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Revista Brasileira de Educação

versão impressa ISSN 1413-2478versão On-line ISSN 1809-449X

Rev. Bras. Educ. vol.27  Rio de Janeiro  2022  Epub 11-Nov-2022

https://doi.org/10.1590/s1413-24782022270096 

Artigos

Mobilidade em tempos de imobilidade: estudantes internacionais em Portugal durante a pandemia da COVID-19

Movilidad en tiempos de inmovilidad: estudiantes internacionales en Portugal durante la pandemia de COVID-19

Juliana Chatti IorioI 
http://orcid.org/0000-0003-3606-2492

Adélia Verônica SilvaI 
http://orcid.org/0000-0003-4081-2575

IUniversidade de Lisboa, Lisboa, Portugal.


RESUMO

O objetivo deste artigo é compreender de que modo a crise provocada pelo coronavírus (COVID-19) tem impactado o ensino-aprendizagem dos estudantes internacionais no ensino superior português, e de que forma novos projetos de mobilidade estudantil têm sido repensados e renegociados durante a pandemia. A metodologia inclui a análise dos resultados de um questionário online — respondido por 703 estudantes internacionais, matriculados num estabelecimento de ensino superior em Portugal — para além de entrevistas individuais online — realizadas com 22 desses estudantes e também com aqueles que têm intenção de estudar em Portugal. Enquanto, para alguns, a pandemia representou a possibilidade de se fazer “mobilidade” estando “imóvel” (em seu país de origem, ou mesmo em Portugal, necessitando “apenas” de um computador e uma ligação à internet); para outros, potenciou as desigualdades sociais e econômicas, dificultando, e muitas vezes impossibilitando, a realização da “mobilidade” nesses moldes.

PALAVRAS-CHAVE mobilidade; imobilidade; COVID-19

RESUMEN

El objetivo de este artículo es entender cómo la crisis causada por el Coronavirus (COVID-19) ha impactado en la enseñanza-aprendizaje de los estudiantes internacionales en la educación superior portuguesa, y cómo los nuevos proyectos de movilidad estudiantil han sido repensados y renegociados durante la pandemia. La metodología incluye el análisis de los resultados de un cuestionario en línea -respondido por 703 estudiantes internacionales, ingresados en una institución de enseñanza superior en Portugal - así como entrevistas individuales en línea - realizadas con 22 de estos estudiantes, y también con los que tienen intención de estudiar en Portugal. Mientras que, para algunos, la pandemia representó la posibilidad de hacer “movilidad” siendo “inmóviles” (en su país de origen o en Portugal, necesitando “solo” un computador y una conexión a internet), para otros, potenció las desigualdades sociales y económicas, dificultando, y muchas veces imposibilitando, la realización de la “movilidad” en estos moldes.

PALABRAS CLAVE movilidad; inmovilidad; COVID-19

ABSTRACT

The aim of this article is to understand the impact of the coronavirus (COVID-19) crisis on teaching and learning by international students in Portuguese higher education. It also focuses on how new student mobility projects have been re-designed and re-negotiated during the pandemic. The methodology includes analysing the results of an online survey and individual online interviews. The former was answered by 703 international students enrolled at higher education institutions in Portugal; the latter was conducted with 22 of those students, as well as with students planning to study in Portugal. While for some students, the pandemic represented the possibility of enjoying “mobility” while being “immobile” (in their countries of origin or even in Portugal, provided they have a computer and an internet connection); for others, it enhanced social and economic inequalities, making this sort of mobility difficult, and often impossible.

KEYWORDS mobility; immobility; COVID-19

INTRODUÇÃO

De acordo com a definição da Organisation for Economic Co-operation and Development — OECD (2013), um estudante internacional é aquele que mudou para outro país para fins de estudo. Desse modo, na referência ao estudante internacional está implícita a ideia de mobilidade territorial. Contudo, uma vez que a rápida disseminação do coronavírus (COVID-19) veio impactar as deslocações entre os territórios, a pandemia que daí adveio acabou por impor uma nova forma de mobilidade aos muitos estudantes que já estavam fora dos seus países de origem e foram confrontados com uma repentina imobilidade territorial.

No final do século XX, Giddens (1991) já havia chamado a atenção para o fato de as relações sociais estarem a se reorganizar através das distâncias espaçotemporais, fomentando relações entre “ausentes”, localmente distanciados de qualquer interação face a face, o que permitiu a diminuição dos custos com os meios de comunicação e transporte e a conexão do local com o global de uma forma que antes seria impensável. Segundo esse autor, tal “alongamento” das relações sociais à escala mundial proporcionou maior integração internacional econômica, social, cultural e política, e, nesse sentido, a ênfase no livre comércio passou a estimular uma mobilidade cada vez maior daqueles que autores como Salt (1997) — ainda no século XX — e Brandi (2006) — já no século XXI — chamaram de “altamente qualificados”; e Altbach e Knight (2007) chamaram de “acadêmicos”. Ou seja, como forma de promover o desenvolvimento econômico, passou-se a estimular o investimento em conhecimento (capital humano) ao nível global, e isso fez emergir a chamada “Sociedade do Conhecimento” (Frigotto, 2010; Santos e Almeida Filho, 2012).

Dessa forma, as universidades abriram-se ao exterior (ou seja, internacionalizaram-se), o que veio a acelerar o ritmo e a escala do que Findlay (2010) nomeou de “migração do estudante do ensino superior”. Essa migração era apoiada pelos governos dos países de origem dos estudantes, uma vez que estes acreditavam que se iriam beneficiar da transferência do conhecimento obtido pelos seus estudantes no estrangeiro, aquando do seu retorno (circulação de cérebros). Contudo, sempre houve aqueles que optaram por permanecer nos países de destino, configurando a chamada “fuga de cérebros”. Assim, a mobilidade/migração estudantil podia ser uma estratégia deliberada do estudante para aumentar as suas oportunidades de migração permanente, o que também proporcionou que muitos países de destino fossem beneficiados com o “ganho de cérebros”.

