SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.27CONOCIMIENTO COMO RESPUESTA CURRICULARREMUNERACIÓN DOCENTE Y AUSTERIDAD FISCAL: UN ANÁLISIS DE LAS REDES MUNICIPALES DE ENSEÑANZA EN LOS ESTADOS DE MATO GROSSO DO SUL Y PARANÁ índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Compartir


Revista Brasileira de Educação

versión impresa ISSN 1413-2478versión On-line ISSN 1809-449X

Rev. Bras. Educ. vol.27  Rio de Janeiro  2022  Epub 02-Abr-2022

https://doi.org/10.1590/s1413-24782022270028 

Artigos

Epistemologias de reexistência: um diálogo teórico-metodológico entre interseccionalidade e aquilombagem crítica

EPISTEMOLOGIES OF REEXISTENCE: A THEORETICAL-METHODOLOGICAL DIALOGUE BETWEEN INTERSECTIONALITY AND CRITICAL AQUILOMBAGE

EPISTEMOLOGÍAS DE REEXISTENCIA: UN DIÁLOGO TEÓRICO-METODOLÓGICO ENTRE LA INTERSECCIONALIDAD Y EL AQUILOMBAJE CRÍTICO

IUniversidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil.

IIUniversidade Federal de Mato Grosso, Rondonópolis, MT, Brasil.


RESUMO

O texto propõe uma reflexão acerca de possibilidades epistemológicas geradas pela aproximação da interseccionalidade com teorias e metodologias relacionadas à transformação social. Para tanto, na discussão, é focalizada a ancestralidade afro-brasileira como meio para o repensar de novos contornos para a geração e o compartilhamento de conhecimentos. A proposta reúne alguns movimentos teórico-metodológicos - intitulados no texto como “epistemologias de reexistência” - a fim de relacioná-los na constituição do rótulo “aquilombagem crítica”. A intenção central é contribuir para o debate voltado a formas efetivas de aproximação entre educação formal e conhecimento experiencial no Brasil. Assim, a aquilombagem crítica pode ser observada como um ambiente de (re)conexão multidimensional para intervenções atentas ao diálogo plural entre realidades.

PALAVRAS-CHAVE letramentos; aquilombagem crítica; interseccionalidade

ABSTRACT

The present text proposes a reflection on epistemological possibilities generated from the link of intersectionality with theories and methodologies related to social transformation. Therefore, in the discussion, Afro-Brazilian Ancestral Wisdom is focused as a means to rethink new outlines for the generation and sharing of knowledge. This proposal brings together some theoretical and methodological movements - titled in the text as “epistemologies of reexistence” - in order to relate them in the constitution of the label “critical aquilombage”. The main intention is to contribute to the debate focused on effective ways of bringing formal education and experiential knowledge closer together in Brazil. Thus, critical aquilombage can be seen as an environment of multidimensional (re)connection for interventions attentive to the plural dialogue between realities.

KEYWORDS literacies; critical aquilombage; intersectionality

RESUMEN

El texto propone una reflexión sobre las posibilidades epistemológicas generadas a partir del enfoque de la interseccionalidad con teorías y metodologías relacionadas con la transformación social. Por lo tanto, la discusión se centra en la Sabiduría Ancestral afrobrasileña como un medio para repensar nuevos esquemas para la generación y el intercambio de conocimientos. Esta propuesta reunió algunos movimientos teóricos y metodológicos, titulados en el texto como “epistemologías de reexistencia”, para relacionarlos en la constitución de la etiqueta “aquilombaje crítico”. La intención central es contribuir al debate centrado en formas efectivas de acercar la educación formal y el conocimiento experimental en Brasil. De esta manera, el Aquilombaje Crítico presenta un entorno de (re)conexión multidimensional para intervenciones atentas y plurales entre realidades.

PALABRAS CLAVE nuevas alfabetizaciones; aquilombaje crítico; interseccionalidad

INTRODUÇÃO

Em algum lugar além do firmamento, além do cinturão de asteroides, havia outros mundos onde crianças não temiam o tempo todo por seus corpos. Eu sabia disso porque havia um grande aparelho de televisão na minha sala de estar. No início da noite eu me sentava diante dessa televisão, testemunhando as transmissões desse outro mundo. Havia garotinhos brancos com coleções completas de figurinhas de futebol, e a única coisa que queriam era uma namorada popular, e sua única preocupação era com o sumagre-venenoso. Esse outro mundo era suburbano e sem fim, organizado em torno de assados, tortas de mirtilo, fogos de artifício, sundaes, banheiros imaculados e pequenos caminhões de brinquedo perdidos em quintais arborizados com riachos e ravinas. Comparando essas transmissões com os fatos de meu mundo nativo, vim a saber que meu país era uma galáxia, e essa galáxia estendia-se desde o pandemônio do oeste de Baltimore até os felizes terrenos de caça da série de TV Mr. Belvedere. Fiquei obcecado com a distância entre esse outro setor do espaço e o meu. Sabia que minha porção na galáxia americana, na qual corpos são escravizados por uma tenaz gravidade, era negra, enquanto a outra porção, livre, não era.

Ta-Nehisi Coates, 2015, p. 25.

