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Revista Brasileira de Educação

versão impressa ISSN 1413-2478versão On-line ISSN 1809-449X

Rev. Bras. Educ. vol.27  Rio de Janeiro  2022  Epub 16-Jun-2022

https://doi.org/10.1590/s1413-24782022270044 

Artigos

Uma proposta curricular para a formação de professores de línguas no contexto da educação do campo: reflexões e práticas de Educação Linguística

A CURRICULAR PROPOSAL FOR THE TRAINING OF LANGUAGE TEACHERS IN THE CONTEXT OF RURAL EDUCATION: REFLECTIONS AND PRACTICES OF LANGUISTIC EDUCATION

UNA PROPUESTA CURRICULAR PARA LA FORMACIÓN DE PROFESORES DE LENGUAS EN EL CONTEXTO DE LA EDUCACIÓN EN EL CAMPO: REFLEXIONES Y PRÁCTICAS DE LA EDUCACIÓN LINGÜÍSTICA

Carlos Henrique Silva de Castro I  
http://orcid.org/0000-0001-8593-060X

Luiz Henrique Magnani I  
http://orcid.org/0000-0001-7128-9604

Luiz Otávio Costa Marques I  
http://orcid.org/0000-0001-7139-3137

IUniversidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, Diamantina, MG, Brasil.


RESUMO

A emergência das licenciaturas em educação do campo em universidades públicas brasileiras, ocorrida a partir do início do século XXI, mobiliza, na prática, um conjunto de questões pedagógicas, metodológicas, epistemológicas e logísticas de toda uma comunidade vinculada a tal política pública. Em particular, focalizamos o caso da habilitação em linguagens e códigos de um desses cursos, em que atuam os autores do texto. Com o objetivo de refletirmos sobre práticas educativas significativas no contexto apresentado, bem como sobre concepções de língua e linguagem que subjazem tais práticas, descrevemos alguns aspectos da habilitação, pormenorizando elementos de organização curricular tanto quanto práticas que mobilizam visões e posturas particulares. Tal descrição acompanha uma análise sobre aspectos conceituais e práticos sobre linguagem e educação que emergem a partir de nossa atuação no curso em questão. Consideramos que relatos e reflexões sobre experiências e aspectos de um curso marcado por práticas, expectativas, organização espaço-temporal e bases epistemológicas que se contrapõem a um modelo mais comum de formação de professores da área da linguagem no contexto brasileiro podem suscitar pautas de interesse mais amplo para as esferas da linguagem e da educação.

PALAVRAS-CHAVE linguagens; formação de professores; educação do campo

ABSTRACT

We discuss here how the emergence of undergraduate courses in rural education in Brazilian public universities, which occurred at the beginning of the 21st century, mobilizes, in practice, a varied set of pedagogical, methodological, epistemological, and logistical issues to an entire community linked to such public policy. In particular, we focus on the case of the language and codes area of one of these undergraduate courses, where the authors of this text work. With the objective of reflecting on significant educational practices in the presented context, as well as on conceptions of language and language that underlie such practices, we describe some aspects of habilitation, detailing elements of curricular organization as well as practices that mobilize particular views and postures. This description accompanies an analysis of conceptual and practical aspects of language and education that emerge from our experience in the course in question. We consider that reports and reflections on experiences and aspects of a course marked by practices, expectations, spatio-temporal organization, and epistemological bases that are opposed to a more common model of teacher education in the area of language in the Brazilian context may raise agendas of broader interest for the spheres of language and education.

KEYWORDS languages; teacher training; rural education

RESUMEN

La aparición de títulos en educación rural en las universidades públicas brasileñas que ocurrió desde principios del siglo XXI se moviliza, en la práctica, un conjunto de cuestiones pedagógicas, epistemológicas y logísticas a toda una comunidad vinculada a dicha política pública. En particular, nos centramos en el caso de un curso del cual son profesores los autores del texto. Con el objetivo de reflexionar sobre las prácticas educativas significativas en el contexto presentado, así como sobre las concepciones de lenguaje y de lenguaje que subyacen a tales prácticas, se describen algunos aspectos de la habilitación, detallando elementos de organización curricular así como prácticas que movilizan miradas y posturas particulares. Acompaña esta descripción un análisis de los aspectos conceptuales y prácticos de la lengua y la educación que emergen de nuestro desempeño en el curso en cuestión. Creemos que informes y reflexiones sobre experiencias y aspectos de un curso marcado por prácticas, expectativas, organización espacio-temporal y bases epistemológicas que se oponen a un modelo más común de formación docente en el área del lenguaje en el contexto brasileño pueden plantear agendas de mayor interés en las esferas del lenguaje y de la educación.

PALABRAS CLAVE lenguajes; formación de profesores; educación rural

APRESENTAÇÃO

A instituição das licenciaturas em educação do campo foi uma das conquistas mais relevantes de movimentos em favor da educação do campo no país. Em 2007, o poder público concretiza essa demanda com a criação do Programa de Apoio à Formação Superior em Licenciatura em Educação do Campo (Procampo), no âmbito da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD), do Ministério da Educação. Conforme Molina (2015), foi um avanço promovido a partir de uma pressão social e política para se atender a uma das pautas da II Conferência Nacional por uma Educação do Campo (CNEC), realizada em 2004: a elaboração de uma política pública específica voltada à formação de educadores do campo. De acordo com Freitas (2011), a proposta do Procampo tinha como objetivo:

[...] apoiar a implementação de cursos regulares nas instituições públicas de ensino superior, voltados especificamente para a formação de educadores para a docência em escolas rurais nas séries finais do ensino fundamental e no ensino médio. (Freitas, 2011, p. 45)

Assim, nesse primeiro momento, uma política de formação de educadores do campo concretiza-se por meio da implementação de experiências-piloto de cursos em quatro instituições federais de ensino superior no país (Universidade Federal de Minas Gerais [UFMG]; Universidade de Brasília [UnB]; Universidade Federal da Bahia [UFBA] e Universidade Federal de Sergipe [UFS]), indicadas por movimentos sociais (Molina, 2015). Sendo grande a demanda por esses cursos, tal como era também a pressão dos movimentos sociais, foram lançados pelo Ministério da Educação, nos anos de 2008 e 2009, editais com o objetivo de ampliar a oferta de cursos em outras instituições de ensino superior (Molina, 2015). Por meio desses editais, foram abertos 32 cursos de licenciatura em educação do campo em instituições federais de ensino superior em diferentes regiões do país. No entanto, esses cursos não tinham continuidade assegurada, posto que os editais publicados estabeleciam a abertura de turmas específicas por projeto. Segundo Molina e Antunes-Rocha (2014), foi feita a correção da oferta única de curso por meio da publicação do Edital SESU/SETEC/SECADI nº 2/2012, convocando universidades e institutos federais de ensino superior a submeterem projetos de cursos de licenciatura em educação do campo, tendo em vista um processo de institucionalização. Mediante o referido edital, foram aprovadas 44 propostas de cursos, com matrizes curriculares multidisciplinares, objetivando a formação de educadores do campo para atuar nos anos finais do ensino fundamental e no ensino médio, nas seguintes áreas do conhecimento: linguagens e códigos; ciências humanas e sociais; ciências da natureza, matemática e ciências agrárias (Brasil, 2012).

No presente estudo, assumimos como ponto de partida para discussão a matriz curricular de uma dessas licenciaturas que tiveram sua proposta aprovada pelo referido edital: a licenciatura em educação do campo da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, bem como práticas educativas ocorridas no contexto do curso em questão. Adotamos como objetivo central do presente exercício refletir sobre práticas educativas possíveis em um contexto tal como o apresentado - atravessado, por exemplo, pela lógica de um regime mais incomum no ensino superior, como o regime da alternância; marcado historicamente pela demanda de movimentos sociais em prol de sua institucionalização; colocando em prática a tarefa de estabelecer diálogo entre variadas disciplinas, entre outros. Também nos interessa refletir brevemente sobre quais noções de língua e linguagem são ou podem ser priorizadas na realização de tais práticas pedagógicas. Para tanto, analisaremos alguns aspectos, escolhas e posturas do corpo docente da área da linguagem materializados em ementas de unidades curriculares dispostas no Projeto Pedagógico do Curso (PPC), além de relataremos e examinaremos brevemente algumas práticas ocorridas dentro do escopo da comunidade ligada à licenciatura em questão. Tais relatos e análises envolvem tanto atividades e unidades curriculares de estudos linguísticos e língua portuguesa como também, em um segundo momento, questões de ensino de língua estrangeira. São escolhas que não esgotam a complexidade do curso, suas práticas e seu projeto pedagógico, mas lançam um olhar mais aprofundado sobre elementos significativos para a discussão em questão.