Em 1999, Mahroum (1999) observou que a proporção de estudantes internacionais havia aumentado de 2,0% na década de 1950 para 2,3% na de 1970, chegando a 3,8% na década de 1990. No entanto, nesta altura, o autor previu que, em 2010, esse número chegasse aos 2,8 milhões de estudantes, e em 2025 aos 4,9 milhões. Entretanto, de acordo com os dados da OECD (2013), em 2010 o número de estudantes estrangeiros já havia chegado aos 4,1 milhões, e os dados divulgados em 2018 já apontavam para 5,6 milhões de estudantes terciários que haviam atravessado uma fronteira para estudar (OECD, 2020). Todavia,

[…] em 2020, as instituições de ensino superior em todo o mundo fecharam as portas para controlar a propagação da pandemia da COVID-19, o que afetou, potencialmente, mais de 3,9 milhões de estudantes internacionais e estrangeiros que estudam nos países da OECD. (UNESCO apud OECD, 2020, p. 227)

Nesse sentido, é natural que com a pandemia da COVID-19 e os impedimentos à circulação, os governos e as instituições de ensino superior dos países de origem e destino, bem como os próprios estudantes internacionais, começassem a expressar as suas preocupações com a imposição de um novo paradigma científico-tecnológico, que ninguém ainda sabe, ao certo, como será. De acordo com a OECD (2020), o bloqueio imposto, para além de afetar a continuidade da aprendizagem, também alterou as percepções dos estudantes sobre o valor dos seus diplomas e a capacidade dos seus países de destino em zelar pela sua segurança e bem-estar. Assim sendo, preveem-se “consequências terríveis na mobilidade internacional dos estudantes nos próximos anos.” (OECD, 2020, p. 227).

Em março de 2020, os resultados de um inquérito publicado pela European Association for International Education — EAIE (Rumbley, 2020) já revelavam que, de acordo com 74% dos inquiridos (profissionais em instituições de ensino superior), a mobilidade de estudantes para o exterior (outbound mobility) havia sido afetada pela COVID-19, e que, segundo 48% dos respondentes, esse impacto também já havia sido observado na entrada de estudantes internacionais (inbound mobility).

Assim, desde o início da pandemia foi perceptível o seu impacto sobre a mobilidade estudantil internacional, tanto sobre os fluxos de entrada nos países de destino quanto sobre os fluxos de saída dos países de origem. Naquela altura, ainda de acordo com o inquérito supracitado, os ajustes realizados pelas instituições de ensino superior a fim de minimizar esses impactos prenderam-se com adiamentos e cancelamentos de inscritos, uma vez que as aulas realizadas com o uso de ferramentas virtuais eram ainda muito poucas.

Nesse aspeto, ainda é importante destacar que, com a introdução repentina de aulas remotas em muitas universidades portuguesas, que até então não as utilizavam (ou pouco as utilizavam), a experiência de aprendizagem integrada, com a associação de práticas online e presenciais (ou seja, com a introdução do método de ensino híbrido ou misto), não conseguiu preparar o online de modo a garantir o acesso e a aprendizagem dos conteúdos que antes eram preparados somente para o ensino presencial. Desse modo, os limites metodológicos, para além dos tecnológicos, trouxeram novos desafios tanto para as universidades como para os estudantes (Magalhães et al., 2020).

Contudo, importa reter que, desde essa época, as preocupações dominantes centravam-se na forma como a mobilidade se iria desdobrar ao longo do tempo, ou seja, em quais mudanças a pandemia da COVID-19 iria trazer no âmbito da mobilidade estudantil internacional. Nesse sentido, Waters (2021) observou que os números desse ano letivo no Norte Global apresentaram um quadro misto a esse respeito. Enquanto as matrículas no Reino Unido estão aumentando, as matrículas na França estão diminuindo. A autora destaca ainda que muitos cursos foram transferidos para o sistema online, o que permite aos alunos internacionais estudarem “em casa” e, de certa forma, reflete os futuros desenvolvimentos no ensino superior transnacional. Ainda nesse aspeto, Lim (s.d.), refletindo sobre a COVID-19, a geopolítica e as preocupações dos estudantes internacionais chineses, argumenta que estes estão extremamente preocupados com a sua segurança corporal, o que pode ter um impacto na tomada de decisões futuras em torno das suas mobilidades internacionais.

Essas reflexões trazem-nos aos escopo deste artigo, no qual procuraremos pensar

  1. se é possível falar em mobilidade estudantil em tempos de imobilidade territorial;

  2. se é possível falar em oportunidades para estudantes e instituições potencializadas pela pandemia; e

  3. até que ponto, as desigualdades que se sobressaíram com a pandemia poderão impactar a continuidade dos projetos de mobilidade de muitos estudantes que escolheram realizar esses projetos em Portugal.

De acordo com os Indicadores de Integração de Imigrantes - Relatório Estatístico Anual de 2020 (Oliveira, 2020), Portugal possui (ano letivo 2018/2019) 56.851 estudantes estrangeiros inscritos no ensino superior (26.186 na graduação, 22.899 no mestrado e 7.396 no doutorado). Ainda nesse ano letivo, a maioria (31.558) era do sexo feminino, e 40,6% encontravam-se numa instituição de ensino localizada na região de Lisboa. Mais da metade (55,4%) é nacional de algum país da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), seguida dos estudantes provenientes da União Europeia (31%). Entre as nacionalidades, destaca-se a brasileira (35,9%), seguida da angolana (7%), da espanhola (6,8%), da italiana (6,2%) e da cabo-verdiana (5,9%).

PARA UM NOVO PARADIGMA CIENTÍFICO-TECNOLÓGICO: QUANDO A MOBILIDADE ESTUDANTIL PASSA DA ESFERA REAL PARA A VIRTUAL

Como refere Amaral (2016), as novas tecnologias da comunicação vieram possibilitar a criação de uma “esfera pública virtual” (o ciberespaço) em que, pela primeira vez, foi possível trocar informações de forma instantânea e em escala planetária. Nesse sentido, o surgimento da internet potenciou o fenômeno da globalização, tendo nas social media o seu expoente máximo — já que estas possibilitaram a intensificação das relações sociais globais e a criação de laços e capital social.

Castells (1999), em 1999, já havia chamado a atenção para a influência da revolução tecnológica, da inovação, da expansão da comunicação e da “era informacional” na geopolítica global. O século XXI tem sido, portanto, um século de fluidez e abertura impulsionado, em grande medida, pelas novas tecnologias da informação e da comunicação (TIC), que, por sua vez, deram origem a novas formas de interligação transnacional (Rizvi, 2011).