Para quem a vive, a experiência acadêmica é uma dessas realidades que nos põem em situações complexas, e - diga-se de passagem, em boa parte do tempo - pouco confortáveis. Para alguns/mas pensadores/as do tema, trata-se de uma das características definidoras da universidade como ensino superior: causar desconforto e, dele, um potencial de intervenção transformacional no mundo (teoricamente, em algo efetivamente melhor). Tal desconforto assume contornos diferenciados quando se está falando de grupos sociais historicamente alijados do processo de educação - especialmente, no duplo ser/estar no ensino superior.

De certo modo, há quase duas décadas, o discurso de inclusão social tem tomado o centro dos debates nacionais, sendo algo difundido aquele no qual as populações negra e indígena (IBGE, 2011; IPEA, 2020) assumem posturas de exigência de seus direitos como cidadãos e seres políticos. O posicionamento dos povos pretos e indígenas, ainda que inserido em um contexto de fortalecimento (se comparado a, por exemplo, os anos 1990 e os retrospectivos), sempre teve de combater um pensamento cristalizado, mas disfarçado, referente à diferenciação histórica entre os povos que conforma(ra)m a ideia de “nação brasileira”. São, pois, discursos, em maior relevo, vinculados ao racismo e ao classismo (nos quais estratégias sofisticadas se desenvolvem), que desembocam, por exemplo, no discurso meritocrático - sinônimo de que ser preto/indígena não representa um ponto importante para a ascensão social (i.e., o simples “se não conseguiu foi porque não se esforçou o suficiente”). Encarar a ideologia meritocrática é fundamental para refletirmos sobre como, mesmo como combatido - ou não verbalmente articulado -, o discurso meritocrático atinge direta e profundamente a população afro-brasileira inserida na lógica acadêmica. Afinal, quem nunca, como preto/a, em algum momento da vida, não acreditou que deveria ser “três vezes melhor” que os demais?

Como referido, de acordo com os estudos críticos do discurso, a meritocracia pode ser entendida como um exemplo em um conjunto de outros discursos, abordados aqui como

conjunto de construções simbólicas socioculturalmente operadas e atualizadas sofisticadamente na/pela linguagem com vistas a convencer e arregimentar indivíduos a partilhar e reproduzir interpretações do mundo advindas de perspectivas particulares (ligadas a aspectos culturais, econômicos e políticos, por exemplo). Dependendo dos interesses do grupo social que os propaga, os discursos podem assumir implicações desestruturantes ou transformadoras. Os discursos, desse modo, agem dentro de uma perspectiva argumentativa, tendo a persuasão como uma de suas características mais marcantes. (Santos, 2019, p. 96)

Esse conglomerado de visões de mundo - os discursos - operacionalizam suas lógicas na linguagem, campo fértil para consolidar o esvaziamento de identidade sociais.

A representação de narrativas e de identidades é estratégica para projetos de implementação e consolidação de poder. Sendo a realização linguística, então, um verdadeiro instrumento de ação social, por meio dela é possível representar a realidade na qual se vive, editando-a de acordo com o propósito a ser alcançado. Representar, portanto, tem a ver com a possibilidade de escrever e reescrever, editar e reeditar situações para que um discurso se dê conforme e efetive os objetivos discursivos do articulador/a social. Todos/as, em alguma medida, somos esses motores discursivos, articulando-os na sociedade. Em outras palavras, minimamente, estamos de forma consciente inseridos/as em alguma posição na arena do poder (ao falar, escrever, caracterizar, escolher e defender algum ponto de vista sobre o mundo). Reforço, assim, a necessidade de observarmos a relação da linguagem com a noção de poder colonizador, negrófobo (nos termos de Frantz Fanon, no clássico Pele negra, máscaras brancas).

O poder social, quando articulado à lógica tradicional/colonizadora, habilita quem, o que e como o mundo deve ser; o que (e como) deve ser expresso - os discursos que reproduzimos afetam a forma como atuamos no mundo. O poder colonizador (de discursos [ações] mantenedores da tradição da branquitude) manipula representações particulares das existências sociais, entre elas nosso entendimento de protagonismo.

Alinhar-se a um arcabouço estruturado pela parcela branca que ainda mantém seu domínio no desenho acadêmico, para alguns/algumas pretos/as em formação, pode ser sinônimo de galgar posições de destaque. Trata-se, nessa lógica, de um pretenso “modo seguro” de conseguir avançar em seus propósitos, uma vez que estar do lado de quem conta a história, geralmente, rende algum papel mencionável.

Se focalizarmos o ser/estar preto na academia - e ratificando a linguagem como um eficiente instrumento de ação para embates pelo poder (de falar, de representar, de ser) -, os termos, os rótulos e os conceitos, quando bem consolidados, passam a ser verdadeiros projéteis discursivos (principalmente pela obsessão catalográfica do mundo ocidental). Dependendo de quem e do modo como conceitos linguístico-discursivos são articulados, os efeitos podem ser sim revolucionários.

Com base no discutido, lembremos que, uma vez afiliada à academia, a parcela de pretos/as que se dedica à intelectualidade (e a sobre ela refletir) de modo reoxigenado passa por uma espécie de mal-estar na busca por portos seguros de onde começar a ousar epistemologicamente. A universidade ocidentalizada continua sendo, confortavelmente, um dos círculos de poder que ainda opera lógicas da tradição colonialista na produção de seus saberes.

