científico ao centro do debate. Com esse movimento do sujeito crítico às formas negligentes de conhecer, ser sujeito no mundo passa a estar vinculado a deter o conhecimento especializado suposto como capaz de produzir leituras seguras de mundo. Com a afirmação do mundo como do conhecimento, ser incluído nesse mundo é necessariamente conhecer aquilo que faz do mundo ou da sociedade uma sociedade do conhecimento. Não deter tal conhecimento, tendo em vista suas vinculações, é estar excluído do mundo. O sujeito só pode ser incluído no currículo defendido por Young se identificado como portador de um conhecimento objetivo.
No Brasil, os trabalhos de Young ressoaram em produções como as de Antonio Flavio Moreira. Concordamos com Macedo (2013), quando afirma que Moreira teve sua obra influenciada por distintas leituras, tendo sido marcado pelo pensamento da NSE em diálogo com os estudos culturais (Moreira, 2002) em dado momento e, em trabalhos mais recentes, passou a assumir posturas mais universalistas (Moreira, 2010), também de forma próxima a Young. Em seus trabalhos, Moreira (2004, 2005, 2007, 2010) não só assume o conhecimento como central para o currículo, como aponta para a cultura (discussão cara aos argumentos pós-estruturais) como motivo pelo qual o conhecimento tende a perder força. O autor defende, como Young (2007, 2011), a primazia da visão de currículo como seleção e distribuição de conhecimentos. Igualmente, Moreira (2010) pondera a função auxiliar da cultura, ao pensá-la como aquilo sobre o que as preocupações do conhecimento se debruçam. Tal perspectiva ressalta a visão estrutural que focalizamos, inclusive ao supor conhecimento como um extrato selecionado da cultura e como propriedade de dado contexto social a ser utilizado para provocar determinado resultado social (justiça, igualdade) quando desenvolvido na escola (Moreira, 2010).
Emblemáticas dessa relação entre conhecimento e cultura também são as produções de Silva (2009), que incorporou distintas leituras pós-estruturais, majoritariamente de matriz foucaultiana, ao campo do currículo no Brasil. Ao se concentrar na discussão de identidade em suas relações com o currículo, Silva (2009) acena para o conhecimento como meio de construção identitária. Para ele, o conhecimento não estaria limitado aos cânones da ciência, mas também realça aqueles produzidos cotidianamente. No entanto, tal como destaca Macedo (2013), a identidade seria resultado da aprendizagem de um conjunto de conhecimentos, reincidindo na visão de que determinada formação subjetiva/identitária depende da aquisição de sentidos alheios ao sujeito e que precisam ser apropriados.
Destacamos também as produções de Saviani e Libâneo que, ainda que frequentemente associadas ao campo da didática, influenciam o campo curricular brasileiro com abordagens apoiadas no materialismo histórico. Em seus trabalhos, Saviani (2003) incorporou enfoques marxistas para pensar a escola como espaço capaz de promover mudança social por meio da socialização do conhecimento sistematizado. Afastou-se de visões crítico-reprodutivistas, progressistas e de teóricos da correspondência, como destacam Lopes e Macedo (2011), para afirmar que professores e alunos devem atuar com vistas à apropriação crítica da cultura socialmente acumulada. Para o autor, o conhecimento universal, produzido pelas leis científicas, é objetivo e, consequentemente, extrapola os interesses pessoais e momentos sociais. Tal conhecimento, uma vez convertido como saber escolar, é o eixo da Pedagogia Histórico-Crítica (Saviani, 2003, 2016). O conhecimento crítico é o cerne das possibilidades de formação de sujeitos conscientes e hábeis em produzir mudanças sociais.
Para Saviani (2003), assim como Young (2007) e Moreira (2010), o currículo deve ser definido pela centralidade do conhecimento, caracterizando o trabalho docente e, por conseguinte, a função social da escola como espaço privilegiado para transmissão. O pensamento de Saviani, nesse sentido, tende a se aproximar da perspectiva de conhecimento poderoso de Young, também por supor que determinada propriedade de conhecimento seja capaz de tornar o sujeito, ainda que possa divergir fortemente da noção de transformação social pretendida por Young.