Não obstante, apesar de Salt (1997) ter defendido que as novas TIC poderiam reduzir a migração internacional dos “altamente qualificados”, visto que o conhecimento poderia ser transferido de maneiras que não implicassem necessariamente a presença física, durante muito tempo se observou que, ainda que que as novas TIC facilitassem o estudo e a investigação a distância, essas mesmas tecnologias aguçavam a vontade e a curiosidade de mais estudantes e investigadores irem estudar no exterior. Isso porque estes, tendo como base o imaginário das possibilidades e condições globais que lhes eram ofertadas, passaram a “calcular” como seria possível aproveitar toda essa “interconectividade global” (Rizvi, 2011).

Por outro lado, desde então, vinha-se observando que

[…] o comportamento das gerações mais novas estava a ser, progressivamente, e com a introdução da técnica no contexto escolar e no quotidiano, alterado pelas novas tecnologias e pela rede cibernética. (Amaral, 2016, p. 18)

Ainda que o uso da internet continuasse restrito a um grupo seleto de pessoas (Papacharissi, 2009) e que, na visão de Amaral (2016, p.19-20), “deva ser equacionado à luz do conceito de literacia digital”, começaram a surgir “espaços de interação social desterritorializada” (e de interação educacional desterritorializada — nota nossa) potenciados pelas comunicações mediadas por computador (Amaral, 2016). Desse modo, essa mudança de paradigma social e comunicativo passou a figurar também no ambiente educacional.

Se, já havia algum tempo, os softwares sociais vinham potenciando as interações sociais, transformando relações de sentido único (proporcionadas pelos meios de comunicação de massa) numa interatividade bidirecional, agora tais softwares passaram a transformar, também, as relações entre professores e alunos. Assim, para aqueles que tiverem acesso, plataformas como o Zoom, o Google Meets, o Teams e mesmo redes sociais como o Facebook prometem ser essenciais à aprendizagem e às relações que se irão estabelecer no sistema de ensino.

Desse modo, ainda que as motivações para a mobilidade estudantil internacional muitas vezes se prendam com a necessidade intrínseca de se “ter uma experiência em outro país” (ou seja, “conhecer outros/novos lugares/ culturas”), se essa mobilidade também for motivada por fatores extrínsecos, como enriquecer o currículo para satisfazer ao mercado de trabalho visando à progressão profissional (Iorio, 2018; Iorio e Fonseca, 2018), a realização de uma “mobilidade virtual” ainda poderá ser atrativa para muitos estudantes.

Nesse aspeto, as motivações dos estudantes não serão mais para sair do país de origem ou para escolher um país de destino, mas para escolher uma universidade de prestígio que, supostamente, oferecerá um ensino de qualidade, de modo que, no futuro, esses estudantes possam tirar o devido proveito dessa relação. Nesse sentido, é de supor que, quanto menos burocráticas forem as relações que se estabelecerem entre estudantes e instituições, mais fácil será para tais instituições atrair novos alunos.1

Obviamente, as motivações para a realização ou continuação desse tipo de mobilidade também irão variar de acordo com o grau de ensino (graduação, mestrado ou doutorado) e do fato de se tratar de uma mobilidade de grau (completa) ou crédito (parcial/ “sanduíche”).

No aspeto macrossocial, adivinha-se um período de crise financeira mundial, em que os subsídios para o estudo no estrangeiro deverão ser escassos. Apesar de, como referido, as desigualdades muitas vezes também se manterem no ambiente digital (Papacharissi, 2009), ao economizar-se com deslocações, alojamentos e todo o custo de vida que implica um estudo no exterior, é provável que alguns estudantes ainda continuem a efetivar os seus projetos de “mobilidade estudantil internacional virtual”.

Entretanto, para que esse tipo de mobilidade possa ser uma realidade, as infraestruturas de imobilidade são basilares para possibilitar aos estudantes internacionais escolherem se querem permanecer imóveis. Em outras palavras, fazer mobilidade estudantil internacional estando em imobilidade só é possível se os estudantes tiverem os recursos necessários para acederem ao ensino a distância e as universidades tiverem os recursos necessários para chegar até esses estudantes (Roos Breines et al., 2019).

Nesse sentido, a pandemia da COVID-19 veio trazer novos desafios para as instituições de ensino, assim como mudanças significativas nas geografias globais das mobilidades internacionais de estudantes. O que propomos neste artigo, portanto, é refletir sobre como a pandemia, que ocasionou todo um contexto de interrupções e suspensões nas instituições de ensino e, consequentemente, alterou o quotidiano dos estudantes no que tange à orientação científica, aos métodos de avaliação e ao funcionamento letivo, tem induzido a novas formas de interpretação e de negociação da (i)mobilidade estudantil por parte dos estudantes internacionais em Portugal.

METODOLOGIA

O presente artigo é produto integrante de uma investigação em curso pelas autoras e que tem como objetivo compreender os impactos ocasionados pela COVID-19 no cotidiano de estudantes estrangeiros em Portugal. A proposta metodológica envolve os métodos de análise quantitativo e qualitativo.

Assim, em uma primeira etapa, a recolha de dados constituiu na realização de um questionário online — dirigido a todos os estudantes internacionais e/ou estrangeiros matriculados em uma universidade em Portugal — e procurou perceber de que forma o novo coronavírus e as medidas de confinamento impostas pelo governo português impactaram o cotidiano desses estudantes.2 O questionário online esteve disponível entre os dias 7 de abril a 7 de maio de 2020, abarcando a maior parte do primeiro Estado de Emergência3 imposto em Portugal. Ainda que não se tenha tratado de uma amostra representativa, no total, obtiveram-se 703 respostas válidas. O perfil dos inquiridos foi constituído por 450 (65,4%) estudantes do sexo feminino e 242 (34,4%) estudantes do sexo masculino. Apenas um (0,1%) não respondeu a essa questão. A idade dos entrevistados variou entre 18 e 50 anos. Quanto à nacionalidade, não obstante a sobrerrepresentação de brasileiros, a amostra contou com a participação de 56 nacionalidades diferentes, e as que se sobressaíram também foram as mais representadas nas Estatísticas da Educação 2018/2019 (Portugal, 2020). Agrupando pelos grupos mais representativos temos 61% de estudantes brasileiros, 16% provenientes dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), 15% oriundos de algum dos 27 países da União Europeia e 8% de outros países. A maioria era solteira, vivia com familiares antes de emigrar e estava matriculada em 23 diferentes universidades em Portugal.

