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Revista Brasileira de Educação

versão impressa ISSN 1413-2478versão On-line ISSN 1809-449X

Rev. Bras. Educ. vol.27  Rio de Janeiro  2022  Epub 30-Jun-2022

https://doi.org/10.1590/s1413-24782022270053 

Artigos

Formação humana na precariedade: fazer sentido em comum

FORMACIÓN HUMANA EN PRECARIEDAD: SENTIDO COMÚN

IUniversidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.


RESUMO

“Não há mundo comum,” afirmava Bruno Latour, “jamais houve.” Como então nos habituamos a imaginar a existência de um consenso que, por trás dos desacordos e dos conflitos, cimentava nossa existência comum? E se os diferendos, longe de se constituírem, como quis a Modernidade, em fenômenos passageiros e superficiais, atribuídos a erros pedagógicos e de comunicação, fossem a vida própria do pluriverso que habitamos? Então, como evitar pensar que a própria ideia de uma verdade inabalável, unicamente acessível pelos saberes especializados, por uma ciência acima dos valores e apartada dos interesses humanos, tenha sido uma das primeiras fake news da Modernidade? O mundo comum “ainda está por ser composto,” insiste Latour. Mas, como fazê-lo? Eis o que pretende interrogar o presente texto, com o apoio nas reflexões que desenvolve Isabelle Stengers.

PALAVRAS-CHAVE verdade; fake news; modernidade; ciência; senso comum

RESUMEN

“No hay mundo común,” dijo B. Latour en un manifiesto, “nunca hubo.” ¿Cómo nos acostumbramos a imaginar la existencia de un consenso que, detrás de los desacuerdos y los conflictos, habría consolidado nuestra existencia común? Y si las disputas, lejos de constituirse, como lo quería la Modernidad, en fenómenos pasivos y superficiales, atribuidos a errores pedagógicos y de comunicación, ¿eran la vida misma del pluriverso en el que habitamos? Entonces, ¿cómo evitar pensar que la idea de una verdad inquebrantable, solo accesible por conocimiento especializado, por una ciencia por encima de los valores y aparte de los intereses humanos, fue una de las primeras fake news de la Modernidad? El mundo común “aún está por componer,” insiste Latour. ¿Pero cómo hacerlo? Esto es lo que el presente texto pretende cuestionar, con el apoyo de las reflexiones de I. Stengers.

PALABRAS CLAVE verdad; fake news; modernidad; ciencia; sentido común

ABSTRACT

“There is no common world,” stated Bruno Latour in a Manifesto, “there never was.” How then do we get used to imagining the existence of a consensus that, overcoming disagreements and conflicts, cemented our common existence? And if the disputes, far from being passing and superficial phenomena to be attributed to pedagogical and communication errors, as Modernity supposed, were the very life of the pluriverse we inhabit? Then, how to avoid thinking that the mere idea of an unshakable truth, only accessible by specialized knowledge, by a science above values ​​and apart from human interests, was one of the first fake news of Modernity? The common world “is yet to be composed,” insists Latour. But, how to do it? This is what the present text intends to discuss, with the support of Isabelle Stengers’ works.

KEYWORDS truth; fake news; modernity; science; common sense

INTRODUÇÃO

Trata-se de resistir, ainda que desesperadamente, à ideia apocalíptica segundo a qual doravante nós estaríamos na época dos pós-fatos, e também do pós-senso comum, uma época que teria perdido todas as bússolas, ou que as tivesse quebrado. (Stengers, 2020)

La régulation de ces débats est un des défis du moment pour nos démocraties. Cette situation devrait conduire à inventer des moyens qui permettent de dépasser ce conflit entre des vérités qui sont produites par des systèmes de véridiction incommensurables. La solution est à rechercher dans une approche plus expérimentale de la décision publique qui n’oppose pas une vérité à une autre vérité, mais qui définisse clairement les conditions d’exploration d’options alternatives et se donner les moyens d’orchestrer les processus d’apprentissage collectifs dans un contexte d’incertitude radicale. (Demortain e Joly, 2020)

Talvez um dia descubramos que a mesma lógica opera no pensamento mítico e no pensamento científico, e que o homem sempre pensou igualmente bem. O progresso - se é que o termo se aplica - não teria tido por palco a consciência, e sim o mundo, em que uma humanidade dotada de faculdades constantes teria continuamente se deparado, no decorrer de sua longa história, com novos objetos. (Lévi-Strauss, 2008, p. 248)

Há muito a questão da verdade não mobilizava de forma tão ampliada e contundente a sociedade, despertando todo tipo de reações, mas sem que qualquer iniciativa possa oferecer-lhe uma resposta consistente. Esse problema inicialmente parece decorrer, como Jean-François Lyotard (1983) tão bem o descreveu muitas décadas atrás no Différend, do fato de que, apesar de nossos melhores esforços, já não somos capazes de evitar os graves conflitos que nos surpreendem e nos atemorizam: vivemos uma época em que a indiferença é impossível, e nenhuma instância parece capaz de absorver os desacordos e de levar a bom termo suas terríveis consequências. Mais do que nunca, pois, a questão da legitimidade do discurso parece ser crucial (Lyotard, 1983). Ou não?

Pois a desbriada e incessante produção de fake news, a cínica postulação de existência de alternative truths obrigam-nos a reconhecer que, no que concerne aos hábitos culturais vigentes em nossas sociedades, o problema da confiabilidade das fontes que alimentam as relações com a realidade e com os outros simplesmente não mais se aplica: com a extraordinária ampliação dos meios e canais de informação e comunicação, tornados cada vez mais acessíveis, veio também o hábito de um consumo descontrolado e pouco atento de informações e análises. Aos poucos, os dissensos aprofundaram-se e atingiram quase todos os domínios da existência comum, a tal ponto que hoje temos correntemente a sensação de que vivemos em universos paralelos, hostis, em nossas “bolhas”. Já não há mundo comum.

Todavia, teria ele realmente apenas um dia existido? Não seria a própria noção de mundo comum uma espécie de miragem filosófica, vetusta e admirável, mas propriamente ilusória?

