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Revista Brasileira de Educação

versión impresa ISSN 1413-2478versión On-line ISSN 1809-449X

Rev. Bras. Educ. vol.27  Rio de Janeiro  2022  Epub 11-Nov-2022

https://doi.org/10.1590/s1413-24782022270035 

Artigos

As bibliotecas na Instrução Pública no Maranhão Império: livros, leituras e leitores

LAS BIBLIOTECAS EN LA INSTRUCCIÓN PÚBLICA EN EL MARANHÃO IMPERIO: LIBROS, LECTURAS Y LECTORES

Samuel Luis Velázquez CastellanosI 
http://orcid.org/0000-0003-0849-348X

IUniversidade Federal do Maranhão, São Luís, MA, Brasil.


RESUMO

Neste artigo, descrevem-se as bibliotecas maranhenses no período imperial como espaços de sociabilidade segundo sua natureza, função e projeção, analisando-se o seu papel na instrução pública na província do Maranhão. Identificam-se e comparam-se estratégias em uso pelo Gabinete Português de Leitura, pela Biblioteca Pública Provincial e pela Biblioteca Popular Maranhense para a sua instauração, funcionamento e acesso, que estimularam a formação de leitores e práticas de leituras distintas em públicos-alvo diferenciados. Utiliza-se a história cultural como abordagem teórico-metodológica, cruzando-se diferentes fontes: relatórios/ofícios dos presidentes da província e dos inspetores da instrução pública, leis e regulamentos da instrução, livros de minutas, a imprensa local e a literatura regional.

PALAVRAS-CHAVE história das bibliotecas; práticas leitoras; instrução pública; Maranhão Império

RESUMEN

En este artículo, se comprenden las bibliotecas de Maranhão en el período imperial como espacios de sociabilidad según la naturaleza, función y proyección de las mismas, analizando el papel de estas instituciones en la instrucción pública en la provincia de Maranhão. Se identifican y comparan estrategias usadas por el Gabinete Portugués de Lectura, por la Biblioteca Pública Provincial y la Biblioteca Popular Maranhense para la instauración, funcionamiento y acceso que estimularon la formación de lectores y las prácticas de lectura distintas en diferentes públicos. Se utiliza la historia cultural como enfoque teórico-metodológico, cruzándose diferentes fuentes: relatorios/oficios de los presidentes provinciales e inspectores de la instrucción, leyes y reglamentos de la instrucción, libros de minutas, la prensa local y la literatura regional.

PALABRAS CLAVE historia de las bibliotecas; prácticas de lectura; instrucción pública; Maranhão Imperio

ABSTRACT

This article describes the libraries of Maranhão in the Brazilian Imperial period as spaces of sociability according to their nature, function and projection, analyzing the role of these institutions in public education in the province of Maranhão. It identifies and compares the strategies in use by the Portuguese Reading Office, the Provincial Public Library and the Popular Library of Maranhão for their establishment, operation and access, stimulating the formation of readers and distinct reading practices in different target audiences. Cultural history is used as a theoretical-methodological approach, crossing different sources: reports/official letters from provincial presidents and public education inspectors, education laws and regulations, minute books, the local press and regional literature.

KEYWORDS history of libraries; reading practices; public instruction; Maranhão Empire

INTRODUÇÃO

O debate sobre as diversas bibliotecas instauradas no Maranhão Império como espaços de sociabilidade enquanto natureza, função e projeção, bem como sobre as obras produzidas e consumidas — especificamente os livros escolares escritos, editados, divulgados e postos em circulação por escritores, editores, políticos e professores/as nacionais e locais — fez-me lançar mão de uma série de dispositivos armazenados nos atuais lugares de memória (bibliotecas e arquivo público) e cruzá-los com informações expressas em outros suportes de diferente natureza e procedência. Essa documentação não deixa de fornecer algumas representações sobre o livro e a leitura entre lugares que marcaram presença, nem de apontar situações de práticas leitoras não reconhecidas nem legitimadas pela cultura não popular, nem, ainda, de dar indícios sobre os espaços dedicados à guarda de livros e ao fomento da instrução pública via leitura: o Gabinete Português de Leitura e a Biblioteca Pública Provincial; a Biblioteca Popular Maranhense e a Militar; as bibliotecas escolares instauradas no Instituto Literário Maranhense, na Escola Agrícola de Cutim e no Liceu Maranhense, como também as concebidas/planejadas para escolas de primeiras letras (Castellanos, 2010, 2016).

A identificação de temáticas sobre o livro, a leitura e suas práticas nos anúncios da imprensa, a apreciação de discursos ou críticas contidos nos jornais locais (seja com respeito ao uso desses artefatos e aos lugares de guarda, seja em referência à situação das diversas bibliotecas como espaços de leitura, seus regimentos e modus operandi), segundo o público-alvo que intentavam atingir, assim como a análise e a interpretação das avaliações registradas pelos presidentes da província ou pelos inspetores da instrução pública (em relatórios sobre os livros escolares), e mesmo o entendimento das concepções, queixas e denúncias ou das insatisfações apregoadas pelos/as professores/as, delegados literários e bibliotecários expostos nas correspondências e em obras que tratam o assunto de forma lacunar auxiliaram-me a compreender vários aspectos, entre eles:

  • a variedade dos suportes e seu consumo;

  • as dinâmicas estabelecidas entre o livro, a leitura e o leitor nas diferentes bibliotecas instauradas como espaços de sociabilidade;

  • as estratégias de imposição do escrito autorizado e a permissão para tal leitura; e

  • as táticas de apropriação dos sujeitos envolvidos no circuito dos livros e dos escritos, entre tintas e tipos — mesmo que de forma tênue.

No período, a produção, a circulação e a distribuição do impresso, especificamente dos jornais, foram tomando um lugar significativo e proporções nunca antes vistas. O ambiente cultural era caracterizado pelo considerável dinamismo refletido no florescimento de várias sociedades recreativas e literárias, na recorrência de palestras e conferências sobre literatura, política e ciência e pela publicação de obras nativas e de outras províncias. Eram práticas de leitura e apropriações do escrito-lido desenvolvidas pela mediação dos diferentes suportes culturais, que tinham como objetivo principal expressar as inquietudes econômicas, políticas, sociais e culturais baseadas nas vicissitudes alimentadas por grupos e frações de interesses antagônicos e discordantes. Mas até que ponto as diversas bibliotecas instauradas no período como lugares de leitura influenciaram a circulação do livro e a formação leitora dos/as maranhenses? Como era o funcionamento desses estabelecimentos e em que medida os indivíduos tinham acesso a eles? A instauração e a manutenção dessas bibliotecas incidiram na formação do/a leitor/a e da instrução no Maranhão Império? Nesse sentido, apoiando-me na história cultural como abordagem teórico-metodológica, analiso, identifico e reconheço esses espaços como lugares que incentivaram diferentes práticas de leituras e diversos leitores com níveis diferenciados e que contribuíram para a instrução pública maranhense da província. Isso, muito embora o escasso referencial teórico que aborda os lugares maranhenses de guarda e de leitura nessa temporalidade e a esparsa documentação oficial, de difícil localização, sobre essas instituições se constituam em impeditivos de uma análise mais verticalizada no que se refere ao acesso, à circulação e ao consumo dos livros escolares nesses espaços de sociabilidade.