Já o segundo momento da coleta de dados envolveu a realização de entrevistas online, em tempo real, levadas a cabo por meio de plataformas virtuais de comunicação (Skype, WhatsApp). Foram realizadas 22 entrevistas em profundidade, entre os meses de setembro de 2020 e janeiro de 2021, com estudantes internacionais e/ou estrangeiros que já estavam ou que pretendiam matricular-se no ensino superior português. Boa parte dessas entrevistas foi realizada durante o novo Estado de Emergência em Portugal, que teve início em novembro de 2020 e ainda vigorava quando este artigo foi escrito.4 Alguns estudantes que haviam respondido ao inquérito online voluntariaram-se para participar nessa fase, e com base nesses estudantes, pelo método da bola de neve, obteve-se acesso a outros estudantes. Nesta amostra, o perfil dos respondentes foi composto de 15 estudantes do gênero feminino e sete do gênero masculino, sendo as nacionalidades bastante variadas — brasileira, angolana, guineense (da Guiné-Bissau), argentina, colombiana, italiana, espanhola, chilena e cabo-verdiana — e abarcando a graduação, o mestrado e o doutorado. Estes estudantes encontravam-se em diferentes universidades portuguesas (Lisboa, Porto, Évora, Beira Interior, Algarve, Minho, Europeia, e Instituto Universitário de Lisboa — ISCTE).

APRESENTAÇÃO DOS RESULTADOS

Como referido anteriormente, o inquérito online obteve respostas de 703 estudantes. Destes, 311 (44,2%) encontravam-se na graduação, 265 (37,7%) no mestrado e 125 (17,8%) no doutorado. A grande maioria desses estudantes (81,8%), por conta do Estado de Emergência supramencionado, passou a ter aulas a distância. Praticamente todas as universidades portuguesas procuraram adaptar as suas aulas presenciais para o ensino remoto.

UM “NOVO” MODELO DE ENSINO SUPERIOR EM PORTUGAL

Diante de um “novo” e inesperado modelo de ensino superior imposto pela pandemia da COVID-19 a partir de março de 2020, as universidades, professores e estudantes em Portugal viram-se confrontados com diversos desafios.

No que tange às experiências dos estudantes internacionais (objeto de investigação deste artigo), observamos, por meio do questionário online, que no início da pandemia a maioria desses estudantes (402, ou 57,2%) não se sentia confortável em utilizar as ferramentas digitais necessárias para assistir às aulas online e fazer os exercícios e testes solicitados; ainda que 97,6% possuíssem internet e 89,3% computador em casa.

Já nas entrevistas, apesar de todos terem referido possuir computador e internet em casa, a qualidade desses equipamentos apresentou-se desigual entre os entrevistados, sobretudo para aqueles que retornaram aos países de origem ou ainda não haviam emigrado para Portugal. Como veremos mais à frente, essas desvantagens incidiram, principalmente, sobre os estudantes que estavam nos PALOP. Além disso, alguns estudantes continuam a ter dificuldades na utilização das ferramentas digitais necessárias para a prossecução dos seus estudos de forma remota.

Ainda com relação aos problemas de ordem técnica, num primeiro momento, apenas 133 (18,9%) dos inquiridos avaliaram a prestação dos professores nas aulas online de forma negativa; e 137 (19,4%) avaliaram o material de apoio e as formações dos alunos para as aulas não presenciais da mesma forma. Contudo, nas entrevistas realizadas posteriormente, observaram-se muitas críticas relacionadas às dificuldades e à falta de formação, tanto de alunos quanto de professores, para a utilização das ferramentas digitais.

Apesar disso, os estudantes reconheceram que a pandemia da COVID-19 “pegou todos de surpresa, desprevenidos, despreparados”, e acabou por marcar um momento de ruptura, quebra e mudança na forma como as coisas eram e funcionavam nos sistemas de ensino em Portugal e no mundo. Desse modo, ainda que os estudantes identifiquem a falta de preparo e familiaridade dos professores com esse “novo” modelo de ensino, também constataram que a aprendizagem desse modelo tem ocorrido de forma conjunta e interativa entre todos os intervenientes:

Eu acho que foi uma coisa que chegou tão de repente que ninguém estava preparado para nada! Alguns professores se dão melhor com a tecnologia, sabiam como é que funcionava, mas outros nem tanto. Tivemos que aprender, tipo, todos juntos. (Argentina/Italiana, mobilidade de grau, Graduação, Évora)

Para além dos problemas anteriormente mencionados, outra das críticas bastante referida pelos entrevistados dizia respeito à baixa interação com os colegas e professores proporcionada pelo ambiente digital.

Entretanto, ainda que de forma bastante desigual e consoante ao país de origem, alguns alunos reconheceram facilidades e vantagens no ensino-aprendizagem no ambiente digital, como o fato de poderem acessar os conteúdos de “casa” e de “economizarem” tempo com as deslocações.

A seguir, exploraremos as experiências dos nossos entrevistados no que toca às vantagens e desvantagens desse “novo” modelo de ensino que se instalou no ensino superior português.