REEXISTÊNCIA PARA A INTERSECCIONALIDADE - CONTORNOS POSSÍVEIS

Ainda tratando do espaço de formação acadêmica, concentremo-nos no ponto que diz respeito às consequências de os/as pretos/as ousarem propor epistemologias fundadas em práticas desconhecidas pelo público majoritário da academia (o de perfil colonial). Menciono o contexto no qual conceitos como “lugar de fala”, “colorismo”, “necropolítica” e “interseccionalidade”, entre outros, são costumeiramente apropriados - termo aliás naturalizado por muitos/as pesquisadores/as em palestras e falas públicas -, questionados e/ou reconfigurados de acordo com os propósitos de quem, muitas vezes, não acessa as realidades das quais são originários. É sobre o tema de possuir poder para ser acatado (representar, lembremos) que a crítica precisa voltar a atenção. Já se tornou tristemente previsível, na academia, um processo que entendemos como fashionização epistêmica, movimento discursivo que (pelo uso recorrente e até indiscriminado) esvazia potenciais meios de refletir e intervir no mundo social. Tomemos como exemplo o debate sobre interseccionalidade.

A interseccionalidade, termo proposto pela feminista afro-americana Kimberlé Crenshaw (2002), caracteriza-se como um conceito que visa explicar a maneira pela qual o racismo, a classe e o gênero constituem-se como formas de opressão interdependentes e que geram desigualdades. Nesse sentido, a interseccionalidade busca a compreensão dos sistemas de opressão que operam, tendo em vista a construção da identidade. Sob sua ótica, entendemos, então, que compreender e libertar as identidades significa, em alguma medida, compreender como atuam os sistemas de opressão em nossos corpos.

O conceito de interseccionalidade é um exemplo dos projéteis em potencial referidos há alguns parágrafos. Ele, digamos, tem sido discutido com atenção em meio ao rol de rótulos sutilmente manipulados por aparentes discursos de ruptura. A academia, do viés da branquitude, muitas vezes, parece rivalizar com as lógicas que a beneficiaram por algum tempo, para, no mínimo, reinventar-se. A intelectual Patricia Hill Collins (2017) argumenta sobre o perigo do esvaziamento do conceito quando absorvido pela academia e sua patente popularidade. Segundo ela, a origem da interseccionalidade remonta às políticas do movimento feminista negro nos anos 1960 e 1970 nos Estados Unidos, que traz nomes como Alice Walker, Angela Davis, Audre Lorde, entre outras intelectuais responsáveis pela crítica ao feminismo branco heteronormativo de classe média. A interseccionalidade constitui-se como um movimento que compreende um projeto de conhecimento comprometido com as políticas emancipatórias, a liberdade, a equidade e justiça social. Ainda nas palavras de Collins (2017), a interseccionalidade aparece como uma epistemologia e uma ferramenta analítica possível no processo de compreensão dos múltiplos prismas na constituição da identidade e das opressões vigentes. É também um modo de exercer autonomia por meio de discurso sobre si, fundamentado no conhecimento concreto da realidade - “uma forma de investigação crítica e de práxis, precisamente, porque tem sido forjada por ideias de políticas emancipatórias de fora das instituições sociais poderosas” (Collins, 2017, p. 7). Ao chegar às discussões e publicações acadêmicas, a interseccionalidade, no entanto, passou a ter mais caráter teórico do que pragmaticamente político - o que, de acordo com a autora estadunidense, estaria em sua gênese.

A realidade do esvaziamento discursivo leva a outro ponto: como as lógicas de raízes profundamente díspares se colidem quando articuladas de modo imprudente, pois

quando ideias, ou material simbólico, vão de um ambiente social a outro, essa relação entre os limites sociais e simbólicos também muda. Nesse caso, tanto o feminismo negro como os estudos de raça/ classe/ gênero se desdobram em espaços sociais e simbólicos diferentes dos discursos hegemônicos. Ambos os discursos encontraram o desafio de definir limites. (Collins, 2017, p. 9)

A discussão de Collins (2017), assim como a de Carla Akotirene (2019) - em seu livro Interseccionalidade -, figuras bastante representativas do feminismo negro, chama a atenção para a natureza do pensamento de origem preta. Há um alinhamento que se encontra com o proposto por Ana Lúcia Souza (2009) ao discorrer sobre letramentos denominados por ela como de “reexistência” - em sua tese Letramentos de reexistência: culturas e identidades no Movimento Hip-Hop. Linguista, Souza defenderá uma mudança de ótica voltada aos processos de construção e reprodução do conhecimento baseada nas vivências de grupos de resistência social, especificamente do hip-hop da periferia de São Paulo. Nas palavras da autora, o foco reflexivo passa a ser voltado para a “complexidade social e histórica que envolve as práticas cotidianas de uso da linguagem” (Souza, 2009, p. 32).

A interseccionalidade - “como uma construção de justiça social, e não como uma teoria da verdade desvinculada das preocupações de justiça social” (Collins, 2017, p. 12) - e a reflexão dos letramentos de reexistência, unidas, apontam, entre várias coisas, para como a relação com academia e sua lógica ocidental ainda necessitará erigir pontes (e saber como percorrê-las) até chegar a um diálogo efetivo com o mundo social. Obviamente, se esse for de fato interesse de quem tem poder na universidade.

Pensar, portanto, a relação entre epistemologias desenvolvidas pela intelectualidade preta consciente (como é o caso da interseccionalidade e dos letramentos de reexistência) é expandir possibilidades de encontros críticos e colaborativos para projetos de reflexividade (de si e da comunidade) com vistas a mudanças, inicialmente, situacionais, porém orientadas a algo ampliado.