O GABINETE PORTUGUÊS DE LEITURA

O Gabinete Português de Leitura, fundado em 9 outubro de 1853, tinha como fim disseminar o gosto pela leitura, propiciando ao público bons livros da sua variada biblioteca, além de patrióticas sessões cívicas e conferências ilustrativas, embora existam poucas informações no Arquivo Público do Estado (o seu estatuto e regulamento) e na Biblioteca Pública Benedito Leite (o seu catálogo). Nos Estatutos Provisórios da sociedade (no art. II do título I), ficam explícitos os fins propostos para fomentar a instrução e os meios utilizados nesse espaço de sociabilidade para objetivar o seu funcionamento e concretizar os seus desígnios, fazendo-se necessário: comprar livros escolhidos que tratassem de ciência, literatura e artes; subscrever os mais creditados periódicos nacionais e estrangeiros concernentes a essas áreas do saber; e instruir pelos meios possíveis e compatíveis aqueles acionistas que o desejassem (Maranhão, Estatutos Provisórios do Gabinete Português de Leitura, 1853)1 (Figura 1).

Fonte: Maranhão, Estatutos Provisórios do Gabinete Português de Leitura, 1853, p. 1.

Figura 1 Estatutos Provisórios do Gabinete Português de Leitura, São Luís, MA. 

O acervo era formado por 4 mil volumes em 1866 e foi incrementado em 12 anos, ao se ampliar o quantitativo de títulos para 4.367, distribuídos em 8 mil exemplares (Almanak do Diário do Maranhão, 1866); isto é, o Gabinete achava-se “muito augmentado e consideravelmente melhorado”, na opinião de José Rodrigues de Araujo, o guarda-livros da biblioteca (Almanak do Diário do Maranhão, 1878, p. 115). Esses dados, ao serem comparados com os relatórios expostos por Fabio Hostilio de Moraes Rego (1875) à Exposição Nacional e por Cesar Augusto Marques (1876) à Exposição de Filadélfia, apresentam discrepâncias quanto ao inventário das obras. As notificações entre esses autores diferem, destoando também das informações registradas pelo guarda-livros da associação. Se, para Rego, o Gabinete Português de Leitura continha 5.479 volumes em 1875, para Marques, no ano posterior, esse espaço continha 4 mil obras referentes a 11 mil volumes.

Apesar do desencontro das informações contidas no inventário e nos relatórios apresentados às exposições sobre o cômputo de títulos e volumes nesse espaço cultural, fosse pela compra e pelas doações de novas obras, fosse pelos extravios ou deteriorações, o importante é entender que esse lugar de livros, de leitura e de leitores/as só podia ter como sócios os “súbditos portugueses”, de acordo com o regulamento e os estatutos. Entretanto, qualquer pessoa que tivesse bom comportamento e boa aparência poderia se subscrever e usufruir da instituição, independentemente do sexo e da nacionalidade, como determinava o título XVIII do artigo XXI dos seus estatutos:

§ 1 Que sejam pessoas bem morigeradas e de occupação honesta.

§ 2 Que tenhão meios sufficientes para responder por qualquer extravio que dêem aos livros, ou objectos que levarem do Gabinete.

§ 3 Que paguem adiantado o importe da subscripção que será — por mez 1$300 reis, por 6 meses 6$000 reis, e por um anno 12$000 reis”. (Maranhão, Estatutos Provisórios do Gabinete Português de Leitura, 1853, p. 7, grifo meu)

Segundo o artigo 8° do regulamento, “os sócios e subscriptores [poderiam] levar para ler em suas casas um volume por cada vez, [não podendo] exigir outro antes de restituir o que tiverem cedido” (Almanak do Diário do Maranhão, 1866, p. 98) pelo período de quatro a oito dias, sendo penalizados com multa de 2$000 réis pela perda ou destruição do volume, cobrada à parte (!) do valor das subscrições feitas por trimestres. Ademais, pelo artigo 5°, era explicitamente proibido mexer nas estantes, “devendo os livros ser [solicitados] ao Guarda, e a elle restituídos para os collocar na ordem estabelecida […] devendo todos estar em necessário silêncio, afim de não [perturbarem] os leitores” (Maranhão, Estatutos Provisórios do Gabinete Português de Leitura, 1853, p. 7). Outra especificidade da biblioteca consistia na proibição de qualquer leitura no estabelecimento que não fosse das obras permitidas, ficando estabelecido, no artigo 7°, que só podiam ser lidos no Gabinete “os dicionários, atlas, livros de consulta, assim como os que no catálogo tiverem a nota (N. S.)2 [;] os periódicos e folhas avulsas [seriam] conservados sobre as mezas á disposição dos leitores por espaços de 15 dias, sendo depois emmasados” (Almanak do Diário do Maranhão, 1866, p. 100). As regras impostas no regulamento parecem ter sido adotadas para controlar a entrada de público vinculado ou não àinstituição, em função do espaço limitado da biblioteca, para precaver a leitura das obras e/ou como estratégia de manter a dinâmica de empréstimo/devolução visando à circularidade dos livros, à captação de novos/as leitores/as e, portanto, à entrada de novos subscritores; ainda que Marques (1876, p. 48) já tivesse informado, no seu relatório, que esse lugar de leitura “[fosse] frequentado regularmente por 5 ou 6 pessoas por noite”.

Com base no regulamento e nos estatutos, posso apreciar as pretendidas estratégias de imposição sobre os livros e sobre as leituras, como também as normas de comportamento que deveriam seguir os leitores/as e o público específico com o qual a instituição interagia. Embora não tenha tido acesso ao catálogo para analisar a natureza dos suportes permitidos no ambiente e identificar os títulos autorizados para o leitor — na tentativa de estabelecer relações entre as leituras permitidas nessa biblioteca particular e os livros indicados, aprovados, adotados e distribuídos na instrução pública — pelo menos avistei algumas obras recebidas, doadas ou importadas para a instituição por meio dos anúncios da impressa local.

Dos livros adquiridos pelo Gabinete Português de Leitura, anunciados n'O Publicador Maranhense (1857), posso citar: O descobrimento da America, por Campe (dois volumes); O descobrimento de Portugal, por Damião Antonio de Lemos (20 volumes); a História da Revolução Francesa, por Desodoards; a História natural, de Plínio (vertida do latim, dois volumes); a História da independência de America, por C. Botta. Já em outras áreas do conhecimento, aponto para o Compêndio de geografia, por Geraldes (um volume) e a Geografia (em latim e grego), de Strabão (um volume); o Dicionário de botânica, por Benevides (um volume) e a Methamorphoses de Ovídio, por Castilho (um volume); entre outros assuntos.

Entre avisos e anúncios de naturezas várias e na disputa de diversos jornais por espaços de divulgação, noticiavam-se as tentativas de reorganização e a operosidade da instituição promovida por alguns associados para garantir a sua existência (depois de funcionar 18 anos de forma ininterrupta), conforme declarações da imprensa. Segundo O Publicador Maranhense (1871, p. 72, grifo meu), o agenciamento de conferências e a promoção de cursos “para a instrução de sócios e outras pessoas que [quisessem] aproveitar essa oportunidade [não sendo difícil] para aqueles quem tem fortuna […] ajudar a instituição digna de proteção pública”, constituíam-se em estratégias que garantiriam a manutenção e a funcionalidade da instituição como lugar de livros e leituras e como ambiente propício para leitores e leitoras. Isso porque, se não foram encontrados achados que confirmassem as visitas femininas, nem por isso há a possibilidade de descarte, uma vez que as mulheres foram consideradas no próprio estatuto e poderiam ser usuárias não legitimadas dos artefatos culturais nos seus lares, embora contempladas veladamente no sistema de empréstimo.