Não há mundo comum. Jamais houve. O pluralismo está entre nós para sempre. Pluralismo de culturas, sim, sim, de ideologias, de opiniões, sentimentos, religiões, mas pluralismo de naturezas, também, de relações com os mundos vivos, materiais e também com os mundos espirituais. Nenhum acordo é possível sobre o que compõe o mundo, sobre os seres que o habitam, que o habitaram, que devem ainda habitá-lo. Os desacordos não são superficiais, passageiros, devidos a simples erros de pedagogia ou de comunicação, mas fundamentais. […] Não, se colocarmos de lado o que nos separa, não restará nada para colocar em comum. O pluralismo atua muito profundamente. O universo é um pluriverso (James). (Latour, 2011, p. 39)

É possível que a afirmação desperte indignação por parte daqueles que, acreditando, como o autor, no esforço sincero para chegar à verdade que animou a prática intelectual humana ao longo dos séculos, leem essas palavras como uma crítica à prática científica, o que decerto elas não são, e não como um diagnóstico sobre o modo de ser do mundo humano, em sua inextinguível diversidade - o que sem dúvida, elas procuram ser.

“VERDADE” COMO FAKE NEWS?

Ao longo da história, a busca humana, especializada ou não, pela verdade - ou a denúncia da falsidade das verdades instituídas ou anunciadas - dividiu os espíritos, fomentou disputas e rancores, alimentou preconceitos, desencadeou guerras e revoluções. Entretanto, como desde o início dos tempos o discurso sobre a verdade foi capturado pelo poder instalado, que se fez seu porta-voz autorizado e exclusivo, enfrentá-lo implicou desafiar a ordem estabelecida, não raro ao preço do exílio, do ostracismo, da tortura e da morte (a esse respeito, a belíssima análise, já citada, de Jean-François Lyotard, em Le Différend, 1983).

Isso, decerto, e para o bem da humanidade, não calou os questionadores: mas tampouco seu sacrifício implicou benefícios imediatos para o saber comum, para a implantação de justiça social, para a prática da liberdade. A vitória sobre a ilusão, sobre o erro e sobre a mistificação sempre foi restrita, provisória e frágil: para além de nossos próprios limites, a voz dos poderosos sempre ecoou mais forte, trazendo seu cortejo de dominação e miséria.

Houve, porém, um momento em que se pensou ser possível alterar radicalmente o curso das coisas e libertar para sempre a razão das disputas, das injustiças e das guerras: convencionou-se chamá-lo de Modernidade. A batalha definitiva contra o erro e o dogma, diziam seus arautos, deveria ser travada com as armas de um novo poder nascente: a ciência, filha dileta da razão moderna, capaz de inaugurar uma nova era de certezas de entendimento.

As antigas verdades, afirmavam, baseavam-se na força da tradição, que sedimentava a fé nos dogmas religiosos, o temor do mundo invisível, a pacífica aceitação da autoridade do sangue, a crença na razão do soberano, a confiança no passado. As novas verdades deveriam, pois, nascer da atividade da ciência, que se baseava na demonstração dos fatos, e não na crença: “Se a realidade não é concedida da ponta de seu dedinho indicador por uma princesa, ela deve ser objeto de ‘demonstração’, isto é, de argumentação e de apresentação como [nada mais do que] um caso” (Lyotard, 1983, p. 33). Foi assim que o discurso científico dominante, recusando os devaneios que povoavam as mentes mais brilhantes da época, rompendo com as fontes antigas de autoridade, proclamou a confiança na observação e no entendimento, únicas origens possíveis para o conhecimento seguro, distinguindo-o “da crença, da opinião e do assentimento” (Locke, 2012). O adágio bíblico, portanto, alterou-se: “[Estabelecereis com vossos próprios recursos humanos a verdade, e] a verdade vos libertará”. Logo, oferecendo-se como neutra e universal, a verdade científica passou a se fazer fiadora do progresso indiscriminado das sociedades e, para os indivíduos, da certeza da autonomia.

Ocorre que a paz social não se seguiu às heroicas proclamações dos modernos, empenhados agora em realizar sua missão civilizatória em nome da verdade e do progresso. Restaurava-se, assim, mais uma vez, a velha dicotomia que assombrava a história humana: a divisão antropológica entre tipos de humanos - o daqueles capazes de produzir as novas realidades indiscutíveis, e os que passavam a dever respeito e obediência às verdades assim divulgadas. E consolidava-se a divisão geopolítica entre dois tipos de mundo - o mundo civilizado e, para além de suas fronteiras, todo o “resto.”

O “mundo moderno,” de progresso e felicidade sem limites, jamais se realizou: assim, aos poucos, o fascínio que exercera foi-se esmaecendo, a fé na nova ordem geopolítica dissolvendo-se em marés de postergação e de sofisma, enquanto a ciência passou a ser alvo da crítica daqueles que a viam associada à dominação deveras exercida. Criticar a ciência implicava denunciar a impossibilidade de neutralidade: e, como às sombrias análises de F. Nietzsche (entre outros, 1992, 2011), M. Heidegger (1986) e L. Wittgenstein (2005) se seguiram as duas guerras (Bouveresse, 2000), o genocídio nazista, a bomba atômica, o desenvolvimento acelerado do capitalismo paralelamente às denúncias dos horrores do colonialismo e da desigualdade econômica, estava criado o contexto em que a ciência e a técnica foram enfim afirmadas como novas formas de ideologia (Habermas, 1968).