Dado isso, aproximando tais construtos baseados na vivência e nas potencialidades de reorganização acionais, é válido pensar no conceito (lato) de reexistência - com base na reflexividade projetada para a ação. A esse entendimento, ousando, atribuímos o rótulo aquilombagem crítica (AC), a ser tratado mais apropriadamente na última seção deste texto.

PEDAGOGINGA COMO ESTRATÉGIA NO PROCESSO DE REEXISTIR

Nesta construção teórico-reflexiva, a reexistência, projetada para a ação transformacional no mundo de maneira efetiva, recebe da interseccionalidade um complemento importante para ser levada a cabo, uma vez que aquela teoria nasce da luta, das experiências modeladas pela repetição da estrutura colonialista. Collins (2017, p. 9-10) ilustra:

Quando o feminismo negro foi incorporado à academia, ficou difícil sustentar as suscetibilidades do movimento quanto à pesquisa e à práxis. Um projeto de justiça social permaneceu, mas era diferente daquele que buscava transformar a academia; um projeto que, no processo de deslocamento para a academia, foi ele mesmo transformado.

É necessário entender que o conceito de reexistência aqui defendido reconfigura, em alguma medida, o proposto por Souza: este novo contorno, então, vai no sentido de interpretar o reexistir como uma ação estratégica intimamente ligada à retomada das narrativas sequestradas pelos representantes da colonialidade e a imposição por parte deles de sua lógica; a proposta é atualizar narrativas de acordo com epistemologias geradas com base na dialética experiencial da resistência preta. Para tanto, denominamos, pois, como epistemologias de reexistência o articular de temas teorizáveis - como a própria interseccionalidade (para, por exemplo, a observação de como aspectos socioculturais diversos perpassam e constituem os indivíduos de modo não previsíveis) - com as práticas inspiradas na ancestralidade afro-brasileira - i.e., baseadas na experiência de comunidade características da filosofia preta de troca e cuidado (bastante popularizado, por exemplo, pelo conceito de Ubuntu). O destaque, nesse entendimento, flui para os desenvolvimentos epistemológicos de Beatriz Nascimento, na noção de resgate e de ação e reorientação de nossas narrativas e identidades com vistas à construção ampliada do conhecimento.

O desafio, destarte, parece ser refletir como entendimentos de mundo tão díspares (contribuições da filosofia africana em um cenário acadêmico como o apontado nesta seção) podem acontecer na lógica ocidental. Ainda assim, tendo em vista a presença cada vez mais forte dos grupos sociais preto e indígena na academia brasileira, vemos como não mais aceitável o dar de ombros no que toca às gerações que, em um futuro bastante próximo, influenciarão a produção de conhecimento no País: como nossas narrativas serão por esses grupos articuladas, quando em posições de poder? Como serão negociadas? Como serão construídos novos contornos de diálogo? É, enfim, urgente abrirmo-nos à reflexão conectada a uma crítica agregadora, ou seja, acompanhada de alternativas coerentes.

Vamos a mais detalhes. Tratar de epistemologias de reexistência é olhar com atenção para o que tradições ancestrais pretas sempre difundiram nas reflexões sobre o mundo. A ancestralidade afro-brasileira, baseada na comunidade e no cuidado coletivo, tem também na resistência um ponto de encontro do qual é possível partir e estruturar outros contornos de conhecimento. Desse modo, a perspectiva de “produção” transmuta-se para a de gestação, na sabedoria preta, implicando, com isso, a atenção, a troca e o cuidado, sem desconsiderar virtuais percalços - ou seja, sem a romantização de indivíduos ou de situações difíceis.

A questão da interseccionalidade tem a ver com essa postura ao ser um exemplo de construto teórico advindo de uma característica que remete à ancestralidade preta. As origens da interseccionalidade estão voltadas ao coletivo e a uma percepção conjunta das coisas, acessada de maneira exclusiva por quem pertence ou entende-se como parte na comunidade diaspórica. A perspectiva interseccional está pautada na compreensão das múltiplas identidades vividas com base na experiência de mulheres negras e da experiência como modo de compreender a nós mesmos/as e ao mundo a nossa volta, o que inclui a formulação de novas teorias. Crenshaw (2017), no artigo “Mapeando as margens: interseccionalidade, políticas de identidade e violência contra mulheres não-brancas”, explica: “usei o conceito de interseccionalidade para denotar as várias maneiras pelas quais raça e gênero interagem para moldar as múltiplas dimensões das experiências de empregação das mulheres negras”.