Ao observar nos títulos divulgados que as temáticas expostas correspondiam às diversas esferas do saber e a campos disciplinares específicos (história, gramática, geografia, botânica, filosofia e religião), com base no seu acervo, não só considero o Gabinete como um ambiente de formação do leitor e um espaço de sociabilidade como também como um lugar de consulta e auxílio na instrução maranhense, já que parte do seu estoque é formado por livros escolares ou obras utilizadas no ensino. Por outro lado, os diferentes gêneros de escrita e temáticas de entretenimento — a exemplo de Último rei dos franceses, por Alexandre Dumas (quatro volumes), as Poesias, de Faustino X. de Novaes (um volume) e de Antonio da Cruz e Silva (seis volumes) e a Revista Popular, de I. M. Campello (um volume) (O Publicador Maranhense, 1857, p. 3) — ao fazerem parte da sua aquisição “com o fim de offerecer aos seus associados e subcriptores leitura amena e agradável, havendo muito cuidado no escolher das obras” (Almanak do Diário do Maranhão, 1878, p. 115), foram divulgados, postos em circulação e consumidos por mediação dos empréstimos ainda que pertençam ao grupo de leituras não permitidas para serem lidas na instituição de acordo com o artigo 7°.

Embora as leituras de obras dessa natureza não fossem autorizadas no local, as regras foram-se constituindo em estratégias de autofinanciamento adotadas pela instituição. Isso porque, com a circulação dos livros por meio do sistema de empréstimo e devolução, tais regras promoveriam o interesse por novas obras, a captação de outros/as leitores/as e, por suposto, a integração de novos subscritores em defesa da estabilidade. As regras internas, se garantiam a sobrevivência e o funcionamento do estabelecimento, também mostram que a manutenção do local dependia das doações de particulares e das mensalidades dos contribuintes. Os fundos e os rendimentos da associação provinham “do producto de 200 ou mais acções de 20$000 reis cada uma, dos donativos feitos á Associação, das mensalidades dos accionistas e das quotas dos Subscriptores externos do Gabinete” (Maranhão, Estatutos Provisórios do Gabinete Português de Leitura, 1853, p. 1). Dessa forma, evidenciam-se por meio do regulamento e dos estatutos a total responsabilidade dos associados portugueses pela sustentação da biblioteca, as proibições inerentes à leitura de textos não indicados como estratégia de circulação, divulgação e consumo dos livros, visando-se à captação de novos leitores e subscritores, as exigências e regras impostas a um público específico e restrito e o desinteresse e a desobrigação do governo provincial com o zelo da instituição.

Desse modo, apesar de a biblioteca ter sido considerada (segundo os jornais) um ambiente de cultivo às letras, que promovia o convívio com os livros e propagava a instrução estimulando a leitura, ela trazia as marcas de um predomínio elitista, as mazelas de uma cultura excludente e a concepção estreita de um espaço de sociabili-dade para um público determinado (com boas maneiras e com emprego garantido!) em políticas pontuais, em representações sociais culturalmente enraizadas e na defesa de interesses partidários em detrimento do bem comum. Sendo assim, partindo dos dispositivos mobilizados no seu regulamento interno e das regras estabelecidas nos estatutos, negou-se à instituição, no transcurso da sua existência, ser concebida e aceita como um lugar de encontro entre sujeitos leitores de diferentes clivagens sociais e um espaço de leitura com diferentes perfis de leitores diretos ou indiretos.

As estratégias adotadas para a sua subsistência, manutenção e funcionamento, como a sua operacionalização por sujeitos defensores da cultura, das letras e da instrução (ainda que num circuito de sociabilidade restrito e estreito) não impediram que a biblioteca fosse perdendo força como espaço institucional no decorrer do Império; não evitaram que se descaracterizasse como local de guarda da cultura escrita, nem inibiram o seu desaparecimento gradual acompanhado dos senões do próprio regime em vias de mudanças e extinção; embora a sua memória tenha ficado no imaginário societal maranhense como um lugar que estimulara a leitura, garantindo o vínculo estreito com os livros, um espaço de proliferação de novos/as leitores/as e um ambiente que contribuiu para a instrução pública no Maranhão imperial. Antonio Pedro Salgado, na sua crônica da Revista Elegante, em 1896, expressa a tristeza de ver o declínio da instituição: “leitores e leitoras, o abandono das lettras e das bellas artes entre nós [podendo] dizer que a Athenas se converteu em Boemia, [tendo] desaparecido por falta de leitores, a única biblioteca que [possuíamos]: o Gabinete Português” (Maranhão, Estatutos Provisórios do Gabinete Português de Leitura, 1853, p. 3, grifo meu).

Entretanto, se os indivíduos reconhecidos e permitidos pela instituição eram uma minoria de associados e subscritores (e possivelmente outros/as leitores/as indiretos/as, que faziam uso nos domicílios pelo sistema de empréstimo), como se configurava o acesso aos livros e à leitura nos outros indivíduos interessados na escrita por ler, mas sem recursos financeiros para fazer empréstimos ou se fazerem assinantes? Se esse espaço de sociabilidade (no sentido geral do termo) foi restrito e circunscrito a um público de boas maneiras, com empregos garantidos e com meios suficientes não só para salvaguardar o direito de subscrição, como também para cobrir os custos (via multas) das possíveis perdas de livros ou das prováveis obras danificadas, de que maneira a leitura se difundia entre os indivíduos não contemplados nesse lugar de guarda da cultura letrada? Existiam espaços de leitura permitidos a indivíduos pobres? Quais eram os ambientes destinados? Havia na realidade ditos espaços concretizados como lugares de leitura para esse público leitor? Como era o acesso aos livros e aos impressos? Essas questões, considerando as restrições inerentes às fontes, tento elucidar.

A BIBLIOTECA PÚBLICA PROVINCIAL

Em relação às bibliotecas no período imperial, ainda se sabe muito pouco, a não ser pelos estudos desenvolvidos por Moraes (1973) e por Braga (2002). São os trabalhos de Castro e Pinheiro (2006), Silva (2012), Castellanos (2011), Furtado (2012) e Borges (2013), porém, que revelam com maior consistência a trajetória da Biblioteca Pública Provincial no Oitocentos; embora nos documentos localizados se faça referência, ainda que de forma lacunar e genérica, a outra variações de bibliotecas de acordo com anatureza e função exercidas. Dessa forma, a falta de referencial teórico referente ao período abordado, que possa preencher as lacunas com respeito a esses espaços de sociabilidade onde se entremeavam livros, leituras e leitores/as, e o pouco detalhamento na documentação oficial encontrada sobre a Biblioteca Pública como espaço de guarda da cultura e provedora de livros e de leituras a indivíduos sem outra condição para seu acesso induziram-me a interceptar e cruzar os comentários, críticas, decisões e diferentes pontos de vistas identificados nos relatórios dos presidentes da província, dos inspetores da instrução pública e nos inventários-relatórios ou relatórios de ocasião realizados pelos guarda-livros ou pelos bibliotecários do estabelecimento. Também os contrapus às denúncias, pedidos e discursos sobre esse espaço de leitura registrados na imprensa ou nos ofícios localizados no Arquivo Público, para tentar compreender o papel que a Biblioteca Pública Provincial representou na sociedade e na instrução pública e a influência que pode ter exercido nos indivíduos assíduos a esse espaço de sociabilidade, bem como para discernir as estratégias adotadas pelos responsáveis para mantê-la em funcionamento, para cuidar do seu acervo e renová-lo, buscando fazer da instituição um ambiente de encontro entre leitores/as, leituras e livros.