Toda uma geração de acadêmicos e militantes empenhou-se, então, em denunciar os limites do conhecimento científico, a insuficiência de suas certezas ou, melhor dizendo, a ampla margem de incerteza que seus avanços não conseguiam reduzir. Não se tratava, porém, como ainda não se trata, de uma questão conjuntural, tão somente relativa às insuficiências do progresso científico: em muitos casos, essa margem não deriva da precariedade de nossos conhecimentos, mas do fato de que o mundo humano não se deixa converter inteiramente às regras da objetividade. Assim, essa margem de indeterminação constitui-se no espaço oferecido à invenção de outros modos de ser, à deliberação humana, à arte, ao campo da política (Castoriadis, 1991). Somente hoje, no entanto, e à luz dos acontecimentos atuais, podemos perceber o quanto é perigoso imaginar que esse espaço possa ser dado como independente, como situado acima do mundo das “realidades objetivas” que a ciência persegue, podendo, assim, negá-las a seu bel prazer… Ao se proporem a realizar a crítica da objetividade científica, não teriam os chamados science studies sub-repticiamente sucumbido a suas próprias ilusões? É essa a dura interrogação introduzida, já há quase duas décadas, por um dos mais sistemáticos críticos da ciência, Bruno Latour (2004, p. 242):

O erro foi acreditar que também nós demos uma explicação social de fatos científicos. Não, mesmo que seja verdade que, a princípio, nós tentamos, como bons críticos treinados nas boas escolas, usar os armamentos herdados de nossos melhores antecessores para quebrar […] religião, poder, discurso, hegemonia. Mas felizmente (sim, felizmente!), um após o outro, testemunhamos que as caixas pretas da ciência permaneceram fechadas e que são antes nossas ferramentas que dormem na poeira das nossas oficinas, desarticuladas e quebradas.

Assim, cabe admitir que, no fim das contas, a crítica à neutralidade da ciência nem sequer arranhou a supremacia de que, em muitos casos, esta passou a gozar a partir da modernidade, não tendo tampouco impedido, por outro lado, a produção de argumentos que, em seu nome, davam sobrevida às piores ideologias… Contudo, a questão introduzida por nossa atualidade vai muito além disso: ela diz respeito à súbita explosão dos discursos “negacionistas,” que passam a colocar em dúvida as sólidas bases em que certos fatos se estabeleceram - em investidas que visam desde às câmeras de gás ao racismo, de eventos históricos à catástrofe climática. É especialmente a rejeição da questão ecológica que serve de base para o texto mencionado, em que Bruno Latour (2004, p. 231) analisa as profundas contradições que o problema da verdade passou a levantar.

Nesse texto, Latour (2004) considera a forma como a crítica do conhecimento científico serve, agora, de pretexto e de base para o estabelecimento, por parte de “estrategistas republicanos” estadunidenses, de sua campanha de brownlash1 - que tem como únicas visadas a expansão ilimitada da atividade predatória de recursos naturais e a devastação ecológica praticada pela irrefreável ganância capitalista. A estratégia de blindagem dessas práticas de uso indiscriminado e devastador do planeta é a arguição, exatamente, da margem de incerteza que acompanha a construção dos fatos científicos.

Inquietante reviravolta, para um teórico que, como ele mesmo afirma, consagrou grande parte de seus trabalhos a mostrar os limites da certeza científica (Latour, 2004, p. 227)!

O perigo não mais viria de uma confiança excessiva em argumentos ideológicos que se faziam passar por questões de fato, e que aprendemos tão eficientemente a combater no passado, mas de um excesso de desconfiança em relação a boas questões de fato disfarçadas em maus preconceitos ideológicos! Nós, que passamos anos tentando detectar os verdadeiros preconceitos escondidos por trás das aparências das declarações objetivas, teríamos agora que revelar os fatos realmente objetivos e incontestáveis escondidos por trás da ilusão de preconceitos? (Latour, 2004, p. 227)

Latour (2004, p. 131) observa que o “impulso crítico” que levou as análises a desdobrarem a atenção voltada para o estudo exaustivo das condições de produção dos fatos levou igualmente a acreditar que, para melhor desmascará-los, era preciso deles afastar-se. Foi esse o contexto que conduziu o autor a propor, para escândalo continuado de muitos, um “novo empirismo,” marcado pela preocupação com uma realidade que parte do princípio de que esta não se deixa definir unicamente pelos fatos objetivos - pelas chamadas “questões de fato” (Latour, 2004, p. 244), que, diz ele, não servem para ensinar como lidar com as coisas.

Questões de fato não são as únicas coisas que a experiência nos dá. As questões de fato são muito parciais e, eu diria, muito polêmicas, interpretações muito políticas das questões de interesse, apenas um subconjunto do que também poderia ser chamado de estado de coisas. É esse segundo empirismo, esse retorno à atitude realista, que eu gostaria de oferecer como a próxima tarefa para os críticos. (Latour, 2004, p. 232, grifos nossos)

Dessa forma, ainda que submetendo sua obra a um explícito questionamento, Latour (2004) mantém-se fiel à questão que sempre o animou, relativa à clivagem entre natureza e cultura - entre o humano e o físico - que esteve na base do pensamento moderno dominante sobre a realidade (Latour, 1993), embasando a atitude predatória com que o planeta é tratado desde então. A realidade não é o resultado simples da abstração de todo elemento humano, reafirma o autor: tampouco é a mera consequência da obsessiva busca dos fatores humanos implicados na produção desses fatos, acrescenta agora. O que experimentamos como realidade é a reunião de uma multiplicidade de fatores, de “participantes” humanos e não humanos que a compõem: por isso mesmo, uma atitude crítica e realista, tal como o autor defende, consistiria em “uma investigação múltipla lançada com as ferramentas da antropologia, da filosofia, da metafísica, da história, da sociologia para detectar quantos participantes estão reunidos em uma coisa para fazê-la existir e manter sua existência” (Latour, 2004, p. 246, grifos do original).

É a esse tipo de investigação que se vem dedicando Latour: destinada a superar a clivagem entre, por um lado, natureza e cultura, entre as coisas inanimadas a serem dominadas e o conhecimento capaz de fazê-lo; e, por outro lado, entre as questões produzidas pelo exame de fatos objetivos (os chamados “matters of fact”) e as questões compostas das demandas das comunidades implicadas, de irredutível subjetividade já que relacionadas aos valores (os “matters of interest”) (Latour, 2012).