RECURSOS E INFRAESTRUTURAS

Não ter internet em casa ou ela ser de baixa qualidade e não ter os equipamentos necessários (computador, tablet, celular, etc.) para acompanhar as aulas de forma remota são alguns exemplos de falta de recursos e infraestrutura que têm acarretado dificuldades para alguns estudantes internacionais prosseguirem com os estudos em Portugal:

[…] a minha (internet), particularmente, falhava muito. Então, tinha vezes, que eu tinha que desligar a câmera, ou eu perdia parte do conteúdo […]. (Colombiana, mobilidade de grau, Mestrado, Lisboa)

[…] é mesmo difícil de fazer frequências (provas), quando a internet não está muito boa […]. (Cabo-verdiana, mobilidade de grau, Graduação, Évora)

A internet estava meio ruim aqui em casa, aí eu tive que comprar aqueles amplificadores (de sinal) […]. (Brasileiro, mobilidade de grau, Doutorado, Porto)

Além disso, alguns desses estudantes referiram que, para colmatar tais dificuldades, viram-se “obrigados” a ter “gastos extras”, os quais, muitas vezes, não tinham possibilidades de custear:

Eu não tinha condições de estar fazendo os estudos remotos […] Só se tornou possível porque uma amiga, que morava comigo […] me emprestou o iPad dela. Porque logo na sequência, que fechou tudo, o meu celular danificou, e eu não levei notebook para Portugal, porque eu não tinha. (Brasileira, mobilidade de crédito, Graduação, Évora)

[…] o meu estudo foi na Biblioteca, perto da minha da minha casa e da universidade também. Então, quando começou (a pandemia), a gente não tinha internet […] E a gente ia entregar o apartamento em junho, então não tinha como contratar um pacote de internet, porque tudo era contrato de um ano. Aí a gente resolveu ficar sem internet mesmo. Depois, o meu namorado conseguiu contato com uma vizinha […] e conseguiu a senha dela para usar a noite, a partir das 7h da noite, que era quando o home office dela acabava. (Brasileira, mobilidade de grau, Doutorado, Lisboa)

Assim, apesar de 46,1% da população mundial já possuir acesso à internet desde julho de 2016 (Amaral, 2016), o fato é que esse acesso não contempla todos os grupos sociais de igual forma, como, aliás, já havia mencionado Papacharissi (2009).

Se nos atentarmos para o caso dos estudantes que regressaram aos seus países de origem, essa situação pode ser ainda mais desigual. Considerando-se que, em 2009, a difusão digital global apresentava-se da seguinte forma: 70% América do Norte, 54% Oceânia, 39% Europa, 10,7% Ásia, 3,6% África, 17,3% América Latina e 10% Médio Oriente (Papacharissi, 2009); e que, em 2016, a Europa, a Oceânia e a América do Norte continuavam a se destacar como as regiões do mundo com maior taxa de penetração de acesso à internet (Amaral, 2016); ao sabermos que a maioria dos estudantes internacionais que se encontra no ensino superior português é oriunda do Brasil e de países africanos como Angola e Cabo Verde (Iorio, 2018), é expectável que muitos desses estudantes não tenham, nos seus países de origem, os mesmos recursos e condições que têm em Portugal.

Como referiu uma estudante angolana que está em Évora e que também é professora em Angola: “[…] a realidade dos alunos em Angola é de falta de água e luz. Então, mais da metade dos nossos alunos não tem computador […] (Angolana, mobilidade grau, doutorado, Évora). Diante disso, essa estudante preferiu continuar em Portugal até concluir o doutorado, uma vez que: “[…] eu tenho a certeza que se eu chegar a casa, eu não consigo terminar, porque tenho muitos problemas à minha espera.” (idem).

Também um estudante que está na Guiné-Bissau porque não conseguiu o visto para Portugal5 afirmou que, mesmo inscrito na Universidade de Évora, não conseguiu participar nas aulas a distância do seu país de origem:

Tentei um módulo, mas infelizmente não consegui. E não consegui porque o sistema informático… eu não conheço muito bem… não sei muito bem como isso funciona […] (Guineense, mobilidade de grau, graduação, Évora)

Para além de esse estudante não se sentir à vontade com os métodos de ensino a distância, ele revelou que estar na Guiné-Bissau acresce outra dificuldade:

Aqui a internet é muito cara. Apesar de eu ter o meu computador, acessar a internet é muito complicado. Custa muito dinheiro. E, mesmo tendo internet, não funciona de uma forma muito, muito, rápida, e isso dificulta bastante. (Idem)

Por outro lado, para alguns dos estudantes que possuem os recursos e a infraestrutura assegurados, a aprendizagem a distância não foi tida como algo preocupante ou mesmo problemático, antes pelo contrário: “Eu não sinto nenhum tipo de deficiência pedagógica, não […] Acho que a dificuldade, para quem está familiarizado com a tecnologia, ela não existe.” (Brasileiro, mobilidade de grau, Doutorado, ainda no Brasil).

Uma estudante chilena referiu mesmo que uma das vantagens de estar tendo aulas da sua residência em Lisboa é: “[…] não ter tanto problema, porque a internet da faculdade está mal.” (Chilena, mobilidade de grau, mestrado, Lisboa). Isso revela que, apesar de antes da pandemia essa estudante utilizar as infraestruturas da faculdade, ela não as considerava satisfatórias.

Ainda que alguns estudantes reconheçam as vantagens do uso das ferramentas digitais para a aprendizagem no ensino superior, outros também revelaram que, em termos das aulas, os benefícios não são os mesmos:

As aulas virtuais, eu achei que empobreceu bastante. Mas os eventos, a gente está tendo evento dentro de casa! Antigamente a gente tinha que ir atrás, no congresso tal, para conseguir ter acesso ao professor tal, agora está sendo bem mais vantajoso! (Brasileira, mobilidade de grau, doutorado, Lisboa)

Observou-se, portanto, que para além de possuírem os recursos e as condições necessárias para a aprendizagem a distância (o que, em geral, não se verificou nos estudantes africanos), quem não está a ter aulas a distância acabou por reconhecer mais os benefícios/vantagens das atividades remotas ligadas à aprendizagem do que aqueles que estão a ter aulas online.

Nesse sentido, como referiu a Vice-Reitora da Universidade de Coimbra, Cristina Albuquerque, durante o seminário “O Admirável Mundo Novo da Educação Superior em Ambientes Híbridos” (2020), é preciso ter em atenção que “nem todos os estudantes estão tão preparados, assim, para esse mundo de ensino digital”.

Por isso, políticas de infoinclusão têm que ser pensadas, uma vez que as desigualdades no acesso às tecnologias são inerentes aos estudantes provenientes de diferentes países.