A criação de uma biblioteca pública no Maranhão foi proposta na Assembleia Provincial3, em 1826; mas somente em 1829 foram tomadas as medidas para a sua concretização. Por ter sido negado pelo Governo Imperial o pedido do presidente Araújo Vieira para construí-la, alegando limitações orçamentárias, “o então, futuro Marquês de Sapucaí [recorrendo] à subscrição popular” (Moraes, 1995, p. 271) a inaugurou no Convento do Carmo4 e abriu-a para o público, em 1831, com 1.448 volumes adquiridos com dinheiro arrecadado das doações dos ludovicenses e sem o menor estipêndio dos cofres públicos. Embora a instituição fosse dedicada àinstrução dos jovens e estimulasse o convívio com as obras, fomentando o interesse pela leitura, os livros adquiridos, doados ou comprados para o seu acervo deveriam preservar os princípios religiosos, os valores éticos e morais legitimados pelo regime imposto, e contribuir para a formação de homens e mulheres bons e probos (Pinheiro, 2004; Castro 2007). Os livros contrários (obras não permitidas) seriam expurgados por uma comissão criada com essa finalidade, na medida em que o estabelecimento era contíguo ao Liceu e serviria de auxílio e consulta nas aulas.

Diferentemente da dinâmica estabelecida no Gabinete Português de Leitura entre as obras e o público leitor, a Biblioteca Pública Provincial, no artigo 7° do capítulo II de seus estatutos, apresenta uma lógica completamente contrária com respeito ao acesso do estabelecimento e à divulgação, circulação e consumo das obras, ainda que mantendo algumas restrições similares às da primeira instituição quanto ao comportamento individual e à escolha dos livros sem se mexer nas estantes, com pedido direto ao contínuo5. Se pelo referido artigo seriam admitidas “todas as pessoas que se apresentarem decentemente vestidas franqueando-se-lhes os livros que pedirem, penas e tinta [e] nenhuma das pessoas admitidas [poderia tirá-los] das estantes ou restituí-los a ela, devendo para isso dirigir-se ao continuo” (Castro, 2009a, p. 28) — exigências e regras semelhantes às das práticas exercidas no Gabinete —, no que se refere ao convívio com as obras, à acessibilidade da leitura e à captação de novos/as leitores/as, longe de se constituir em um espaço de sociabilidade restrito a sócios e a subscritores instituído no seu estatuto, nessa “Livraria Pública” (como também fora nomeada), “não se [poderia] emprestar livro algum para fora da Biblioteca”. Isto é, para se ter direito aos livros e ao ato de ler, independentemente do gênero do escrito, tais práticas deveriam ser realizadas no próprio local, garantindo-se (em tese) a maior mobilidade de títulos divulgados e consumidos, crescimento do público leitor real, captação de novos consumidores de cultura em potencial e maior representação e influência desse espaço público no âmbito da instrução.

Esse lugar de guarda da cultura escrita foi criando, no devir da sua existência, estratégias de supervivência e formas de se estabelecer como instituição formadora. As importações de obras, compras e doações, a venda de livros em condições precárias (a baixo preço e medidos por peso, não por unidade), as denúncias por meio de ofícios, da imprensa local e no corpo a corpo na Assembleia Provincial, assim como a queima dos artefatos pelo nível de destruição física, constituíram-se em práticas usuais que fizeram dessa biblioteca um lugar de pertença e de convívio com os livros, um ambiente representativo das práticas de leitura e um espaço de encontro entre diferentes leitores/as — embora durante a sua fase imperial ela tenha sido alvo de elogios, críticas e privações, produto das constantes lutas entre posicionamentos políticos desencontrados, dos embates ideológicos acirrados e das crises econômicas constantes com as quais teve que coabitar.

Entre as doações para o estabelecimento se encontram: as duas coleções da Flora Fluminense escrita por frei Marianno da Conceição Vellozo e cedidas pela Regência em nome de S. M. o Imperador (Maranhão, 1832a); o Regimento das prisões na America Septentrional, traduzido por Antonio Candido Ferreira (Secretário do Governo da Província de Pará) (Maranhão, 1832b); o Zoophito, oferecido pelo tenente de engenheiros Jose Joaquim Reis Lopes (Maranhão, 1835d); o Ensaio sobre estradas, por Richard Lorelli Edgmont (Maranhão, 1835c); a obra O Catholico e o Methodista, composta pelo padre Luis Gonçalves dos Santos e oferecida pelo Exmo. Bispo Diocesano (Maranhão, 1839); e, por último, a remessa de exemplares de diferentes gêneros: a Marcha das viagens ás partes do Mundo, por Depping de Gasthros, e a Geographia Universal (em nove volumes) (Maranhão, 1837), entre outras produções.

Os livros mencionados e localizados nos ofícios aparecem nos catálogos elaborados pelo bibliotecário Manoel Pereira da Cunha, que foram enviados ao presidente da Província (Maranhão, 1835a) em 1835, como também no inventário confeccionado por Trajano Cândido dos Reis ao assumir a instituição no mesmo ano (Maranhão, 1835b). No entanto, se na relação de títulos listados (na sua grande maioria) não aparecem as obras classificadas segundo as temáticas, nem os escritores identificados, o que pode aparentar certa familiaridade com as obras computadas sem existir a necessidade de registrar seus autores; por outro lado, a língua em que estão expostas as produções culturais e os títulos minutados, além de fazerem parte de diferentes gêneros e assuntos distintos, permitiram que eu identificasse algumas delas como livros escolares ou não-escolares em dependência de sua natureza e função.

Entre as obras listadas por Manoel Pereira da Cunha e aparentemente já utilizadas no ensino, encontram-se: a História do Brasil, de Beanchamp; a Introdução à história, de Puffendorfio; A educação, de Campan; os Elementos da história e a História universal, de Milot; as Lições da história natural, de Cote; o Curso de moral escrito pelo autor d'Aelia e Thesouro; a Aritmetica, álgebra e geometria e a Geografia moderna, de La Croix; os Elementos de matemáticas, de Volfio; as Lições elementares de matemática, de Linco; a Geografia, de Guttirie e o Methodo para estudar a geografia, de Lenglet; a Gramática portuguesa, de Lobato, e a Gramática, de Costa Duarte; o Curso de literatura, de La Harpe, e a Educação, de Rousseau, entre outras produções. Na opinião desse bibliotecário, a instituição tinha-se estabelecido com 1.448 volumes; os demais foram “comprados a Domingos José Roiz de Sá Viana, e quarenta e quatro mais dados pelo Ecx°. Presidente Candido José d'Araujo Viana antes de sua partida com o quaes [completara] a dádiva de duzentos volumes” (Maranhão, 1835a).

No mesmo ano, Trajano, ao assumir a direção da biblioteca, registra outros títulos para o ensino público: as Oeuvres Completes, de La Fontaine; Les fables o Esope Phrygein; o Novo método da gramática e a Arte de funtar, do padre Antônio Vieira; o Cours complete d'agriculture (utilizado na Escola do Cutim); a Historie eclesiastique pour servir de continuacion à celle, de Monsieur L'Abbé Fleury; a História do Maranhão, de Bernardo Pereira de Berredo e o Compêndio histórico dos princípios da lavoura do Maranhão, de Gaioso (adotados no Liceu Maranhense); a História de Gil Braz de Santilhana, de Lesage; a Geographia moderna, de Antonio Jose da Silva Rego e o Nouveau dictionaire geographique, de Vigiena; A Bíblia Sagrada (traduzida), de Antonio Pereira de Figueiredo; a Filosofia e os Elementos de física (em brochura) de Hent; o Cours de chimic, de B. Lagrange e os Princípios do desenho linear (em brochura) utilizados nas aulas da Casa dos Educandos Artífices6; entre outras obras que representam 469 títulos computados no inventário de 1835 e distribuídos em 1.984 volumes.