Libâneo (2000), em diálogo com o pensamento de Saviani, aborda as relações envolvidas com o ensino, defendendo a ideia de uma teorização crítico-social dos conteúdos escolares. Para o autor, tais conteúdos, pensados como os conhecimentos sistematizados, habilidades, atitudes, convicções e valores, devem ser expostos à crítica com foco na conscientização dos sujeitos sobre sua realidade cotidiana. Embora não considere a escola como único espaço para a interação com tais conteúdos, Libâneo atribui à escola o papel de sistematização de processos de ensino-aprendizagem que levem os estudantes a construções conceituais críticas ao mundo.
Como não nos colocamos em nenhum lugar supostamente privilegiado, fora dessa formação discursiva, destacamos o quanto o discurso de centralidade de conhecimento foi hibridizado por nós mesmos a outras perspectivas teóricas. Na discussão de Lopes (1999), o conhecimento é classificado e adjetivado como científico ou escolar por meio de características muitas vezes interpretadas como propriedades inerentes, remetidas a uma estrutura garantidora de tais características. Nessa perspectiva, o currículo é uma extração de parte da cultura, marcada por relações de poder que orientariam a configuração do que é extraído, como uma substância após um processo de filtração produzida pelo tempo (a história) e pelo espaço (a escola).
Destacamos também que, em movimento marcado por abordagem da experiência escolar em enfoque microcósmico, os estudos de resistência e emancipação incorporam aportes marxistas, weberianos, fenomenológicos, hermenêuticos e de diferentes conjugações entre essas lentes teóricas. Esse conjunto de trabalhos, segundo Lopes e Macedo (2011), consolidou-se como bandeira crítica às teorizações de cunho eficientista, instrumentalista e comportamentalista, mas também às visões crítico-reprodutivistas, acusando estas últimas de reforçar a reprodução ao não atentar às práticas escolares de professores e alunos como resistência (Pinar et al., 1995; Lopes e Macedo, 2011).
Para os defensores da resistência, teorizações reprodutivistas favorecem uma perspectiva política de pouca esperança de mudança, conferindo ao pensamento curricular a visão de não haver escape às determinações capitalistas dominantes. O pensamento de resistência defende perspectivas centradas na escola, nas experiências locais, por vezes buscando sua interação com contextos sociais mais amplos, por outras, visando a uma contradiretividade (ou contra-hegemonia) com foco na potência cotidiana, projetando o sujeito como ativo na produção de conhecimento via empoderamento de suas leituras de mundo, mediante uma apropriação crítica do mundo por intermédio de conhecimentos produzidos pelas redes de solidariedade locais.
Giroux (1986), especificamente, pensa o trabalho docente como produção intelectual que, uma vez envolvida com a agenda crítica, favoreceria a produção de um conhecimento capaz de levar à conscientização sobre as formas de dominação e exclusão. Para ele, esse modo de conhecer, atado ao compromisso com a transformação social, deve caracterizar a atuação docente. Assim, a intelectualidade também circunscrita às lentes do pensamento crítico é reduzida à significação do social, de ser sujeito, de conhecer no mundo, como em uma relação transparente com a alteridade, em uma reafirmação metafísica.
Ainda que em digressão ao pensamento reprodutivista, Giroux (1986) reafirma uma perspectiva de currículo baseada no conhecimento, cuja construção ou posse constitui o sujeito (intelectual). A posição defendida por Giroux, como emblemática do pensamento da resistência, resguarda a afirmação do conhecimento como propriedade (ou critério para correta leitura) no mundo, deslocando-o de uma abordagem macro para uma construção microssistêmica: a prática escolar, defendida como centro de uma estrutura de produção de conhecimento e empoderamento do sujeito por meio de dada forma de conhecer sem a qual não é crítico/intelectual. Tal centralização, crítica às visões cientificistas objetivas, distende da ciência para a militância o contexto privilegiado de construção de dado conhecimento a condicionar leituras de mundo para um horizonte desejável ao sujeito.
Em leitura aproximada à de Giroux, Willis (1991) destaca maneiras de refutação ou apropriação dos conhecimentos impostos à escola pelos estudantes. Para além das diretividades propostas à escola, não haveria um controle último dos sujeitos, pois eles interagem com o conhecimento tendo em vista os significados produzidos na experiência. O autor assinala uma leitura de currículo como proposta e a resistência como produção contracurricular, destacando o conhecimento emancipador como derivado de um envolvimento informal dos jovens, constituindo um senso de crítico de classe. Tal como em Giroux ou mesmo em Apple, o sujeito é pensado como constituído de um conhecimento lido como propriedade a ser adquirida. O senso de classe, como conscientização crítica, caracteriza a ontologia emancipada ou consciente para a emancipação. O conhecimento estruturaria, nesse caso, a própria vida e a perspectiva constituída sobre essa vida, assumindo também, ainda que sob leitura diversa, a centralidade de uma lógica curricular de mudança social.