AULAS E INTERAÇÃO NO AMBIENTE DIGITAL

A má qualidade de internet e o pouco à vontade com as plataformas que estão a ser utilizadas para as aulas a distância também podem prejudicar a participação e a interação dos alunos no ambiente digital. Como referiu uma estudante que está a cursar o mestrado de Angola, pois ainda não conseguiu obter o visto de estudos para vir para Portugal,

[…] às vezes nós queremos participar das aulas mas não conseguimos porque perdemos rede. A mensagem (do professor) chega muito tarde e a nossa explanação também. É um bloqueio que não nos faz participar das aulas ativamente. (Angolana, mobilidade de grau, mestrado, Lisboa)

Além disso, para muitos estudantes, as desvantagens das aulas remotas prendem-se com as dinâmicas das aulas. Estas podem ser comprometidas pelo fato de muitos professores não estarem familiarizados com o método de ensino a distância: “[…] o professor ficava em frente ao vídeo, como se ele estivesse na sala de aula falando para uma única pessoa. Ele não interagia […]” (brasileira, mobilidade de grau, mestrado, Lisboa).

Observou-se, também, que as aulas online contribuem para que haja menor interação/participação dos estudantes, uma vez que estes, habituados ao ensino presencial, muitas vezes se sentem inibidos (ou menos confiantes) para participar nas aulas. Além disso, a não obrigatoriedade do uso da câmera durante as aulas online também colabora para a menor interação.

Aqui importa ressaltar que a crítica à baixa participação dos alunos em sala de aula já havia sido feita por estudantes brasileiros no ensino superior português (Iorio, 2018). Estes, em referência ao educador, pedagogo e filósofo brasileiro Paulo Freire (1997), chamaram a educação em Portugal de “Educação Bancária”, afirmando que esta se pauta pela verticalidade da relação entre educador e educando. Ou seja, o primeiro “deposita” o conhecimento e não estimula a sua construção com base na interação com o segundo.

Durante o seminário anteriormente citado (2020), a Responsável Científica da Comissão Europeia, Andreia Inamorato dos Santos, reforçou essa ideia dizendo que “Portugal até hoje tem sido criticada pela metodologia do ‘ensino bancário’ que praticava no ensino presencial”. Assim, referiu uma das estudantes entrevistadas:

[…] aqui em Portugal o professor preocupa-se em mostrar que ele sabe […]. Quando está a dar aula, quando está a dar uma conferência, ele está mais preocupado em mostrar o seu conhecimento do que explicar conceitos para o aluno entender. (Angolana, mobilidade de grau, doutorado, Lisboa)

Logo, apesar de a distância física implicar maior distanciamento entre professores e alunos, o déficit de participação desses estudantes não é algo que tenha surgido nas aulas remotas, mas que pode ter sido potencializado por esse método de ensino:

[…] não tens interação de partilha […]. É mais difícil de ler quando alguém quer falar, quando alguém quer dizer alguma coisa […]. Essas coisas que se perdem e, para mim, é mais difícil, embora eu também não tenha confiança em participar nas aulas presenciais. (Chilena, mobilidade de grau, mestrado, Lisboa)

[…] é como se houvesse um filtro ali, houvesse uma terceira pessoa a controlar-nos, a auscultar-nos […] então, não queremos fazer figuras tristes. Eu própria, por exemplo, ontem inibi-me muitas vezes de questionar coisas, porque tinha outras pessoas, não era uma sala […] Até responder coisas que não temos certeza, fica aí a dúvida, mais não queremos fazer más figuras […] Então, inibe muito.” (Angolana, mobilidade de grau, doutoramento, Évora)

Alguns estudantes descrevem, portanto, maior constrangimento nas participações em aulas, conferências e seminários online, pois sabem que estes podem ser gravados.

Por sua vez, essa falta de participação e interação acaba por prejudicar também a interajuda que poderia haver dos colegas que percebem melhor a utilização das ferramentas digitais para com aqueles que não têm essa mesma facilidade.

Com a introdução do método de ensino híbrido ou misto no ano letivo de 2020/2021 (quando muitas faculdades e institutos dividiram as turmas, e estas passaram a alternar as suas participações entre aulas presenciais e online), o fato de os professores terem de ministrar aulas para dois públicos que estavam em espaços diferentes ao mesmo tempo gerou novas críticas por parte dos estudantes. Aqueles que ainda não conseguiram concretizar as suas mobilidades territoriais para Portugal e veem-se obrigados a assistir todas as aulas remotamente creem não receber a mesma atenção que os professores dispensam àqueles que assistem às aulas presencialmente: “Às vezes os professores esquecem-se que têm estudantes no Zoom, porque prestam mais atenção aos estudantes que estão na sala.” (Angolana, mobilidade de grau, mestrado, ainda em Angola à espera do visto).

Entretanto, não deixando de reconhecer os impedimentos de ordem técnica e estrutural, para além dos constrangimentos ao nível das interações, alguns entrevistados identificaram certos aspetos positivos das aulas online, como a economia de tempo com deslocações e a possibilidade e o conforto de acessar o conteúdo em qualquer lugar e a qualquer momento:

A vantagem é a deslocação, não tens que deslocar. Tu consegues gravar a aula para assistir mais tarde, se não tiveres disponibilidade para assistir naquele momento; podes estar em qualquer sítio e assistir à aula; podes acordar mesmo a faltar um minuto para a aula começar… sem estresse… e podes fazer outras atividades, não estou a dizer que vais descuidar os conteúdos da aula, mas podes fazer outra atividade e, ao mesmo tempo, estar a assistir uma aula. (Cabo-verdiana, mobilidade de grau, graduação, Évora)

O lado bom é que você não tem deslocamento, você economiza com deslocamento, você economiza com alimentação, porque você vai fazer a sua alimentação em casa, né… Você economiza tempo… E aí pode ser empregado em outra coisa… em outros esforços, inclusive, até mesmo, estudar. (Brasileiro, mobilidade de grau, graduação, Porto)

Outros estudantes, que tiveram a oportunidade de estar com familiares em outros países durante este período, revelaram que:

[…] acho que a vantagem foi isso, poder estar em outro lugar (Inglaterra) e estudar ao mesmo tempo, sem perder o ano, sem perder as cadeiras. (Argentina/italiana, mobilidade de grau, graduação, Évora)

Por exemplo, o meu namorado mora na Alemanha, e eu posso viajar para visitar ele sem perder alguma coisa que estou a seguir… Sendo as coisas muito mais virtuais do que antes, as pessoas não perdem apontamentos… Eu posso seguir os seminários desde a Alemanha mesmo. (Italiana, mobilidade de grau, mestrado, Lisboa)

Além disso, como já havia referido Lim (s.d.), a segurança corporal, em tempos de pandemia, é vista como uma vantagem do uso desse método de ensino. Assim, uma estudante que ainda em está em seu país de origem revelou que, “se me derem o visto hoje, eu não vou, porque o número (de infectados em Portugal) está a ser muito elevado!” (Angolana, mobilidade de grau, mestrado, ainda em Angola à espera do visto).