Ainda assim, antes de propor a aproximação de teorias e abordagens, cabe reservar um espaço para refletir, com crítica agregadora, acerca de questões que, a nosso ver, ainda estão em rota de amadurecimento. Referimo-nos, neste momento, à interseccionalidade nos moldes defendidos por intelectuais de renome (como as mesmas Akotirene e Collins). Sem dúvida, é válido debater a interseccionalidade como auxílio à desconstrução de todas as opressões sociais, entretanto há igualmente que centrar energia na conscientização relativa à luta das mulheres pretas no que toca a nossas particularidades, além da raça, de gênero e de classe social - que também está entranhada nas estratégias de sedução da branquitude. É preciso um movimento interno, portanto. Entendemos ser igualmente necessária a questão reflexiva em outros grupos não brancos, no entanto é preciso também deixar marcada a responsabilização das micro-opressões reproduzidas nos próprios grupos oprimidos (marxistas, LGBTQIA+, feministas etc.). Assim sendo, reforçamos que, nesta proposta, o entendimento de uma “liberdade indivisível” (Collins, 2017), em termos de Brasil, opta por situar-se predominantemente na energia epistemológica da população negra, que vem há séculos resistindo de maneiras criativas às tentativas de apagamento e extermínio. Obviamente, consoante à natureza já mencionada de nosso povo, não se trata, de maneira alguma, de se fechar para o diálogo - desde que este seja de fato uma troca equânime.

Com base nisso, as intersecções lidas no ensaio de proposta teórica da AC saem da perspectiva preta para pensar os pontos que atingem e recrudescem o apagamento de nossas identidades, maioria negligenciada do Brasil. Entendendo que somos sim atravessados/as por questões ligadas também a classe e a gênero, mas também que tais discursos (novamente, entendendo também discurso como forma de ação social que envolve a tecnologia da linguagem) são operados por grupos sociais da branquitude e/ou alinhados com sua lógica coloniais (os/as assimilados/as que aceitam agir na lógica opressora). Ratificamos: passar por tal entendimento, pelo menos em nível brasileiro, não se mostrará efetivo se nos basearmos em uma tentativa volitiva de transformar o terrível cenário no qual estamos inseridos/as. Não é esse o histórico dos/as descendentes da escravização, de característica diaspórica, quando analisamos nossas narrativas bem-sucedidas. Há, pois, fundamento na consideração do trabalho com aliados/as que, mesmo inseridos/as e confortáveis em espaços de prestígio do ponto de vista da branquitude (como discutido nos textos de Lourenço Cardoso, especialmente, no “Branquitude acrítica e crítica: A supremacia racial e o branco antirracista”, de 2010) reconheçam que - embora com todos os recursos facilitados para si - não podem monopolizar o construir epistemológico se o projeto é a mudança coletiva.

Avançando com a discussão, portanto, conectamo-nos com Allan da Rosa (2013), o qual apresenta uma oportunidade de produzir o conhecimento de reexistência a partir de uma metodologia harmonizada com o que é discutido aqui: trata-se da “Pedagoginga” (Rosa, 2013). O conceito, já discutido em outras publicações (Santos, 2017, 2019), conecta-se à AC por fomentar o protagonismo identitário baseado em nossa ancestralidade. Ele nutre a possibilidade de seguir nas ousadias epistemológicas, ou, como defende Sara Rogéria Santos Barbosa (2020), de desobedecer e se movimentar nas rasuras narrativas. Rosa define sua Pedagoginga como

a forma, a didática, a maneira de gerar e de transmitir saber que permita à abstração se enamorar da sensibilidade e do sensorial, do corpo, do que somos, que é água, ponte e barco para qualquer concepção e desfrute de conhecimento [...], abrangendo temas inter-relacionados e destacando a riqueza da história, da estética, da política de resistência e de anunciação do povo negro nas diásporas africanas pelo menos há mais de 500 anos, buscou equiparar o pensamento abstrato à materialidade das experiências, passadas e presentes, simbólicas e manancial de conhecimento. (Rosa, 2013, p. 124)

Assim sendo, está posta a relação com o processo congruente de epistemologias de reexistência. A questão da identidade, aliás, volta ao centro de nossa percepção no que diz respeito à expressão, ao registro e à reaprendizagem de nossos conhecimentos, como entendimentos discursivos ancestrais - entrecruzados por recortes interseccionais. Em outras palavras, a Pedagoginga desperta o que já está plantado em cada pessoa preta que já se percebeu diferenciada por uma “elite” castradora (localizada na política, nos meios de comunicação de massa, na cultura e na educação ocidentais). A Pedagoginga vai contra o que esvazia nosso tamanho e que se estrutura em exceções que, única e exclusivamente, respondam a seus arbítrios.

Ressaltamos que a Pedagoginga pode ser interpretada como uma metodologia formidável ao que estamos traçando aqui: é importante frisar tal natureza porque, por meio dela, Rosa sistematiza uma maneira palpável de chegar ao processo de reexistência em nível ontológico (como discutido na tese A voz da situação de rua na agenda de mudança social no Brasil: um estudo discursivo crítico sobre o Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR), de 2017). O autor, assim, consegue demonstrar, na obra, como foi bem-sucedido o chamado de (re)conexão desenvolvido ao articular diversas características que remontam ao caráter ancestral (de matriz africana): tais movimentos foram relacionados à experiência de mundo dos/as participantes de sua investigação de mestrado (Imaginário, corpo e caneta: matriz afro-brasileira em educação de jovens e adultos, de 2009).

Destacamos nova conexão: o trabalho de Rosa (2009, 2013) dialoga com o de Souza (2009) no que toca a um estímulo acional de acessar/desenvolver um conhecimento relacionado com o resgate da postura orgulhosa de si e de combate ao apagamento de um povo. É também um diálogo que põe em evidência a possibilidade criativa presente no processo de saberes ancestrais, que destacam os aspectos de coletividade e de resistência por meio da arte, da oralidade, da troca de conhecimentos e das leituras sociais do mundo apoiadas na existência preta (os letramentos de reexistência de Souza). Assim sendo, repetimos, a Pedagoginga é a metodologia - isto é, um modo apropriado de realizar ações -, mais adequada à proposta da AC, uma vez que registra a efetividade de um trabalho voltado para vozes não acostumadas a ecoar. Para os/as envolvidos/as, esse impulso (esse ecoar) possibilita uma percepção nova de si no mundo, destacando as potencialidades na construção de saberes atentos e preocupados com a comunidade e seu progresso amplo.