POR UMA NOVA FILOSOFIA DA FORMAÇÃO HUMANA: A IGNORÂNCIA COMO QUINHÃO COMUM

Desnecessário dizer o quanto todas as questões de que trata Latour têm implicações diretas sobre as práticas sociais dominantes de formação humana, tais como elas se instituíram a partir, justamente, da Modernidade: sabe-se como, na França revolucionária, armada da fé no progresso da ciência e na vitória da verdade sobre os preconceitos e as injustiças, a firme intenção de vencer a ignorância, os preconceitos e os vícios do passado deu origem à escola pública, universal, laica, gratuita. Destinada a fazer do conhecimento a arma da emancipação humana, a instituição tornou-se rapidamente um modelo para o mundo ocidental católico.2 Eis a filosofia vitoriosa que animou a prática educativa tornada desde então atividade pública comum, e que se encontra, ela também, colocada à prova pela rudeza do negacionismo mas, igualmente, pelo insistente e surdo apelo à “autoridade” da ciência. Como superar as novas clivagens que emergem do seio da sociedade na sala de aula, decretando novas e inglórias batalhas entre obscurantismos e esclarecimento?

Pois a crise civilizatória atual, caracterizada pela rápida degenerescência dos valores políticos e sociais, pela crescente descrença nas autoridades e âmbitos de construção comum, faz-se acompanhar de uma crítica radical da cultura ocidental e, particularmente, da filosofia que a sustentava e de sua profunda aliança com uma ação que, pretendendo-se esclarecida, racional e progressista, teve como contrapartida silenciosa a justificação da colonização, a escravidão e o saque sistemático dos povos colonizados; e que, realizando a devastação econômica e social das culturas não europeias, consagrou a conversão dos estados modernos ao capitalismo (Mignolo, 2017). Eis que o declínio das doutrinas universalistas, longamente anunciado, levou consigo a ilusão de que seria possível superar os diferendos (“realidade, sujeito, comunidade, finalidade”) (Lyotard, 1983, p. 12).

Imaginando que podia erradicar a discordância e os conflitos que provocava, controlar as paixões, eliminar os erros próprios aos juízos baseados nas aparências e nas circunstâncias, a filosofia ocidental, universalista, descuidou de questionar-se a si mesma, acabando, em larga medida, por se fazer cúmplice daquilo que justamente pretendia extirpar: a injustiça, o dogma, a dominação; e as vozes discordantes que porventura se ergueram não foram suficientes para fazer com que, abandonando o sono narcísico e autorreferente, ela visse o que se passava em torno de si. É bem verdade, pondera Isabelle Stengers (2020), que “a tarefa do filósofo não é a de transcender a civilização à qual pertence:” mas, sem dúvida, ela acrescenta, “cabe-lhe não ratificar os termos a partir dos quais essa civilização é pensada” (Stengers, 2020).

Entretanto, nessas condições, prosseguir hoje a tarefa educativa não suporá necessariamente questionar as bases filosóficas com que se pensou e se pensa o projeto de formação humana, fazendo assim eco às iniciativas que, também no campo dos estudos do currículo, da didática, da sociologia da educação, dos estudos étnico-raciais, dos estudos de gênero e sexualidade, estão se fazendo para pensar a educação na contemporaneidade?

Se a proposta apresentada por Isabelle Stengers, que tem por inspiração a obra de A. Whitehead (1948), parece especialmente apropriada para os tempos atuais, é porque, longe de evitar os graves problemas colocados pela questão da “verdade” hoje, ela os assume, abrindo lugar para a divergência. Todavia, como qualquer precaução parece pouca em um momento tão difícil quanto o que atravessamos, talvez valha a pena sublinhar o óbvio e dizer que não se estará aqui, de nenhum modo, advogando o abandono da ciência e do conhecimento racional, ou sequer de sua relativização, mas, ao contrário, afirmando a necessidade de entender de que forma eles podem melhor servir ao projeto democrático, compondo uma prática de formação humana que não exclua a abertura à imponderável diversidade humana.

O ponto de partida da reflexão de Whitehead não poderia ser mais apropriado para nossos interesses: ele retoma a figura de Sócrates, ou as figuras de Sócrates chamadas a fazer face à ignorância: o filósofo da aporia, que afirma não ter ele mesmo resposta para nada, mas que se reconhece ignorante; o mestre de Platão, capaz de transcender as respostas transcendentes que lhe fornecem os cidadãos em um saber superior; e o perigoso instilador do veneno da dúvida, condenado à morte pela pólis. Ocorre que a cada uma dessas imagens sempre correspondeu a figura dos cidadãos ignorantes, não do saber da época, mas sobretudo do saber superior a que visava Platão. Ora, a essa filosofia, Whitehead (2004) opunha, já em 1925, a prática da assemblage,3 por sustentar que a filosofia, afinal, “nada pode excluir:”

As diferentes respostas que o filósofo recolhe, por mais divergentes e parciais, não serão desqualificadas, nem reduzidas a testemunho da ignorância do interlocutor do Sócrates whiteheadiano. Elas farão parte de uma assemblage que põe o filósofo a trabalhar, que tem o caráter do problemático. (Whitehead, 2004, p. 26)4

Por isso mesmo, em Modes de pensée (2004), Whitehead defendia o “uso experimental de analogias e a exploração das maneiras contrastantes” de pensar a realidade. Nada de mais apropriado, ao que parece, para uma filosofia da educação que pretenda construir exigências e vias de estar atenta ao mundo, à pluralidade do mundo e das formas de experimentá-lo que, em virtude dessa redobrada atenção, ela recolhe em sua atividade.

Emerge, pois, da reflexão de Stengers o projeto de uma filosofia que finalmente combata sua própria arrogância - essa atitude ironicamente cultivada, ao longo dos tempos, pela prática que, em suas origens, proclamara como o mais sábio entre todos os sábios justamente aquele que afirmava nada saber…5 Uma filosofia capaz de desfazer-se dessa ânsia em se demarcar da multidão, não apenas porque “em face da imensidão das coisas, a ignorância é um quinhão comum” (Stengers, 2017, p. 13), mas sobretudo em vista do fechamento e da “perda de mundo” (Gumbrecht, 2010, p. 9) que a divisão entre “especialistas” e “gente comum” sempre acaba por introduzir… Mais ainda, avança Stengers (2017), para não continuar a ratificar os esquemas mentais e as práticas de dominação historicamente instituídas, a filosofia deveria, abandonando de vez a pretensão de “desmascarar” as falácias do saber não especializado, “proteger e cuidar:”6 proteger o diverso e cuidar daquilo que tende a ser excluído, por ser considerado “dispensável,” mas que diz respeito à pluralidade de modos humanos e não humanos de existência que fazem ser o planeta.