Se analisadas as obras pelos seus títulos, mesmo que isso represente uma avaliação lacunar e estreita, é possível, segundo as diferentes áreas de conhecimentos contempladas nos volumes citados, afirmar que algumas tenham auxiliado no ensino secundário a partir da institucionalização do Liceu, em 1838. Por outro lado, os livros escolares para o ensino primário concebidos, produzidos e usados para esse fim foram mais difíceis de serem reconhecidos nos inventários, a não ser algumas poucas obras: a Gramática portuguesa, de Lobato e a Gramática, de Costa Duarte; o Curso de literatura, de La Harpe; as Oeuvres completes, de La Fontaine; o Novo método da gramática, do padre Antônio Vieira; e A Bíblia Sagrada (traduzida), de Antonio Pereira de Figueiredo. Estas, por apresentarem conteúdos atinentes àinstrução primária, podem ter orientado a prática pedagógica dos/as professores/as e ajudado os/as alunos/as na compreensão da leitura e da escrita.

Se, por um lado, o acesso aos livros e o estímulo à leitura visando à formação dos leitores foram os fins principais da instituição ao divulgar as obras e colocar em circulação os livros para consumo, por outro lado, as proibições de conversar em voz alta e de passear pelo seu interior, assim como as exigências de vestimenta adequada como salvo-conduto para frequentar o local, com advertências de expulsã7 por questões ideológicas, sociais, políticas e/ou culturais, terminava revelando uma visão elitizada da instituição e provocando a restrição do acesso, admitido somente a indivíduos com algum poder aquisitivo e, principalmente, àqueles em quem as práticas do ler e do escrever eram atuantes. São regras que parecem reforçar a função primeira e perversa das bibliotecas, robustecendo a exclusão conforme o público que as frequentava e/ou o caráter jurídico que a constituía; porém o Inspetor da Instrução Pública Antônio Marques Rodrigues (autor d'O livro do povo) defendia a sua utilidade como lugares de cultura em ofício dirigido ao presidente da Província, Ambrosio Leitão da Cunha, alegando que nesse espaço público de leitura “o pobre, a quem a escassez dos meios não [permitia] fazer acquisição das luzes do livro, [podia] sem sacrifício pecuniário aurir as riquesas da instrucção” (Maranhão, 1865a), tendo garantido assim um mínimo de ensino.

Do Convento do Carmo, a Biblioteca Pública Provincial, que estava anexada ao Liceu8, passa por vários lugares no decorrer do período imperial. Em 23 de julho de 1866, é transferida para o Instituto Literário Maranhense por disposição da Assembleia Provincial, contendo 1.900 volumes, e mais tarde, ao ser dissolvida essa Associação (embora tenha aumentado consideravelmente o seu acervo), passou a “ser propriedade da Sociedade Onze de Agosto [com] 4000 volumes, além de muitos folhetos” (Marques, 1876, p. 48)9. A biblioteca, ao ocupar o salão nobre do prédio, embora tenha atingido no período a sua fase de maior florescimento, terminou inviabilizando a continuidade das conferências pedagógicas e as aulas de desenho que nela aconteciam (Castellanos, 2011)10 (Figura 2).

Fonte: Foto publicada no jornal O Novo Mundo, 1875, p. 4.

Figura 2 Prédio da Sociedade Onze de Agosto. 

Com o fechamento da Sociedade em 1876, a Biblioteca Pública Provincial mudou-se para a Catedral da Sé, retornando mais tarde para o lugar onde se originou, sendo esquecida completamente ao deixar de ser contemplada pela província nas suas leis orçamentárias e ao não ser mais mencionada pelos presidentes nos relatórios11. Pela deterioração do seu acervo, pela ausência de verbas (para restauração/ funcionamento) e pela inexistência de compras de novas obras, parecia que a instituição chegava ao fim, deixando pouco a pouco de existir até o momento do seu desaparecimento, provocado pela despreocupação geral — realidade que sugeria para alguns a sua existência desnecessária. Com a proclamação da República houve certas mudanças, iniciando-se pela sua denominação, que passou de Biblioteca Pública Provincial do Maranhão para Biblioteca Pública do Maranhão, no âmbito estadual (Castro, 2007).

OUTRAS BIBLIOTECAS MARANHENSES NO PERÍODO IMPERIAL

Se as informações sobre a natureza e a tipologia dos livros doados, comprados, divulgados, consumidos e postos em circulação pelo Gabinete Português de Leitura e pela Biblioteca Pública Provincial se fazem lacunares, então as informações sobre estabelecimentos congêneres e as dinâmicas estabelecidas se mostram quase irrisórias. Vestígios sobre a Biblioteca Popular Maranhense e a Biblioteca Militar, indícios das bibliotecas estabelecidas no Instituto Literário Maranhense, no Liceu e na Escola Agrícola do Cutim e mesmo das bibliotecas escolares concebidas e/ou planejadas para escolas de primeiras letras são esporádicos, apesar de que, n'O Publicador Maranhense (1872, p. 2), já se discursava sobre as diferenças estabelecidas entre as bibliotecas “literárias e científicas” e as “populares”. As primeiras seriam procuradas apenas por “aquelles que se consagrão ao estudo das lettras e das sciencias, depois de adquiridos os conhecimentos de humanidade e dos cursos superiores”; as segundas se caracterizariam por conter livros sobre as artes mecânicas e liberais, obras didáticas, métodos de ciências aplicadas às artes e outros textos de fácil compreensão e ao alcance de inteligências “ainda não temperadas no estudo reflexionado e profundo”. Dito de outra forma, as “bibliotecas populares”, construídas para o povo, deveriam conter nos seus acervos opúsculos manuais e compêndios que versassem sobre “a mechanica, a chimica applicada à industria, a economia política, emfim com as idéias que [pudessem] adiantar e desenvolver a intelligencia das classes populares, que em geral applicão-se aos trabalhos ruraes e ás artes liberaes” (O Publicador Maranhense, 1872, p. 2, grifo meu).

Registros sobre bibliotecas escolares e as suas dinâmicas nas escolas de primeiras letras continuam ausentes. No entanto, indicativos sobre intenções e/ou o planejamento desses espaços, oriundos de doações particulares em benefício da instrução pública, ainda que esparsos, são evidentes durante todo o período imperial. Montezuma Alfredo Corrêa de Castro, por mediação do escrivão judicial da Villa de São Vicente Férrer, por exemplo, oferecia em 12 de junho de 1877 a quantia de 20$050 réis proveniente “dos custos com os processos de arbitramento para a libertação de escravos d'aquele município” (Maranhão, 1877, não paginado) — ordem expedida à Tesouraria da Fazenda pelo presidente da Província, Francisco Maria Manuel Correia de Sá e Benevides — para que fosse aplicada na compra de livros para os meninos pobres da escola de ensino primário da dita vila. Já o bacharel Augusto de Mello Rocha avisava que se achava concluído o prédio por ele oferecido em 26 de agosto de 1873, para nele funcionar a escola pública de primeiras letras da Vila do Rosário. A doação de alguns volumes de diversas obras, como também outros artefatos da cultura material escolar12, conformaria também “o núcleo de uma futura bibliotheca que [devia] ser fundada naquele edifício [providenciando] V. Exᵃ. para que sejam taes livros recebidos pelo delegado litterário e bem assim a mobília destinada pelo mesmo offertante á sobredita escola” (Maranhão, 1877, não paginado).