AQUILOMBAGEM CRÍTICA: UNINDO PONTOS

Tendo explicitado os principais marcos teórico e metodológico desta reflexão, ora detemo-nos a discorrer de forma especial sobre a AC. O rótulo inspira-se fundamentalmente no trabalho da intelectual Beatriz Nascimento (Ratts, 2006) e estrutura-se na articulação com os pensamentos abordados nas seções anteriores (ou seja, os Letramentos de Reexistência de Ana Lúcia Souza e a Pedagoginga de Allan da Rosa).

Tendo já exposto em eventos e publicado algumas considerações sobre a AC (especialmente no capítulo “Linguagem e decolonialidade: discursos e(m) resistência na trilha da aquilombagem crítica”, escrito em 2019 para o livro Decolonizar os estudos críticos do discurso, organizado por Viviane de Melo Resende), após algumas percepções acerca da recepção do conceito, aprofundamos o debate que o estrutura nos tempos consequentes a seu nascimento e registro. Desse modo, falar sobre AC é unir e romper; é tentar ousar; é causar certo desconforto - o que nos orienta para o debate e o diálogo. A AC é uma proposta que se dá

a partir do cultivo do conhecimento e da valorização de grupos estrategicamente negativizados pela elite opressora (como aliás é também o caso da população indígena). A aquilombagem crítica deve deter-se em trazer para os/as envolvidos/as a noção de orgulho sem ufanismos, mas centrada em outra história de protagonismo (como o defendido por Beatriz Nascimento em seus trabalhos) e que necessita ter sempre como premissa a fluidez e a abertura para o acolhimento (com o entendimento de que acolher não pode ser confundido com o discurso assistencialista). (Santos, 2019, p. 111)

A AC, conforme o que já vimos levantando nas sessões anteriores, une discussões centradas nas identidades pretas a temas de linguagem, mais especificamente a temas discursivos. É possível interpretar o rótulo como um amálgama, uma espécie de pedra âmbar. A AC tem na linguagem um objeto de destaque e vê nela possibilidades de novos percursos ontológicos. Unindo-nos a teóricos/as que veem a linguagem como modo de ação no mundo (lembrando a breve discussão feita sobre representação social na introdução deste texto), percebemos ser por meio dela: campo no qual as opressões podem ser enfocadas, analisadas e expostas por estarem presas à estrutura da língua, por exemplo - que a reexistência pode sim acontecer.

Por meio da AC, refletimos também sobre a perspectiva academicamente descrita como discursiva de viés crítico; para tanto, ao mesmo tempo, propomos a ressignificação, neste modelo, do termo “crítico”. Para contextualizar, lancemos mão de duas áreas de defesa progressista no âmbito da academia: a Análise de Discurso Crítica Latino-Americana (ADC-LA) e o Projeto Decolonial. Ambas as escolas entram no que definimos na seção anterior como possíveis aliados teórico-metodológicos; igualmente se aplica a relação delas com uma viabilidade da AC.

O Projeto Decolonial (mais especificamente, o trabalho desenvolvido por Joaze Bernardino-Costa, da Universidade de Brasília), em junção com a ADC-LA, desperta um desejo de aproximação por fomentar uma autocrítica das práticas acadêmicas correntes. No entanto, apesar de lançar mão de representações voltadas à geografia dos países latino-americanos e às potencialidades (marcadas na Decolonialidade como subestimadas/subalternizadas) de seus/suas intelectuais acadêmicos/as, a desconfiança persistirá enquanto as figuras centrais - reforço, ainda que bastante abertas ao diálogo social - permanecerem sendo majoritariamente brancas. Assim sendo, o âmbar AC estará sempre suscetível a um novo pensar genético, com base na experiência agridoce de observar que os temas ancestrais pretos, ainda que trazidos para mesas e discussões, não possuem o protagonismo do ponto de vista epistemológico nesses espaços potencialmente aliados.

A intenção com a AC é, no contexto específico desta reflexão, contribuir com uma etapa para a ascensão epistemológica das pessoas pretas sustentada na mescla dos conhecimentos articulados na instituição de poder que é a universidade. A AC não dissocia as vivências ancestrais do fazer contemporâneo das populações afrodescendentes - pois delas, entendemos, advém a fortaleza para pesquisas engajadas na luta por nossas vidas, que sim importam.

No que tange à AC e discurso, está desenhada também a percepção de que a linguagem perpassa todas as relações sociais, nas mais diversas modalidades de realização (verbal e/ou não verbal): é uma abordagem crítica dos modos de interação social. Assim sendo, para a proposta da AC, os textos desempenham papel central. Aqui, retomamos a contribuição dos estudos críticos do discurso para defender o texto como um modo situado e abrangente de agir, representar e identificar o mundo, bem como os grupos sociais e os indivíduos que compõem o mundo social; perante esse entendimento, um texto é muito mais do que expressão escrita, mas todo e qualquer bloco comunicativo estruturado para defender posições e lugares discursivos. Segundo essa definição, os textos são considerados em âmbitos orais, visuais e audiovisuais, levando-se em consideração as circunstâncias da comunidade particular na qual foram desenvolvidos e compartilhados.