DESAFIOS DE FAZER OU ESTAR EM MOBILIDADE EM TEMPOS DE INCERTEZA

A grande maioria dos estudantes que respondeu ao questionário online optou pela permanência em Portugal nos primeiros meses da pandemia. Apenas 15 (2,1%) preferiram (ou tiveram que) retornar aos seus países de origem. Contudo, os projetos de mobilidade dos estudantes que permaneceram em Portugal foram sendo reavaliados e reelaborados ao longo do período entre o início da pandemia e janeiro de 2021. No caso dos estudantes de origem brasileira que escolheram Portugal como o país de destino, sobretudo por causa da língua e do custo de vida, as variações cambiais dos meses em que as entrevistas foram realizadas contribuíram para a reavaliação dos seus projetos de mobilidade estudantil em Portugal. Dois desses estudantes, ao serem interrogados se a pandemia afetou a sua permanência em Portugal, referiram:

[Não afetou] por um triz, por um fio, por causa do câmbio. Para você ter uma ideia, nós chegamos aqui com o câmbio 4,30 e hoje o câmbio tá 6,50 (com 4,30 reais comprava-se 1 euro e agora é preciso de 6,50 reais para comprar o mesmo euro), então, não tem como, o recurso é limitado. Afetou e eu quase fui embora. (Brasileira, mobilidade de grau, mestrado, Lisboa)

[…] eu juntei um pé de meia e vim. Só que o meu cálculo todo era feito com a perspectiva de que um euro chegaria, no máximo, a 5 reais. Eu não imaginava que ia acontecer o que aconteceu… Aí eu fui pego desprevenido… O euro disparando e aí o desespero. Eu tive que mudar de curso por causa disso, porque as propinas (mensalidades) estavam a aumentar… Eles fizeram um auxílio emergencial para a COVID, e vários estudantes internacionais receberam esse auxílio, mas eu, por exemplo, não consegui… Eles pediam uns documentos que, às vezes, a gente não tem… IRS (imposto de renda), justificativa… (Brasileiro, mobilidade de grau, graduação, Porto. Teve que mudar do curso de Engenharia para o de Letras, porque a mensalidade de Letras é mais barata)

Os estudantes que ainda se encontravam em seus países de origem, mas pensavam em vir estudar em Portugal (muitos dos quais já haviam até mesmo sido admitidos no ensino superior português), em razão da pandemia tiveram que alterar, adiar ou mesmo cancelar os seus projetos de estudar no exterior. Foi, por exemplo, o caso de uma estudante admitida no mestrado em Portugal, mas que, por causa da pandemia, não conseguiu o visto para concretizar a sua mobilidade:

Eu tinha o objetivo de estar em Lisboa, e para além do curso de mestrado, fazer um curso de Comunicação… É uma das coisas que eu tracei e não consegui concluir. Podia fazer um curso básico de Comunicação e Marketing. Também não sei falar inglês, também pensei que nesses dois anos eu podia entrar numa escola de inglês, então é uma coisa que a pandemia mesmo bloqueou. (Angolana, mobilidade de grau, mestrado, ainda em Angola)

Já para um estudante guineense, que também não conseguiu o visto para vir para Portugal, a pandemia fez com ele tivesse que, para já, adiar os seus planos de estudos em Portugal, uma vez que ele não possui as condições necessárias para acompanhar as aulas a distância. Esse estudante havia solicitado a transferência de uma universidade na Guiné-Bissau para uma universidade em Portugal, e apesar de ter sido aceito pela universidade portuguesa não conseguiu concretizar o seu projeto de mobilidade: “Adiou os meus planos, porque a intenção era eu terminar a licenciatura (graduação) este ano lá, em Évora, mas devido a pandemia não foi o caso.” (Guineense, mobilidade de grau, graduação, ainda na Guiné-Bissau).

Por fim, uma estudante brasileira que pensava em fazer um mestrado em Portugal preferiu cancelar esse projeto por conta da pandemia, podendo ou não retomar esse projeto em 2022, dependendo da evolução da situação:

[…] eu fiz a minha inscrição, mas logo em seguida eu já fiquei com um pouco de insegurança por conta da COVID. Aqui (no Brasil) a situação só aumentava… Aí eu pensei, bom, eu acho que isso vai virar uma insegurança muito grande, não sabemos se vai ter aula presencial, se vai ser aula online, tem também o câmbio, né, que faz uma grande diferença para nós, brasileiros, então, de repente eu teria que ficar em Portugal, não poderia voltar, então foram vários fatores, assim, que eu fiquei um pouco preocupada. Então me gerou uma insegurança muito grande por conta da COVID mesmo, por conta da situação de pandemia, e eu acabei desistindo, deixando, prorrogando agora, para este ano, para, se tudo dar certo, aí eu entrar no final do ano e fazer o próximo todo, né, de 2022. (Brasileira/italiana, mobilidade de grau, mestrado, ainda no Brasil)

Aqui, uma vez mais, observamos a preocupação com a segurança corporal, já referida por Lim (s.d.).

CONCLUSÕES

Apesar de a pandemia da COVID-19 ter imposto uma imobilidade territorial, muitos estudantes que estavam em mobilidade estudantil (de grau ou crédito) em Portugal conseguiram manter os seus projetos iniciais. O acesso às tecnologias (sobretudo o acesso a um computador e à internet) possibilitou que, mesmo imóveis (nos seus países de origem ou em Portugal), eles conseguissem continuar com os estudos. Para eles, o “impacto positivo da COVID” foi a “naturalização” do estudo remoto como forma de estudar em outro país, algo que até então cabia, somente, às universidades de ensino a distância.

No entanto, as desigualdades existentes entre estudantes de diferentes nacionalidades também foram acentuadas durante a pandemia, uma vez que aqueles que não tinham os equipamentos e o acesso à internet necessários para manterem os seus estudos a distância, tiveram os seus projetos de mobilidade estudantil dificultados e, muitas vezes, impossibilitados.

