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Revista Brasileira de Educação

versión impresa ISSN 1413-2478versión On-line ISSN 1809-449X

Rev. Bras. Educ. vol.27  Rio de Janeiro  2022  Epub 18-Jun-2022

https://doi.org/10.1590/s1413-24782022270049 

Artigos

O meu é mais grande!”: jogos de comparação, cultura lúdica e apropriação de práticas de numeramento em um grupo de crianças de 3 e 4 anos em uma instituição de educação infantil

“MINE IS MORE BIG”: COMPARISON GAMES, LUDIC CULTURE AND APPROPRIATION OF NUMERACY PRACTICES BY A GROUP OF 3 AND 4 YEAR-OLD CHILDREN IN AN EARLY CHILDHOOD EDUCATION INSTITUTION

“¡EL MÍO ES MÁS GRANDE!”: JUEGOS DE COMPARACIÓN, CULTURA LÚDICA Y APROPIACIÓN DE PRÁCTICAS DE NUMERAMIENTO EN UN GRUPO DE NIÑOS DE 3 Y 4 AÑOS EN UNA INSTITUCIÓN DE EDUCACIÓN INFANTIL

Raquel Monteiro Pires de Lima I  
http://orcid.org/0000-0002-9189-9263

Maria da Conceição Ferreira Reis Fonseca II  
http://orcid.org/0000-0002-5702-7189

IInstituto Leidiavila, Belo Horizonte, MG, Brasil.

IIUniversidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil.


RESUMO

Neste artigo, focalizamos um grupo de crianças de 3 e 4 anos, em uma escola municipal de educação infantil, protagonizando processos de apropriação de práticas de numeramento não intencionalmente provocados pela ação didática escolar. Valendo-nos de aportes da sociologia da infância recente, procuramos compreender a integração dessas práticas socioculturais (de produção e uso de conhecimentos que aprendemos a associar à matemática hegemônica) à cultura lúdica daquele grupo, ao identificarmos suas marcas nos jogos interlocutivos que ali se estabelecem. Para isso, selecionamos eventos nos quais as crianças, brincando com brinquedos de construção, criam jogos de comparação de comprimentos e se engajam neles. Analisamos suas atuações como ações pragmáticas, de caráter lúdico e interativo, e, como tal, produtoras de um sistema de significações que, incorporando referências das práticas sociais de diferentes grupos, compõe e influencia a cultura lúdica daquele grupo.

PALAVRAS-CHAVE: sociologia da infância; cultura lúdica; práticas de numeramento; educação infantil

ABSTRACT

This paper is focused on a group of children aged between 3 and 4 years old, in a municipal school for children education, as protagonists on the appropriation processes of numeracy practices not intentionally provoked by a school didactic action. Using contributions of recent childhood sociology, we aimed to understand the integration of these sociocultural practices (of production and use of knowledge that we learned to associate to hegemonic mathematics) to the ludic culture of that group, identifying their marks in the interlocutive games established there. For this, we selected events in which children, playing with construction toys, create and take charge of length comparison games. We analyze children’s actions as pragmatic ones, endowed with a ludic and interactive character, and, as so, producing a signification system that, by incorporating references from social practices of diverse groups, integrate and influence the ludic culture of that group.

KEYWORDS childhood sociology; ludic culture; numeracy practices; early childhood education

RESUMEN

En este artículo, contemplamos a un grupo de niños de 3 y 4 años, en una escuela municipal de educación infantil, como protagonistas de los procesos de apropiación de prácticas de numeramiento que no fueron provocadas intencionalmente por la acción didáctica de la escuela. Con base en contribuciones recientes de la sociología de la infancia, buscamos comprender la integración de estas prácticas socioculturales (de producción y uso de conocimiento que hemos aprendido a asociar con la matemática hegemónica) y la cultura lúdica de ese grupo, identificando sus marcas en los juegos interlocutivos que se establecen allí. Para esto, seleccionamos eventos en los que los niños, jugando con juguetes de construcción, crean y participan en juegos de comparación de longitud. Analizamos sus performances como acciones pragmáticas, de carácter lúdico e interactivo y, como tales, productoras de un sistema de significaciones que, incorporando referencias de las prácticas sociales de diferentes grupos, compone e influye la cultura lúdica de ese grupo.

PALABRAS CLAVE sociología de la infancia; cultura lúdica; prácticas de numeramiento; educación infantil

INTRODUÇÃO

Neste artigo analisamos a apropriação de práticas de numeramento por um grupo de crianças de 3 e 4 anos refletindo sobre o caráter sociocultural das experiências matemáticas que vivenciam em uma escola municipal de educação infantil (EMEI). Nesse sentido, nosso olhar assume a infância como categoria geracional e a criança como ator social, na perspectiva da sociologia da infância recente, procurando colocar em diálogo estudos sobre apropriação de práticas de numeramento e aqueles que discutem as culturas da infância.

A mobilização do conceito de práticas de numeramento neste estudo atende à preocupação em considerar o conhecimento matemático como ação social, produzido e significado nas relações que os sujeitos estabelecem em suas práticas sociais. Embora se possa tomar o termo numeramento como a versão brasileira do termo em inglês numeracy, a abordagem das práticas de numeramento que propomos aqui, a exemplo do que se tem observado nos estudos sobre tais práticas publicados no Brasil, difere da abordagem utilizada em grande parte dos estudos publicados em língua inglesa, que, em geral, falam de numeracy para se referir a um conjunto de habilidades matemáticas mobilizadas para o enfrentamento das demandas da vida social (Fonseca, 2015).

A intenção dos autores que optam pelo termo numeramento nas pesquisas realizadas no Brasil, entretanto, é analisar “condições e práticas de letramento que mobilizam conceitos, procedimentos e princípios relacionados a conhecimentos matemáticos, tomados como produção cultural” (Fonseca, 2015, p. 274). Com efeito, a opção pelo termo numeramento (em detrimento da tradução mais imediata, que seria numeracia) se remete intencionalmente ao termo letramento e quer caracterizar a atividade matemática como prática social, que se constitui nos processos de apropriação não só de códigos e sistemas, mas de uma cultura que envolve linguagens e procedimentos matemáticos, produzidos e mobilizados na disputa de ideias por pessoas e grupos que realizam, narram e usam conhecimentos matemáticos. ­Assim, a inclusão das práticas de numeramento entre as práticas de letramento busca promover uma compreensão das relações matemáticas como práticas culturais de uso da língua, incluindo-se nesses usos também os recursos não verbais de interação (Fonseca, 2017).

Nesse sentido, importa-nos menos a dimensão individual do numeramento, que levaria a tomá-lo como atributo pessoal, como algo que uma pessoa consegue fazer; nosso enfoque volta-se para a dimensão social do numeramento, tomado, assim, “como um fenômeno cultural, um conjunto de atividades sociais” (Soares, 2004, p. 66) que envolvem os modos de lidar com quantidades, classificações, ordenações, relações espaciais e métricas e as exigências sociais de uso de conhecimentos e representações dos conhecimentos produzidos nesses campos.

A metodologia que adotamos para a identificação de situações de apropriação de práticas de numeramento pelas crianças nas suas relações com seus pares - etnografia como lógica de investigação (Green, Dixon e Zaharlick, 2005) - buscou, portanto, captar, por meio da observação participante e dos registros em vídeo, práticas sociais e rotinas culturais instituídas pelas crianças do grupo observado no período em que permaneciam na escola. Essa disposição fez-nos, ainda durante o trabalho de campo, identificar rich points1 (pontos relevantes) nas cenas que observamos, e foi essa identificação que nos orientou na seleção de eventos que reconhecemos como de numeramento, à medida que nos permitiam indicar instâncias de apropriação de práticas sociais relacionadas ao que conhecemos como do campo matemático, constituídas e partilhadas pelas crianças.