Pode-se imaginar que o que é “confiado à filosofia” não sejam questões que lhe caiba responder, mas o cuidado em articular, sem pacificá-la, sem reduzi-la a um comum, a multiplicidade divergente das “evidências” que o senso comum, ativado, recalcitrante, não mais deixará que seja desqualificada, despachada para a ignorância. (Stengers, 2017, p. 37)

A marca da soberba filosófica - do argumento de autoridade - é a rapidez com que dispensa sentidos, valores e saberes que lhe são estrangeiros, que seguem outras lógicas, que vêm de outros modos de pensar e de habitar o mundo. No vocabulário de Stengers, uma das principais atitudes que a sua slow philosophy deve incorporar refere-se, assim, ao ato de “ruminar” - de considerar paciente e humildemente o que lhe é servido, sem se deixar levar pelo hábito de rejeitá-lo antes mesmo de saborear convenientemente. “Ruminar” é pôr-se em condições de reconhecer a resistência por vezes surda, mas sempre renitente, que o senso comum7 opõe às excessivas e muitas vezes por demais óbvias “verdades absolutas” dos saberes especializados…

É claro que a insistência com que alguns se apegam ao que gostariam que fosse realidade, a teimosia dos que precisam acreditar em algo, custe o que custar, tal como vimos testemunhando em nossa sociedade nestes últimos anos, confunde-nos e quase nos obriga a uma atitude belicosa! Não obstante, como evitar fazer dessa necessária rejeição um hábito indiscriminado, que acaba por implicar uma simples perda de confiança na experiência, tal como nós, humanos, a vivemos em nosso dia a dia? Não admira, portanto, que a filosofia sirva tão frequentemente de álibi para a fuga da realidade e para a manutenção de uma prepotência que, além de totalmente infundada, acaba por resultar na privatização de algo que, apenas por ter sempre sido graciosamente oferecido, pôde ser apropriado.

Assim, é também preciso um novo tipo de filosofia da educação para a formação humana para a atualidade: capaz de desconfiar das regras de um diálogo imemorial que, começando pela exigência de definição abstrata, sempre se conclui pela reafirmação da ignorância e, mais ainda, pela total irracionalidade do interlocutor.8 É claro que a operação comporta riscos, pois as franjas da razão instituída abrigam todo tipo de alteridade…

Sem dúvida, diante da desavergonhada propagação das fake news, dessas recentemente nomeadas alternative truths, da determinada indiferença ou da virulenta desconfiança em relação aos fatos mais bem estabelecidos, pode-se ser tentado a acertar as contas de vinte e cinco anos atrás: “Vê-se bem que o relativismo, o ataque contra a autoridade dos fatos que deveriam nos colocar em acordo, era uma autorização concedida para a escalada da irracionalidade…”. (Stengers, 2020).

Contudo, considera Stengers (2020), usar as circunstâncias atuais para invocar a “irracionalidade fundamental” do público e sustentar a necessidade de fazê-los voltar a “confiar naqueles que sabem” seria negligenciar a originalidade do que ocorre na atualidade, voltando à velha dicotomia que abrigou a onipotência dos especialistas!

Decerto a autora não desconhece a inaudita virulência que leva tantos a manter, em relação ao discurso científico, “menos uma credulidade cega do que uma sombria vontade de se recusarem a compreender, de se vingarem ‘daqueles que sabem’” (Stengers, 2020). É esse o território fértil em que se assenta todo tipo de mesquinhas manipulações, em que grassa e é recompensado o apelo ao obscurantismo, ao fanatismo, ao ódio por tudo que, não sendo semelhança, coloque em risco a frágil identidade a duras penas mantida. E, de fato, não é possível ignorar a sórdida campanha levada a cabo pelos inimigos da democracia, que se armam de todo tipo de estratégias para fazer valer sua dominação e sua política nefasta. No entanto, também é, sem dúvida, urgente e indispensável pensar em como se enraíza e floresce o rancor daqueles que buscam respostas simples e imediatas para suas aflições, reais ou imaginárias. Em face da realidade atual, é no mínimo temerária a atitude de rejeitar toda a responsabilidade para o outro lado, para o lado da ignorância: não se trataria, afinal, da vingança dos humilhados, que agora “rejeitam como mentira e complô todos aqueles que lhes pedem para refletir?” Até que ponto essa recusa não é simplesmente a resposta oferecida à longa prepotência e ao desprezo “daqueles que sabem?”

Ousemos desagradar os amantes de respostas prontas: o que Stengers (2020) questiona, aqui, é também o não menos vertiginoso avanço da lógica técnico-científica e o desmonte do que é considerado mero senso comum, com as consequências que derivam dessa falsa atitude de superioridade que o “saber especializado” insistiu em manter, em sua versão hardcore, ou no discurso crítico das ciências sociais e da filosofia. Propondo, pois, uma nova atitude, que busque efetivar uma “soldadura da imaginação e do senso comum”, Stengers (2020) alerta para a importância de um “devir sensível às razões dos outros”, de modo que se possa “fazer sentido em comum.” É o que Donna Haraway (2016) de denominou “sympoiesis9” e que, de certa forma, aprendemos com os movimentos militantes e com toda a extraordinária confluência de estudos hoje desenvolvidos em diferentes partes do mundo: a inusitada chance que se abre para a filosofia de estar presente em seu mundo, em seu tempo, colocando-se a serviço do aqui-e-agora.