Antes disso, no entanto, consideramos relevante contextualizar brevemente o curso e as práticas a serem aqui apresentadas, uma vez que - seja na área da linguagem, seja na da educação - ainda há muito desconhecimento em relação à realidade da educação do campo no ensino superior. É relevante, por exemplo, pontuar que tal graduação prioriza a formação por áreas de conhecimento e, dentro disso, forma profissionais para a educação básica em duas habilitações. Enquanto linguagens e códigos habilita professores de português, literatura e inglês, ciências da natureza habilita professores de biologia, física e química. Além das áreas específicas das habilitações, há um núcleo comum articulado a partir das ciências humanas dedicado a disciplinas como: didática, políticas educacionais e gestão escolar, história e filosofia da educação, metodologia do trabalho científico, diversidade e educação, entre outras.

O curso é ofertado em regime de alternância. Conforme apresentado em Magnani et al. (2018), tal regime, no caso concreto da licenciatura em educação do campo da UFVJM, prevê a organização e articulação de espaços e tempos formativos alternados em duas grandes categorias: Tempo Universidade (TU) e Tempo Comunidade (TC). De acordo com o Dicionário da Educação do Campo (Araújo, 2012, p. 256), a alternância “(...) foi inaugurada pela Escola Família Agrícola (EFA) para atender especialmente aos filhos dos agricultores” tendo em vista as particularidades contextuais dos jovens trabalhadores do campo que não poderiam, por exemplo, estudar na época da colheita. Essa proposta é parte de uma pedagogia mais ampla, a “Pedagogia da Alternância” (Gimonet, 1998), uma prática comum em tais escolas e que acontece a fim de atender às especificidades campesinas e promover interação entre a universidade e as comunidades de origem dos estudantes, colocando o conhecimento acadêmico em perspectiva ao dialogar com a(s) realidade(s) do campo.

A licenciatura em educação do campo, com seu regime de alternância, opera de modo diferenciado em relação ao que é mais tradicional no ensino superior brasileiro, que seriam as modalidades presencial e não presencial (ou a distância). Além disso, o curso fomenta a inter, multi e transdisciplinaridade, bem como um processo formativo de base freireana voltado para a autonomia e a reflexão crítica (UFVJM, 2018). Dentro desse cenário, prevê-se, no TU, o início de um processo de ensino e pesquisa com atividades mais teóricas e de diálogo com a comunidade acadêmica, ainda que as temáticas possam resgatar práticas desenvolvidas nas comunidades. No TC, que ocorre alternadamente após o TU, os estudantes desenvolvem pesquisas interdisciplinares, pesquisas e trabalhos para as disciplinas específicas do semestre, preparam e aplicam práticas de ensino nas comunidades e escolas locais, além de estagiarem - tudo isso, seja nas comunidades em que atuam e/ou habitam, seja nos arredores de tais localidades. Como se verifica, as particularidades dos aspectos logísticos, pedagógicos e metodológicos do curso propiciam certas condições que favorecem - ao mesmo tempo em que parecem exigir - o diálogo entre os saberes, os espaços e os sujeitos mobilizados direta ou indiretamente por sua institucionalização. Diante da realidade do curso, de modo geral, propomos como recorte para a presente reflexão aspectos ligados à área de conhecimento de linguagens e códigos. Além de essa decisão se justificar por sermos, os três autores, docentes e pesquisadores dessa área, nossa própria busca anterior à escrita deste artigo por estudos e referências nos deu indícios de que era uma área com produção ainda escassa. Algo bastante justificável, considerando-se o pouco tempo em que essa nomenclatura passa a existir como forma de denominar uma habilitação docente - algo que emerge somente depois da institucionalização das licenciaturas em educação do campo em universidades públicas brasileiras. Vale também destacar que, das 41 licenciaturas em educação do campo em andamento no país (Seminário Nacional da Licenciatura em Educação do Campo, 2014), menos de um terço oferece certificação na área de linguagens e códigos. Essa ocorrência pode ser o indicativo de uma demanda por estudos que coloquem em pauta questões próprias de tal habilitação, bem como a relevância da área para o contexto da educação do campo.

A emergência da habilitação em linguagens e códigos na recém-institucionalizada licenciatura em educação do campo da UFVJM, em 2013, levanta questões e reflexões sobre língua, linguagem, formação de professores, ensino-aprendizagem e as particularidades de determinados territórios, sobretudo os marginais. Um dos principais exemplos disso seria a assimetria de relações entre contextos rurais e urbanos posta por um conjunto variado de questões sócio-históricas - dentre as quais a própria história da produção de conhecimento acadêmico institucionalizado, que costuma emergir especialmente em centros urbanos (Magnani e Castro, 2019). Tal condição parece operar tentando constantemente posicionar territórios e sujeitos do campo no local de quem é observado ou explicado, postura que favorece o apagamento de seus saberes, trajetórias e identidades.

Considerando-se tais aspectos, entre outros pormenorizados em Magnani et al. (2018) e Magnani e Castro (2019), e tendo em vista que o curso em pauta forma professores de língua, entendemos ser importante uma reflexão a respeito de concepções de língua e linguagem que influenciam os processos formativos próprios do curso.

ESCOLHAS EPISTEMOLÓGICAS BASAIS

No decorrer da existência dos estudos linguísticos, objetos investigativos foram se alterando, bem como concepções, termos, categorias. Há de se salientar que a área da linguística começa a ser reconhecida como ciência apenas no século XX, mais precisamente a partir da publicação, em 1916, do Curso de Linguística Geral de Ferdinand de Saussure, então falecido, organizado pelos alunos Charles Bally e Albert Sechehaye (Coelho, 2012). A visão de língua presente nos influentes estudos de Saussure parecia condizer com as demandas da ortodoxia científica da época, que buscava critérios como universalidade e replicabilidade. Ao longo da história, ainda, diversas outras visões a respeito do objeto de atenção dos estudos linguísticos disputaram o debate público.

Alguns teóricos buscam delimitar algumas tendências de como esse objeto tem sido pensado e investigado. Marcuschi (2008, p. 59), por exemplo, sintetiza em quatro tendências as principais posições existentes nos estudos linguísticos sobre a noção de língua: (a) como forma ou estrutura (posição assumida pela visão formalista); (b) como instrumento/transmissor de informações (posição defendida pela teoria da comunicação); (c) como atividade cognitiva (representada pelo cognitivismo); (d) como atividade sociointerativa situada (relaciona os aspectos históricos e discursivos). Em procedimento semelhante, Travaglia (2003) busca mapear diferentes concepções de linguagem, agrupando-as em: (a) linguagem como expressão do pensamento; (b) linguagem como instrumento de comunicação, código que se combina de acordo com regras capazes de transmitir mensagens; e (c) linguagem como forma ou processo de interação. Em comum e de modo alinhado a autores que se debruçam sobre questões de linguagem e ensino (Antunes, 2003), Travaglia e Marcuschi (2008) ponderam sobre a importância de uma noção de língua que envolva aspectos cognitivos e sociais relativos a processos de construção de sentido, de raciocínio, de interação.