Da perspectiva da interseccionalidade, o trabalho na AC deve ser construído em aliança com registros textuais, de modo a contemplar a heterogeneidade da população preta diaspórica: desse modo, a noção de gêneros discursivos (no entendimento de Mikhail Bakhtin, mas atualizada em Ana Lúcia Silva Souza e Allan da Rosa) também é trabalhada na AC, em uma estrutura calcada no alcance multidisciplinar, gestada por uma equipe atenta às principais questões (em termos de gênero e classe) que afetam a população preta brasileira. A linguagem, o discurso e o texto a serviço da possibilidade de transformação, da reexistência. Assim, gêneros discursivos entremeados à atenção a aspectos interseccionais por meio da contação de história, da produção de materiais audiovisuais, de desenhos, de peças teatrais, entre outros, são exemplos de multimeios reunidos para o trabalho pragmático prospectado na AC. Em outras palavras, a interseccionalidade contribui para a AC no gerenciamento de identidades sociais, na produção das narrativas próprias dos locais de influência preta (articuladas com os acessos possibilitados pela academia em nível de redes locais e globais) - também para o intercâmbio de realidades diaspóricas de fora do território brasileiro.

Outro ponto decisivo da AC reside no fluxo de conhecimentos baseado no diálogo com ações desenvolvidas por movimentos sociais de luta contra o apagamento de populações marginalizadas e exterminadas pelo estado brasileiro (como o aprofundado no trabalho de Ana Luiza Flauzina, “Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro”, de 2006): mais especificamente, pessoas em situação de rua; pessoas em regime de encarceramento; profissionais do sexo etc. É nesse cenário que se estruturaria o trabalho para a utilização crítica da produção de gêneros (para além dos de natureza do consumo de massa) efetivamente políticos, como planos de ação e projetos de intervenção nos moldes das Redes Pragmáticas (Santos, 2017, 2019). É o que Rosa desenvolveu, levando em consideração um propósito crítico que atribua valor ao público envolvido.

Finalmente, cabe explicar a razão de o rótulo ser constituído das palavras “aquilombagem” e “crítica”. A aquilombagem seria referente a um processo realizado a partir do que Nascimento - aqui, resgatada em um registro oral dos anos 19701 - entende por quilombo, ou seja:

como a história do negro, você tem que ver dentro da perspectiva de continuidade histórica. [...] Se os homens negros, desde o século XVI, se reúnem nesse tipo de organização, eles devem se reunir ainda hoje dentro desse tipo de organização. [...] Isso é fundamental em termos de história do Brasil, história do negro, história do homem brasileiro mesmo porque a gente vai ver que o negro não estava só limitado à fazenda nem à história da escravidão.

Baseado na defesa de Beatriz Nascimento, em seus estudos, das populações ações pretas de resistência durante o período de escravização oficial do Brasil, entendemos que o conceito de AC oferece um espaço não apenas epistemológico para pensar a questão da(s) existência(s) - assim como da educação) - das pessoas negras: ela também nutre um ambiente de retomada ontológica, fundamental para a reescrita de narrativas de transformação social. Por fim, a compreensão de Quilombo, ultrapassando a de território geográfico, organiza a perspectiva de união e trabalho conjunto, apoiada na troca de conhecimentos e vivências com vistas a uma autonomia política, mas também de sobrevivência e autopreservação. Um processo a ser reanimado. A questão crítica está na estruturação teórico-metodológica que oferece a possibilidade de pessoas pretas entenderem-se como agente das próprias narrativas, compreendendo ainda o(s) processo(s) no(s) qual(quais) as tentativas de sequestro ontológico e epistemológico ocorre(ra)m, para um combate às práticas genocidas da colonialidade. Uma atitude de combate ao genocídio de nossa população, lançando mão de estratégias intelectuais, bem como da leitura das inter-relações de opressão e extermínio da população afrodescendente com base na estrutura social - esta, plasmada (e [re]ativada) pelos/nos discursos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A transmutação do conceito de aquilombar, desde Beatriz Nascimento, para uma estratégia localizada de ação, abre, então, espaço para refletir sobre uma luta de reexistência de resgate ancestral. Não se pode negligenciar que os tempos atuais do ocidente têm construído novos padrões absorvidos como “mudança” por um contingente significativo de pessoas negras. São novas modalidades de convencimento pela lógica histórica e opressora disfarçada. Temos de ser críticos/as.

Com base no centro racial como ponto de partida para as considerações, os caminhos interseccionais podem ser repensados (como dito, nas vivências e particularidades - na diversidade - ancestral preta): os demais “recortes” estabelecidos na observação interseccional (como gênero e classe, por exemplo) passam a ser articulados à gama dos textos que serviriam de base para a reflexão acerca de epistemologias de reexistência, concretizadas em espaços de educação formal (ou não).

Akotirene (2019) afirma que o propósito da abordagem interseccional está relacionado ao que faremos politicamente a respeito da matriz de opressão colonial responsável pela produção das diferenças em nossas identidades. Cabe, assim, trazer para o diálogo a consideração da interseccionalidade como uma ponte entre as discussões atuais adaptadas pelo mundo ocidental e as questões ancestrais ativadas pelas considerações do quilombo de Beatriz Nascimento, com vistas a desintegrar o sebo da representação epistemicida ocidental.