UMA FILOSOFIA CONTRA A INDIFERENÇA: VOLTAR AO CORPO

É fato que esse aqui-e-agora é sempre “irredutivelmente problemático,” essencialmente diverso, e que tentar compô-lo é uma tarefa incessante. Buscando resguardar-se, exatamente, desses riscos, a tradição de pensamento estabeleceu que a exigência de abstração necessária à produção do conhecimento dependia de um recuo, de um afastamento que permitiria ver “com clareza e imparcialidade” o todo. Seguindo Whitehead, porém, Stengers (2017, p. 28-29) pondera que a abstração não é privilégio da ciência: não há pensamento sem abstração, que é sempre seletiva e parcial e, no mais das vezes, orientada pelas necessidades da ação. Afinal, a observação, a atenção, a interpretação próprias àqueles comumente chamados de “animais superiores” não dependem da linguagem - que, no mundo letrado, fez-se arauto do imperativo da abstração à medida que conquistava o direito de portar significados independentemente da “realidade imediata” à qual estava associada. A abstração não é, insiste Stengers (2017), privilégio do pensamento - não obstante a lição platônica, que fazia da incapacidade de definição a priori do que é, por exemplo, coragem, do que é virtude, do que é justiça… (Platon, 2011c) a prova cabal da incapacidade de reflexão, de pensamento abstrato, por parte de seus contendores e do público em geral.

Não há pensamento sem abstração, eis pois a lição que Stengers (2017) traz de Whitehead: o pensamento, todo pensamento, supõe a abstração. Todavia, essa certeza traz consigo suas próprias exigências: pois, a cada época, a tarefa crucial da filosofia é a de cultivar a vigilância em relação aos modos de abstração que equipam o pensamento. Entendamo-nos bem: a tarefa da filosofia, longe de ser a de criticar os modos de abstração, ou os saberes especializados, opondo-lhes o que seria o “saber concreto,” consiste em cultivar a vigilância em relação a esses modos de abstração que pretendem se estabelecer como regras universais, tratando como insignificantes e desprezíveis o que eles são obrigados a omitir. Não é, pois, questão de “defender o concreto,” mas antes de “fazer sentir,” ou seja, de “avivar ou intensificar as dimensões da experiência [que estão] […] omitidas por um [determinado] modo de abstração” (Stengers, 2020). Em outras palavras, caberia à filosofia buscar “ativar as dimensões da experiência que nossos modos de abstração perceptivos e linguísticos omitem…” (Stengers, 2020).

Pois a natureza é o que permite uma variedade de experiências perceptivas - como “a experiência do poeta, do cientista ou do coelho à espreita da caça” (Stengers, 2020). Whitehead busca assim superar a dicotomia entre uma natureza “objetiva” causadora de nossas percepções e uma natureza “subjetiva,” ou “aparente,” que resultaria de nossa única responsabilidade. A natureza é susceptível de uma diversidade de modos de abstração. Não há privilégio de nenhum modo em particular, mas uma “variedade de modos de percepção, de maneiras pelas quais nós prestamos atenção, pelas quais concedemos importância àquilo cuja experiência fazemos” (Stengers, 2017, p. 21).

Eis aí uma construção que se opõe frontalmente à própria definição da ciência moderna, que, estabelecida sob as bases do famoso esquema kantiano dos conceitos puros do entendimento, afirmava a existência de uma atividade espontânea de organização da realidade que a ciência passava a registrar. Como observava Cornelius Castoriadis (1975) em A instituição imaginária da sociedade, essa concepção introduzia a postulação de uma passividade receptiva da sensibilidade, isto é, de que a sensibilidade poderia ser inteiramente implicada na “coisa em si” - não sendo, pois, admitidas no âmbito da ciência outras formas de dar sentido à realidade. Contudo, afirmava o filósofo, “toda organização mostra-se, cedo ou tarde, parcial, lacunar, fragmentária, insuficiente - e mesmo […] intrinsecamente deficiente, problemática e finalmente incoerente” (Castoriadis, 1975, p. 315): por isso mesmo, há história da ciência - mais ainda, por isso mesmo não há apenas um discurso, monolítico e inquestionável, da ciência, mas uma diversidade nem sempre convergente de discursos científicos.

Sem embargo, isso não quer dizer, pondera Castoriadis (1975), que haja mundo como “simples multiplicidade do diverso sem nenhuma organização” (Castoriadis, 1975, p. 272). Essas duas visões antagônicas e alternativas - a de um conhecimento rigidamente objetivo, empírico, e a de construções puramente científicas, ideais - têm em comum, observa Stengers (2017), a separação radical entre o físico e o humano. Para a instauração dessa “bifurcação da natureza” contribuíram especialmente Newton, Hume e Kant. Newton introduziu a noção de natureza objetiva, regida por leis universais às quais se pode ter acesso pela observação e pelo cálculo; em direção diametralmente oposta, Hume fez das construções humanas as únicas responsáveis pela inteligibilidade concedida à natureza, não havendo como se estabelecerem de forma “objetiva” as causas e efeitos da natureza. Por fim, Kant haveria combinado os dois, Newton e Hume, associando a ratificação do caráter universal do modo de explicação newtoniano à postulação de um sujeito do conhecimento que constitui por si mesmo o objeto de sua percepção.

Newton, Hume, Kant - “acampados, os três, no solo seguro da modernidade” (Stengers, 2020), estiveram na base de um movimento que consistiu em pretender erradicar da Europa e do mundo as maneiras de viver e de habitar a terra que consideravam inconcebíveis em sua definição de civilização. Assim, “não ratificar os termos em que a civilização foi pensada” não implica somente a desconstrução de ideias: para além de romper com a presunção da epistemologia dominante, isso supõe reaprender a ter corpo, a fazer corpo com o mundo; a se espantar - com o mundo, com as razões dos outros, com tudo aquilo que, estando fora de meu campo de interesse, alimenta a existência de outrem.

No cerne da questão figura a injunção a “reativar o senso comum.” Stengers (2020) observa que Kant introduziu ainda uma outra bifurcação, a separar a experiência empírica, cotidiana, dos valores e de uma lei moral universal, vazia, imperativa. Desde então, a pretensão epistemológica da ciência continua a ser a de um saber que deve sua autoridade aos fatos sobre os quais se funda, construindo-se contra tudo o que denomina a opinião.