Atentos a esse entendimento, preconizamos ser importante uma prática educativa de formação de professores que abarque a linguagem em sua complexidade constitutiva. Dentro disso, por exemplo, entendemos ser necessária uma noção de linguagem que esteja articulada com as práticas sociais concretas, dentre as quais as próprias atividades propostas ou possibilitadas pela comunidade universitária. Defende-se que é insuficiente apenas sabermos da existência de um “giro pragmático” ou de concepções que desafiem visões de ensino e aprendizado focadas em transmissões de mensagens e conteúdos se essas reflexões não colocarem em tensionamento o modo como lidamos com a linguagem nas práticas formativas.

Ademais, há outro ponto a ser considerado. Na perspectiva de Bagno e Rangel (2005, p. 67), há, no país, uma lacuna “entre as propostas oficiais de ensino de língua, a formação docente nas universidades e as demandas sociais por uma educação capaz de assegurar os direitos linguísticos do cidadão e de lhe permitir construir sua cidadania”. Percebe-se, assim, uma demanda por uma política de educação linguística no contexto do ensino institucionalizado brasileiro, a qual levaria em conta os estudos acadêmicos atualizados a respeito da temática. Essa necessidade apontaria para algumas áreas de investigação que, na visão dos autores, “se destacam - pelas opções teóricas e resultados obtidos - como as de maior vocação para contribuir para constituição de uma política de educação linguística.” (Bagno e Rangel, 2005, p. 67)

Entre tais áreas, os autores destacam os estudos dos letramentos.

Assumimos que tal seara é de muita relevância atualmente para as reflexões sobre linguagem e educação, na medida em que favorece o entendimento do que é texto e leitura para além da preocupação estrita com a alfabetização enquanto aquisição de um código e com a memorização da gramática normativa. Letramentos - no plural porque referem-se ao estudo de práticas sociais com a leitura e a escrita, tão plurais quanto as esferas de interações com língua escrita - apontam para a necessidade de estudo de uma língua em contextos reais de uso (Soares, 1998; Street, 2014), com temas, formas, composições e estilos necessários à interação nas esferas de atividades dos sujeitos, ou seja, de acordo com os gêneros em uso (Bakhtin, 1986).

Com o desenvolvimento das tecnologias digitais de comunicação nas últimas décadas, podemos notar mais um desafio: muitos dos conceitos de leitura e texto até então consolidados passam a ser reconfigurados, visto que surgem novos gêneros discursivos, combinando diferentes linguagens, tais como a visual, a sonora e a gestual. Essas percepções se alinham ao que pondera Manovich (2003), para quem mudanças quantitativas substanciais, trazidas com o desenvolvimento da informática, acabam fazendo emergir, qualitativamente, novos fenômenos.

Podemos acrescentar que essa revolução da linguagem transforma a vida social e profissional dos indivíduos, exigindo novas habilidades e competências comunicativas em diferentes esferas da vida pública, além de deslocar o papel de centralidade da escrita (Kress, 2003), em uma espécie de “era tardia” (Bolter, 2000), na qual o poder do impresso está em declínio, mas permanece bastante relevante. Nesse contexto de transformações nas formas de comunicação, surgem diversos estudos dedicados à pauta do(s) letramento(s), visando problematizar a multiplicidade de usos da linguagem e os diferentes modos de produção de sentidos, mediados - não só, mas especialmente - por novas tecnologias de comunicação (Cope e Kalantzis, 2000; Gee, 2001; Lankshear e Knobel, 2003).

Essa conjuntura mais ampla articula-se com particularidades que marcam o contexto de atuação e convívio dos discentes e docentes da licenciatura em educação do campo da UFVJM. O curso tem estudantes com suas atividades de ensino, pesquisa e extensão na zona rural da região norte do estado de Minas Gerais. É grande o desafio de formar um licenciado do campo crítico, do campo e para o campo, tendo em vista, além das questões epistemológicas, limitações como a disponibilidade de tecnologias de interação e outros elementos infraestruturais, como bibliotecas. Assim, nossa busca é pelo uso do potencial que temos, com suas limitações, para um diálogo que seja tanto mais próximo dos desafios reais de um educador do campo quanto possível. Ou seja: o foco do nosso trabalho é uma construção textual que dialogue com as comunidades e seus sujeitos, que abra espaço para uma leitura de mundo (Freire, 2011) com menos fronteiras. Nesse sentido, uma discussão sobre currículos aponta para elementos que fomentem o exercício da crítica e da autonomia, características de uma escola mais dialógica e, portanto, progressista, que vem sendo construída, mais teoricamente do que na prática, já há algum tempo. Podemos buscar elementos que ajudem a sustentar essa postura até antes dos primeiros escritos de Paulo Freire, já que o russo Mikhail Bakhtin, em sua obra O Marxismo e a Filosofia da Linguagem, entendia os contextos como importantes elementos na produção de enunciados, definidores, inclusive, dos diferentes gêneros discursivos existentes.

Não por acaso, embora seus escritos tenham ficado por um bom tempo à parte das discussões mais centrais da linguística ao longo da história da disciplina no ocidente, as ideias de Bakhtin sobre língua, enunciação e gêneros voltam a ganhar destaque na área. O desdobramento dessa discussão chega, inclusive, à Lei de Diretrizes e Bases (LDB), lei de 1996 que rege a educação brasileira; às Diretrizes Para a Educação Básica; aos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) - 3º e 4º ciclos do ensino fundamental (Brasil, 1998) - e aos PCN - do ensino médio (Brasil, 2002); às Orientações Curriculares para o Ensino Médio - OCEM (Brasil, 2006); à Base Nacional Curricular Comum - BNCC (Brasil, 2017; 2018); e, ainda, às regulamentações estaduais e municipais sobre educação.

No caminho dessas reflexões epistemológicas, nossas decisões começam a se materializar na concepção do corpo de disciplinas e materializa-se, de fato, nas práticas letradas e vivências com linguagens proporcionadas pelo curso. A partir do entendimento de que as práticas letradas e multissemióticas em uso importam, tanto no contexto urbano quanto no rural, partimos para a construção das unidades de conteúdo, as disciplinas, para, então, proporcionarmos as práticas necessárias à aprendizagem no contexto educativo da educação do campo, sobretudo o da universidade em que atuamos como docentes e sua área de abrangência.

Após essas considerações iniciais, trazemos, nas próximas quatro seções, reflexões e exemplos práticos de como pensamos as visões de língua e linguagem tanto dentro das unidades curriculares do curso bem como essas visões se mostram presentes em práticas educativas ligadas à licenciatura em educação do campo da UFVJM em geral.

OS COMPONENTES CURRICULARES DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS E LÍNGUA PORTUGUESA

Dentro dos limites e das possibilidades concretas de atuação dos docentes do curso está a responsabilidade de se estruturar um currículo que busque prever e favorecer componentes e aspectos detectados como desejáveis ou importantes para o processo formativo de seus discentes. No caso da licenciatura em educação da UFVJM, podemos observar que essa escolha não deve vir apenas a partir de estudos teóricos, mas também pelos entendimentos trazidos por movimentos sociais e por comunidades concretas. A partir da contextualização e da reflexão teórica até aqui levantadas, sugerimos que uma proposta de educação linguística voltada para o protagonismo do estudante e seus processos de aprendizagens - potencialmente distintos entre si - deve ir além de estudos como o das nomenclaturas de classes de palavras, análises sintáticas intermináveis ou a memorização sistemática e repetitiva de verbos e desinências pouco utilizados. Esses seriam objetos de estudo já vistos em demasia ao longo da carreira estudantil e, muitas vezes, de forma reducionista e descontextualizada. Antunes (2003), por exemplo, apresenta-se em defesa de uma aula de português interativa e funcional, coerente com visões mais atuais sobre língua e linguagem. A autora, assim como também observam Bagno e Rangel (2005), nota que muitos aspectos mais atuais e já consolidados academicamente a respeito desses conceitos ainda não são tomados como pontos de partida na prática escolar.

Salientamos ainda que as perspectivas a respeito de educação, língua e linguagem que apresentamos estão assentadas no diálogo entre, de um lado, as bases teóricas priorizadas e, de outro, a vivência com a sala de aula e com a formação de professores de forma empírica e cotidiana. Depoimentos vários de licenciandos - tanto em atividades de sala de aula quanto em outras práticas - têm corroborado os aspectos teóricos que até aqui destacamos. Esse processo cotidiano é importante para reforçar nosso entendimento do papel de importância que o currículo e as aulas de uma habilitação em linguagens e códigos têm no processo formativo desses futuros educadores.

Diante do exposto, consideramos válido detalhar um pouco mais a estrutura da habilitação em linguagens e códigos da licenciatura em educação do campo da UFVJM e, ao colocar esse ponto em análise, trazer uma reflexão sobre visões de língua, linguagem e ensino que têm sido priorizadas. A habilitação está estruturada nas disciplinas de responsabilidade dos professores de língua portuguesa, inglesa e literaturas, sendo que as disciplinas de estudos linguístico e de língua portuguesa, objetos de reflexão desta seção em particular, são: leitura e produção de texto (60 horas), linguística aplicada e a formação do educador do campo (60 horas), panorama dos estudos linguísticos no ocidente (60 horas), panorama dos estudos linguísticos no ocidente (60 horas), gêneros textuais/discursivos (60 horas), estudos do texto e do discurso (60 horas), educação linguística e o ensino de língua portuguesa (60 horas), estruturas linguísticas e sentido (60 horas), ensino de língua portuguesa e novas tecnologias (60 horas), linguagem e sociedade (60 horas). Não nos dedicaremos aqui a explicar como cada disciplina é direcionada; no entanto, com o intuito de ilustrar de que modo buscamos trazer para tais componentes curriculares as preocupações e reflexões apresentadas em seção anterior, abordaremos aqui cinco exemplos de disciplinas e suas ementas. Na seção subsequente, daremos atenção especial às práticas educativas que se mostram alinhadas com a visão de linguagem aqui elaborada.

A área de linguagens e códigos entra em contato com os estudantes, em um primeiro momento, na disciplina leitura e produção de texto (LPT), ofertada no primeiro período da licenciatura em educação do campo da UFVJM. A disciplina, obrigatória para ambas as habilitações, tem como ementa:

Conceitos básicos de estrutura e funcionamento de textos: fatores de textualidade, tipologia textual e gêneros discursivos. Estratégias textual-discursivas de construção do sentido. Desenvolvimento de competências de leitura e de produção textual. Uso do padrão culto da língua em contextos formais de leitura e produção textual. (UFVJM, 2018, p. 86)

Podemos notar que uma concepção interacionista da língua está presente na medida em que os conceitos de fatores de textualidade, tipologia textual e gêneros discursivos aparecem como centrais no debate. Da mesma forma, o conceito de texto está ligado ao de discurso, apontando para uma concepção dialógica que não os coloca em campos opostos, tal como concebe Bakhtin (1986; 2006).

Outra disciplina com destaque para a concepção interacionista é gêneros textuais/discursivos. O caráter dialógico é implícito ao nome do componente curricular, tendo em vista o conceito bakhtiniano de gêneros discursivos, como as variações em termos de temas, estilo e construção composicional dos textos, de acordo com as esferas de atuação humana. A partir do conceito, a proposta é refletir e colocar em prática a construção de diferentes gêneros discursivos, como prevê a ementa: “Estudos teóricos sobre os gêneros textuais/discursivos. O ensino dos gêneros textuais/discursivos no contexto do campo. Análises teóricas e construção de gêneros textuais das cadeias dialógicas dos acadêmicos.” (UFVJM, 2018, p. 141)

A disciplina destinada ao estudo das metodologias de ensino de língua portuguesa recebe o nome de educação linguística e o ensino de língua portuguesa e tem a seguinte ementa: “O ensino de língua portuguesa na educação do campo. Aulas de português em uma perspectiva contextual/dialógica. O ensino de produção textual e de gramáticas. Análise e desenvolvimento de projetos de ensino de língua portuguesa.” (UFVJM, 2018, p. 144-145)

Como vemos, o título traz a expressão “educação linguística”, a fim de priorizar a perspectiva de uma língua plural e mutável em processos de ensino/aprendizagem. Uma educação para o ensino de português, nesse sentido, deve ser, antes de tudo, uma educação linguística. Na ementa, vemos que essa mesma perspectiva dialógica é contextualizada na educação do campo. Ainda, o ensino de produção textual é garantido em primeira instância e o de gramática aparece no plural, em consonância com uma perspectiva de que os sentidos são contextuais, as formas estão ligadas aos gêneros e são mais fluidas e menos estanques, o formal e o informal são partes da língua e têm gramáticas distintas. É uma proposta de aula de português para letramentos.

Papel de destaque no nosso currículo é dado aos letramentos mediados digitalmente, tanto estudo quanto o ensino na sala de aula, na disciplina ensino de língua portuguesa e novas tecnologias. Tal disciplina interage com outra, presente no currículo, estudos de letramento, ofertada anteriormente, e traz uma reflexão teórica e mais abrangente a respeito do(s) conceito(s) de letramento(s). Assim como ocorre nas demais disciplinas mencionadas, há uma mescla de propósito pedagógico e para os letramentos na medida em que a ementa aborda letramentos digitais em, pelo menos, duas perspectivas: a pedagógica e a de elaboração textual. Busca-se favorecer tais propósitos a partir da materialização desses anseios na ementa da disciplina do seguinte modo: “Letramento digital e educação do campo: perspectivas e possibilidades. O ensino de línguas e literatura e as novas mídias na educação básica. Cadeias interativas mediadas tecnologicamente.” (UFVJM, 2018, p. 151)

Em geral, vemos, portanto, que a concepção de todas essas ementas está centrada nas práticas sociais dos sujeitos em formação, como educadores e como cidadãos. Isso, por si só, nos mostra o caráter dialógico de toda a proposta com todos os seus desafios. Tratando-se de um curso demandado por esferas normalmente desprestigiadas da sociedade, as comunidades rurais, uma proposta de graduação não poderia ser diferente. Afinal, letrar é uma questão política, pois, se não se garante o acesso, não se viabiliza uma leitura dos percursos e percalços, uma leitura crítica das realidades, uma leitura do mundo (Freire, 2011) que, não podemos negar, pode contribuir para direcionar a luta pela desopressão, para se educar para os jogos discursivos do poder e para práticas linguísticas mais democráticas entre os diversos sujeitos da sociedade. Como pontua Bakhtin (2006, p. 13), “[a] palavra é uma espécie de ponte entre mim e o outro.”

A seção a seguir busca contextualizar esse reiterado esforço em uma formação de educadores para os letramentos a partir de exemplos práticos com disciplinas citadas nos parágrafos anteriores.

AS PRÁTICAS EDUCATIVAS PARA OS LETRAMENTOS

As disciplinas voltadas para as práticas com o texto têm suas atividades de ensino pensadas para integrar cadeias dialógicas reais, para o objetivo final de letramentos diversos em práticas caras ao cidadão, sobretudo quando se trata de um educador. Para tanto, o esforço é de se criar atividades funcionais, com leitores reais, para diálogos/produções textuais reais, a fim de que aprendam as práticas textuais que lhes serão úteis nas esferas de comunicação em que estejam inseridos.

Para Antunes (2003, p. 48), um propósito funcional, na escrita, por exemplo, “(...) possibilita a realização de alguma atividade sociocomunicativa entre as pessoas e está inevitavelmente em relação com diversos contextos sociais em que as pessoas atuam.”

Inicialmente, trazemos algumas reflexões sobre algumas práticas letradas do campo possibilitadas pela disciplina gêneros textuais/discursivos. Nessa disciplina, em julho de 2016, promoveu-se uma atividade essencial para a produção de dados, a escrita, por parte dos estudantes, de um texto memorialístico sobre o contato com textos diversos, em diversos suportes e com diferentes recursos, ao longo de suas vidas. O trabalho foi proposto à época do TU e foi finalizado com 23 textos. Os estudantes produziram seus textos entendendo que passariam por um processo editorial, com leituras, revisões, formatação etc., que culminaria na produção de um livro artesanal em uma oficina de encadernação. Estava prevista também a obtenção de International Standard Book Number (ISBN) posteriormente, quando da soma de novos textos de novos estudantes ao material. A oportunidade de completar 68 textos, em 144 páginas, veio com a disciplina leitura e produção de texto, ofertada em janeiro de 2017. Nesse instante, a atividade de produção de memórias de letramentos atendeu a alguns propósitos da disciplina, como promover a reflexão sobre os próprios letramentos, a fim de entender os processos linguísticos de aprendizagens em nossa sociedade e encontrar padrões que podem ser disseminados.

O livro, denominado Memórias de letramentos: vozes do campo, organizado por Castro e Magnani (2017), foi publicado em novembro de 2017. O material tem sido estudado no âmbito do nosso curso em diferentes disciplinas, como relataremos posteriormente. O propósito funcional de uma atividade como essa, voltada a um leitor real, e os bons resultados ficaram evidentes, pois os estudantes se envolveram, estudaram suas próprias práticas, entenderam suas experiências como parte de um processo contextualizado, refletiram sobre o ato de aprender e sobre suas próprias aprendizagens, e produziram melhor. Esse processo leva à expectativa de diálogo e, assim, os alunos produzem para provocar uma resposta além da nota do professor, algo muito mais significativo. E, por ser significativo, aprendem. E tratando-se de usos da língua escrita, letram-se em diferentes práticas textuais

Da mesma forma, a disciplina leitura e produção de texto, citada anteriormente, promoveu a pesquisa, a reflexão e a produção de um dossiê sobre a educação no país no contexto da aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 55/2016, que limitou os gastos públicos por 20 anos, e da Medida Provisória (MP) nº 746/2016, que alterou o ensino médio em meio a controvérsias, como a falta de diálogo com profissionais da educação. O trabalho foi realizado a partir de pesquisas e entrevistas com especialistas, sindicalistas, estudantes do movimento estudantil, comerciantes e outros cidadãos locais. A turma, composta por 47 estudantes, 23 das ciências da natureza e 24 da linguagens e códigos, foi dividida em 10 grupos, cada um com um foco, a saber: apresentação; ocupações na UFVJM e nas escolas de Diamantina; o movimento estudantil na UFVJM e a greve no final de 2016; a luta das escolas do campo da região; a greve a partir do sindicato de professores da UFVJM; a greve e a licenciatura em educação do campo da UFVJM; a participação da UFVJM em manifestação de âmbito nacional; a greve sob a ótica dos comerciantes locais; contextualização política, conjunturas nacional e internacional; conclusão: possibilidades atuais e futuras de mobilização e atuação social. O material final foi publicado no site do Projeto Sementeia, uma plataforma de recursos educacionais mantida pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Mais uma vez, os estudantes entraram em cadeias dialógicas reais, com a perspectiva de construírem diálogos, em consonância com uma concepção interacionista de língua.

Outro trabalho em que buscamos fomentar uma perspectiva dialógica e funcional foi a produção de artigos a partir da reflexão dos estudantes sobre seus próprios letramentos e os de suas comunidades. Na já citada disciplina gêneros textuais/discursivos, após a discussão e a reflexão sobre características composicionais de gêneros a serem trabalhados na prática, os estudantes têm sido estimulados a produzir textos que apresentem uma leitura teórica, embasada na bibliografia da própria disciplina, sobre letramentos que tiveram contato ao longo da vida. Relatos próprios, a exemplo do livro de memórias produzido, podem ser utilizados como fonte de dados para o trabalho. Outras possibilidades são dadas, como a análise de livros didáticos ou outras experiências que envolvem membros das comunidades. Na primeira experiência com a atividade, os trabalhos, no total de sete, foram apresentados e discutidos em um evento acadêmico nacional on-line intitulado Universidade, Educação a Distância e Software Livre. Experiências análogas ocorreram em outras duas disciplinas diferentes e com estudantes de iniciação científica, totalizando mais de quatro dezenas de artigos produzidos e publicados.

Notamos que, em todas essas práticas, as novas tecnologias aparecem como possibilitadoras de diálogo, de novos letramentos e de inserção desses estudantes em outras cadeias dialógicas. Se os estudantes estão em comunidades distantes dos grandes centros e das universidades, os recursos digitais os aproximam do diálogo no âmbito da academia. A disciplina ensino de língua portuguesa e novas tecnologias busca, antes de tudo, estabelecer um diálogo interdisciplinar com as demais unidades curriculares do curso, a fim de contextualizar as práticas dos estudantes, bem como usá-las como objeto de estudos. Trata-se de um trabalho com práticas reais, de cadeias dialógicas com raízes e rotas que demandam resposta. Caracterizam-se, assim, pelo propósito funcional que direciona todas as atividades desse núcleo de disciplinas, além do intuito mais reflexivo de compreender o gênero em questão e, mais do que isso, entender melhor a própria noção de gênero a partir de uma vivência mais concreta.

No nosso curso, as oportunidades que o digital apresenta ocorrem em diferentes formatos. No XI Congresso Internacional de Linguagem e Tecnologia (CILTEC online), promovido pela UFMG, por exemplo, quatro professores da licenciatura em educação do campo da UFVJM compuseram uma mesa virtual para apresentar o uso de novas tecnologias na educação do campo da licenciatura em educação do campo da UFVJM. Intitulado As novas tecnologias na educação do campo: experiências da Licenciatura em Educação do Campo da UFVJM, o debate trouxe alguns projetos de ensino, pesquisa e extensão do nosso curso que envolvem as novas tecnologias de informação e comunicação, como o Projeto de Extensão Comunidades do Campo, que produziu programas de rádio que foram transmitidos nos Vales do Jequitinhonha e Mucuri e estão disponíveis no site do projeto; o Projeto de Extensão Vídeo-cartas, que conta com um canal no YouTube no qual hospeda os vídeos em formato de cartas visuais; e o Projeto Olhares do Campo, que funciona como um laboratório de comunicação comunitária.

Todos os projetos citados contribuem para o contato dos estudantes com práticas letradas que envolvem as novas tecnologias, além de, como já mencionado, trazer o estudante para um campo dialógico real no qual a interação se expande para além da sala de aula. Para o programa de rádio, por exemplo, o artefato tecnológico mais utilizado é o celular e um software para gravação de voz. Os conteúdos buscam a construção do diálogo das comunidades com os ouvintes dos Vales a partir das histórias dos estudantes sobre personagens e questões culturais locais, os espaços educativos, as práticas letradas, os gêneros discursivos com que tiveram contato, dentre outros.

Além da participação do professor responsável pela disciplina nos citados projetos, na sala de aula a construção do sentido para a leitura desse mundo conectado digitalmente se dá a partir do diálogo com autores que têm a interação on-line como objeto de estudo, como pode ser verificado nas referências bibliográficas da disciplina. As atividades de sala de aula contaram com vídeos de entrevistas com especialistas, debates de situações reais e projetos em que estão inseridos, bem como a elaboração de um plano de aulas para uso nos estágios.

O conjunto de experiências apresentado até aqui possibilita perceber caminhos e desafios para a materialização de um currículo que investe em uma visão da linguagem como assunto complexo e relacionado a práticas cotidianas. A partir da próxima seção, proporemos uma reflexão análoga, desta vez colocando em destaque questões de língua inglesa.

OS COMPONENTES CURRICULARES DE LÍNGUA INGLESA

Os componentes curriculares específicos de língua inglesa na matriz curricular são ofertados do 3º ao 7º período. São eles: língua inglesa e cidadania crítica, com 60 horas, língua inglesa e diversidades, com 60 horas, língua inglesa, globalização e novas tecnologias, com 60 horas, língua inglesa e questões socioambientais, com 30 horas e métodos e abordagens no ensino de língua inglesa, também com 30 horas.

A seguir, apresentamos as ementas dos componentes curriculares e uma breve descrição dos temas e subtemas relacionados aos objetivos propostos nas ementas. O primeiro deles, língua inglesa e cidadania crítica, apresenta como ementa: “Desenvolvimento da leitura, da comunicação oral e da escrita em língua inglesa como práticas socioculturais contextualizadas1 a partir da discussão do tema cidadania crítica.” (UFVJM, 2018, p. 130)

Nesse componente, objetiva-se trabalhar com a compreensão crítica dos estudantes sobre si mesmos e sobre os outros; refletir sobre diferentes conceitos de cidadania, igualdade e diferença no mundo contemporâneo; entender a diferença como algo inerente a todas as sociedades e que, portanto, deve ser respeitada; discutir a relação desses conceitos com a língua inglesa e com a sua difusão e o seu prestígio na sociedade atual; discutir a relação entre o conceito de cidadania crítica e o neoliberalismo na educação.

O segundo componente, língua inglesa e diversidades, tem como ementa: “Desenvolvimento da leitura, da comunicação oral e da escrita em língua inglesa como práticas socioculturais contextualizadas a partir da discussão do tema diversidades.” (UFVJM, 2018, p. 132)

Nesse componente, objetiva-se: discutir diferentes diversidades: cultural, de gênero, étnico-racial, religiosa, de grupo; refletir sobre os conceitos de cultura, de identidade cultural e de alteridade; discutir variações linguísticas e questões de poder; problematizar a homogeneidade e a heterogeneidade no ensino de língua inglesa na contemporaneidade; discutir a influência dessa língua em outras línguas e culturas.

O terceiro componente curricular propõe a seguinte ementa: “Desenvolvimento da leitura, da comunicação oral e da escrita em língua inglesa como práticas socioculturais contextualizadas a partir da discussão do tema globalização e novas tecnologias.” (UFVJM, 2018, p. 142)

Nesse componente, busca-se discutir o papel da língua inglesa na sociedade digital globalizada; problematizar as noções de global e local, metrópole, margens e periferia e as relações entre elas; discutir multiculturalismo, hibridismo e movimentos diaspóricos; refletir sobre os diferentes meios digitais de comunicação na sociedade atual, a multimodalidade e o poder das imagens e das mídias.

O quarto componente curricular da disciplina define como ementa o seguinte: “Desenvolvimento da leitura, da comunicação oral e da escrita em língua inglesa como práticas socioculturais contextualizadas a partir da discussão de questões socioambientais.” (UFVJM, 2018, p. 136)

Esse componente visa problematizar a relação entre língua estrangeira, educação e trabalho; refletir sobre questões sociais tais como justiça, violência e desigualdades sociais; discutir a relação entre educação ambiental e problemas ambientais urbanos e rurais; refletir sobre novas formas de organização da sociedade, movimentos sociais e agroecologia.

Por fim, o quinto componente curricular indica como ementa o seguinte: “Métodos, abordagens e novas perspectivas no ensino de inglês como língua estrangeira. O papel do ensino de inglês nos contextos global e local na contemporaneidade. Diretrizes curriculares para o ensino de inglês na escola pública no contexto brasileiro.” (UFVJM, 2018, p. 146)

Nesse componente, objetiva-se trabalhar questões relativas ao ensino de língua inglesa no contexto da escola pública nos meios urbano e rural. No entanto, conforme apontado, aspectos da formação de professores de inglês também estão entrevistos nos outros componentes curriculares, principalmente ao ter como escopo a análise do processo de aprendizagem de língua estrangeira dos próprios estudantes no curso em questão e dos objetivos do ensino de inglês nos contextos global e local.

Outro aspecto que importa ressaltarmos na proposta pedagógica do PPC (UFVJM, 2018) relaciona-se à carga horária de alguns componentes curriculares. Assim como em outras licenciaturas em educação do campo de outras universidades, uma parte dessa carga horária é cumprida presencialmente no TU e outra parte não presencialmente no TC. Dessa forma, é importante que os estudantes, conforme sugerido por Coragem et al. (2011), desenvolvam autonomia para identificar seus objetivos e limitações, criar estratégias de autoaprendizagem para alcançar esses objetivos e superar suas dificuldades, mesmo durante a etapa não presencial do curso, no TC.

No caso da licenciatura em educação do campo da UFVJM, além dos limites relacionados à carga horária presencial, outro desafio que podemos apontar é a reduzida carga horária dos componentes curriculares específicos, inclusive os de língua inglesa, se comparada com a de outras licenciaturas. Desse modo, no que se refere aos objetivos linguísticos em inglês, seria inadequado esperarmos que estudantes da área de linguagens e códigos alcançassem um padrão linguístico em inglês considerado “altamente avançado” apenas a partir da carga horária prevista em currículo. Diferentemente, esperamos que eles tenham oportunidade de construir um repertório linguístico em inglês, tanto na modalidade oral quanto na escrita, para que possam atuar enquanto docentes de escola pública e enquanto usuários de língua estrangeira em seus contextos socioculturais. Isso levando-se em conta, ainda, que o processo formativo do docente é contínuo, ou seja, entendemos que é responsabilidade do egresso, mesmo depois de formado, buscar meios para permanecer estudando e ganhando experiência também no que se refere às línguas estrangeiras.

PROPOSTA PEDAGÓGICA DOS COMPONENTES CURRICULARES DE LÍNGUA INGLESA

Diante do exposto na seção anterior, é possível ressaltarmos alguns caminhos projetados e, até o momento, parcialmente materializados para a efetivação dos pressupostos que orientam a grade curricular de língua inglesa. Grosso modo, além de incentivarmos estratégias de autoaprendizagem, contamos, nos componentes curriculares, com a utilização de ferramentas digitais, tais como a plataforma virtual Moodle, com o objetivo de (1) publicar vídeos, textos diversos e atividades pedagógicas para o ensino da língua estrangeira e (2) promover interações síncronas e assíncronas entre professor e estudante(s) e entre os próprios estudantes durante o TC por meio de chat, fóruns de discussão e outros. Além dessas ferramentas, eventualmente utilizamos, com finalidades pedagógicas, aplicativos de comunicação instantânea, e-mails e redes sociais, como WhatsApp, Skype, Facebook etc.

Os componentes curriculares de língua, tanto inglesa como materna, como pontuamos até aqui, dialogam com a visão interacionista de língua e os estudos de letramento apontados em seções anteriores. Como visto, esses estudos ressignificam o conceito de linguagem, concebida, então, como heterogênea e múltipla, e o ensino e a aprendizagem de línguas na contemporaneidade configuram um conjunto de práticas de letramento socioculturalmente contextualizadas. Em um cenário de disputa,

[...] os professores de inglês podem cooperar em sua própria marginalização imaginando-se como meros “professores de língua” sem conexão alguma com questões sociais e políticas. Ou então podem aceitar o paradoxo do letramento como forma de comunicação interétnica que muitas vezes envolve conflitos de valores e identidades, e aceitar seu papel como pessoas que socializam os aprendizes numa visão de mundo que, dado seu poder [...] deve ser analisada criticamente. (Gee, 1986, p. 722 apudBrasil, 2006, p. 109)

Nos componentes curriculares de língua inglesa, dois objetivos principais são entrevistos: realizar um trabalho educacional por meio do ensino-aprendizagem de língua estrangeira e formar professores crítico-reflexivos que considerem esse papel educacional do ensino de línguas estrangeiras no contexto escolar. Ou seja, os estudantes da licenciatura em questão, de forma simultânea, terão oportunidade de desenvolver não só habilidades linguísticas em língua inglesa, tais como ler, escrever e se comunicar oralmente, mas também habilidades didático-pedagógicas para o ensino crítico e contextualizado da língua. Concordamos com a opinião de Coragem et al. (2011), segundo a qual, para que a proposta de se “ensinar a língua” e “ensinar a ensinar a língua”, simultaneamente, seja efetiva, é importante que o professor formador, em suas aulas, explicite os objetivos das atividades de aprendizagem propostas e a escolha dos temas trabalhados.

Podemos apontar que, na licenciatura em educação do campo da UFVJM, essa abordagem de ensino de língua inglesa e de formação de professores de língua se justifica devido ao fato de que os estudantes, em sua vasta maioria, chegam à universidade sem um repertório linguístico para ler e escrever textos simples e formular oralmente enunciados considerados básicos em língua inglesa. Segundo relatos desses estudantes, o ensino de inglês, quando havia nas escolas públicas em que estudavam, concentrava-se no ensino de leitura e no estudo descontextualizado de estruturas gramaticais e de vocabulário. Essas aulas, de acordo com esses alunos, muitas vezes eram ministradas por professores que não tinham formação específica, mas apenas noções básicas da língua. Coragem et al. (2011) corroboram esses dados no estudo, já introduzido, que trabalhou com narrativas autobiográficas dos estudantes nas quais emergiram histórias de aprendizagens malsucedidas a exemplo dos relatos dos nossos estudantes.

Conforme indicam documentos oficiais, há falta de clareza sobre os objetivos do ensino da língua estrangeira no contexto escolar brasileiro (Brasil, 2006; São Paulo, 2010). Esses documentos mostram que, nas escolas públicas, o ensino linguístico e instrumental da língua inglesa é desvinculado de uma discussão sobre os aspectos sociais, culturais, políticos e ideológicos envolvidos. Ou seja, ensina-se a língua estrangeira como um sistema fixo, autônomo e abstrato, sem levar em conta as práticas de letramento que permeiam situações e grupos específicos.

No entanto, compartilhamos a visão sobre o papel das disciplinas escolares, inclusive a de inglês, apontada pelas OCEM (Brasil, 2006), segundo a qual elas são um meio para se atingir um trabalho educacional. Ou seja, o ensino tradicional de inglês, presente na maioria das escolas de ensino básico, baseado na visão de língua como estrutura, não é suficiente para suprir as demandas do mundo de hoje. Diante das mudanças ocorridas na sociedade, relacionadas, sobretudo, à globalização e ao advento das novas tecnologias de informação e comunicação, observa-se uma demanda crescente por novas metodologias e abordagens pedagógicas no contexto educacional que deem conta de formar sujeitos críticos, capazes de lidar com o dinamismo, as incertezas e as novas formas de produção de sentidos na contemporaneidade. Lacuna facilmente preenchível pelos estudos do letramento.

Como exemplo de práticas de letramento2 em língua inglesa em interface com letramento digital citamos uma atividade de criação de blogs em inglês, disponibilizados na internet, no 1º semestre de 2016, em que os estudantes tiveram a possibilidade de discutir e divulgar aspectos culturais de suas comunidades de origem, assim como a produção de vídeos autobiográficos (vlogs), no 2º semestre de 2019, intitulados This is my life, em que os próprios estudantes apresentam as comunidades de origem, suas festas e celebrações tradicionais, a culinária local, familiares e amigos, seus interesses e planos para o futuro. É importante salientar que, para a realização dessas práticas, uma preparação linguística em inglês foi inicialmente feita, além de estudos sobre esses gêneros discursivos multimodais, possibilitados pelas novas tecnologias digitais de comunicação. Sobre a questão do inglês e das novas mídias, concordamos com a visão de Zacchi (2016, p. 200), segundo a qual tanto o inglês quanto as novas mídias,

[...] possibilitam o controle de práticas discursivas que dão acesso ao poder. Fornecem também um repertório de enredos maior para a configuração de contra-narrativas. Hoje não se fala do inglês como uma língua que representa interesses apenas dos países anglófonos centrais, principalmente os Estados Unidos e a Grã-Bretanha. Ou ainda os interesses dos grupos dominantes no interior desses países. O inglês tornou-se não apenas língua de dominação, mas também de resistência.

Assim, é possível afirmar que alunos da licenciatura em educação do campo da UFVJM, com a realização das referidas práticas de letramento em inglês facilitadas pela digitalidade e ao valorizarem suas culturas locais, seus modos de vida e saberes tradicionais, têm um alcance maior de interlocutores em âmbito global e maior possibilidade para desconstruir discursos hegemônicos e discriminatórios sobre o campo e seus sujeitos presentes na sociedade. Além disso, por meio dessas práticas, os estudantes têm a oportunidade de problematizar e ressignificar temas relevantes relativos às suas realidades locais, tais como conflitos identitários, desigualdades e injustiça social e desenvolver a agência no sentido mais amplo, visando à transformação social global/local.

Vale frisar que a visão de ensino de línguas que defendemos não sugere que o trabalho com conteúdos específicos seja posto de lado, mas ressalta que ele esteja em consonância com objetivos educacionais mais amplos. Conforme apontado no Caderno de Orientações Didáticas para EJA Língua Estrangeira - Inglês (São Paulo, 2010), no ensino de inglês sob a perspectiva educacional, cultural e linguística, com a qual concordamos, a aprendizagem da língua estrangeira objetiva trabalhar:

  • a relação identidade-alteridade (a compreensão de si mesmo na comunicação com o outro);

  • a noção de cidadania (a compreensão crítica de seu locus social, ou seja, o lugar social de onde ele fala) e como isso contribui para a formação de sua linguagem, seu pensamento, seus valores, seus deveres e suas responsabilidades;

  • a expansão da perspectiva do aluno acerca da heterogeneidade, diversidade e multiplicidade a seu redor e as influências disso sobre a constituição de sua linguagem, sua identidade e de seus valores.

Com vistas a alcançar esses objetivos, propõe-se, nos componentes curriculares de língua inglesa do curso em questão, a reflexão sobre temas como cidadania crítica, diversidades, globalização, novas tecnologias e questões socioambientais, bem como a sua interface com o ensino de língua inglesa em uma educação do campo para o campo, devidamente contextualizada. A escolha do trabalho por temas se deu pelo fato de serem o ponto de partida para o ensino de conteúdos escolares de forma interdisciplinar, como sugerido em documentos oficiais para o ensino básico, como os já citados PCN (Brasil, 1998; 2002), OCEM (Brasil, 2006) e Caderno de Orientações Didáticas para EJA Língua Estrangeira - Inglês (São Paulo, 2010). De acordo com esse último,

[...] os temas desempenham papel relevante, direcionando o trabalho em sala de aula, principalmente o desenvolvimento de leitura, oferecendo a oportunidade de acesso a e discussão de assuntos que representem amadurecimento crítico e desenvolvendo a compreensão de como as questões abordadas são vistas por outras pessoas e como elas podem remeter ao contexto local, mesmo tratando de problemáticas de teor nacional ou mundial. (São Paulo, 2010, p. 39)

No caso dos componentes curriculares de língua inglesa da licenciatura em educação do campo da UFVJM, buscamos, além do diálogo com componentes curriculares da área e de outras áreas do curso, a sua articulação com a visão de educação do campo que permeia o curso em questão. Ademais, a proposta de problematizar temas nos componentes curriculares de língua inglesa possibilita um trabalho inter/transdisciplinar com outros componentes curriculares do curso, não apenas da área de linguagens e códigos, mas também de ciências humanas e ciências da natureza, como, por exemplo, educação e relações étnico-raciais; diversidade e educação; educação ambiental, agroecologia e soberania alimentar; ecologia, clima e energia; ensino de língua portuguesa e novas tecnologias; entre outros.

Procuramos também fomentar esse diálogo inter/transdisciplinar no formato de trabalhos acadêmicos e atividades de caráter intervencionista, muitos deles realizados durante o TC. Exemplos dessas atividades são facilmente localizáveis nos componentes curriculares práticas de ensino (há um componente desses de 50 horas por semestre durante os 4 anos de curso) que acontecem no TC com a supervisão dos professores. Nesses componentes curriculares, os professores colocam em prática projetos inter/transdisciplinares de caráter interventivo em comunidades do campo, tendo como subsídio teórico o conhecimento produzido no TU e no TC em perspectiva com os saberes locais. Objetiva-se, com esses trabalhos, que o aluno consiga “transitar” em diferentes áreas do conhecimento, tendo como eixo norteador a proposta de educação do campo apresentada neste estudo.