Esses pontos relevantes também nos guiaram na construção de múltiplas estratégias e diferentes critérios e possibilidades de categorização dos eventos, ao longo do trabalho em campo e depois de sua conclusão, até chegarmos à proposta de análise, que contemplaria, como instâncias de apropriação de práticas de numeramento, os jogos de comparação produzidos e assumidos pelas crianças.

BRINQUEDOS DE CONSTRUÇÃO, EVENTOS E PRÁTICAS DE NUMERAMENTO

Nos processos de tomada de decisão sobre as perspectivas pelas quais analisaríamos o material empírico e os eventos que selecionaríamos para submeter a essa análise, fomos seduzidas pela fertilidade das situações que envolviam a atividade das crianças com os brinquedos de construção (blocos de encaixe, peças para empilhamento etc.), em termos de oportunizar uma diversidade de padrões de interação que nos permitiam refletir sobre a constituição de culturas da infância naquele contexto. Nosso exercício analítico buscaria apontar como diversas práticas de numeramento protagonizadas pelas crianças nesses eventos constituem essas culturas e são por elas constituídas. Assim, o que apresentamos neste artigo é uma análise de alguns eventos identificados nos momentos destinados ao brincar de construção, procurando discutir como, nos processos interativos que os configuram, se estabelecem modos de apropriação de práticas de numeramento, que, por sua vez, constituem as culturas da infância das quais aquelas crianças participam.

Foi com essa intenção que, inspiradas pela abordagem de nosso estudo e orientadas pelos registros do diário de campo e por exercícios analíticos anteriores, retomamos o material empírico produzido no acompanhamento, por cinco meses, de uma turma de crianças de 3 e 4 anos de uma escola pertencente à rede municipal de educação de Belo Horizonte (MG). Essa escola, uma unidade exclusiva de educação infantil, com boas instalações e recursos materiais e humanos especializados, localiza-se numa região de alta vulnerabilidade social, motivo pelo qual a rede determinou que o atendimento a crianças de 4 meses a 5 anos seria realizado em horário integral.

Escolhemos uma escola dessa rede em razão de suas proposições curriculares para a educação infantil estruturarem os processos de educar cuidando e de cuidar educando em três eixos inter-relacionados: as interações, o brincar e a cultura-sociedade-natureza (Belo Horizonte, 2013, 2015). Esse posicionamento desloca o foco da ação pedagógica do conteúdo para a criança - perspectiva curricular que nos pareceu propícia para a produção de um contexto educativo em que fosse possível analisar não só como as práticas de numeramento permeiam as vivências das crianças, mas como elas se constituem nas interações entre pares e conformam as culturas infantis, mesmo que as atividades pedagógicas não tenham a intenção prioritária de contemplá-las.

Ao explorar as gravações do cotidiano daquela sala de aula, selecionamos situações nas quais as crianças, envolvidas no brincar com os brinquedos de construção, usaram, falaram de ou sobre, produziram ou participaram de práticas que reconhecemos como matemáticas, em suas interações com seus pares. São essas situações que identificamos como eventos de numeramento.

Nessa análise, em que nos interessa buscar, na identificação de padrões e práticas interacionais, compreender um pouco melhor as crianças e seus modos de estar no mundo - um mundo marcado por certos valores e que disponibiliza ou interdita diferentes formas de as pessoas a ele se integrarem -, adotamos a definição de evento proposta por Castanheira (2010, p. 79):

Define-se evento como o conjunto de atividades delimitado intencionalmente em torno de um tema comum num dia específico. Um evento não é definido a priori, mas é produto da interação dos participantes. É identificado analiticamente observando-se como o tempo foi usado, por quem, em quê, com que objetivo, quando, onde, em que condições, com que resultados, bem como os membros sinalizam mudança na atividade.

A reincidência de registros de eventos de numeramento identificados em situações em que as crianças lidam com os brinquedos de construção nos instigou a buscar compreender as formas pelas quais as crianças faziam uso de ideias, termos, procedimentos ou valores associados ao que costumamos reconhecer como do campo da matemática. Naquelas situações, frequentemente, ideias, termos, procedimentos ou valores matemáticos inspiram, orientam, justificam ou validam as ações das crianças, seus experimentos ou seus modos de organizar possibilidades e argumentos, ratificar ou confrontar avaliações próprias ou de outrem. Dessa maneira, fomos identificando, em tais situações, regras e condutas que as crianças partilhavam em suas interações, nos jogos discursivos permeados por ideias matemáticas.

Nesse processo, buscamos, como proposto por Green, Skukauskaite e Baker (2011), estabelecer relações entre os eventos selecionados e eventos ocorridos anterior ou posteriormente. Assumimos, assim, uma perspectiva que considera que os eventos são históricos, dinâmicos e estão em desenvolvimento como processos interconectados. Logo, o desenvolvimento dos processos analíticos demandou-nos incluir em nosso corpus de análise alguns outros eventos em que as crianças não necessariamente lidam com brinquedos de construção, mas que nos ajudaram a subsidiar os argumentos que buscamos produzir e defender em nossa análise.

Entendemos que práticas de numeramento integram o que Sarmento (2003, 2004) caracteriza como gramática das culturas da infância e buscamos compreender como tais práticas são apropriadas pelas crianças, procurando identificar suas marcas nos jogos interlocutivos que se estabelecem nesse grupo. Em tal busca, orientamo-nos pelos quatro eixos da gramática das culturas da infância destacados pelo autor - ludicidade, interatividade, fantasia do real e reiteração - e procuramos encontrar as marcas das práticas de numeramento nessa gramática: em padrões de ações; em maneiras de brincar e manipular os materiais oferecidos; em formas reincidentes ou inusitadas de argumentar; na elaboração de enredos; nos recursos retóricos de que as crianças lançam mão; e na gestualidade que conforma sua participação em jogos discursivos.

As marcas das práticas de numeramento na gramática das culturas da infância, mais do que atestar o domínio de habilidades matemáticas pelas crianças, indicam sua apropriação dessas práticas culturais, forjadas no seio de uma sociedade marcada pela valorização das quantificações, das métricas e das classificações, na parametrização das relações entre as pessoas, os grupos sociais, a natureza, os receios e os sonhos.

PRÁTICAS DE NUMERAMENTO, JOGOS DE COMPARAÇÃO E CULTURA LÚDICA

Brougère (1998) identifica o jogo em um sistema de designação e de interpretação das atividades humanas. Segundo o autor, a caracterização do que é um jogo não supõe um comportamento específico que possibilitaria distinguir a atividade lúdica de qualquer outro comportamento; o que caracteriza o jogo é menos o que se busca do que o modo como se brinca, o estado de espírito com que se brinca. Assim, na consideração de uma atividade como lúdica, destaca-se a noção de interpretação. Essa interpretação supõe um contexto cultural implícito ligado à linguagem que permite dar sentido às atividades. O jogo insere-se em um sistema de significações, ao qual o associamos em função da imagem que temos dessa atividade. De acordo com Brougère (1998, p. 105-106):

Se é verdade que há a expressão de um sujeito no jogo, essa expressão insere-se num sistema de significações, em outras palavras, numa cultura que lhe dá sentido. Para que uma atividade seja um jogo é necessário que seja tomada e interpretada como tal pelos atores sociais em função da imagem que têm dessa atividade.

O autor ainda argumenta que, antes de ser uma criação cultural, o jogo é um produto cultural dotado de certa autonomia, e, consequentemente, o primeiro efeito do jogo não é entrar na cultura de forma geral, mas aprender essa cultura particular que é a do jogo; quando se brinca, aprende-se, antes de tudo, a brincar, a controlar um universo particular. Assim, o jogo contempla uma cultura específica ao jogo, embora também remeta ao que chamamos de cultura geral: os pré-requisitos.

Desse modo, Brougère (1998) propõe a existência de uma cultura lúdica como um conjunto de regras e significações próprias do jogo que o jogador adquire e domina no contexto de seu jogo. O autor assume, então, que “o primeiro efeito do jogo não é entrar na cultura de uma forma geral, mas aprender essa cultura particular que é a do jogo” (Brougère, 1998, p. 107). É nesse sentido que Brougère (1998, p. 107) adverte:

Em vez de ver no jogo o lugar de desenvolvimento da cultura, é necessário ver nele simplesmente o lugar de emergência e de enriquecimento dessa cultura lúdica, essa mesma que torna possível e permite enriquecer progressivamente a atividade lúdica. O jogador precisa partilhar dessa cultura para poder jogar.

Ao longo do período em campo, em diversas situações, registramos ações das crianças com seus pares que interpretamos como produção de - e engajamento em - jogos de comparação de distâncias, envolvendo a exploração, o contraste, a aferição e a avaliação de comprimentos, alturas, larguras e tamanhos, e também, ainda que menos frequentemente, jogos de comparação de outras grandezas, como o tempo ou a capacidade.

Autores que se dedicam à discussão do aprendizado das medidas2 destacam o longo caminho que as crianças percorrem para chegar ao nível de abstração e compreensão de que a medida é uma relação de comparação entre grandeza e unidade e que essa relação é expressa por um número que significa quantas vezes a grandeza contém a unidade. Quanto à compreensão da medida de comprimentos, por exemplo, esse caminho envolve: a identificação desse atributo; a aquisição da conservação do comprimento; a admissão da transitividade das comparações, para que se passe da comparação direta ao estabelecimento de um padrão de comparação e à compreensão do procedimento de comparação com esse padrão; e, por fim, o domínio dos recursos de expressão do resultado dessa comparação por um número.

Se fôssemos analisar as ações de comparação que observamos, na perspectiva do desenvolvimento das práticas culturais de medição e da compreensão do conceito matemático de medida, poderíamos dizer que as crianças de 3 e 4 anos da turma B da Escola Municipal de Educação Infantil Morro Verde3 reconheciam o atributo comprimento e faziam comparações diretas, investigando, por exemplo, qual construção era “mais grande”. No entanto, para além de enxergarmos essas ações como uma etapa para a abstração e a conservação de medida, interessou-nos, antes, ouvir as crianças, no sentido proposto por Sarmento (2011). Isso nos permitiu analisar essas ações como atividade lúdica, num esforço para compreender os modos como as crianças se relacionam com seus pares nesses jogos de comparação. Esses modos de relação estão inseridos nas condições sociais e culturais das crianças, mas são também constituintes dessas condições, porque produzem uma cultura lúdica e a rotina cultural desse grupo.

É, pois, com essa intenção analítica que apresentamos neste artigo eventos (que identificamos como) de numeramento, nos quais as crianças, brincando com os brinquedos de construção, criam e protagonizam jogos de comparação de comprimentos. Nossa análise, portanto, não quer caracterizar as práticas de numeramento protagonizadas pelas crianças nesses eventos como uma etapa primitiva das práticas de medição adultas. Buscamos compreendê-las como ações pragmáticas, de caráter lúdico e interativo, e, como tal, produtoras de um sistema de significações que, incorporando ideias, vocabulário, procedimentos, critérios, argumentos e interdiscursos das práticas sociais dos diferentes grupos de que as crianças participam - mecanismo que Brougère (2010) denomina impregnação cultural - dão sentido ao seu brincar. Focalizamos, então, não processos de aquisição do conceito ou de habilidades de medida, mas crianças apropriando-se de práticas de numeramento para respaldar argumentos, orientar ações, compor enredos e parametrizar tanto as posições que elas assumem nas interações quanto seu trânsito entre o real e a fantasia.

VAMO VÊ SE ELE VAI ATÉ A JANELA”: PADRÕES DE GESTUALIDADE, ROTINA CULTURAL E PRÁTICAS DE NUMERAMENTO

Na manhã do dia 11 de outubro de 2018, a professora entregou às crianças, no momento da chegada, alguns brinquedos de construção. Nesse dia especialmente, as crianças protagonizaram uma diversidade de situações com o mesmo argumento: a comparação de comprimentos. Todas essas situações, que nosso olhar analítico identifica como eventos de numeramento, envolvem jogos de comparação, mas diferem-se em relação aos modos, aos critérios e às intencionalidades das comparações efetuadas.

O modo que adotamos para transcrever as interações que compõem os eventos, baseado em Ochs (1979), tentou expressar, da forma que nos pareceu mais fiel ao que testemunhamos, as relações entre os comportamentos verbais e não verbais daquelas crianças de 3 e 4 anos, buscando possibilitar ao leitor, de certo modo, integrar as ações dos sujeitos. Optamos, ainda, por destacar, nas transcrições, o tempo das enunciações, pois nos chama a atenção o quanto as ações das crianças são fluidas e se modificam em um curto espaço de tempo.

De maneira especial, nessa primeira interação que apresentamos aqui, a simultaneidade de boa parte das enunciações nos levou a optar por dispor os sujeitos em uma mesma linha, ao contrário das transcrições das interações dos demais eventos em que os interlocutores se alternam em uma mesma coluna. A transcrição das falas, baseada em Neves (2010) e Dias e Gomes (2015), adota as unidades de mensagem de Gumperz (1982) como forma de apresentação, não considerando as falas como formas gramaticais da escrita. Os sinais utilizados nas transcrições foram fundamentados em Neves (2010) e Marcuschi (2000), conforme Quadro 1.

Quadro 1 - Sinais utilizados na transcrição.  

Ocorrências Sinais
Unidades de mensagem /
Alongamento de vogal ou consoante :::
Silabação -
Interrogação ?
Sobreposição de vozes [
Entonação enfática maiúsculas
Pausas ... ou marcação do tempo de pausa em segundos (5 s)
Dúvidas e suposições (inaudível)
Hipóteses do que se ouviu (hipótese)
Ações (comentários do analista) (( ))

Fonte: Adaptado de Neves (2010) e Marcuschi (2000).

MANHÃ DO DIA 11 DE OUTUBRO DE 2018

As crianças estavam em seus grupos realizando construções, enquanto aguardavam a chegada de todos os colegas e o horário do café. Em um dos grupos, Lucas4 (3 anos e 10 meses) e Henrique5 (3 anos e 7 meses) construíram torres com muitas peças e iniciaram um jogo de comparação (ver Figura 1), como outros que já tínhamos observado, com certa frequência, no cotidiano desse grupo.

Fonte: Desenho do ilustrador Alê, inspirada em cena capturada no vídeo.

Figura 1 - As torres. 

No Quadro 2, transcrevemos a interação que compõe o primeiro evento que aqui analisamos.

Quadro 2 - Transcrição do evento “Vamo vê se ele vai até a janela”: padrões de gestualidade, rotina cultural e práticas de numeramento. 

Tempo Henrique Professora Lucas Pesquisadora
00:36 olha/ o que fiz/ olha o que eu fiz ((fica em pé, e mostra a construção enquanto fala para a professora)) é você/né? / eu sei o que você fez… esse é grande ou é pequeno?
00:46 Gandi grande? / e se colocar mais?
00:51 ta:::a ((fala baixinho e assenta-se na cadeira como se a fala da professora fosse uma sugestão do que fazer, e não uma pergunta)) ((sai do seu lugar, contorna o grupo de mesas, aproxima-se da professora e mostra uma construção bem grande, muitas peças empilhadas))
00:52 nossa/senhora/ o seu tá gigante ((fala para Lucas)) muito gigante ((olhando para a sua construção de baixo para cima e admirando-a))
((levanta com sua construção, mostra-a para a professora e compara o tamanho dela com a do colega Lucas. Ele estica o braço para cima para deixá-la maior)) gigantão… ((mantém os olhos para cima, parece ainda admirar a sua construção))
01:00 ((compara sua construção com a de Lucas olhando para cima)) ((compara sua construção com a de Henrique, olhando para cima))
01:06 ((a construção é grande e fica maleável, ele observa o movimento)) a:::ah ((fala baixinho enquanto observa a construção se movimentar)) ((vira as costas para o colega e vai em direção ao seu lugar))
((observa sua construção se movimentar e tenta colocar uma peça no alto, mas a construção está muito grande e ele tem de se esforçar bastante. Encaixa a peça e caminha para seu lugar olhando para cima))
GANDI... ((fala sorrindo e olhando para a câmera)) no:::ssa /muito grande/
01:36 ((olha para cima e abre um grande sorriso, estica o braço e levanta a construção)) GIGANTE
o:::o rapazinho/ na janela não pode/ senta na sua cadeirinha/ ((usa as duas mãos para levantar ainda mais a construção. Leva a construção até a janela, observa se ela chega até a grade)) vai/ até/ali... ((fala bem baixinho, com ele mesmo, a construção quebra e ele sobe na jardineira para pegar as peças. Vai a mesa e volta a ela várias vezes trazendo as peças, uma a uma)) giga:::nte
02:19 ((gira o que restou da construção, coloca na mesa. Em pé, olha para a câmera)) pequenu:::u.. ((sorri)) e agora?
((retira do topo da construção algumas peças que estavam juntas e que se movem)) olha/esse trem... o que é isso?
03:00

  • é de mexê… ((enquanto movimenta o objeto))

  • UAU/ quebra ((uma das peças se solta))

  • quebra-cabeça? /fui eu di fiz ((balança o objeto em frente à pesquisadora e uma peça cai))

  • caiu… ((pega a peça))

  • eu di fiz… ((joga as peças no chão, separa-as e começa uma nova construção. Lambe as peças, uma a uma como que para colá-las. Inicia outra empilhagem))

Caiu...
03:50

  • ((Termina de empilhar as peças, pega a pilha e bate no chão com força, como se movimentasse uma ferramenta, um martelo)) vamu vê ito queba ((olhando para a câmera e faz o movimento com força, com as duas mãos e batendo a peça no chão))

  • não queba…/vamu vê ti queba ((levanta e dá um passo em direção à janela e bate o brinquedo com força no batente, a peça quebra-se))

  • UAU:::UUU/ ele queba ((enquanto junta as peças que se separaram e volta a bater no batente. Ao bater com força, as peças separam-se mais uma vez e algumas caem na jardineira da janela. Ele olha para trás rapidamente para ver se a professora está vendo, sobe na jardineira e pega as peças)).

04:26 ((Em seguida, volta para a mesa em que estava assentado e retoma a construção de uma torre grande e disputa com Eduardo o tamanho das construções. Ergue sua construção e aponta para Eduardo, que sorri e aponta de volta como um duelo))
04:43

  • ((vira-se para a câmera)) é gigante/vamo vê se ele queba/ ((vai até a janela e aponta o brinquedo em direção à grade))

  • vamo vê se ele vai até a janela ((estica o braço, fica nas pontas dos pés e tenta alcançar a grade, com o brinquedo, extensão de seu braço. Volta do movimento sorrindo)) NU:::UUU ele chega até o teto ((estica novamente o brinquedo em direção à grade, sorrindo))

04:59 olha o Lucas/ lá na janela ((fala para a professora apontando para o colega com sua construção)) ((apagando o quadro)) ((escuta a denúncia do colega e assenta no seu lugar))
05:02 ((diminui a construção e movimenta-a com as duas mãos, de um lado para o outro, enquanto canta)) balança/piano/balança/piano ((balança até as peças se soltarem e caírem sobre a mesa, com o que sobra ele inicia uma nova construção))

O evento tem início com Henrique levantando-se para mostrar, com orgulho, para a professora, o que havia construído. Esse tipo de construção, que estamos chamando de torre, já havia sido observado em um período anterior em campo, assim como essa forma de exibir a construção tanto para a professora quanto para os colegas. A professora interroga Henrique sobre o tamanho de sua construção: “Esse é grande ou é pequeno?”. A pergunta da professora explicita uma referência ao atributo comprimento daquela torre - referência que ela parece ter identificado como esboçada na ação de Henrique ao exibir sua construção. A indagação classificatória (grande ou pequeno?) instaura, ainda, um argumento comparativo no enredo da interação. Henrique integra-se à proposta e emite seu parecer: “Ela é gande”. Nesse jogo interlocutivo, uma intervenção gestual da criança, que direciona o tema para o comprimento de sua construção, uma vez acolhida pela verbalização da comparação explicitada pela professora, produz uma articulação entre dois mundos (o das crianças e o dos adultos) (Ferreira, 2005), transformando o enredo da brincadeira.

A professora, então, questiona Henrique (“grande? / e se colocar mais?”), incentivando-o a pensar sobre a hipótese de mais peças serem colocadas. Em resposta a essa segunda intervenção, a criança, em vez de manter-se no jogo discursivo especulativo, resolve experimentar e volta para a mesa para ampliar sua construção.

Entretanto, ao exibir sua torre, Henrique chama a atenção de Lucas, um dos colegas que também se ocupavam de uma construção no mesmo grupo. Lucas move-se até a professora para igualmente mostrar sua construção. A professora, para manifestar o quanto estava impressionada com o tamanho da construção, define-a como “gigante”, palavra que Lucas repete acrescentando um advérbio que lhe amplia o poder retórico (“muito gigante”) e desencadeia a resposta da professora no mesmo jogo de superlativos: “Gigantão”.

A partir daí, Lucas incorpora o termo “gigante” a seus enunciados no restante do tempo em que brinca com as peças. Mais tarde, ele volta-se para a câmera exibindo sua torre e, dessa vez, convoca a pesquisadora para o jogo interlocutivo: “GANDI”... “no:::ssa /muito grande/”... “GIGANTE”. A força retórica de suas palavras é apoiada pela entonação que imprime ao enunciado, pelo olhar dirigido à câmera e pela ação de suspender a construção o mais alto que pode.

Antes, porém, desse diálogo com a pesquisadora (e com outro interlocutor, representado pela câmera), Lucas iniciara com Henrique um jogo de comparação: eles colocaram suas torres uma ao lado da outra e, sorrindo, compararam, com o olhar, seus tamanhos. Esse tipo de jogo foi observado ao longo do campo em diversas situações, em geral, acompanhado por um procedimento padrão: um olhar de apreciação, de baixo para cima, sempre acompanhado por um sorriso que parecia traduzir um sentimento de orgulho e vitória por algo que foi construído - quase uma coreografia! Outro padrão observado diz respeito ao uso que as crianças fazem do corpo como extensão da construção, ou a construção como extensão do corpo. Com frequência, as crianças, ao atuarem nesse jogo, esticavam seus braços a fim de engrandecer suas torres, mesmo que soubessem (o que é denunciado pelo sorriso maroto que exibem) que, ao utilizarem esse recurso, o tamanho da construção, em si, não se alterava, mas o conjunto ficava mais alto.

O jogo interlocutivo estabelecido com a professora, com o colega Henrique (ainda que sem enunciados verbais), com a pesquisadora e com a câmera também parece ter incentivado Lucas a uma disposição de experimentação. Com efeito, a classificação de sua torre como gigante (em comparação com uma suposta torre de tamanho normal), operada no campo discursivo, o incentiva a proceder fisicamente outra comparação, agora com um comprimento presente: a distância entre o batente da janela e a grade lateral.

Assim, a interação entre a professora e a criança, com a introdução de um vocabulário hiperbólico (“gigante”) - que pode tê-lo remetido à lembrança de personagens ficcionais, ou, por outro lado, soar-lhe apenas como um adjetivo -, insere um sentido comparativo e de apelo superlativo que influencia a atitude de Lucas no enredo que a brincadeira assume a partir daí. Com efeito, uma torre que, comparada discursivamente (de maneira implícita) a torres normais, é gigante merece ser comparada a outros padrões, de modo a se verificar fisicamente a correção da classificação recebida. Lucas assume essa disposição comparativa quando se dirige à janela com a intenção de comparar a torre com outras distâncias que, por terem sua transposição proibida às crianças, também lhes pareciam gigante: a largura e o comprimento da jardineira que separa a janela da grade.

Importante destacar a relação de Lucas com a janela. Durante todo o tempo do trabalho de campo, observamos que o lugar dele na sala de aula sempre era no grupo próximo à janela. Em vários momentos, foi possível perceber o quanto ele se empenhava em subir na jardineira, jogar peças de brinquedo pela grade, olhar o que estava acontecendo na rua e enrolar-se na cortina. A janela configurava-se como um espaço de exploração; portanto, buscar a comprovação do tamanho de sua construção medindo a distância até a grade se conformava como mais uma maneira de atuar naquele espaço e transgredir a proibição sobre o uso da jardineira.

Embora o primeiro exercício de comparação tenha permitido a Lucas concluir que o comprimento de sua torre era suficiente para cobrir a distância entre o batente lateral da janela e a grade que guardava a jardineira lateralmente (“vai/ até/ali...”), a operação redunda na quebra da torre. A criança, depois de recuperar os pedaços da torre que caíram na jardineira (transgredindo o combinado de não acessar aquele espaço), coloca-os sobre a mesa e restabelece o jogo interlocutivo com a câmera: ao pronunciar a nova classificação dos pedaços de torre recolhidos na jardineira (“pequenu:::u..”), Lucas retoma o argumento (implicitamente comparativo) que antes o fizera declarar à câmera que sua torre era “gigante”.

Entretanto, se até então o atributo comprimento era o que conduzia a interação de Lucas com o brinquedo e com os interlocutores, o incidente da quebra de sua torre desperta-o para outro atributo de suas construções: sua resistência. Ele testa se a torre resiste (sem quebrar) ao movimento de oscilação e, depois, se resiste ao impacto contra o chão e contra o batente da janela. Todas as testagens são narradas para a pesquisadora, cuja atenção Lucas sabe que está voltada aos seus procedimentos desde o momento em que ele exibiu os pedaços da torre e os classificou como pequenos. Com efeito, como a pesquisadora se insere na interação demandando outro enunciado da criança (“e agora?”) e, em seguida, responde ao imperativo proferido por Lucas (“olha/esse trem...”) com outra pergunta (“o que é isso?”), torna-se a interlocutora oficial das experimentações sobre a resistência da torre.

A explicitação da preocupação de Lucas com outro atributo das torres que não o seu comprimento é importante para nossa reflexão sobre a apropriação de práticas de numeramento associadas às relações métricas, uma vez que aponta a distinção que aquela criança procede entre diferentes atributos daquela construção, o que é decisivo para a operação de medição.

Após a exploração da resistência das pequenas torres, Lucas retorna à mesa, constrói novamente uma torre grande e refaz, com o colega Eduardo, a lúdica coreografia da comparação do comprimento das torres de cada um, sugerindo, assim, que sua preocupação se voltara mais uma vez ao atributo comprimento.

Em seguida, Lucas vai em direção à janela, não sem antes conversar com a câmera: “É gigante/vamo vê se ele queba”. Ele, então, retoma e articula as explorações anteriores, atento ao comprimento e à resistência de sua nova torre “gigante”. Nessa etapa da experimentação, ele faz uso do corpo para conseguir chegar à grade que guarnece a frente da janela. Se o pequeno braço se transforma na extensão do brinquedo que viabiliza que ele vá até a grade (que Lucas nomeia de janela), o brinquedo também se transforma na extensão do braço, permitindo que a criança transponha a enorme e proibida distância da largura da jardineira.

O surpreendente sucesso da empreitada leva Lucas a estabelecer outra comparação, ainda mais hiperbólica, para o comprimento de sua torre, remetendo-se discursivamente a uma das maiores distâncias que as crianças vislumbram: “NU:::UUU ele chega até o teto”.

O envolvimento de Lucas com as construções foi observado desde o início do trabalho de campo e compõe um dos pontos relevantes que nos indicaram o protagonismo das crianças em práticas de numeramento durante o brincar com brinquedos de construção. No dia 7 de agosto, primeiro dia em campo, Lucas e o colega Leonardo chamaram nossa atenção pela alegria com que brincavam e interagiam6:

Leonardo: Esse é um pai grande! ((mostra sua construção para o colega))

Lucas: O meu pai é mais grande! ((também exibe sua construção para o colega))

[E as crianças iniciaram uma competição comparando as duas construções:]

Leonardo: Não, o meu é mais grande!

[Quando já não havia mais peças para aumentar a construção, as crianças ficaram nas pontas dos pés tentando fazer com que seu “pai” ficasse mais alto do que o do outro. A competição terminou quando um deles resolveu dar outra função à sua construção: ele a abaixou, mudou o modo de segurá-la, colocando-a na horizontal e apontando-a para diferentes direções enquanto dizia: “pá, pá, pá...”]. (Caderno de campo, 7 de agosto de 2018)

Nessa disputa presenciada em agosto há uma diferença fundamental em relação ao evento ocorrido em outubro, que narramos anteriormente, no que se refere à finalidade. Na interação entre Lucas e Leonardo, uma competição motiva o exercício da comparação e a explicitação de seus argumentos com expressões comparativas: “O meu pai é mais grande!”; “não, o meu é mais grande!”. No evento presenciado em outubro, porém, a pouca relevância da disputa em relação ao jogo dramático que Lucas e Henrique estabelecem dispensa os enunciados verbais que demarcam a comparação, substituídos na interação apenas por risos e olhares matreiros. A elaboração do argumento sobre a dimensão da construção empreendida por Lucas no evento de outubro não mais se assenta sobre a mera comparação com a construção do colega, mas torna-se mais ousada ao eleger outras distâncias como padrão de comparação (a distância até a grade lateral, a distância até a grade frontal, a distância até o teto etc.).

Além disso, a disputa entre Lucas e Leonardo, no evento de agosto, não apenas usa expressões comparativas; estabelece-se como uma competição retórica. A comparação que as crianças efetuam entre as duas construções não tem a finalidade de verificação efetiva de qual é a maior, e sim a de reforçar o argumento de cada um, razão pela qual se considerou válido ficar na ponta dos pés para fazer seu “pai” ficar “mais grande”. No evento de outubro, a motivação das comparações que Lucas realiza entre o comprimento de sua construção e as distâncias à grade lateral e à grade frontal, todavia, responde a uma curiosidade métrica: Lucas dispõe-se à experimentação porque quer de fato verificar se o comprimento de sua construção é suficientemente “gigante” para possibilitar que ele toque as grades. Apenas a comparação com a distância ao teto entra no jogo dos efeitos retóricos da proposição de uma hipérbole.

Cabe ainda observar que, nos dois eventos e em outros tantos registrados, o uso do corpo na composição do discurso constitui as práticas de numeramento que as crianças protagonizam. Segundo Coutinho (2012), o verbo que se faz na palavra também se faz corpo e se faz corpo antes de se fazer palavra. Quando a palavra se manifesta, ainda se permite que ela se alie ao corpo, mas, nesse processo, acaba convidando o corpo a sair de cena. Os nossos sujeitos chamam-nos a atenção para o quanto se expressam por meio da gestualidade e o quanto ela é instrumento importante na constituição das práticas discursivas, de maneira especial daquelas que nosso exercício analítico nos faz reconhecer como práticas de numeramento. Essas crianças, apesar de terem a palavra já bastante manifesta, convocam o corpo a produzir seus enunciados, de modo que muitas vezes tais enunciados dispensarão as palavras ou se resumirão a poucas delas.

Durante o trabalho de campo, foi possível registrar alguns padrões de uso do corpo em situações de comparação e medição: ficar na ponta dos pés e com os braços erguidos para mostrar que é capaz de alcançar um objeto que está no alto ou para aumentar o tamanho dos objetos que segura em uma situação de comparação do comprimento desses objetos; fazer uso da mão sobre a cabeça como um nível para comparar sua altura com a de um colega e, em um procedimento semelhante, fazer uso da mão seguindo um plano horizontal invisível entre dois objetos a fim de determinar o mais alto (no caso da comparação de garrafas e copos, por exemplo); abrir e fechar os braços indicando o tamanho de objetos grandes e pequenos e esticar o polegar e o indicador para mostrar o tamanho de objetos bem pequenos.

A observação desses padrões remete-nos ao que Le Breton (2012) argumenta sobre a condição corporal do ator social e sobre corpo como vetor pelo qual a evidência da relação com o mundo é construída. Segundo o autor, o corpo é eixo de relação com o mundo, o lugar e o tempo nos quais a existência toma forma por meio da expressão singular de um ator. Pela corporeidade, a pessoa faz do mundo a extensão de sua experiência: “Emissor ou receptor, o corpo produz sentidos continuamente e assim insere o homem, de forma ativa, no interior de dado espaço social e cultural” (Le Breton, 2012, p. 8).

Nesse sentido, de acordo com Le Breton (2012), não há nada de natural no gesto ou na sensação, pois as manifestações corporais do ator, no interior de uma mesma comunidade social, são potencialmente significantes aos olhos dos parceiros. O ator abraça fisicamente o mundo, transformando-o em um universo familiar, compreensível e carregado de sentidos e valores que podem ser compartilhados pelos atores inseridos, como ele, no mesmo sistema de referências culturais. Assim, o padrão de gestos identificado indica um modo de atuação e pertencimento daqueles sujeitos àquele grupo de maneira especial. No caso das situações de comparação que descrevemos e de tantas outras que testemunhamos, o gestual empregado pelas crianças supõe um compartilhamento de seus efeitos retóricos, os quais se realizam nas interações com os pares à medida que são compartilhados. Compõe a cultura daquele grupo, mas alimenta-se das culturas de outros grupos, que também estabelecem comparações, experimentações e disputas como práticas sociais, práticas discursivas, práticas de numeramento.

Como aponta Corsaro (2011), esses padrões observados ilustram também uma forma de as crianças apreenderem informações do mundo adulto de forma criativa e singular, incorporando-as aos jogos interlocutivos de comparação. ­Esses padrões de gestualidade, desse modo, mostram a participação desse grupo de crianças em uma rotina cultural, que, por a considerarmos de âmbito social, de natureza discursiva e relacionada a disposições associadas a práticas de medição, identificamos como prática de numeramento. As crianças participam dela, entretanto, imprimindo a essa rotina cultural uma intencionalidade própria e seus modos próprios de significação: apropriam-se dela.

AGORA/VAMO MEDI”: REGRAS, JOGOS CÊNICOS E PRÁTICAS DE NUMERAMENTO

Em outro grupo, Luana7 (4 anos e 6 meses) e Elis8 (3 anos e 9 meses) também atuam em uma brincadeira com as torres que construíram instituindo um jogo de comparação de tamanhos. No Quadro 3, transcrevemos a interação que elas estabelecem nesse jogo.

Quadro 3 - Transcrição do evento “Agora/vamo medi”: regras, jogos cêninos e práticas de numeramento. 

Tempo Interação entre as crianças Observações
Crianças Falas e ações
05:23 Luana ((termina de construir uma torre de peças))
05:26 Elis ((tem uma torre nas mãos)) agora vamo medi/
05:29 Elis ((segura sua construção e a de Luana, encosta as duas, apoia-as sobre a mesa e olha para cima. As construções são quase do mesmo tamanho, mas a de Luana ganha em tamanho, com a diferença de uma peça))
Luana A:::AH ((olhando para as construções)) o meu é mais grande/
05:36 Elis ((olha para as peças sobre a mesa, uma mão segura sua construção e a outra está na bochecha, em posição de pensamento))
05:40 Luana ((aproxima novamente sua construção da construção de Elis e elas as comparam novamente. Olhos para cima, em direção à peça do topo))
Elis ((olhos para cima em direção à peça do topo))
05:43 Luana A:::AH ((rindo, um riso encenado))
05:45 Elis ((sorri)) agora/ põe e mediu ((pega algumas peças da mesa e vai entregando uma a uma para Luana))
05:49 Luana ((vai colocando as peças no topo de sua própria torre)) assim vai ficar mais alto/
06:12 Luana chega/chega/chega/vem ((pega a sua construção, aproxima-a da construção de Elis e as duas crianças comparam suas torres novamente)) A torre de Luana já está mais alta do que a de Elis, pois muitas peças foram adicionadas
06:14 Elis ((aproxima sua construção, sorrindo e olhando para cima, para o topo))
06:17 Luana A:::AH ((com voz fininha.))
06:19 Elis ((sorri e ao segurar sua construção ela se quebra, ela pega as peças que se soltaram e anexa-as novamente. Aproxima sua construção da torre de Luana, compara-as novamente e sorri. Os olhos sobem e descem rapidamente mapeando o tamanho das duas construções e Elis sorri novamente, um sorriso largo, mostrando os dentes.))
06:29 Elis Vou pegá mais pra você/
06:32 Luana ((segura sua construção e observa-a de baixo para cima, movendo a cabeça. Durante esse movimento, a construção parte-se em duas)) O:::OH ((pega a parte menor e aproxima-a da construção de Elis para comparar as duas, pois agora Luana tem a menor parte em mãos))
06:34 Elis A:::AH (grita fininho, os olhos sobem e descem como se estivesse fazendo a comparação de tamanhos))
Luana ((sorri e gargalha))
06:37 Luana ((une novamente as partes de sua construção e volta a ter a maior em mãos. Mais uma vez aproxima sua construção da de Elis, compara as torres e gargalha))
06:43 Elis A:::AH ((grita bem agudo e gargalha))
06:47 Luana ((levanta da mesa e vira-se em direção à professora)) professo:::ora/professora/ o meu/ o meu é mais grande ((retorna à mesa e compara novamente sua torre com a da colega, olhando sua ação no espelho))
06:57 Elis ((de boca aberta, admira as duas construções e compara-as com o olhar)) A:::AH ((abandona o jogo de comparação e segura sua construção, balançando-a))
07:04 Henrique LUANA/LUANA/ qual que é mais grande? Henrique ainda não aparece no vídeo. Só é possível escutar sua voz.
07:07 Luana ((olha para trás, em direção ao colega que está chamando, segurando sua construção, em seguida se levanta e anda até o colega))
07:10 Luana ((aproxima-se do colega)) vamo pôr aqui no chão ((segura sua construção em pé, convidando o colega para a comparação))
07:12 Henrique ((traz sua construção com as duas mãos, mas, ao colocá-la em pé, as peças vão se soltando e ele acaba ficando com uma construção menor que a de Luana. Vendo que vai perder a disputa pela torre “mais grande”, ele dá um soco na construção da colega, na tentativa de destruí-la))
07:15 Luana ((pega sua construção com as duas mãos e tira-a do chão)) PARA/ SEU FEIO:::OSO ((volta para sua mesa carregando sua torre))
07:21 Professora Gente/ vamo lá lanchar/ vem cá/ uma fila aqui/ó/ o trem maluco quando sai de Pernambuco Quando a professora chama, a câmera dirige-se para a fila, que é formada perto da mesa em que as meninas brincavam
07:22 Luana ((deixa o brinquedo sobre a mesa e vai para fila))
07:22 Elis ((deixa o brinquedo sobre a mesa e vai para fila))
07:22 Henrique Henrique não aparece no vídeo, mas também se dirige para a fila

O jogo tem início quando Elis convida Luana para brincar de comparar suas construções - comparação que ela denomina “medir”: “Agora vamo medi/”. Luana entra no jogo e posiciona sua torre perto da construção da colega. Não há um momento dedicado a explicitar verbalmente as regras procedimentais do jogo; as duas constroem os procedimentos em conjunto por meio dos gestos: Elis segura as duas construções e apoia-as na mesa, estabelecendo uma regra importante, uma base de referência comum para orientar a conferência das alturas das torres, entretanto o critério de comparação é estabelecido quando Luana expressa verbalmente o resultado da comparação: “A:::AH ((olhando para as construções)) o meu é mais grande/”.

Nesse evento, é interessante observar a incorporação do termo medir ao vocabulário do jogo de comparação de alturas, assim como o estabelecimento de uma base de referência para legitimar a comparação (diferentemente do que ocorrera no jogo de comparação das torres de Lucas e Henrique e de Lucas e Leonardo, em que os meninos se valem de expedientes como esticar o braço e ficar na ponta dos pés).

Em um primeiro momento, Luana vence a comparação por apenas uma peça. Ela finge uma gargalhada de vitória quando afirma: “O meu é mais grande!”. O jogo continua: as duas afastam as construções, olhos para cima, para o topo da construção, e depois voltam a aproximá-las. Pela expressão zombeteira de ambas, as meninas parecem saber que não vai haver diferença entre essa comparação e a anterior porque não houve mudança na quantidade de peças (nenhuma das duas acrescentou peças na construção ou as retirou entre as duas comparações), no entanto, divertindo-se e gargalhando, elas fingem surpresa.

Elis altera o andamento do jogo, ordenando que Luana coloque mais peças em sua torre para que possam “medir” ambas novamente. Entrega as peças à colega, que as coloca no topo de sua construção, verbalizando, durante esse processo, o resultado esperado: “Assim vai ficar mais alta”. Entre risos e gritinhos animados, as crianças constroem um jogo em que interpretam, fingem surpresas, espanto e admiração. O gestual, as expressões faciais e as enunciações verbais (ou onomatopaicas) superdimensionam a surpresa com o resultado das comparações que se seguem à primeira, talvez a única motivada por uma curiosidade genuína de saber qual das duas torres era a “mais grande”. Com efeito, nesse evento, as meninas, durante quase todo o tempo, assumem um ar de deboche no exercício de comparar as construções e obter o resultado óbvio. Até os olhares que fitam as torres de cima para baixo parecem assumir o tom de farsa: com exagero na encenação, olhos que sobem e descem rapidamente, como em uma cena de desenho animado em que a repetição de um movimento traduz o sentido jocoso de suas atuações.

As meninas experimentam dois dos aspectos da operação de medição apontados por Caraça (1998)9: elas identificam o atributo a ser comparado (o comprimento das torres) e efetuam a comparação (mesmo com certo rigor procedimental, ao nivelarem a base das torres usando a mesa). No entanto, ao nos referirmos aqui aos aspectos da operação de medição destacados por Caraça (1998), não queremos identificar a ausência da eleição de uma unidade nem da expressão dessa comparação por um número como um déficit ou como um estágio primário da compreensão da medida. Nossa análise, evitando uma visão adultocêntrica, quer apontar, na diferença da forma de expressão das competências infantis (Sarmento, 2004), o desenvolvimento, naquele jogo cênico criado pelas crianças, de seus modos próprios de compreensão do mundo e de atuação nele.

À intenção de Elis e Luana ao “medirem” suas torres, basta a comparação dos dois objetos presentes. Os jogos de comparação e todas as suas nuanças instauram práticas de numeramento protagonizadas pelas crianças por meio de um jogo interlocutivo (verbal, gestual, fisionômico) em que as crianças experimentam e interpretam suas experiências cotidianas. Dessa forma, baseando-nos em Borba (2009) e em Corsaro (2011), propomos que o conhecimento e a exploração de uma prática social - o ato de medir e a produção de resultados da medição -, trazidos para a brincadeira por meio da observação do mundo adulto ou da interação com este, foram transformados pela interpretação das crianças. A apropriação dessas práticas de numeramento se expressa tanto no uso do termo “medir” quanto nos procedimentos e cuidados adotados na medição. Expressa-se também no uso pragmático de tais procedimentos e cuidados para responder à curiosidade inicial sobre qual torre era a “mais grande”, ou mesmo no jogo cênico de efetuar como uma galhofa comparações das quais já se sabiam os resultados, simulando surpresa ao obtê-los. Assim, nesse processo de apropriação de práticas de numeramento, o que nos parece relevante é a construção coletiva de novos significados, “fortalecendo ou transformando os conhecimentos sociais das crianças, na forma do que Corsaro (2003) chamou de reprodução interpretativa” (Borba, 2009, p. 104).

A reprodução interpretativa (Corsaro, 2009, 2011), em oposição à reprodução passiva, refere-se à captura dos aspectos inovadores da participação das crianças na sociedade. Ou seja, é o processo de apropriação criativa que a criança efetua com o mundo adulto a fim de atender a seus próprios interesses (Corsaro, 2009). Trata-se de uma reprodução em que, todavia, as crianças não apenas internalizam a sociedade e a cultura, mas contribuem ativamente para a produção e as mudanças dessa cultura, embora estejam, por sua própria participação na sociedade, restritas pela estrutura social existente e pela reprodução social.

Remetendo-se a Ochs (1988), Corsaro (2011) considera a língua como fundamental à participação das crianças em sua cultura, já que funciona como um sistema simbólico na codificação da estrutura local, social e cultural. Além disso, a língua atua, ainda, como uma ferramenta para manter e criar realidades sociais e psicológicas. Integrando as funções de sistema simbólico de codificação de estruturas e de ferramenta de estabelecimento de realidades, os recursos da linguagem são “profundamente incorporados e contribuem para o cumprimento das rotinas concretas da vida social” (Schieffelin, 1990, p. 19 apudCorsaro, 2011, p. 32).

Nessa perspectiva, o caráter social e ativo da linguagem (Bakhtin, 2000) respalda nossa interpretação da incorporação pelas meninas do termo medir para identificar o tema do enredo da brincadeira (“agora vamo medi”, “agora põe e mediu”) como ações coletivas que compõem o processo de apropriação do mundo por meio da reprodução interpretativa. Há uma apropriação por parte delas de conhecimentos (inclusive linguísticos) do mundo adulto que permitiu uma produção cultural (que o nosso olhar analítico aqui identifica como prática de numeramento) no contexto de uma brincadeira. As meninas riem porque o jogo cênico que constroem assume o caráter de comédia. O que as diverte é a simulação exagerada da surpresa em uma situação em que o seu conhecimento permite prever o resultado (porque já sabem os efeitos de se incorporar peças a apenas uma das construções ou o efeito de comparar uma torre com o tamanho original e o pedaço da outra que se partiu). A farsa compõe a ludicidade da cena e estabelece padrões de interação, sendo, pois, constitutiva da gramática que rege o enredo do jogo de comparação criado por Elis e Luana.

A previsão dos resultados que confere a esse jogo essa dimensão de farsa, contudo, é informada pela conservação da quantidade e pela compreensão da necessidade de se partir de uma base comum para se efetuar a comparação. Esses conhecimentos, porém, mais do que de habilidades individuais, alimentam-se das experiências sociais das crianças e do próprio jogo interlocutivo que se estabelece entre Elis e Luana naquele evento, por meio do qual elas produzem uma forma de atuar sobre o mundo que, como observamos ao longo do trabalho de campo, não se mostra isolada, e sim como produção cultural dos sujeitos observados.

O jogo das meninas, portanto, é mais cênico do que uma competição em que quem ganha é quem tem a torre maior. À declaração de Luana de que a sua torre era a “mais grande”, Elis, após uma encenação de reflexão (com o gesto estereotipado de colocar a mão na bochecha) e a repetição da comparação, reage ordenando que a colega acrescente mais peças na torre, produzindo, portanto, o que seria uma vantagem maior para a adversária, caso estivessem engajadas mesmo em uma competição. Por sua vez, quando a torre de Luana se parte, esta mesma é quem toma a iniciativa de efetuar a comparação, ainda que saiba que a torre de Elis será a maior. O que move o jogo entre Elis e Luana é o compartilhamento do prazer do ritual de comparar e a cumplicidade da simulação da surpresa com os resultados das comparações.

Após dois minutos em que as meninas atuam nesse jogo de aproximação, “medição” e comparação, Luana, porém, levanta-se da mesa e partilha com o adulto - a professora - a informação de que sua construção é “mais grande”. Seu enunciado, embora mobilize uma expressão comparativa, não faz referência ao termo de comparação nem se faz acompanhar de algum gesto que estabeleça para a interlocutora (a professora) a torre de Elis como aquela que fora sobrepujada pela sua.

Pode-se especular, aqui, acerca da expectativa de Luana de receber algum comentário sobre o tamanho de sua construção, como ocorrera com Lucas e Henrique, contudo Luana retorna imediatamente para perto de Elis e as duas passam a observar a comparação entre as duas torres pelo espelho que fica diante da mesa delas, o que reforça o caráter cênico da ação de comparação que executam.

O colega Henrique, ao escutar Luana exibindo sua torre como “a mais grande”, chama a colega para uma disputa: “LUANA/LUANA/ qual que é mais grande?”. A menina levanta-se e aceita o desafio. Diferentemente do que ocorreu nas cenas de comparação das torres de Henrique com Lucas e de Lucas com Leonardo, nas quais os corpos foram usados como extensão das torres, nessa cena Luana, a exemplo do que fizera Elis, estabelece uma base de apoio comum para as torres para que a comparação seja feita: traz, assim, uma regra procedimental que fora estabelecida no jogo anterior e indispensável para a previsibilidade dos resultados - fator fundamental da graça do jogo.

Todavia, o inesperado acontece quando Henrique coloca sua torre em pé e as peças se soltam, desfazendo sua construção. O menino não aceita a derrota iminente e decide quebrar a torre da colega, para que Luana não seja a vencedora do desafio. A atitude dele sugere que a convocação que fizera para Luana não era para compartilhar o jogo que a colega antes estabelecera com Elis. Henrique desafiara-a para outro jogo comparativo, com outras regras, que definiriam um vencedor: quem tinha a torre “mais grande”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O confronto entre as diferentes dinâmicas dos jogos de comparação em que se engajam Luana e Elis, Luana e Henrique, Henrique e Lucas, Lucas e Leonardo e Lucas e as distâncias de referência nos auxilia a ampliar nossa compreensão da constituição da cultura lúdica daquele grupo e das diversas intenções pragmáticas das comparações, que se valem da impregnação cultural, referenciando aqueles jogos com ideias, procedimentos, rituais e parâmetros das práticas culturais de medição.

Em sua interação, Luana e Elis constroem os procedimentos do jogo de comparação em conjunto e por meio dos gestos. Na dinâmica do jogo que elas protagonizam ocorre a incorporação do termo medir ao vocabulário do ritual de comparação de alturas. Há também a indicação de uma regra de procedimento: a definição tácita de uma base de referência para que a comparação fosse feita e para que seus resultados fossem previsíveis. Isso serve à disposição de Elis e Luana, que trazem ao jogo a encenação como um novo elemento: um deboche acordado, baseado na obviedade do resultado das comparações da altura de suas torres, conferindo a elas um clima de farsa teatral, que se identifica no jogo dramático estabelecido pelas meninas ao encenarem gestos e olhares exagerados e estereotipados, que as fazem gargalhar.

A enunciação de Luana de que sua torre é a “mais grande”, entretanto, suscita em Henrique o desejo de comparação de sua própria torre com a da colega. Nessa comparação, contudo, Henrique desafia-a para outro jogo comparativo, com outras intenções, no qual venceria quem tivesse a torre “mais grande”. ­Diferentemente do jogo que estabelecera com Elis, em que a regra da base comum foi assumida tacitamente e servia à previsibilidade do resultado, e também dos jogos protagonizados por Lucas e Henrique e Lucas e Leonardo, em que essa regra era desdenhada, o jogo a que Luana é convocada por Henrique engendra uma disputa e exige não só o cumprimento da regra, mas sua explicitação.

Por fim, o inconformismo de Henrique com a derrota contrasta com as gargalhadas que se seguiam às comparações no jogo das meninas, como a disputa efetiva se contrasta com a encenação pactuada, conformando diferentes instâncias da cultura lúdica.

Para Brougère (1998), o brincar é espaço de criação cultural por excelência, e a cultura lúdica consiste no resultado da experiência lúdica acumulada pela criança desde bebê, não fechada em torno de si mesma, mas integrada a elementos externos que influenciam a brincadeira. O brincar não pode, por isso, ser caracterizado como uma dinâmica exclusivamente interna do indivíduo, mas sim como uma atividade dotada de significação social precisa.

A cultura lúdica, como toda cultura, é produto de interação social e constitui-se do conjunto de elementos que uma criança utiliza em seus jogos. Portanto, ela não está fechada em torno de si mesma, mas integra elementos externos que influenciam a brincadeira, como atitudes e capacidades, cultura e meio social. Para Brougère (1998), a cultura lúdica só pode ser entendida em interdependência com a cultura global de uma sociedade específica, pois recebe estruturas sociais dessa sociedade, atribuindo-lhes um aspecto específico.

Assim, não nos interessa compreender os processos, as motivações nem as instâncias de configuração da cultura lúdica como recursos ou mesmo oportunidades para a apropriação pelas crianças de práticas de numeramento socialmente valorizadas, nesse caso práticas de medir, ou para o desenvolvimento das habilidades que as subsidiam. Procuramos focalizar essa apropriação e o uso pragmático daquelas habilidades como efeitos da impregnação cultural, assim influenciando a cultura lúdica daquele grupo, à medida que disponibiliza - e por vezes impõe - parâmetros e recursos que emprestam sentidos ao brincar, enredos e argumentos às brincadeiras.

REFERÊNCIAS

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1 Segundo Green, Dixon e Zaharlick (2005, p. 42), “os pontos relevantes (rich points) são locais onde as normas e as expectativas, papéis e relações, direitos e deveres de pertencimento e participação dos integrantes se tornam visíveis para os membros e para os etnógrafos”. Além disso, eles proporcionam uma âncora para traçar caminhos para o entendimento do desenvolvimento cultural e para a construção de justificativas dos fenômenos observados do ponto de vista interno do grupo pesquisado.

3 Escola, educadoras e crianças serão referidas com nomes fictícios para preservar sua identidade.

4 Lucas ingressou na EMEI em dezembro de 2017.

5 Henrique ingressou na EMEI em janeiro de 2018.

6 As interações que não foram gravadas, mas apenas registradas no caderno de campo, foram transcritas como se registram os diálogos em textos literários.

7 Luana ingressou na EMEI em janeiro de 2015.

8 Elis ingressou na EMEI em novembro de 2015.

9 Para Caraça (1998, p. 30), há no problema da medida “três fases e três aspectos distintos - escolha da unidade; comparação com a unidade; expressão do resultado dessa comparação por um número”.

Financiamento: O estudo que subsidia este artigo tem apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (Processo 306667/2019-3).

Recebido: 25 de Novembro de 2020; Aceito: 15 de Julho de 2021

Raquel Monteiro Pires de Lima é doutoranda em educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Coordenadora pedagógica do Instituto Leidiavila. E-mail: raquemplima@gmail.com

Maria da Conceição Ferreira Reis Fonseca é doutora em educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail: mcfrfon@gmail.com

Conflitos de interesse: As autoras declaram que não possuem nenhum interesse comercial ou associativo que represente conflito de interesses em relação ao manuscrito.

Contribuições dos autores: Investigação, Metodologia: Lima, R. M. P. Análise Formal, Conceituação, Curadoria de Dados, Escrita - Primeira Redação, Escrita - Revisão e Edição, Obtenção de Financiamento: Lima, R. M. P.; Fonseca, M. C. F. R.

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