Por isso mesmo, a atitude crítica da filosofia deveria, afirma a autora, exercer-se sobretudo contra a reivindicação, por parte de um modo de abstração específico - o do saber especializado -, do poder de desqualificar e de calar outros saberes, ou outros modos de abstração. A autora qualifica essa reivindicação como “predadora,” que pretende legitimar a eliminação de tudo quanto não cabe em seu modelo. A referência é, inicialmente, ao que acaba por vir à superfície, como as tais “questões de interesse” de que falava Bruno Latour (2004); mas como não pensar aqui, também, na sistemática destruição dos saberes e das culturas subalternas levada a cabo pela prática colonizadora com as armas da razão civilizada (Kisukidi, 2017)?

No entanto, mais profundamente, a forma moderna de pensar o conhecimento estabeleceu como exigência primordial a indiferença: a ser entendida, inicialmente, como denegação da diferença imposta pelo fato de sermos seres encarnados e, portanto, necessariamente submetidos a experiências diversas de apreensão sensível da realidade. Em seguida, porém, porque o filósofo tradicional, tal como o cientista, tem o corpo como um acidente: eles, de fato, estão “mortos para seu próprio corpo” (Kisukidi, 2017, p. 54).

Stengers (2020) considera longamente as consequências catastróficas de vivermos em “um mundo efetivamente privado da eficácia do ‘fazer sentir’:” ela faz referência ao caso de uma idosa que já não consegue significar eventos e experiências atuais, que permanecem para ela como totalmente estrangeiros (Schillmeier, 2014). A patologia da velha senhora é como a metáfora de nossa cultura: de certa forma, a insensibilidade parece ter-se tornado a condição própria de nosso mundo, de tal modo que, diante do que nos cerca, como a velha senhora, somos corpos des-animados, isto é, imobilizados por nossos hábitos e modos de ser e, assim, tornados incapazes de atenção ao que nos rodeia, impossibilitados de apreender o que está em volta, de nos deixarmos afetar pelo mundo. Por isso mesmo, a defesa que a filósofa faz do senso comum, convidado a ser ativado pela imaginação, não é a “revelação” de uma espécie de verdade concreta para além de nossas abstrações, mas a suspensão da hegemonia que nos impede de sentirmos nossas abstrações como vivas, capazes de engajar nosso pensamento e nossa ação.

Recuperar o corpo é, pois, operar uma radical transformação do modo habitual de lidarmos com o conhecimento, de praticarmos o pensamento. No entanto, por onde começar? A resposta vem sendo dada pelas múltiplas contribuições provenientes, exatamente, de culturas consideradas descartáveis, objeto dos esforços civilizatórios de uma razão escrupulosamente dedicada a eliminar o valor da experiência de mundo que era o delas. Encarnado, o pensamento deixa-se afetar por tudo que antes precisava descartar, os sentidos abrindo caminho para o recurso às analogias, para uma nova forma de aprender: sympoiesis. Não seria essa a resposta mais efetiva à epidemia dos pós-fatos?

APRENDER-JUNTO: FILOSOFIA E AUTOFORMAÇÃO

Com Whitehead, Stengers (2020) propõe que se substitua a ideia corrente de que compreender é “tornar-se capaz de explicar a alguém, ou mesmo de argumentar e de provar” pela noção de uma fruição estética, que consiste em recuperar a capacidade de se deixar tocar, de ser afetado pela experiência da realidade, pela apreensão de um todo que precede à analítica dos detalhes. Compreender é provar do mundo e “ousar se engajar no processo de aprendizagem que isso demanda” (Stengers, 2020).

Fica claro que, nessa acepção, longe de se constituir em uma operação meramente intelectual, e mais, também, do que se dar como uma atividade em perfeita ruptura com o cotidiano, compreender implicaria uma verdadeira transformação em nosso modo corrente, urbano e ocidental de ser, nós que “educados pelo conhecimento filosófico e científico, não temos qualquer dificuldade hoje em renunciar à nossa própria experiência ou em desvalorizar nosso próprio ponto de vista sobre o mundo para adotar o do “Eu-penso” (Galimberti, 1998, p. 83).

A proposta que assim se delineia é a de uma educação que restitua à corporeidade sua importância - que talvez resida no fato de que, obrigando-nos a rever continuamente nossas certezas e convicções, essa sensibilidade de fato nos abre para a aventura da vida. Contudo, nessa acepção, o corpo também já não é a sede de uma experiência singular, inegável, intransponível e incomunicável, mas o próprio de uma disposição de cuidado e atenção para com as palavras e as percepções dos outros.

Por isso, esta proposta de reeducação sensível consiste, de fato, em todo um programa de ressocialização e em um projeto amplo de permanente autoformação: pois, ali onde o mundo desprovido de sentido e de valor que o paradigma científico instituiu como caução da verdade já não vigora, a razão não é mais monopólio de um só. E, em lugar da deliberação herdada dos gregos, em que as razões se enfrentam, devendo o debate concluir-se pela vitória de uma e só uma posição, o modelo sugerido é aquele inspirado nas “artes da palavra” (“essas trocas de palavras intermináveis, comumente julgadas ociosas” que os africanos impunham aos colonizadores portugueses a fim de estabelecer o mínimo acordo). Não se trata mais de saber quem tem razão, mas de como estabelecer com o mundo e com os outros uma relação de aprendizagem. Como Stengers define lindamente: “Aprender: se familiarizar com, seguir as pistas, inquirir, tentar, induzir por analogia, descobrir, compreender, talvez, mas jamais em geral, sempre relativamente a uma questão, uma preocupação ou uma situação” (Stengers, 2020).10

Ora, aceitar que se possa trocar a argumentação lógica pela analogia seria um anátema para a razão moderna, não fossem os precedentes na própria tradição ocidental (Aristote, 2014). Muito mais recentemente, Derrida (1987) dizia ser impossível se passar da metáfora: “Eu tento falar da metáfora, dizer algo de próprio ou de literal de que ela possa ser objeto, tratá-la como meu objeto, mas sou por ela, pode-se dizer, obrigado a dela falar more metaphorico, à maneira dela” (Derrida, 1987, p. 64). Separadas por séculos, essas incursões depõem sobre a impossibilidade de se pretender buscar uma transparência da linguagem, de que se deduziria a fixação de uma determinação bem estabelecida. Entretanto, no trato filosófico tanto quanto no ambiente científico, as analogias são acusadas de uma relação promíscua com as falsas aparências, de apelo fácil ao lugar comum, de superficialidade e deficiência argumentativa. Não que a condenação das “simples metáforas” garanta, comenta Stengers (2020), qualquer sentido preciso e literal para seus opositores: apenas o que se faz é abrir uma cláusula de exceção para as analogias consideradas como ligadas aos “bons problemas,” às questões pertinentes aos estudos especializados que as convocam.

Todavia, colocando em evidência semelhanças que apelam para as aquisições da percepção, as analogias permitem a invenção de outras formas de entrar em relação com a realidade. E é aqui também uma tarefa da educação, diz Whitehead (1948, p. 26), cultivar hábitos de apreciação estética que propiciem a descoberta desses novos modos de entrar em relação.

As “artes da palavra” dizem, pois, respeito a uma prática de buscar sentido que supõe uma intensa troca, mas que não evita nem disfarça os desacordos e as múltiplas formas de se ter razão. Nesse sentido, diz respeito a um aprender que não somente se abre a outras epistemologias, mas depende, sobretudo, de uma transformação radical das bases mesmas de nossa socialização - de uma recuperação da dimensão coletiva que é apanágio das culturas que não abdicaram do corpo nem da experiência, como os povos africanos ou da floresta. Essas artes são “maneiras de fazer sentido em comum” - exercício de composição que, fazendo emergir novas possibilidades de dizer e de sentir, transforma “as razões antagônicas em contrastes que importam” (Stengers, 2020).

Seria uma pequena revolução imaginar que se possa, em vez de aprender-sobre, ou aprender-contra, aprender-junto com aqueles cujas razões divergem das nossas - construindo não unanimidades, mas convivências e, quem sabe, acordos. Afinal, se há algo que a atualidade nos indica claramente é que não é mais o tempo dos “discursos dos que sabem,” da violência implicada na imposição, ainda que bem-intencionada, de verdades.

Na vida corrente, não é mais a ciência ou o discurso especializado da filosofia, mas a própria situação que desafia o “senso comum:” “a opção de aprender, a partir de agora, a viver nas ruínas é a opção de aprender a pensar sem a segurança das demonstrações, de consentir em um mundo tornado intrinsecamente problemático” (Stengers, 2020), pondera a filósofa. Consentir em viver na ausência de garantias, na ausência do direito de “contar com”; consentir em habitar a precariedade, prestando atenção a tudo: é da arte da atenção que se precisa, para “conferir àquilo que nos toca o poder de nos fazer sentir e pensar, mas sempre ‘aqui’, nunca ‘fora do chão’” (Stengers, 2020).

E essa parece, afinal, ser uma boa definição dos desafios que se colocam hoje para a formação humana.

REFERÊNCIAS

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1 O termo foi cunhado em 2005 por Paul e Anne Ehrlich, dois biólogos estadunidenses, para referirem-se à tentativa deliberada de minimizar os devastadores efeitos da crise ecológica. Informação disponível em: https://news.stanford.edu/pr/96/961021ehrlich.html. Acesso em: 10 maio 2020.

2 Observe-se que o modelo de escola instituído no mundo protestante, originado nas escolas dominicais voltadas para o ensino da Bíblia, também tinha o conhecimento como chave de libertação do humano (Valle, 1997).

3 Guardou-se o termo tal como aparece no original em inglês, já que é também de uso corrente em várias línguas, até mesmo em português, sobretudo em artes plásticas, para se referir à prática de reunião de peças heteróclitas que formam uma só composição.

4Assemblage é o termo que designa o que Latour denomina de coletivo (Latour, 2004, p. 32).

5 Platon (2011a, p. 70-71). Não deixa, contudo, de ser curioso que Sócrates afirme exatamente, no Banquet, 177 d, “nada saber a não ser as questões do Eros” (ta\ e0rwtika/) (Platon, 2011b, p. 110).

6 Citação de Bruno Latour (2004, p. 232), em referência ao pensamento de Donna Haraway.

7 E, para os amantes de definições, esclareça-se que o termo tem, na história da filosofia, duas origens distintas: na reflexão aristotélica, refere-se à solidariedade da experiência dos sentidos; mas, no contexto que é o nosso, está claro que nos estamos referindo ao conjunto de opiniões, modos de se sentir e de agir dados como comumente partilhados no seio de uma comunidade, aos valores e regras instituídos contra os quais a ciência nascente também teve que se opor.

8 Talvez nem seja preciso citar, ainda, Platão (2011c, p. 1436-1480).

9 “Sympoiesis é uma palavra simples; significa ‘fazer com’. Nada se faz a si mesmo; nada é realmente autopoiético ou auto-organizado. Nas palavras do computador de Inupiat ‘world game’, os terráqueos nunca estão sozinhos. Essa é a implicação radical da sympoiesis. Sympoiesis é uma palavra própria para sistemas históricos complexos, dinâmicos, responsivos, situados e históricos. É uma palavra para com-viver no mundo, em companhia. A sympoiesis envolve a autopoiese e geralmente a desenvolve e a amplia. […] Em 1998, uma estudante canadense de estudos ambientais chamada M. Beth Dempster sugeriu o termo sympoiesis para definir ‘sistemas de produção coletiva que não têm limites espaciais ou temporais autodefinidos, informações e controle sendo distribuídos entre os componentes’” (Haraway, 2016, p. 58-61).

10Réactiver, cap. 3, “une cohérence à créer”. Meletô, verbo grego que se traduz habitualmente por “aprender”, é também cuidar, “se ocupar de”, “se habituar” (Bailly, 2000).

Financiamento: O estudo não recebeu financiamento.

Recebido: 12 de Julho de 2020; Aceito: 15 de Julho de 2021

Lílian do Valle é doutora em Sciences de L’Éducation pela Universidade de Paris V - René Descartes (França). Professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: lilidovalle@gmail.com

Conflitos de interesse: A autora declara que não possui nenhum interesse comercial ou associativo que represente conflito de interesses em relação ao manuscrito.

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