Com a consciência alinhada - passado e presente -, o movimento crítico de algumas lógicas de apagamento poderia congregar as pessoas (quaisquer aliadas inclusive) em um trabalho horizontal da produção de novos conhecimentos e novas epistemologias, no qual as trocas epistêmicas poderiam se dar em contornos revitalizados. A troca efetiva de conhecimento fluindo em um diálogo de reexistência.

Conforme argumentamos neste texto, o conhecimento deve ir além do instrumental, necessita alcançar sua gênese de formação e transformação: a sociedade, a qual necessita cada vez mais estar ciente do poder de transformação de práticas advindas dos grupos historicamente negligenciados (como a população preta deste país, por exemplo). Aí, o entendimento de que viver em sociedade é também uma recorrência discursiva poderá, enfim, auxiliar mais grupos historicamente enredados pela colonialidade a perceberem-se no espaço que ocupam; mais, a perceber ser possível tomar com as próprias mãos (unidas a outras) o sentido que desejam para suas vidas, a enxergar seu semelhante, sem estar totalmente imersos nas armadilhas discursivas engendradas e mantidas por uma suposta elite.

A título de encerramento, cabe reconhecer e registrar a noção de protagonismo e de pluralidade de percepções sobre o conhecimento, recorrendo aos textos, produtos nos quais a colonialidade se mostra - ainda que, em certos momentos, disfarçadamente. O trabalho crítico, interseccional, pela educação e com os textos do mundo abre, pois, caminhos alternativos e pode nos apresentar recomeços de histórias, além de, claro, fomentar e consolidar resistências. É sobre isso também que a AC está à disposição. Construamos, portanto, novos percursos.

REFERÊNCIAS

AKOTIRENE, C. Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019. [ Links ]

BARBOSA, S. R. S. O discurso literário monocromático de uma identidade nacional multiétnica. In: SOUZA, A. L. et al. Rasuras epistêmicas das (est)éticas negras contemporâneas. Seminário Rasuras 2017. Salvador: Edição Organismo e Grupo Rasuras, 2020. p. 71-84. [ Links ]

COATES, T.-N. C. Entre o mundo e eu. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015. E-Book. [ Links ]

COLLINS, P. H. Se perdeu na tradução? Feminismo negro, interseccionalidade e política emancipatório. Parágrafo: Revista Científica de Comunicação Social do FIAM-FAAM, São Paulo, v. 5, n. 1, p. 6-17, 2017. [ Links ]

CRENSHAW, K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 171-188, 2002. https://doi.org/10.1590/S0104-026X2002000100011 [ Links ]

CRENSHAW, K. W. Mapeando as margens: interseccionalidade, políticas de identidade e violência contra mulheres não-brancas. Trad. Carol Correia. Revista Subjetiva, 2017. [ Links ]

IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Características étnico-raciais da população: um estudo das categorias de classificação de cor ou raça 2008. Rio de Janeiro: Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, 2011. [ Links ]

IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Atlas da violência 2020. Brasília, DF: IPEA, 2020. Disponível em: Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/24/atlas-da-violencia-2020 . Acesso em: 10 jun. 2020. [ Links ]

RATTS, A. Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: Instituto Kuanza; Imprensa Oficial, 2006. [ Links ]

ROSA, A. Imaginário, corpo e caneta: matriz afro-brasileira em educação de jovens e adultos. 2009. 231 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. [ Links ]

ROSA, A. Pedagoginga, autonomia e mocambagem. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2013. [ Links ]

SANTOS, G. P. A voz da situação de rua na agenda de mudança social no Brasil: um estudo discursivo crítico sobre o Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR). 2017. 264 f. Tese (Doutorado em Linguística) - Universidade de Brasília, Brasília, 2017. [ Links ]

SANTOS, G. P. Linguagem e decolonialidade: discursos e(m) resistência na trilha da aquilombagem crítica. In: RESENDE, V. M. (org.). Decolonizar os estudos críticos do discurso. Campinas: Pontes, 2019. p. 95-117. [ Links ]

SOUZA, A. L. S. Letramentos de reexistência: culturas e identidades no Movimento Hip-Hop. 2009. 206 f. Tese (Doutorado em Linguística) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2009. [ Links ]

1 Beatriz Nascimento, no documentário O negro da senzala ao Soul, 1977, produzido pela TV Cultura. Disponível em: https://youtu.be/5AVPrXwxh1A. Acesso em: 25 jan. 2022.

Financiamento: O estudo não recebeu financiamento.

Recebido: 06 de Julho de 2020; Aceito: 21 de Maio de 2021

Gersiney Santos é doutor em linguística pela Universidade de Brasília (UnB). E-mail: gersiney@gmail.com

Daiane Silva Santos é mestra em educação pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). E-mail: psi.daianesantos@gmail.com

Conflitos de interesse: Os autores declaram que não possuem nenhum interesse comercial ou associativo que represente conflito de interesses em relação ao manuscrito.

Contribuições dos autores: Administração do Projeto, Conceituação, Análise Formal, Escrita - Primeira Redação, Escrita - Revisão e Edição: Santos, G. Conceituação, Escrita - Primeira Redação: Santos, D. S.

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons