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Revista Brasileira de Educação

versão impressa ISSN 1413-2478versão On-line ISSN 1809-449X

Rev. Bras. Educ. vol.27  Rio de Janeiro  2022  Epub 18-Jun-2022

https://doi.org/10.1590/s1413-24782022270048 

Artigos

Intervenções pedagógicas em territórios urbanos no Brasil: a situação do programa A União faz a Vida

PEDAGOGICAL INTERVENTIONS IN URBAN AREAS IN BRAZIL: THE SITUATION OF THE A UNIÃO FAZ A VIDA PROGRAM

INTERVENCIONES PEDAGÓGICAS EN ÁREAS URBANAS DE BRASIL: LA SITUACIÓN DEL PROGRAMA A UNIÃO FAZ A VIDA

Rodrigo Manoel Dias da Silva I  
http://orcid.org/0000-0001-8501-5903

IUniversidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS, Brasil.


RESUMO

O presente artigo visa identificar e analisar intervenções pedagógicas em territórios urbanos no Brasil, com base na situação do Programa A União Faz a Vida. Examina as relações problemáticas estabelecidas entre educação, cidadania e desenvolvimento local, com o objetivo de compreender os modos como projetos de ação social são implementados em experiências escolares, sobretudo aqueles cujas pautas assumem o binômio escola-território como princípio privilegiado. Por meio de revisão bibliográfica e estudo documental, analisa o referido programa, desenvolvido em sete estados brasileiros, e seus propósitos de intervenção. Conclui que, do ponto de vista pedagógico, o programa apresenta potencialidades para mobilizar novas pedagogias urbanas e mudanças expressivas nos territórios, mas possui algumas limitações em suas estratégias formativas e direcionamentos políticos.

PALAVRAS-CHAVE educação; cidadania; território; engajamento

ABSTRACT

This article aimed to identify and analyze pedagogical interventions in urban territories in Brazil, based on the situation of the A União Faz a Vida Program. It examined the problematic relations established between education, citizenship, and local development, in order to understand the ways in which social action projects are implemented in school experiences, especially those whose guidelines assume the binomial school-territory as a privileged principle. Based on a bibliographic review and documentary study, it analyzes the referred program, developed in seven Brazilian states, and its intervention purposes. It concludes that, from the pedagogical point of view, the program has the potential to mobilize new urban pedagogies and expressive changes in the territories, but it has some limitations in its formative strategies and political directions.

KEYWORDS education; citizenship; territory; engagement

RESUMEN

Este artículo tuvo como objetivo identificar y analizar intervenciones pedagógicas en territorios urbanos de Brasil, a partir de la situación del Programa A União Faz a Vida. Examina las relaciones problemáticas que se establecen entre educación, ciudadanía y desarrollo local, con el objetivo de comprender las formas en que los proyectos de acción social se implementan en las experiencias escolares, especialmente aquellas cuyos lineamientos asumen el binomio escuela-territorio como principio privilegiado. A partir de una revisión bibliográfica y estudio documental, analiza el referido programa, desarrollado en siete estados brasileños, y sus propósitos de intervención. Concluye que, desde el punto de vista pedagógico, el programa tiene potencial para movilizar nuevas pedagogías urbanas y cambios expresivos en los territorios, pero tiene algunas limitaciones en sus estrategias formativas y orientaciones políticas.

PALABRAS CLAVE educación; ciudadanía; território; compromiso

INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, os conceitos de cidade, urbanismo, urbano, territorialidade, territórios e territórios urbanos adquiriram centralidade nas pesquisas em ciências sociais e humanas (Brenner, 2010; Brenner e Schmid, 2016; Gorelik, 1999; Martinez, 2008; Lipman, 2013; Telles, 2015; Kowarick e Frugoli Júnior, 2016; Haesbert, 2014, 2019). Ainda que apresentem origens teóricas plurais e em certos aspectos divergentes, essas discussões explicitam um amplo conjunto de reflexões a respeito das configurações urbanas, bem como dimensionam os cenários contrastantes, heterogêneos, expansivos e múltiplos que denominamos genericamente de “cidade” (Telles, 2015). De natureza interdisciplinar, tais cenários desafiam nossas consagradas categorias de análise, uma vez que são desenhados por “territorialidades urbanas de contornos incertos, atravessadas por conflitos e campos de tensão espalhados por todos os lados.” (Telles, 2015, p. 16)

O argumento da professora Vera Telles evidencia as dimensões multifacetadas dos territórios urbanos e nos desafia à definição de outras categorias teóricas, tendo em vista que as oposições binárias utilizadas em nossos estudos - centro/periferia, rural/urbano, exclusão/inclusão, dentro/fora - declinam em seu potencial heurístico. Além disso, destaca-se a impossibilidade de assumirmos uma noção substantivada de Cidade (em maiúsculo e no singular), na clássica oposição ao rural, tradicional ou comunitário. Por essa razão, importa problematizarmos o que temos conceituado de territórios urbanos, seus projetos culturais, sociais, políticos e econômicos, porque, no contemporâneo, pensar essas questões requer a seleção de outros planos de referência.

Para estudarmos os territórios urbanos, implica reconhecê-los como espaços em produção.

Se é possível dizer que existe um “ponto cego” no campo dos estudos urbanos, é porque nessa paisagem teórica perde-se de vista muito das dinâmicas urbanas atuais, pertinentes justamente aos modos pelos quais os espaços urbanos são produzidos; ou para colocar em outros termos, os modos pelos quais processos socioespaciais da chamada cidade-mercado se territorializam em contextos situados, que são também contextos contraditórios, dinâmicos e conflitivos. (Telles, 2015, p. 19)

Nessa perspectiva, “a cidade não é apenas um contexto, mas uma arena em que conflitos acontecem” (Telles, 2015, p. 20), pois os espaços, as estruturas, as relações sociais e os processos vividos são produzidos por agenciamentos sociais ou por intervenções urbanas. Brenner e Schmid (2016), em investigação acerca dos desdobramentos epistemológicos que orientam e fundamentam o debate sobre a produção social dos territórios urbanos na atualidade, afirmam que urbano e urbanização devem ser interpretados enquanto categorias teóricas, porque urbano não corresponde a uma forma universal, mas a um processo social e histórico. Dizem que as dimensões socioespaciais da urbanização são polimórficas, variáveis e dinâmicas e devem ser estudadas com base em seus efeitos de concentração e extensão, já que a urbanização se converteu em um fenômeno planetário produtor de constantes diferenciações.

As sentenças supracitadas são amplamente discutidas por seus autores, contudo parece-nos relevante reter o sentido de produção social atribuído aos fenômenos urbanos e à urbanização enquanto processo histórico, bem como a elaboração de um novo vocabulário para o estudo dessas temáticas. Esse debate excede os fazeres intelectuais e técnicos de arquitetos, urbanistas, engenheiros, sociólogos, antropólogos, economistas ou agentes políticos e evidencia a necessidade de “um novo léxico dos processos de urbanização e formas de diferenciação territorial com a finalidade de captar as geografias instáveis e as constantes mudanças do capitalismo no início do século XXI.” (Brenner e Schmid, 2016, p. 334)

Com esse horizonte, o presente artigo visa identificar e analisar intervenções pedagógicas em territórios urbanos no Brasil. Almeja examinar as relações problemáticas estabelecidas entre educação, cidadania e desenvolvimento local, com o objetivo de compreender os modos como projetos de ação social são implementados em experiências escolares, sobretudo aqueles cujas pautas assumem o binômio escola-território como princípio privilegiado. Para tal, analisa a situação do Programa A União Faz a Vida, mobilizado pela instituição financeira cooperativa Sistema de Crédito Cooperativo (SICREDI), desenvolvido em sete estados brasileiros - Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Goiás -, e seus propósitos de intervenção pedagógica. As experiências desenvolvidas pelo programa são cotejadas mediante três estratégias metodológicas principais: estudo sistematizado de bibliografia referente às temáticas educação, cidadania e territórios; análise de documentos e relatórios públicos referentes ao programa; e exame da revista A União Faz a Vida (Sicredi, 2018), com a finalidade de tomarmos conhecimento do modo como são divulgadas suas práticas e intervenções pedagógicas.

Para enfrentarmos o objetivo proposto, o artigo está organizado em quatro seções textuais. Na primeira, apresentamos uma discussão acerca das relações entre territórios e intervenções pedagógicas, com o intuito de construir uma contextualização teórica (diagnóstica) das condições vigentes no Brasil. Na segunda, são elencados os princípios metodológicos orientadores da análise empreendida. A seguir, descrevemos o Programa A União Faz a Vida, com ênfase no detalhamento de sua operacionalização didática e de seus pressupostos formativos orientados pela cidadania e pela cooperação. Por fim, realizamos uma análise crítica de suas intervenções pedagógicas, evidenciando os limites e as potencialidades pedagógicas dessa forma de ação social.

TERRITÓRIOS E INTERVENÇÕES PEDAGÓGICAS: CONTEXTUALIZAÇÃO TEÓRICA

Segundo o arquiteto argentino Ádrian Gorelik, a cidade foi um objeto privilegiado nas intervenções que intencionavam produzir modernização na América Latina. Mesmo levando em conta a multiplicidade de discussões que configuram os temas modernidade e modernização, enfatiza que por modernidade podemos entender o ethos cultural de determinada época, mais especificamente “os modos de vida e organização social que vêm se generalizando e se institucionalizando sem pausa desde sua origem racional-europeia nos séculos XV e XVI” (Gorelik, 1999, p. 59). Já modernização são “aqueles processos duros que continuam transformando materialmente o mundo” (Gorelik, 1999, p. 59). Tal consideração demanda a superação de leituras anacrônicas que simplificam processos históricos de longa duração temporal, suas dimensões estruturais e ideológicas, mas principalmente advoga pela compreensão dos contornos dessa modernização. Significa, pois, analisarmos menos a modernidade e direcionarmos nossos esforços para a compreensão dos processos de modernização.

No que se refere às cidades latino-americanas, Gorelik acentua que a passagem ao século XX conformou um ciclo expansivo, desde uma tripla dimensão reformista, destacando-se um movimento para fora no território (expansão urbana), um movimento para dentro na sociedade (integração social) e um deslocamento à frente no tempo (ideia de projeto). Expansão, integração e projeto formam um marco interpretativo sobre os processos urbanos na região, aproximando-a do ciclo expansivo ocidental. Essa conjunção assumiu diversas formas ao longo da história, muito embora vários traços socioculturais da América Latina tenham delineado sua própria organização e as intervenções em seus espaços urbanos. Um desses traços pode ser notado na presença constante do Estado em seu plano mais concreto, acentuando ações “de cima para baixo” ou “estadocêntricas” (Cavarozzi, 1999), a modulação de ideologias e discursividades acerca do progresso e do futuro, bem como a associação política entre territórios públicos e território estatal.

O arquiteto também critica o uso recorrente do termo invenção para processos vigentes na América Latina, principalmente no vocabulário historiográfico, pois nos remete à ideia de que a América seria um continente vazio (sem história), tanto em perspectiva pessimista (fatalismo telúrico sobre as identidades) quanto otimista (continente condenado ao moderno). Argumenta, então, que tais cidades e suas representações seriam produzidas desde conjunturas históricas específicas. Da mesma forma, poderiam ser assumidas como elemento para compreendermos a imaginação social do continente, suas representações, seus dilemas e sua crítica social. Em alguma medida, ainda que por percursos teóricos distintos,1 Gorelik (1999) e Neil Brenner (2010) prosseguem um exercício de desontologização da ideia de cidade e engendram perspectivas para uma interpretação dos territórios urbanos enquanto espaços de ação e intervenção social.

Para prolongarmos essa abordagem diagnóstica, precisamos conhecer as contraditórias interfaces entre políticas urbanas, cidadania e cultura. Hoje, predominam nas políticas e projetos urbanos no Brasil uma ideia de “crise das cidades” (Jacques, 2004; Jeudy, 2006) e, por consequência, a emergência de intervenções cujos objetivos podem ser sintetizados em verbos como revitalizar, reparar, corrigir, intervir, reformar ou pacificar. A literatura demonstra-nos que essas ações incidem sobre movimentos econômicos e políticos mais amplos, mas que também influenciam as experiências urbanas no contemporâneo, ainda que possam ocorrer em intervalos temporais mais curtos ou de maior duração. Segundo Jacques (2004), são robustecidos entre nós projetos de “espetacularização urbana”, em que as cidades se tornam grandes cenários para empreendimentos econômicos, mas produtoras de novas geografias de centralidade e marginalidade (Sassen, 2006).

Se Paola Jacques nos auxilia a compreender o sentido aberto e contraditório das intervenções urbanas, Lilian Fessler Vaz (2004) acrescenta que, em processos similares, a cultura assume o papel de estratégia principal,

seja tratando de preservação de sítios históricos, de ocupação de áreas degradadas ou vazios, de revitalização de áreas centrais ou periféricas, ou mesmo de expansão urbana, a tônica das intervenções recai na reabilitação ou na recriação de ambientes históricos, na construção de equipamentos culturais marcantes, no cuidadoso desenho dos espaços públicos, no uso da arte pública e da animação cultural (Vaz, 2004, p. 31).

Mas também explicita campos contraditórios próprios do planejamento urbano, de políticas públicas e projetos sociais. George Yúdice (2006, p. 25) ressalta que “a cultura está crescentemente dirigida como um recurso para a melhoria sociopolítica e econômica”, interpretada como uma “reserva disponível” para programas de crescimento econômico, de desenvolvimento social ou de participação cidadã.

Tais intervenções revitalizadoras, orientadas por princípios de cidadania, de cultura e de política, caracterizam-se pela atuação em contextos de urbanização acelerada, sob padrões de exclusão socioespacial, de desigualdades sociais e de risco à qualidade de vida sobretudo para populações mais empobrecidas (Beck, 2011). As políticas educativas e as ações pedagógicas são constitutivas desses contextos, assim como podem se configurar como locais de resistência a tais processos (Lipman, 2013), pois, segundo Lefebvre, a educação é integral às lutas pelo “direito à cidade”.

Por último, cumpre-nos ressaltar que essas intervenções urbanas acentuam, no contexto de uma economia política da educação urbana (Lipman, 2013), experiências de individualização específicas de uma sociedade individualizada (Beck, 1997; 2011). A literatura tem nos demonstrado que as periferias urbanas ou as regiões empobrecidas das cidades são alvo recorrente de experimentos políticos neoliberais (Lipman, 2013), baseados em princípios de responsabilização, privatização, eficácia e competitividade global. No que tange à educação, passam a ser geridas por uma nova “governança urbana”, centrada na responsabilização dos atores sociais, em políticas fundamentadas na contenção2 e na disciplina e pelo “controle político e cultural do espaço urbano” (Lipman, 2013, p. 277).

Silva (2017) identifica que, para melhor compreensão desse diagnóstico, faz-se necessário revisitarmos o conceito de individualização proposto por Ulrich Beck. Segundo o sociólogo alemão, a individualização “significa, primeiro, a desincorporação, e, segundo a reincorporação dos modos de vida da sociedade industrial por outros modos novos, em que os indivíduos devem produzir, representar e acomodar suas próprias biografias” (Beck, 1997, p. 24). Assim, individualização corresponde a uma forma social que, associada à globalização, comporia o processo de modernização reflexiva.

As transformações operadas na vida coletiva dependem de processos sociais que produzem individualização. Beck adverte-nos de que tal individualização é produzida em um quadro de condicionamentos sociais que impede uma existência individual emancipada, pois as biografias são condicionadas por padronizações e direcionamentos exteriores de tal forma que alterações institucionais exigem reconfigurações nas trajetórias de vida. No entanto, quando analisadas por suas manifestações políticas, “as formas de envolvimento político, protesto e retirada misturam-se em uma ambivalência que desafia as velhas categorias da clareza política.” (Beck, 1997, p. 33)

Desse modo, a individualização dos conflitos e dos interesses políticos não significa desengajamento, “democracia da pesquisa de opinião” e esgotamento da política. Mas surge um engajamento múltiplo contraditório, que mistura e combina os polos clássicos da política de forma que, se pensarmos nas coisas em relação à sua conclusão lógica, todo mundo pensa e age como um direitista ou um esquerdista, de maneira radical ou conservadora, democrática ou não democraticamente, ecológica e antiecologicamente, política e não politicamente, tudo ao mesmo tempo (Beck, 1997, p. 33).

Como consequência desse processo, as biografias tornam-se responsabilidade individual, uma vez que “o indivíduo precisa aprender, sob pena de um prejuízo irreversível, a reconhecer a si mesmo como foco de ação, como agência de planejamento no que diz respeito à sua própria carreira, às suas capacidades, orientações e parcerias” (Beck, 2011, p. 199). Nessa condição social, prevalecem “novas demandas educacionais, tutelares, terapêuticas e políticas” (Beck, 2011, p. 200), outros engajamentos de sentido contraditório e múltiplo (cuja designação pode ser flexibilizada - dos indicadores de responsabilidade social à caridade religiosa) e outras possibilidades de aprendizado social, mediante a ação socioeducativa e seus próprios engajamentos.

CONDIÇÕES METODOLÓGICAS

A análise ora empreendida é resultado da combinação de três estratégias metodológicas. Primeiramente, realizamos um levantamento da literatura recente (2010-2020) que versa sobre as relações entre educação, territórios e cidadania, mediante pesquisa e sistematização de informações. Por meio de revisões temáticas, com ênfase em teses e dissertações, livros e capítulos e publicações de artigos em periódicos qualificados (preferencialmente internacionais), problematizamos a articulação dos conceitos em pauta e seu potencial heurístico para a compreensão da educação urbana. Esse esforço ofereceu subsídios à elaboração de sínteses diagnósticas dos principais contornos da educação urbana, destacando-se, por exemplo, a argumentação presente na seção anterior acerca da noção de intervenção urbana, em perspectiva sociológica.

Em segundo lugar, procedemos a um mapeamento de intervenções pedagógicas desenvolvidas no âmbito do Programa A União Faz a Vida. A escolha desse programa se deve à sua abrangência nacional, à sua pauta pedagógica na agenda de responsabilidade social e a seu foco de atuação residir em escolas públicas de educação básica. Nesse esforço, considerando a abrangência do programa em sete estados brasileiros, traçamos um estudo documental das principais publicações do programa considerando-se o intervalo temporal já indicado. Os documentos selecionados foram os seguintes: relatório geral de resultados do programa, livros formativos e subsídios remetidos às instituições de ensino, publicações direcionadas a pais, estudantes e docentes, apresentações públicas e publicações na internet. O material analisado é disponibilizado publicamente em seus veículos oficiais de comunicação.

Por último, examinamos a revista A União Faz a Vida, na qual são divulgadas as principais iniciativas escolares desenvolvidas por ano letivo, constando o foco dos projetos e depoimentos de estudantes, professores e gestores. Trata-se de um instrumento de visibilidade das ações sociais promovidas pela cooperativa e permite cotejarmos sua agenda pedagógica e suas principais intervenções pedagógicas nos municípios de sua inserção.

PROGRAMA A UNIÃO FAZ A VIDA

Segundo suas informações institucionais, o Sicredi é a primeira instituição cooperativa do Brasil, integralizando mais de um século de atividades. Sob uma produção econômica orientada pelos princípios do cooperativismo, a instituição é construída pela figura do “cooperado” ou “associado”, com a finalidade de “crescer juntos” por meio do fortalecimento de laços de confiança entre a instituição e as comunidades regionais. Atua em 22 estados, fisicamente em 1,6 mil agências distribuídas em 114 cooperativas, com cerca de quatro milhões de associados e 25 mil colaboradores. Apresenta indicadores econômicos consistentes, tendo em vista que possui 15 bilhões de reais em patrimônio líquido e 60 bilhões em depósitos totais.

Sua página oficial na internet apresenta publicamente as causas com as quais a instituição expressa comprometimento:

Nós acreditamos que fazer juntos faz a diferença e que a força do coletivo é capaz de transformar o nosso mundo. Como instituição financeira cooperativa, praticamos essa máxima todos os dias, quando nos unimos visando o bem mútuo e considerando o interesse de todos. Isso é o que garante a sustentabilidade do nosso negócio e é o modelo que seguimos há mais de 100 anos.(A União Faz a Vida, 2019, online)

Suas causas estão associadas a três princípios de ação: cooperação, desenvolvimento local e educação. Quanto à cooperação, informa que busca aproximar-se das pessoas e da valorização de processos coletivos, ainda que considere e respeite as individualidades, produzindo uma comunidade preocupada com o bem de todos. Acerca do desenvolvimento local, destaca que em mais de 200 municípios é a única instituição financeira presente, comprometendo-se com a inclusão financeira. Observa ainda que suas iniciativas visam desenvolver cada localidade, tanto em investimento para projetos regionais quanto apoiando negócios sustentáveis. No que tange à educação, acredita que “investir na educação no presente faz a diferença no futuro”, por isso investe para que as pessoas sejam protagonistas de suas histórias e agentes transformadores em suas comunidades, por meio da educação.

A instituição visa promover o cooperativismo nos estados onde mantém atuação e o faz por intermédio de três programas específicos. O Programa Crescer é uma proposta de educação cooperativa destinada ao fortalecimento da cultura do cooperativismo nas regiões e no país. O Programa Pertencer visa estimular os associados a tomarem parte nas decisões do Sicredi, com ênfase em participação, transparência e solidariedade. Por último, o Programa A União Faz a Vida é definido como a principal iniciativa de responsabilidade social da instituição.

Acreditamos na educação como forma de envolver e transformar a comunidade onde estamos presentes promovendo a cooperação e a cidadania. Como fazemos isso? Por meio de projetos que desenvolvem cidadãos mais justos, solidários e empreendedores, que respeitam a diversidade e dialogam para tomar decisões (A União Faz a Vida, 2019, online).3

Originalmente concebido em 1993, no Centro de Desenvolvimento e Pesquisa sobre Cooperativismo da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), o Programa A União Faz a Vida (PUFV) foi lançado oficialmente em 1995, centrando-se no objetivo de “promover a educação para um mundo mais cooperativo”. Nesse mesmo ano, foi implantado um projeto piloto no município de Santo Cristo, no interior do Rio Grande do Sul.

Do ponto de vista de sua organização didática, o programa consiste no desenvolvimento de uma metodologia própria orientada por pressupostos de educação integral e inspirada em princípios de cooperação e cidadania. Por adesão da escola e de seus professores, que se credenciam na cooperativa no começo do ano letivo, o docente organiza um projeto pedagógico elaborado com base em uma pergunta exploratória, a qual se fundamenta em diversos campos do conhecimento (com predominância de história, geografia, meio ambiente ou curiosidades) e assume o território como referência da investigação (Figura 1). Após a formulação da pergunta, estudantes e docentes selecionam o território a ser investigado, no contexto municipal ou regional, e organizam uma expedição investigativa, na qual se visa explorar e identificar novos significados dos lugares onde vivem. A Figura 2 evidencia o organograma da construção metodológica.

Fonte: Sistema de Crédito Cooperativo (Sicredi), 2019.

Figura 1 - Juntos podemos transformar. 

Fonte: Sistema de Crédito Cooperativo (Sicredi), 2019.

Figura 2 - Organograma metodológico. 

Após a seleção do contexto municipal, a turma constrói um projeto para subsidiar sua intervenção no (ou conhecimento sobre o) território, com orientação do professor da turma. O material pedagógico publicado pelo PUFV evidencia o uso de ferramentas didáticas, como o mapa do território, fotografias do lugar (ou fotografá-lo), entrevistas com familiares e moradores, registros escritos ou documentos. Com base nos materiais produzidos, os projetos pedagógicos são finalizados e implementados, e inicia-se um processo de formação para os docentes e gestores envolvidos na ação socioeducativa.

De sua documentação, consta que o projeto se baseia em dois princípios: cooperação e cidadania. Por cooperação, entendem-se ações coordenadas entre grupos de pessoas que têm um objetivo em comum. Por cidadania, além da garantia e do respeito aos direitos e deveres de todos, destacam-se os seguintes valores éticos: igualdade e equidade, respeito à diversidade e liberdade e participação na vida pública.

O programa realiza-se por meio de uma rede de compromisso constituída de gestores (entidades que fazem parte do Sicredi e que idealizaram o programa ou que se responsabilizam por seu planejamento estratégico), parceiros (responsáveis locais pelo programa), apoiadores (pessoas ou instituições que apoiam o programa, mesmo financeiramente), assessorias pedagógicas (promovem a formação dos professores e conduzem o processo educacional de crianças e jovens), crianças e jovens (público-alvo da ação, definidos como “protagonistas do processo”) e educadores (todos os profissionais envolvidos no processo educativo). Segundo Schneider (2012), essa rede de atores sociais pode ser interpretada como um diferencial de cooperativas, em detrimento de lógicas estritamente mercantis que orientam empresas convencionais.

O diferencial cooperativo é que tal empresa está a serviço de uma “associação de pessoas”, que como entidade social coletiva opta por privilegiar a cooperação, a solidariedade e a ajuda mútua entre eles; dirige, controla a empresa e dela demanda não a busca incondicional do lucro, mas, sim, a busca da eficiência e eficácia que redundem em crescente satisfação das necessidades e do bem-estar de seus associados/co-proprietários. (Schneider, 2012, p. 253)

Atualmente, o programa está implantado em sete estados brasileiros, como indica a Figura 3. Para fins demonstrativos, imposta destacar que a abelha, imagem símbolo do projeto, marca na ilustração a presença do PUFV naquele estado.

Fonte: Sistema de Crédito Cooperativo (Sicredi), 2019.

Figura 3 - Presença do Programa A União Faz a Vida no Brasil. 

Em 2019, o programa alcançou 284.604 crianças e adolescentes, 24.906 educadores e educadoras e 1.905 escolas participantes e localizava-se em 368 municípios em sete estados brasileiros. No Quadro 1(t1), apresentamos um detalhamento dos dados atuais do projeto.

Quadro 1 - Abrangência do programa em 2019. 

Estado Municípios Escolas Educadores Estudantes Cooperativas
RS 168 854 11.812 109.041 30
SC 5 14 207 2.028 1
PR 137 628 7.866 82.037 21
SP 28 145 1.512 20.651 4
MS 2 4 54 841 2
MT 27 258 3.431 69.307 8
GO 1 2 34 699 1
Total 368 1.905 24.916 284.604 67

Fonte: Sistema de Crédito Cooperativo (Sicredi), 2019.

O relatório geral do PUFV, publicado em 2010, indica os principais benefícios do programa às escolas e comunidades participantes, enquanto ação de responsabilidade social: investir em crianças e adolescentes para que, no futuro, sejam cidadãos capazes de empreender e construir, coletivamente, alternativas de desenvolvimento econômico, socioambiental e cultural:

  • fortalecer os valores da cooperação e da cidadania;

  • investir na educação continuada de educadores;

  • estimular a participação ativa dos pais e da comunidade na educação de crianças e adolescentes do município;

  • desenvolver projetos cooperativos voltados para as comunidades;

  • gerar recursos para a comunidade escolar (Fundação Sicredi, 2010, p. 5).

Os projetos desenvolvidos nas escolas abordam temáticas que envolvem patrimônios históricos e culturais dos municípios, história e geografia municipal, problemas urbanos e de qualidade de vida, educação ambiental e sustentabilidade, educação para o trânsito, educação cooperativa, educação financeira, tributária e fiscal, entre outras. Anualmente, visualiza-se um repertório amplo de temáticas que, na maior parte das situações, operam como intervenções pedagógicas em territórios urbanos. Trata-se, em alguma medida, de experiências formativas escolares que excedem os fazeres intraescolares e promovem intervenções nas cidades.

PERSPECTIVAS ANALÍTICAS À LUZ DAS EXPERIÊNCIAS URBANO-EDUCATIVAS

A noção de experiências urbano-educativas, tal como desenvolvemos, é uma derivação analítica do conceito de experiência elaborado por François Dubet (1994). Trata-se de um conceito que recusa as concepções clássicas de ação, as quais identificavam totalmente os atores sociais e o sistema por meio de processos fortes de socialização. Segundo o sociólogo francês, nas últimas décadas parece predominar um relativo distanciamento entre atores e sistema, tendo em vista a crise de diversas instituições que confluíam para a formação e para a socialização humana (Estado e escola, por exemplo), bem como o declínio de abordagens conceituais que definiam os seres sociais por sua integração em uma sociedade estável e predefinida.4 O conceito de experiência elucida que os atores assumem múltiplas lógicas de ação na construção de sua vida social, não assumindo programas únicos de ação, tampouco suas ações identificáveis de modo unilateral a papéis sociais. Ou seja, a ação social não possui uma unidade ou um sentido único.

Ação social, nesse quadro interpretativo, é definida como “uma ação na qual o sentido sugerido pelo sujeito ou sujeitos refere-se ao comportamento de outros e se orienta nela no que diz respeito ao seu desenvolvimento” (Weber, 2016, p. 613). A sociologia da experiência, inspirada na sociologia compreensiva, de Max Weber, busca compreender as ações dotadas de significação e como esses significados são construídos. Dubet (1994) reitera a heterogeneidade dos princípios sociais e culturais que orientam as condutas humanas, dimensionando que as identificações sociais (identidades) são oriundas de um trabalho permanente, de um “empenhamento de si”. De outra parte, pela constatação da incompletude de nossos processos socializadores, a experiência social é marcada por dois fenômenos contraditórios: a perspectiva da subjetividade pessoal (evidente pelo entendimento de experiência como maneira de sentir) e a perspectiva construtivista das realidades vividas (derivada do entendimento de que a experiência é uma atividade cognitiva).

Experiências urbano-educativas podem ser interpretadas pelos processos socioculturais pelos quais os atores sociais produzem suas identificações e pertencimentos (modos de sentir) e constroem as realidades urbanas em que habitam (atividades cognitivas). Nesse horizonte intelectual, interpretamos que os modos pelos quais os atores sociais se engajam em intervenções pedagógicas podem evidenciar importantes dimensões dessas experiências, pois, ao problematizarem seus territórios (urbanos) e dimensioná-los pedagogicamente mediante uma intervenção, indagam sobre si (experiência) e sobre as configurações socioespaciais da cidade. Tal escolha conceitual evidencia as diversas contradições e dilemas que constituem a condição urbana contemporânea e as políticas que conformam a vida coletiva nas cidades - estas interpretadas como polimórficas, variáveis e dinâmicas (Brenner e Schmid, 2016).

Com base nessas escolhas teóricas, da análise das intervenções pedagógicas mobilizadas pelo PUFV emergiram principalmente três problematizações, as quais são cotejadas a seguir. Importa salientar que o presente exercício se limita à análise de descrições de práticas e experiências educativas bem-sucedidas destacadas em documento de divulgação institucional sob a forma de relatos de práticas pedagógicas (Sicredi, 2018).

1. Desde as reformas desenvolvidas nas cidades em fins do século XIX e início do século XX, as intervenções urbanas indicavam as intervenções pedagógicas como imprescindíveis (Topalov, 1996). Henri-Pierre Jeudy (2006) observa que, nas últimas décadas, a arte, a arquitetura, o paisagismo e outras práticas culturais foram chamadas a tratar territórios mais ou menos degradados, como construções decadentes ou em ruínas, espaços em vias de destruição, áreas industriais e portuárias abandonadas, territórios contaminados ou regiões empobrecidas, em que “o objetivo parece ser sempre o mesmo: inventar projetos e criar realizações cujo papel deverá ser ‘reparador” (Jeudy, 2006, p. 13). Intervir e reparar figuram enquanto estratégias privilegiadas nas políticas urbanas contemporâneas, cenário em que as pedagogias urbanas adquirem sentidos similares. Além de redesenhar territórios ou pacificá-los (Jeudy, 2006), as intervenções almejam reeducar a população local, promover novos aprendizados sociais, engendrar efeitos de memória ou patrimonialização cultural e mobilizar novas significações aos territórios vividos, sobretudo urbanos.

Esses projetos reproduzem um imaginário de crise urbana, como anteriormente citado, oportunizam novas possibilidades de ação e contêm um conjunto de dilemas éticos, políticos e culturais. Muitos deles estão circunscritos a uma ambivalência entre a disseminação de uma economia política da educação urbana, marcadamente neoliberal (Lipman, 2013), e possíveis agenciamentos educativos imbuídos de princípios de resistência, de afirmação da democracia e de seu pluralismo e de lógicas cidadãs próprias de processos territoriais de base comunitária. O PUFV, a nosso ver, é um locus privilegiado desses processos, tendo em vista sua explícita vinculação ao binômio cidadania-cooperativismo e sua inscrição em quadros de ação direcionados por pressupostos de mercado e de competitividade econômica local e global.

As intervenções mobilizadas pelo PUFV emergem de leituras e diagnósticos realizados com base em situações escolares e comunitárias específicas, o que reverbera na diversidade temática tratada sob o escopo metodológico do programa. O sentido de cooperativismo é também afirmado de modo ambivalente - entre uma dimensão empresarial ou empreendedora e uma perspectiva humanista e cidadã de pensar a cidade ou o território municipal.

Os cursos para gestores escolares evidenciam a articulação entre educação, cooperação e cidadania. Os relatos da participação dos gestores nesses espaços formativos mostram o impacto do PUFV nas instituições de ensino e em seus bairros e comunidades.

Participo do curso de gestores desde a primeira edição. É uma oportunidade de atualização e aperfeiçoamento para as equipes das secretarias municipais de educação. Um dos pontos mais importantes é a cooperação, através da troca de experiências entre seus participantes, pois é a partir dela que aprendemos a valorizar o nosso trabalho e buscar inspiração para qualificar a educação dos nossos municípios (Sicredi, 2018).

Conheci o programa há três anos e gostei muito, pois tem o foco nos princípios da cooperação e cidadania. A metodologia de projetos aborda assuntos de forma que os alunos participem ativamente na construção de conhecimentos, a comunidade escolar se envolve como um todo. Os alunos participam de forma prazerosa nas atividades, assim a aprendizagem é mais eficiente (Sicredi, 2018).

Além da participação ativa dos estudantes, o PUFV prevê, mediante sua metodologia enquanto projeto, que as ações pedagógicas favoreçam atividades escolares no entorno da instituição não apenas na expedição que propõe visitação a ambientes urbanos selecionados, mas também na intervenção e no engajamento no território. Há uma diversidade de perspectivas e abordagens nesse sentido, de perspectivas que acentuam exclusivamente os problemas e a crise urbana a outras que ressaltam o diálogo e a troca de conhecimentos com a comunidade residente no entorno escolar.

O programa em nossa escola trouxe muitas contribuições. Por meio do programa, o uso da metodologia de projetos pautada na cidadania, cooperação e levando em consideração a curiosidade das crianças através de expedições investigativas fazem com que a produção do conhecimento ocorra de forma significativa. Ademais, incluir nesse processo a comunidade escolar demonstra que o processo de ensino e aprendizagem deve ocorrer não somente nas instituições formais, pois todos possuem algo a ensinar. A exemplo dos nossos projetos recentes, nos quais vizinhos compartilharam com as crianças seus saberes sobre acácias, uso da água e os diferentes cheiros. Depois de pesquisarem sobre as crianças, deram a esses vizinhos o retorno sobre suas pesquisas. Acreditamos, junto do programa, que o conhecimento, dessa forma, é democrático e envolve o pleno exercício da cidadania (Sicredi, 2018).

O depoimento supracitado apresenta-nos uma das principais potencialidades pedagógicas do programa: sua articulação a propósitos de educação integral. Ainda que essa definição seja polissêmica, é interpretada como o reconhecimento da multidimensionalidade formativa presente nas relações intra e extraescolares. Tal interpretação revela (novas) possíveis relações entre escolas e territórios urbanos em nosso tempo.

2. As experiências urbano-educativas evidenciam iniciativas que agenciam a educação como estratégia político-interventiva para o enfrentamento das desigualdades e vulnerabilidades sociais sobretudo nas periferias urbanas brasileiras. Há uma intensa circulação de projetos sociais com finalidades educativas nesses contextos, públicos e privados, assim como são constantes os relatos acerca de usos convenientes da escola para fins sociais, políticos e econômicos (Costa e Momo, 2009; Yúdice, 2006), muitas vezes legitimados publicamente em referências aos riscos sociais (Beck, 2011).

Importante também problematizar o engajamento social em tais processos de ação, tendo em vista a necessidade de examinarmos os sentidos ou as semânticas históricas da vulnerabilidade social (Martuccelli, 2017) e as contradições e desafios sociológicos implicados em relações de cidadania e afirmação de direitos. Segundo Kowarick (2009, p. 54), ao interpelarmos esses contextos, problematizamos dimensões relevantes dos direitos básicos de cidadania não apenas em seus aspectos técnicos ou teóricos: “Trata-se de um processo político que produz uma concepção de ordem estreita e excludente e, ao fazê-lo, decreta uma vasta condição de subcidadania urbana” (Kowarick, 2009, p. 54, grifo do original), que articula discriminação e segregação, impulsos à acumulação capitalista e novas formas privadas de controle social.

Outra dimensão analítica emergente refere-se às formas de atuação dos projetos sociais nas regiões empobrecidas brasileiras, sobretudo em favelas. Rocha (2015), ao examinar o repertório desses projetos em favelas cariocas, apresenta-nos um fenômeno de ajustamento a dispositivos disciplinadores impostos às populações jovens, o qual traz consequências tanto às juventudes quanto às organizações coletivas de moradores do território. Para os jovens, de maneira específica, há a disciplinarização de seus corpos, o imperativo de disciplinas morais e a “busca pela conversão dos moradores de favelas em empreendedores” (Rocha, 2015, p. 336), processos sintomáticos de movimentos de individualização em sociedades de risco (Beck, 1997; 2011). O limite reflexivo é a existência de um deslize entre diferentes sentidos atribuídos aos projetos sociais, nomeadamente quando “‘estar em risco’ se metamorfoseia em ‘ser de risco.’” (Rocha, 2015, p. 337)

Para além das questões de reatividade diante das desigualdades (Martuccelli, 2017), que por vezes justificam a intensificação de propósitos interventivos, importa examinar os sentidos plurais e múltiplos atribuídos às ações socioeducativas, assim como compreender as (controversas) pautas de ação de atores e segmentos sociais nesses contextos.5

No que tange às dimensões empíricas deste estudo, de acordo com a documentação analisada, o PUFV é definido pela instituição mantenedora enquanto ação de responsabilidade social e, ao mesmo tempo, projeto comunitário que articula educação, cooperação e desenvolvimento local. Não são necessariamente definições divergentes, contudo explicitam arranjos distintos ou novas semânticas político-pedagógicas para a ação socioeducativa nos territórios urbanos, as quais precisam ser problematizadas (Silva, 2018).

Uma vez que a proposta inicial da temática surge na escola e, em muitos casos, fica restrita a temáticas muito ancoradas no currículo escolar (formal), o PUFV apresenta muitos limites para definir-se como uma ação educativa direcionada ao desenvolvimento social (ou local). Demonstra muitas potencialidades pedagógicas, porém não é capaz de abordar, tampouco enfrentar, as desigualdades sociais e educacionais presentes nos territórios municipais. Ainda que não seja seu propósito basilar, uma ação de responsabilidade social na atualidade não pode se furtar a enfrentar esses dilemas e eventualmente consolidar-se enquanto agente reflexivo e propositivo nos territórios municipais.

3. Outra dimensão a ser investigada diz respeito às formas contemporâneas de ação socioeducativa urbana. Para além das descrições “apocalípticas” das condições urbanas, suas incertezas e suas problemáticas (Martinez, 2008), importa também considerar experiências de imaginação, de resistência e de criação de mundos possíveis.

Em nosso ver, nas últimas décadas ocorrem três dinâmicas de ação social pelas quais se projetam práticas de educação urbana em nossos países: por um lado, a cultura de uma educação popular, expressão de movimentos sociais que possui grande incidência na educação de setores populares; por outro, o incipiente movimento de desenvolvimento local que tem acompanhado os esforços sociopolíticos de recuperação democrática dos anos 1980 e 1990; por último, os processos institucionais e de movimentos sociais - nem sempre complementares entre si - de democratização que se vivem em nossos países das últimas décadas até o presente (Martinez, 2008, p. 7, tradução nossa).

Conforme o estudioso chileno, a confluência desses três processos (educação popular, desenvolvimento local e democratização) oportuniza novas reflexões pedagógicas, as quais podem ser sistematizadas em algumas correntes ou tendências educativas: educação urbana, educação cidadã, cidades educadoras, educação ambiental, animação sociocultural, educação social, educação popular e educação patrimonial.

Todas essas manifestações de educação na cidade, somadas às experiências de educação escolar, tomam parte do empoderamento de dinâmicas e processos cidadãos. Então, a educação na cidade pode aportar ou facilitar a geração de políticas socioeducativas e culturais interconectadas e transversalizadas pelos interesses da população; potencialização do saber social; ampliação da democratização local; construção de uma cidade para todos abrindo a educação para a vida, desde a vida e pela vida (Martinez, 2008, p. 9).

Pensar o engajamento dos diversos atores no PUFV nos demanda refletir acerca dos sentidos atribuídos a suas ações, mas também do potencial que o próprio programa possui para mobilizar novas pedagogias urbanas, mudanças expressivas nos territórios urbanos e propostas educativas cidadãs, cooperativas e democráticas. Essa dimensão precisa ser explorada em estudos futuros.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como procuramos demonstrar, a literatura atual que versa sobre a cidade e as questões urbanas acentua a ideia de crise das cidades e, por consequência, a necessidade de promover intervenções pontuais a fim de recuperá-las, tratá-las ou revitalizá-las. Intervenções urbanas emergem como estratégias políticas, sociais e culturais a fim de tornar a cidade um lugar melhor para se viver, em nome da qualidade de vida, do desenvolvimento sustentável e do respeito à diversidade cultural. Tal direcionamento vem conduzindo um conjunto expressivo de intervenções urbano-educativas, nas quais a educação e, com efeito, a pedagogia assumem protagonismos em propósitos de ação ou responsabilidade social.

Ainda que essas frentes políticas contenham muitas contradições (Beck, 2011) e, por vezes, retomem objetivos e intencionalidades próprios de uma sociedade individualizada, não parece possível “uma cidade para cada um” - ainda que a programática neoliberal assim o prometa.

Neste artigo, discutimos a respeito das potencialidades pedagógicas presentes no PUFV e suas implicações ao debate educativo contemporâneo alicerçado no binômio escola-território. Essa escolha visibilizou ações orientadas pela cidadania, pela cooperação e pelo desenvolvimento local. Não apenas por ser promovidas por importante cooperativa de crédito brasileira, suas atividades oportunizam um espaço de escuta aos agentes comunitários e aos atores escolares, não ofertando-lhes uma proposta fechada do ponto de vista temático ou curricular. Propiciam a circulação de muitas narrativas nos ambientes escolares, assim como se mostram capazes de escutar os agentes comunitários, professores e atores engajados nas dinâmicas territoriais. Os relatos dos gestores escolares contidos em sua documentação (Sicredi, 2018) revelam suas contribuições à qualidade do ensino nos municípios, tendo em vista suas constantes preocupações formativas com discentes e docentes envolvidos no programa e sua atenção à qualificação das instituições de ensino no âmbito de sua atuação.

Apesar de sua considerável potencialidade, o relato de experiências revela também suas limitações. Uma destas, contradição específica ao seu fazer organizacional, se refere à sua baixa capacidade de enfrentar condições socioeconômicas desiguais, principalmente por não apresentar uma pauta mais propositiva quanto ao enfrentamento de desigualdades e à correção de injustiças no plano escolar ou comunitário. É possível deduzir que se supõe que há espaço para essa pauta advir das comunidades escolares, mas, pela natureza tradicional de muitas instituições de ensino, isso não ocorre, tendo em vista a predominância de temáticas e conteúdos ancorados no currículo tradicional, como datas comemorativas ou calendário cívico municipal. O programa oferece qualificação profissional a docentes e a gestores, gerando condições para dinamizar intervenções escolares, mas deveria estar direcionado a demandas regionais e aos dilemas socioculturais das próprias comunidades.

Do ponto de vista pedagógico, destaca-se que apresenta potencialidades para mobilizar novas pedagogias urbanas e mudanças expressivas nos territórios, mas para ocorrer dessa forma deve orientar sua agenda de preocupações aos desafios da vida em comum. Nem sempre as comunidades escolares reúnem condições para uma leitura crítica da vida na cidade, ante as contradições alusivas à vida urbana e às territorialidades.

Há ainda amplo espaço para que escolas se associem de modo cooperado e cidadão em projetos mais democráticos de sociedade. Essa, porém, não é uma demanda espontânea, tampouco pode ser ingênua. É preciso ensinar e aprender. Faz-se necessário elaborar pautas indutoras para esse fim.

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1 Trata-se de uma seção que examina a contribuição de autores que discutem o fenômeno urbano por perspectivas teóricas distintas e multidisciplinares, porém importa destacar que são diversas as formas de pensá-lo e interpretá-lo no campo estudado.

2 Para uma discussão mais ampla a respeito da contenção territorial, ver Haesbaert (2014).

3 Referência: https://www.auniaofazavida.com.br/index.html Consulta em: 18/07/2019

4 Para uma discussão mais ampla desse processo, ver Tiramonti (2005) e Setton (2005).

5 Para um aprofundamento a respeito dessa relação entre educação e projetos sociais em periferias urbanas, ver De Tommasi (2013 e 2014).

Financiamento: O estudo não recebeu financiamento.

Recebido: 14 de Outubro de 2020; Aceito: 15 de Julho de 2021

Rodrigo Manoel Dias Da Silva é doutor em Ciências Sociais pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Professor da mesma instituição. E-mail: rodrigods@unisinos.br

Conflitos de interesse: O autor declara que não possui nenhum interesse comercial ou associativo que represente conflito de interesses em relação ao manuscrito.

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