Já em relação à Biblioteca Popular Maranhense13, à Militar e à do Instituto Literário Maranhense: se o relatório de Rego (1875) só faz referências ao quantitativo de livros, Cesar Marques (1876), ao comparar os centros da cultura escrita em São Luís, apresenta outros esclarecimentos. A Biblioteca Militar continha 700 volumes de literatura, ciência, artes, legislação, indústria e religião, com acesso restrito aos oficiais do 5° Batalhão por quem fora fundada. Na contramão, a Biblioteca Popular, constituída com donativos particulares em 1872 e com acesso livre, tinha sido “freqüentada por 2633 leitores, e em 1873 por 3107. [Seu acervo contara com] 4169 volumes de obras muito preciosas [e] entre muitos livros, que [ele dera] a esta Bibliotheca, [fez] também presente das obras completas e raríssimas […] do autor da Flora Fluminense, única na Província” (Marques, 1876, p. 48) — referência a frei Marianno da Conceição Vellozo, lente de retórica no Convento de São Paulo, que também lecionava história natural no Convento de Santo Antônio. A biblioteca do Instituto Literário Maranhense, por outro lado, objetivava “investigar a historia, geographia e ethnographia do Brazil, particularmente d'esta província, diffundir a instrução e desenvolver o gosto pelas lettras e sciencias, por meio de cursos e escholas gratuitas” (Almanak do Diário do Maranhão, 1866, p. 4, grifo meu). Mesmo antes da sua concretização como ambiente de leitura, o seu acervo já estava enriquecido “com mais de mil volumes que lhe foram offerecidos pela Exm.ᵃ Sr.ᵃ D. Olympia Gonçalves Dias, do espolio de seu finado esposo — o excelso poeta brasileiro — Antonio Gonçalves Dias” (Almanak do Diário do Maranhão, 1866, p. 6). Esse acervo foi reconhecido pela variedade e pela qualidade das obras mesmo antes de serem franqueados ao Instituto os salões e demais pertences da Biblioteca Pública Provincial — segundo o projeto apresentado por Joaquim Serra à Assembleia Legislativa, em 1865 —, já que lhe faltava um lugar para estabelecer-se, instituindo-se como espaço de guarda de cultura em 1866.

No que se refere às bibliotecas do Liceu Maranhense (1838)14 e da Escola do Cutim15, outros sinais são encontrados. Quanto à primeira, o diretor da instituição Casemiro Sarmento (também Inspetor da Instrução Pública), em correspondência a Jerônimo Martiniano Figueira de Melo (presidente da Província), questionava se devia atender ao prescrito no artigo 62 dos estatutos do estabelecimento16 — que dividia livros e compêndios utilizados no ensino das obras indicadas para exames, junto de outros livros arquivados que esclareciam dúvidas aos professores (como dicionários e gramáticas) — ou se devia ceder aos “abusos dos professores” que não concordaram com essa divisão. (Maranhão, 1844). A segunda, voltada de início para os professores com a aquisição de livros da Escola de Grignon da França (concebida como centro de referência), depois de ter-se adotado o método aratório na Escola de Cutim para formar mão de obra qualificada e aplicar os modernos métodos utilizados na lavoura, teve sua biblioteca direcionando-se gradativamente para os alunos, com outras obras tais como: o Catecismo de agricultura, de Antônio de Castro Lopes, que solicita ao Conselho da Instrução Pública sua aprovação/adoção (Maranhão, 1865b); o Manual do plantador de algodão (1858), de Turner (divulgado em Nova York), que apresentava os melhores artigos dos jornais agronômicos “e as observações de experimentados e inteligentes agricultores dos Estados Unidos a respeito dessa planta, cuja cultura, mesmo atrasada, [era] nesta Província, um dos principais ramos de riqueza pública” (Maranhão, 1858); o Compêndio histórico dos princípios da Lavoura do Maranhão, de Raimundo José de Sousa Gaioso; e uma outra sobre todo o processo de plantação da cana, para ser distribuída gratuitamente entre os lavradores (Maranhão, 1847) — mediada, esta última, pelas Sociedades Filomática e da Agricultura e Indústria Rural Maranhense (Cabral, 1984). Segundo O Globo (1859), essa escola e a sua biblioteca conseguiriam ser uma “novidade do império [um] glorioso padrão administrativo, [uma] nova era de civilização na agricultura brasileira [e] o progresso em vez da rotina”17.

Em 1874, referendando-se a Biblioteca Popular Maranhense no Almanak do Diário do Maranhão, anunciava-se a eleição da sua diretoria, que “[iria] funcionar durante o próximo anno social na ‘Bibliotheca Popular’”, e convidavam-se os membros do estabelecimento para que se reunissem “na sessão magna do costume, no dia 19 do corrente pelas 7 e meia horas da noite”, já que em seguida se “[comemoraria] o aniversario da instituição, no recinto do estabelecimento”, em função dos serviços prestados às letras. Três dias depois, nesse mês de outubro, também se prestava conta da reunião geral e anual ao se lerem o relatório e o balancete depois de aberta a sessão, saindo como diretores mais votados os senhores doutores Almeida Oliveira, Gentil Braga e Cesar Marques e consignando-se “na acta um voto de louvor aos srs. Polycarpo José Pinheiro e Ramos Villar, por serviços prestados [à] instituição por aquelle como diretor, e por este como deputado provincial”. Segundo Oliveira (2003, p. 282), a feição característica da Biblioteca Popular era “servir para todos e para tudo, oferecendo gratuitamente a todos os gêneros de leitura que [pudessem] precisar e permitindo a cada um fazê-lo em sua casa ou no próprio estabelecimento”; isto é, a Biblioteca Popular recebia essa terminologia não só por ser fundada com doações do povo, mas por facultar a saída de livros para a leitura externa e assim estimular o interesse da população em geral.

Já no ano subsequente, se no Almanak do Diário do Maranhão (1875, p. 3) se anunciava o zelo do senhor doutor Antonio Rego, que “apesar de sua longa ausência, não se [esquecia] de sua pátria, e [acabava] de offerecer cem volumes de varias obras a esta Bibliotheca”; também se registra em 7 de junho de 1875 o pedido de Albano J. P. Lima (bibliotecário dessa instituição) pela entrega dos livros emprestados cujos prazos tinham expirado. Nele, o bibliotecário rogava às “pessoas que leem livros em seu poder, por leitura externa, com excesso de praso permittido, que os [fizessem] recolher com exhibição das multas que deverem, uma vez que já os tenham dispensado do uso para que os receberão”, esclarecendo ao público que, caso ainda precisassem dos livros, apresentassem-nos para que “se lhes conta[ra] novos prasos, e conforme o regulamento verificar-se a conservação do seu estado”. Contudo, em agosto do mesmo ano, intensificaram-se os pedidos de doações a particulares em função da situação precária da instituição, via escrito no Almanak do Diário do Maranhão (1875, p. 2), uma vez que os cofres públicos não tinham responsabilidade sobre o estabelecimento por ser de iniciativa privada:

São por demais palpaveis as vantagens resultantes desta utilissima instituição. Querer demonstral-as é ociosa redundância. Entretanto, a única que possuímos, depois de tantos esforços para fundal-a, abril-a, e collocal-a no pé em que está — repleta de volumes importantes, e sendo um manancial abundante e gratuito de suculenta instrucção popular, está para ser fechada (cousa incrível!) se continuar a falta de auxilio monetário da parte da população!

Consta que o produto do rendimento da Bibliotheca popular mal chega para pagar o consumo do gáz! Já se deve aluguel do modesto local do prédio que occupa; e nunca foram remunnerados os seus dignos empregados. A Bibliotheca popular é uma instituição gratuita, é certo; mas deve se sustentar a custa do povo, em cujo beneficio reverte o facto da manutenção della. Contribúa cada uma pequena quantia, e a instituição não desapparecerá. Não é necessario que se faça o menor sacrificio para isso: não precisa que venha a ostentação do rico descoroçoar a mesquinhez do pobre, não. Dê cada um o que puder e quiser. Há uma caixa em cujo fundo se pode lançar o muito ou o pouco: ambos se confundem lá, e concorrem para o beneficio geral, que se deseja alcançar. Sustentemos, pois a Bibliotheca popular. Sou do povo, e me intristeço todas as vezes que vejo definharem institutos creados em bem do povo. Creio que todos serão assim. Vamos! A Bibliotheca abre-se todas as noites. Cada um de per si vá ali, ou mande um pequeno abono, e a Bibliotheca popular, a amiga e a mestra do povo, se sustentará.

Um do povo.

Além das cartas com pedidos de aprovação e adoção, remetidas por vários agentes implícitos no circuito do livro, das doações e distribuições dos artefatos, bem como dos anúncios de compra e venda nos jornais, alguns autores preferiram como estratégia de publicidade apresentar os seus livros, comentar os seus escritos e transmitir as suas concepções por meio das conferências pedagógicas e das conferências populares, pelas quais os donativos arrecadados também iriam (às vezes) sustentar a Biblioteca Popular Maranhense. Oliveira (2003), que pronunciou várias palestras sobre a educação na escola noturna Onze de Agosto, desde 1871 — entre elas A necessidade da instrução, A sociedade e o princípio da associação e o Discurso sobre a educação feminina (Vieira, 2003) —, também esclarece no prefácio das Conversas públicas, realizadas na Escola Normal da Associação, que o produto de venda das duas apresentações por realizar no estabelecimento — Os metais e A instrução e a ignorância — se reverteria em benefício da Biblioteca Popular Maranhense, esperando para a consecução “de tão útil fim, o apoio do público. Não [marcando] preço fixo para esta publicação, porque [contava] com a generosidade e patriotismo da população que não se [negaria em] coadjuvar-nos nesta empreza” (Souza e Oliveira, 1872, p. 3).

As conferências pedagógicas foram destinadas aos/às professores/as, já que nelas se refletia sobre os problemas educativos e os métodos de ensino aplicados, sobre os programas das disciplinas em exercício e os livros que deveriam ser aceitos, aprovados e adotados em sala de aula, assim como se cogitava substituir ou eliminar certas obras dependendo da defasagem dos conteúdos; isto é, “para se ver que não [eram] fugitivas as vantagens das conferências pedagógicas, [bastava] indicar o fim que elas se propõem: aperfeiçoar os professores no seu ofício por uma espécie de ensino mútuo” (Oliveira, 2003, p. 220). Já as conferências populares foram direcionadas às famílias dos/as alunos/as, aos convidados especialistas em determinados assuntos e ao público em geral interessado em temáticas específicas (alfabetizados ou não). Sobre o indivíduo analfabeto, a ação das palestras “[poderia] ser menos forte, mas não [seria] menos certa e menos sensível que sobre os letrados. Pelo que sendo elas gerais e constantes [poderiam] fazer ou reformar a educação de um povo” (Oliveira, 2003, p. 191). Isso porque, se no livro lido muito se aprende, no livro lido e explicado se aprende muito mais. Sendo a missão principal das conferências populares espalhar os conhecimentos úteis e necessários ao povo sedento de esclarecimento e de saberes, pode-se afirmar que elas “não completam só a obra das escolas, completam também a das bibliotecas para todos aqueles que não possuem os conhecimentos indispensáveis à leitura de certos livros” (Oliveira, 2003, p. 193). Em síntese, tanto as conferências pedagógicas como as populares objetivaram tornar conhecidos da comunidade os temas relativos às ciências naturais e à física, compartilhar a dinâmica dos programas escolares baseados na pedagogia moderna, além de promover a discussão, a divulgação e o consumo das obras; mesmo assim, não conseguiram salvar a Biblioteca Popular Maranhense da condição de penúria em que se afogara.

Se, na documentação oficial, ainda não encontramos mais dados sobre essa instituição nem a data exata da sua extinção, na literatura local são colocados indícios: Damião, o personagem principal d'Os tambores de São Luís18, de Josué Montello, foi contratado pelo dr. Almeida Oliveira como bibliotecário da Rua Formosa (a dois passos do Largo do Carmo), coincidindo esse endereço com o fornecido pelo Almanak do Diário do Maranhão (1878, p. 12) para a Biblioteca Popular Maranhense. No entanto, apesar das “onze estantes envidraçadas que enchiam a sala, [em que] apertavam-se uns dos mil e poucos volumes, quase tudo literatura, algumas obras de Direito e Filosofia, e bom número de velhos jornais maranhenses” (Montello, 1917, p. 471), no intuito de garantir-se acesso aos leitores e à leitura nos horários noturnos, parece que essas táticas de sobrevivência terminam quando a instituição fecha suas portas e transfere seu acervo para “o Gabinete Português de Leitura na Rua do Sol” (Montello, 1917, p. 521). Ou seja, longe de discutir, desde uma perspectiva crítica literária, o lugar do romance na história e as possíveis formas do seu uso como objeto e/ou fonte, esse recurso fez-me refletir sobre a procura de informações em documentos de outra natureza, que se cruzados com fontes oficiais podem apontar para outros ditos, fatos e feitos; mas essa discussão foge ao escopo deste trabalho. Enfim, se na documentação oficial ainda não detectamos indícios do término da Biblioteca Pública Maranhense e das condições do seu fechamento, pelo menos pistas ficaram em suspenso e instigam a um maior aprofundamento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Até aqui, posso afirmar que as bibliotecas maranhenses no Império transformaram-se em verdadeiros espaços de sociabilidade, independentemente da natureza, função e projeção que as caracterizavam. Isso porque não só os livros, as leituras e os leitores se fizeram presentes e se articularam nesses cenários locais, contribuindo para a formação de diversas práticas leitoras, para a circulação do livro escolar e mesmo para a disseminação e o apoio da instrução pública, mas também esses lugares de guarda da cultura letrada, de certa forma, divulgaram títulos, dispuseram obras para serem lidas e estimularam o crescimento do número de leitores/as. Para isso, fizeram uso de diversas estratégias de imposição sustentadas em estatutos e/ou regulamentos, da seleção de obras permitidas para serem colocadas a público e mesmo da dinâmica de empréstimo, fosse para estudar ou consultar tais obras nas próprias instituições (como era exigência da Biblioteca Pública Provincial), fosse para levar de empréstimo os artefatos de leitura condicionados a multa pela não entrega no tempo estabelecido ou pela deterioração dos exemplares (como operacionalizavam o Gabinete Português de Leitura e a Biblioteca Popular Maranhense).