No que se refere às habilidades a serem desenvolvidas nos componentes curriculares de língua inglesa, consideramos o desenvolvimento da leitura, da comunicação oral e da escrita em língua inglesa como práticas socioculturais contextualizadas. Ou seja, levamos em conta o perfil dos estudantes, o contexto em que eles utilizam/utilizarão a língua inglesa, as variantes da língua que são/serão utilizadas nesse contexto e a finalidade desses usos. Portanto, partimos do princípio de que os estudantes têm/terão acesso à língua inglesa não somente no contexto acadêmico, mas também ao consumir produtos culturais nessa língua em suas comunidades ou em outros lugares, os quais são difundidos pela televisão e pela internet, como filmes, séries, músicas, videoclipes, videogames etc.

Assim, considerando-se que o ponto de partida, a unidade central no planejamento de atividades para o ensino de línguas, é o trabalho com textos (Donnini et al., 2010), utilizamos textos em língua inglesa com os quais os estudantes da licenciatura em educação do campo lidam no contexto acadêmico e no seu dia a dia, com destaque para os digitais multimodais, disponibilizados na internet, articulando diferentes linguagens, tais como linguagem escrita, sons, imagens, gestos etc.

Conforme apontamos, embora o estudo de aspectos linguísticos não assuma a posição de centralidade na abordagem pedagógica proposta, ele é importante e não pode ser negligenciado no ensino-aprendizagem de línguas estrangeiras e em contextos de formação de professores dessas línguas. No entanto, defendemos uma revisão na forma como esse estudo é realizado no âmbito educacional. Assim, apoiamo-nos nas abordagens pedagógicas de ensino de língua estrangeira que reconfiguram o trabalho linguístico nesse ensino, sugeridas nas OCEM (Brasil, 2006) e no Caderno de Orientações Didáticas para EJA Língua Estrangeira - Inglês do Município de São Paulo (São Paulo, 2010), que argumentam que o trabalho linguístico em sala de aula não deve se fundamentar no princípio da “gradação gramatical”. Ou seja, o ensino de línguas não deve começar de aspectos mais simples para os mais complexos, o que se aproxima assim da maneira “desordenada” como as aprendizagens geralmente ocorrem em situações concretas na vida cotidiana das pessoas.

Além dessa orientação, os referidos documentos defendem que o conteúdo do trabalho linguístico deve ser definido a partir das estruturas presentes no texto selecionado, e não o contrário, como geralmente ocorre nas aulas de línguas, em que primeiramente se define o conteúdo do trabalho linguístico para então se escolher o texto. Ou seja, é o “contexto que define o grau de profundidade da análise linguística necessária para cada texto.” (São Paulo, 2010, p. 38)

Assim, estudantes iniciantes, por exemplo, podem trabalhar, nas aulas de leitura em língua estrangeira, com textos considerados mais “avançados” ou “complexos”, por trazerem vocabulário e estruturas gramaticais geralmente vistos em cursos “avançados”, mas que dialogam com sua realidade. É possível afirmar que essa visão de trabalho linguístico prioriza a relação do conteúdo trabalhado em sala de aula com o universo concreto do aluno, e não o sistema linguístico “descolado” da realidade, como defendido nos estudos de letramentos discutidos.

Por fim, podemos destacar que a abordagem pedagógica entrevista nos componentes curriculares de língua inglesa, em diálogo com a proposta de formação de professores do curso em questão, busca, como já vimos explicitando, formar professores crítico-reflexivos, capazes de lidar com os desafios da profissão docente nos contextos global e local e de elaborar propostas inovadoras de ensino-aprendizagem de línguas para atuar nesses contextos. A expectativa é que as práticas desses futuros professores sejam transformadoras e que elas possam impactar positivamente não só seus locais de atuação, mas também projetos de formação inicial e continuada de professores de línguas da região, fechando, assim, um ciclo formativo dialético entre professores formadores e professores em formação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A emergência de uma habilitação em linguagens e códigos no contexto da institucionalização da educação do campo no ensino público superior brasileiro reaviva algumas questões já em foco nos estudos sobre língua, linguagem e ensino de línguas - tais como concepções, terminologias, metodologias e abordagens de ensino em contextos formativos, entre outros. Além disso, traz como pauta debates como a relação entre ensino e usos de novas tecnologias em contextos em que o acesso à banda larga, por exemplo, é assimétrico e, muitas vezes, precário. Ou, ainda, o papel e o espaço que a língua estrangeira ocupa ou deve ocupar no contexto do campo. São questões em aberto que o presente trabalho não tem nem pretensões nem alcance para responder.

A partir do presente trabalho, procuramos sempre lembrar que não é tarefa simples a função do docente da licenciatura em educação do campo da UFVJM de tentar materializar, sem perder o aspecto dialógico, discursos presentes tanto entre ativistas e defensores da educação do campo quanto entre acadêmicos contemporâneos que refletem sobre educação linguística e políticas públicas para o ensino de línguas. São muitos os desafios e todo caminho, ainda que propositivo, pode enfrentar barreiras e dificuldades na sua efetivação. Em nossa percepção, a efetivação de anseios teóricos, bem como de demandas sociais, depende do engajamento de diversos atores sociais - desde estudantes, professores universitários e pesquisadores, passando por vozes e lideranças das diversas comunidades e escolas, alcançando movimentos e representatividades diversas. Ainda assim, dentro dos limites e possibilidades de atuação do magistério superior, como o artigo buscou expor, a estruturação e efetivação de currículos é um espaço concreto de disputa, no qual podemos mobilizar visões de língua, linguagem, ensino e leitura mais democráticas.

Diante do exposto, procuramos apresentar caminhos e possibilidades para uma formação de educandos críticos, autônomos, protagonistas de seus dizeres. Buscamos também manter a devida atenção para aspectos relevantes do processo educativo, envolvendo elementos como: o território concreto de efetivação da prática pedagógica, os sujeitos reais, os propósitos educacionais previstos enquanto política pública, a visão de educador prevista em documentos e defendida por diversos atores sociais que vão para além do espaço puramente acadêmico. Os exemplos de componentes curriculares trazidos, bem como as práticas previstas e relatadas, são esforços nossos no sentido de ilustrar tentativas em curso de articularmos, de um modo que seja significativo aos discentes e à comunidade mais ampla, aspectos teóricos e práticos ligados a visões de linguagem, língua e educação.

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1 Neste texto, práticas socioculturais contextualizadas referem-se a uma série de atividades, ações e hábitos vinculados a determinadas culturas ou grupos de pessoas.

2 Neste trabalho, o conceito de prática de letramento adotado dialoga com o de Street (2014). Segundo o autor, “o conceito de ‘prática de letramento’ [...] se refere igualmente ao comportamento e às conceitualizações sociais e culturais que conferem sentido aos usos da leitura e/ou escrita” (Street, 2014, p. 18).

Financiamento: O estudo não recebeu financiamento.

Recebido: 08 de Junho de 2020; Aceito: 15 de Julho de 2021

Carlos Henrique Silva de Castro é doutor em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM). E-mail: ccastrobr@gmail.com

Luiz Henrique Magnani é doutor Estudos Linguísticos e Literários em Inglês pela Universidade de São Paulo (USP). Professor da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM).E-mail: henriquemagnani@gmail.com

Luiz Otávio Costa Marques é doutor Estudos Linguísticos e Literários em Inglês pela Universidade de São Paulo (USP). Professor da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM).E-mail: luizocmarques@gmail.com

Conflitos de interesse: Os autores declaram que não possuem nenhum interesse comercial ou associativo que represente conflito de interesses em relação ao manuscrito.

Contribuições dos autores: Conceituação, Curadoria de Dados, Análise Formal, Investigação, Metodologia, Administração do Projeto, Software, Supervisão, Validação, Visualização, Escrita - Primeira Redação, Escrita - Revisão e Edição: Castro, C. H. S.; Magnani, L. H.; Marques, L. O. C.

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