Pensadores como Paulo Freire têm sua teorização como referência para muitos trabalhos de resistência, tais como os de Giroux e Peter McLaren (Pinar et al., 1995). Lopes e Macedo (2011) ponderam que a obra de Freire ressoa amplamente no movimento crítico, com base no amplo diálogo do marxismo com as perspectivas da fenomenologia e do existencialismo. Essa interação oportuniza a defesa do diálogo com os sujeitos da escola, a defesa da interlocução, da produção de um conhecimento emancipatório que se pautaria em uma visão crítica do mundo e na produção contextual de sentidos para o conhecimento, com significado para a vida dos sujeitos, capaz de empoderá-los contra as formas de opressão produzida pelo sistema educacional.
Dessa forma, mesmo submetidos a uma macroestrutura, os indivíduos operam de forma emancipatória e subversiva, pela relação com um conhecimento potente para a transformação da consciência. Nesse sentido, é pela construção autônoma e reflexiva que o sujeito emancipado se constitui, na construção de um conhecimento de si no mundo em que se vê inserido.
No Brasil, destacamos nesse enfoque os estudos nos/dos/com os cotidianos, que ganham força na década de 1990 a partir dos trabalhos de Nilda Alves, muitos deles em parceria com Regina Garcia. Tais trabalhos apoiam-se marcadamente no pensamento de Michel de Certeau, também em diálogo com Foucault, Deleuze e Guattari, além de Boaventura de Sousa Santos (Alves, 2003; Ferraço, 2007; Oliveira, 2007, 2012, 2013). Enfatizam o caráter prático dos envolvimentos na produção curricular, na produção de conhecimentos cotidianos. A interação de distintos contextos nas redes que os constituem oportuniza a reflexão sobre a produção de conhecimentos e, assim, de subjetividades (Alves, 2000, 2003). A proposição de tais enfoques organiza-se em crítica às visões modernas de conhecimento e subjetividade, propondo o avanço sobre abordagens lineares e hierárquicas, interpretadas como características iluministas (Lopes e Macedo, 2011).
Segundo Lopes e Macedo (2011), a visão dos estudos do cotidiano afasta-se de perspectivas de agência que restringem atores específicos como produtores de políticas e, assim, ponderam que os praticantes são formados nas redes das quais participam na vida. Criticam também teorizações de emancipação e resistência quanto à univocidade sobre as formas de ler o mundo, ao pressupor uma teoria que, mesmo focalizando a escola, o conhecimento e seus sujeitos, o faz de forma alheia a eles ou, ainda, restringe a emancipação a determinadas formas de conhecer e conceber o mundo. Para tais estudos, importa um envolvimento com a cultura emancipatória de uma escola em suas singularidades.
Embora seja um mote a busca pela crítica a marcadores modernos e/ou iluministas, os estudos do cotidiano tendem a sustentar uma leitura de consciência subjetiva com potência para operar processos emancipatórios de subversão e/ou inversão do instituído (Fiorio, Lyrio e Ferraço, 2012; Oliveira, 2013). Com a produção de determinada forma de conhecer e ser praticante, o sujeito torna-se capaz de decidir em movimento contra a estrutura. Tais concepções reforçam proximidades dos estudos do cotidiano com as perspectivas de emancipação e resistência, uma vez que interpretam, e podem até mesmo reiterar, a estrutura como origem, como produtora daqueles lidos como subalternos/subordinados e de suas redes.
Em estudo aproximado, buscando pensar a relação entre estudos críticos, Ellsworth (1989) considera que, apesar das diferentes contribuições, há uma dinâmica de reincidência na manutenção da estrutura que sustenta o objeto de crítica (o autoritarismo, a razão de um conhecimento e a dominação). Por isso, assinala que as metas propostas pela crítica são irrealizáveis, justamente por manterem aquilo que criticam. Questões como a do empoderamento, de atitudes e conhecimentos críticos, propagadas pelo pensamento crítico, como destacam Pinar et al. (1995), são pensadas de forma tão ampla e afastada da experiência dos sujeitos que não são lidas como possibilidades em diferentes contextos culturais locais. Dessa maneira, Ellsworth sustenta a existência de uma autoridade emancipatória, como uma perspectiva autoritária de que os movimentos críticos se utilizariam para, de outra forma, impor perspectivas às escolas e aos sujeitos, fazendo o mesmo movimento que criticaram no pensamento eficientista e progressivista.
O argumento de Ellsworth (1989) volta-se ao combate de uma concepção de sujeito condicionado ou restrito a questões genéricas, como a opressão econômica, sexual, religiosa ou qualquer outra. Para ela, leituras fixas de sujeito e de futuro, de sociedade e agência se afastariam das verdadeiras problemáticas do currículo, marginalizando-as. Para a autora, interessa criticar os limites de abordagens críticas em suas defesas a um conhecimento prioritário. Destaca também que o embate de diferentes estudos críticos construiu pressupostos estruturantes ao sujeito, à sociedade e ao conhecimento, desenhando um escopo que, de per si, estabeleceu termos à concepção de conhecimento, levando a uma dinâmica de substituição de versões do mundo a serem apropriadas pelo sujeito. Dessa forma, não basta criticar uma forma de conhecer com a proposição de outra, produzida em um contexto de conscientização/resistência dos sujeitos, pois, assim, temos a reiteração de formas estruturais de conhecer para ser sujeito no mundo, levando a processos excludentes e, portanto, a circunscrições que tendem a negar uma emancipação radical.
Concordamos com Pinar et al. (1995) ao compreender que tais estudos constituem alternativas à lógica eficientista e comportamentalista do pensamento de Tyler e, simultaneamente, unem-se em crítica às teorizações reprodutivistas ou macrossistêmicas. O conhecimento, produzido nas negociações e subversões elaboradas pelos sujeitos, assume condição emancipatória porque é constituído das experiências e desafios enfrentados pelos indivíduos, ainda que em negociação contínua com a ciência.
Os estudos envolvidos com o que aqui entendemos por movimento de emancipação e resistência examinam, em um cenário de regulação e tentativas de controle, as agências, táticas, práticas e releituras levadas a termo pelos sujeitos, apoiados em suas visões de mundo, crenças e conhecimentos produzidos na/pela experiência cotidiana. Tais trabalhos carregam a afirmação da escola, das práticas cotidianas na produção de um conhecimento que estaria para além daquele projetado por uma expectativa controladora dela (Lopes e Macedo, 2011).
As contribuições dos diferentes estudos atentos ao cotidiano, marcam, segundo Pinar et al. (1995), momento do pensamento curricular pautado pela volatilização das verdades que orientam distintas nuanças do movimento crítico. Certezas firmes e horizontes emancipatórios fixos, com suas projeções de autonomia, conhecimento e subjetividade, passaram a sofrer intensas críticas. Não mais pela oposição de um movimento nitidamente organizado, mas pela concepção de uma pulverização de distintas formas de pensar os pleitos sociais de grupos que não se interpretam como pertencentes a categorias prontas e/ou apoiam visões pressupostas de futuro, pela perspectiva de que o sujeito não se encontra, não está encarnado em um indivíduo; é, porém, momentâneo movimento, resposta, afirmação, decisão.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para Pinar et al. (1995) e Lopes e Macedo (2011), a afirmação da centralidade do conhecimento no movimento crítico focaliza os pressupostos de neutralidade nas abordagens eficientistas e progressivistas, chamando a atenção para o quanto diferentes propostas, ainda que se confrontem mutuamente, reduzem o debate sobre o conhecimento à preocupação metodológica ou sistemática na produção curricular. A crítica à neutralidade do conhecimento pontua a politização e confronta a manutenção das desigualdades sociais.
Com esses argumentos, ponderamos que diferentes empreendimentos teóricos intensificaram a busca por uma leitura que assuma a impossibilidade de um acesso, de fato, à realidade, ao sujeito, à cultura, à política. Ao tratarmos do que ocorre nas escolas, o referencial objetivo de subjetividade e/ou conhecimento a ser compreendido permanece. Concordando com o destaque feito por Lopes e Macedo (2011), ainda que os trabalhos se orientem para sujeitos coletivos, produzidos de forma enredada ou contextual, a realidade contextual é tomada como essência ou fundamento analítico, possuidor de significado. Por vezes, embora se considere o caráter singular da expressão/interpretação, o sujeito é conjecturado na perspectiva moderna, pautada em uma consciência concedida pela apreensão de determinado conhecimento, ou na possibilidade de construí-la/refiná-la para determinado fim previamente definido, para uma atuação em dado contexto compulsório na vida.