Os jovens de origem africana que, apesar de admitidos no ensino superior português, ainda não haviam conseguido o visto para Portugal, acreditam que teriam melhor aproveitamento escolar se estivessem em Portugal, ainda que as aulas fossem online, uma vez que a qualidade da internet e o custo desta nos seus países de origem não têm possibilitado esse aproveitamento. Contudo, o pouco à vontade que estes mesmos jovens demonstraram estar com a utilização das plataformas de ensino digital pode dificultar, ou mesmo impossibilitar, a conclusão dos seus projetos de mobilidade estudantil, ainda que já se encontrem em território português. Como já haviam referido Roos Breines et al., (2019), para além de terem acesso às infraestruturas, esses estudantes precisam do apoio das suas instituições de ensino, e estas nem sempre têm a infraestrutura necessária para garantir tal apoio.

Entretanto, se por um lado a pandemia imposta pela COVID-19 pode ser vista como um período em que aqueles que têm condições socioeconômicas mais favoráveis têm também mais oportunidades para explorar as tecnologias e os diferentes métodos de ensino que com ela emergiram; por outro lado, as diferenças sociais, muitas vezes inerentes aos países de origem desses estudantes, também ficaram mais evidentes.

Desse modo, a mobilidade estudantil internacional irá depender do acesso que os estudantes tiverem aos equipamentos necessários para conseguirem realizar esse “novo” modelo de mobilidade, e da existência de condições para operacionalizar esse acesso (Papacharissi, 2009; Amaral, 2016).

Ao pensar nas condições e competências desses alunos, percebemos que a educação neste contexto diversificado irá exigir dos professores uma nova forma de ensinar, na qual também as suas competências digitais, metodológicas e pedagógicas deverão ser revisitadas. Se a integração da multiculturalidade já era um desafio nas aulas presenciais, agora, no meio digital, este desafio será ainda maior.

Assim sendo, não se trata apenas de adaptar aquilo que vem sendo feito no ensino presencial para o ensino remoto, porque não se trata somente de um “novo” modelo de ensino agora mais tecnológico, mas sim de, uma vez mais, pensar nos estudantes — que já não estavam satisfeitos com o “velho” método de ensino presencial (Iorio, 2018).

RECOMENDAÇÕES FUTURAS

Este estudo demonstrou que a pandemia teve impactos desestabilizadores nos estudantes internacionais do ensino superior em Portugal. As entrevistas realizadas com esses estudantes permitiu-nos identificar que ainda há muitas indefinições sobre o seu futuro, e que isso lhes tem gerado algum desconforto. Os dados também permitiram compreender que existem lacunas a serem preenchidas nos atuais sistemas de apoio aos estudantes internacionais em Portugal, e que isso terá implicações na internacionalização do sistema de ensino no país (que agora se pretende híbrido), se nada for feito a esse respeito.

Os resultados revelam, portanto, que é urgente as instituições de ensino repensarem estratégias para aumentar o acesso e o sucesso de todos os alunos, especialmente por se terem evidenciado desigualdades estruturais que se têm perpetuado por meio das desigualdades socioeconômicas, inerentes às realidades de cada país. Nesse sentido, é preciso olhar de maneira crítica para as vantagens e desvantagens do ensino digital e a distância, de forma a não contribuir para “novas” formas de exclusão. A pandemia e as experiências desses estudantes com o ensino online revelaram, assim, muitos dos mecanismos causais que têm perpetuado essas assimetrias.

As entrevistas permitiram-nos olhar para onde esses alunos estão posicionados, que recursos possuem e quais as oportunidades e desafios que terão com o ensino e a aprendizagem a distância. É preciso, agora, admitir que os estudantes que não dispõem de recursos e/ou a infraestrutura necessária para acederem ao ensino a distância irão ficar ainda mais para trás e poderão, uma vez mais, ser excluídos.

1Importa saber que o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) em Portugal, a partir de 25 de novembro de 2020, facilitou a renovação da autorização de residência para os estudantes que já se encontravam em território nacional, por meio de uma nova funcionalidade do Portal do SEF, que permite a renovação automática desse título.

2Ver notícia sobre o impacto das medidas de confinamento em Portugal em: https://observador.pt/2020/05/31/covid-19-os-tres-meses-que-mudaram-tudo-dia-a-dia/. Acesso em: 04 jan. 2021.

3O Estado de Emergência em Portugal é um estado de exceção, que incide, nomeadamente, sobre a proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos. É declarado pelo Presidente da República após audição do Governo e aprovação da Assembleia da República e não pode ter duração superior a 15 dias, ainda que possa ser renovado. O primeiro Estado de Emergência instituído em Portugal em razão da pandemia de COVID-19 vigorou entre 19 de março e 2 de maio de 2020.

4A segunda “vaga” da pandemia em Portugal obrigou a um novo Estado de Emergência, que vigorou entre 9 de novembro de 2020 e 7 de janeiro de 2021. Posteriormente houve a sua renovação por um período de oito dias, mas em 16 de janeiro de 2021 se retomou a periodicidade das renovações anteriores (ou seja, de 15 em 15 dias). Até a entrega deste artigo, o Estado de Emergência ainda vigorava em Portugal.

5Este estudante referiu que a morosidade na autorização de vistos para Portugal faz parte do “funcionamento da Embaixada”, mas que “a pandemia veio piorar tudo”.

Financiamento: O estudo não recebeu financiamento.

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Recebido: 12 de Abril de 2021; Aceito: 01 de Dezembro de 2021

Juliana Chatti Iorio é doutora em Geografia Humana – Migrações pela Universidade de Lisboa (Portugal). E-mail: julianaiorio@campus.ul.pt

Adélia Verônica Silva é doutora em Geografia Humana – Migrações pela Universidade de Lisboa (Portugal). E-mail: adeliasilva@campus.ul.pt

Conflitos de interesse: As autoras declaram que não possuem nenhum interesse comercial ou associativo que represente conflito de interesses em relação ao manuscrito.

Contribuições das autoras: Escrita – Primeira Redação: Iorio, J. C.; Escrita – Segunda Redação: Silva, A. V.; Conceituação, Investigação, Análise Formal, Metodologia, Revisão e Edição: Iorio, J. C. e Silva, A. V.

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