Embora possuam distinções, como tradições, os diferentes argumentos teóricos abordados tendem a se manter sob a lógica logocêntrica de controle e cálculo sobre a alteridade, sobre o devir de distintos contextos de práticas, com base na afirmação de uma propriedade de conhecimento. As práticas, por sua vez, são comumente supostas como aquilo que estaria restrito, ou deveria imbuir, os fazeres de professores e/ou estudantes no ambiente escolar. Pensamos que tais leituras reduzem a perspectiva de atuação política, estando limitadas perante a ideia de que toda enunciação sobre as práticas contextuais são também práticas contextuais. Não haveria, portanto, possibilidade de estar fora de/limitado a um contexto ou mesmo de controlá-lo (Derrida, 1991).
Nessa leitura, diferentes estudos curriculares apresentam-se como buscas que, motivadas pela definição de seu objeto, são dinamizadas da aspiração à precisão/compreensão sobre a melhor proposição de formas de conhecer do/no mundo, por guias curriculares para redes de ensino, pela compreensão do que ocorre no cotidiano de cada escola e, nestas, como o sujeito pensa um todo mais amplo em que estaria inserido.
Ao abordarmos diferentes momentos do pensamento curricular, pensamos ser interessante pontuar a polarização introduzida na projeção de uma propriedade de conhecimento para pautar o sujeito do currículo e o que é o currículo. Afirmar a centralidade do nome “conhecimento”, de sua espectralização no conflito pela significação do currículo, não visa reiterar determinada potência no campo. Entretanto, chamamos a atenção para o quanto mesmo os trabalhos críticos à centralidade do conhecimento tendem a responder a esse nome como forma de inclusão ao debate curricular, reiterando sua preponderância na menção ao currículo.
Do cenário que procuramos abordar até aqui, interessa-nos destacar como o conhecimento tende a ser lançado, de um lado, à condição de produto socialmente acumulado e que deve ser resguardado na reflexão sobre os fins da escolarização. De outro lado, o conhecimento é tomado como aquilo que, oposto ao diretivo (o que é acumulado e transmitido na escola), é produzido nas formas de resistência dos sujeitos escolares. Importante é assinalar a tendência à reiteração da relação dos nomes conhecimento e sujeito como pressuposição de que fundamentam a leitura de currículo, condicionando, por vezes, a produção do segundo à definição do primeiro ou ainda de que uma conscientização (transcendental) do segundo levaria, por suas relações ou experiências contextuais, à formulação do primeiro.
A disputa no movimento de afirmação curricular por intermédio do conhecimento como forma de assegurar a um sujeito ou, ao sujeito, uma capacidade de operar em dado contexto, perfaz uma tensão interna no campo. Pensamos em uma tensão pela posse de dado conhecimento com o poder de dissolver questionamentos ao currículo, de dar um sentido transparente a si, de responder àquilo que não se decifra na relação com a alteridade que faz o currículo, como subjetivação, seguir respondendo, buscando responder de vez por todas. Argumentamos ser essa dinâmica potente na circunscrição (e, portanto, estruturação) do debate curricular em torno do nome “conhecimento”.
Segue, nesse sentido, a reiteração desse nome como fundamento ao sujeito e, nessa dinâmica, como estruturação curricular (uma busca por plenitude disso que só pode ser subjetivação curricular). Pensamos que, apesar de considerarem as diferenças entre distintas perspectivas e defesas que tendem a carregar, ambos os discursos operam uma lógica que julgamos focalizar horizonte similar, qual seja, a suposição do conhecimento cujo aprendizado teria por objetivo a formação de um sujeito para um mundo já determinado, para um contexto para o qual uma subjetividade deve ser/estar preparada. Nesse sentido, são reedições do currículo como controle, reedições de uma preocupação estabilizante e controladora da diferença, daquilo que é outro.
Não temos a pretensão de que tais dinâmicas sejam superadas, como se fosse possível que tal preocupação estabilizante e controladora da diferença viesse a ser apagada de nossas tradições curriculares e pudéssemos nos colocar fora dessa história para reescrevê-la. Temos a pretensão, talvez a simples aposta, de que com a apresentação de tais possibilidades de leitura possamos, mais uma vez1, defender o investimento radical em processos interpretativos sobre os quais não se tem pleno controle e que se apresentam como possibilidade de uma crítica radical à reificação do conhecimento.