Sem embargo, para além das estratégias de imposição instauradas, das dinâmicas de empréstimo definidas e mesmos das intencionalidades em cada tática em uso (segundo as relações de poder instituídas) — que dependem em última instância do nível de diferenciação das práticas nesses espaços de sociabilidade e das desigualdades imanentes nessas práticas —, faz-se necessário demarcar as diferenças objetivas entre a Biblioteca Pública Provincial e a Biblioteca Popular Maranhense nessa temporalidade, para defini-las como duas instituições distintas com diferentes origens e términos, acessibilidade divergente segundo os públicos concebidos em estatutos/ regulamentos e acervos historicamente construídos de forma desigual. São demarcações que ajudam a esclarecer certas imprecisões que têm sido defendidas por pesquisadores da história da educação e mesmo por bibliotecários, uma vez que a mudança da Biblioteca Pública Provincial para a Sociedade 11 de agosto, pela lei n. 991, de 10 de junho de 1872 (Viveiros, 1936), parece ter contribuído para que as referências aos dois espaços de leitura tenham sofrido uma simbiose interpretativa. O fato de o prédio da Onze de Agosto ter esculturado na sua fachada o emblema de “Escola Popular” (ver Figura 2) parece sugerir que publicações referentes à Biblioteca Popular Maranhense se associem erroneamente com a Biblioteca Pública Provincial que ali radicava — margens de existência entre dois espaços de sociabilidades e de leitura distintos quanto à natureza, à função e à projeção, que não tinham sido até hoje demarcadas.

Se a Biblioteca Pública Provincial do Maranhão foi proposta à Assembleia Provincial em 1826, e só se tomaram providências em 1829 para inaugurá-la no Convento do Carmo em 1831, com as benesses do erário público registrado em lei, a Biblioteca Popular Maranhense, além de ser constituída com donativos particulares, na contramão dos cofres públicos, foi criada em 19 de outubro 1872 para o povo e sustentada por ele. Se a primeira culmina com a República, embora transite períodos de esplendor, turbulência e decadência em seus 58 anos ininterruptos de funcionamento que marcam certa longevidade; a segunda, mesmo que não se tenha identificado ainda seu término em fontes oficiais, indícios em fontes de outra natureza parecem apontar para um período curto de projeção, mas intenso em táticas de apropriação que se derivam das conferencias pedagógicas e populares, do sistema de empréstimo adotado e do acesso sem restrição. Embora de iniciativa privada, a Biblioteca Pública Maranhense usa essa terminologia por facultar a saída de livros para a leitura externa e, assim, estimular o interesse da população em geral, não importando clivagens sociais nem nível cultural dos leitores, além de ter sua diretoria colegiada: três diretores eleitos, um secretário e dos suplentes. Essa dinâmica de empréstimo é contrária à da Biblioteca Pública Provincial ou “Livraria Pública” (como também fora nomeada), da qual, segundo seu estatuto e diretor do estabelecimento, “não se [poderia] emprestar livro algum para fora da instituição, devendo realizar-se tais práticas no próprio local”. Isso que parece garantir (em tese) uma maior mobilidade de títulos divulgados e consumidos, um crescimento no número do público leitor real e uma maior representação e influência desse espaço público no âmbito da instrução. Essa dinâmica também se contrapõe à adotada pelo Gabinete Português de Leitura — fundado em 9 outubro de 1853 e sustentado por doações de acionistas (súbditos portugueses) —, já que a circulação dos livros por meio do sistema de empréstimo e devolução promoveria o interesse por novas obras, a captação de outros/as leitores/as e a integração de novos subscritores em defesa da estabilidade, que era responsabilidade dos associados portugueses por meio do regulamento e dos estatutos, em resposta ao desinteresse e à desobrigação do governo com o zelo da instituição.

Evidentemente, num sistema governamental por excelência excludente e refratário, como o do período imperial, não se pode pretender que a leitura, os livros e mesmo as bibliotecas fossem pensados e direcionados na sua totalidade a todos e para todos. No entanto, se arbitrariamente os livros foram direcionados para um público específico em alguns espaços, se a leitura era (em tese) permitida a sujeitos contemplados no tecido societal, se a instrução pública foi negada à maioria dos maranhenses durante os dois reinados, e se alguns lugares de guarda da cultura letrada de certa forma incorporaram as mazelas sociais e culturalmente construídas, num sistema que para subsistir tinha como essência a exploração do homem num regime escravista; parece que essas determinações criadas não impediram existência de outras bibliotecas com metas e objetivos distintos. Diferentes espaços de leitura — como a Biblioteca Pública Provincial, a Biblioteca Pública Maranhense e o Gabinete Português de Leitura, lugares como a Biblioteca Militar, as bibliotecas do Instituto Literário Maranhense, da Escola do Cutim e do Liceu Maranhense e mesmo as bibliotecas escolares das escolas de primeiras letras — garantiram que públicos diversos tivessem acesso ao livros e ao ato de ler, segundo a natureza e função de cada espaço de sociabilidade; lugares onde pobres, negros e mulheres também aprenderam a ler e/ou a escrever de forma direta ou indireta. Enfim, as múltiplas determinações do econômico e do social parecem não ter evitado que sujeitos não contemplados no mundo da leitura, da escrita e das bibliotecas deixassem de se interessar pelos livros e pela leitura, e essas objeções não naturais não impediram que estratégias implantadas no regime imposto, permeadas pelo poder, apresentassem limitações no controle das táticas individuais de libertação cultural de sujeitos interessados pelos livros, pelo entendimento do escrito e por esses espaços de sociabilidade e de leitura. Trata-se de um leitor no plural, que, independentemente da classificação que tenha com respeito à leitura, vive numa lei imposta; e ele, o leitor menos hábil, menos reconhecido e o mais fugido das regras estipuladas, instaura pluralidades e criatividade nas mil formas de apropriação e representação (Certeau, 1994). São práticas desviacionistas com respeito ao escrito-lido, que se traduzem e inventam em múltiplas maneiras de “caças furtivas não autorizadas” — esquemas operacionais que, em cada individualidade, estabelecem o lugar onde atua uma pluralidade incoerente e muitas vezes contraditória das suas determinações relacionais, expressos nos modos de operação ou em diferentes esquemas de ação.

AGRADECIMENTO

Meus agradecimentos à Fundação de Apoio à Pesquisa e Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão (FAPEMA) pelos recursos para correção e tradução.

1Editado pela tipografia de J. C. M. da Cunha Torres (Rua de Nazareth, n. 20), em São Luís, Maranhão.

2Apesar de várias tentativas, não decodifiquei o significado de “(N. S.)”.

3Pelo dr. Antonio Pedro da Costa Ferreira (membro do Conselho Geral da Província) e futuro Barão de Pindaré, em 8 de julho de 1826.

4O Convento do Carmo foi construído em 1627, na antiga colina de Santa Bárbara, atual Praça João Lisboa. No século XIX, entre as funções estranhas à sua finalidade, o Convento do Carmo serviu de quartel da polícia provincial; de primeira sede da Biblioteca Pública Provincial (1831); do Instituto Literário Maranhense (1865); e do Liceu Maranhense (1838) (Moraes, 1995).

5Ajudante do bibliotecário nomeado para essa instituição, segundo os Estatutos da Biblioteca Pública, estabelecidos pela lei n. 9, de 30 de abril de 1835 (Castro, 2009b).

6Instituição criada em 1841 para atender as crianças pobres e desvalidas e dar-lhes uma formação em diversas áreas das artes mecânicas: carpinteiros, marceneiros, alfaiates, tanoeiros etc.

7Artigo 8° dos Estatutos da Biblioteca Pública, estabelecidos pela lei n. 9, de 30 de abril de 1835 (Castro, 2009a).

8Pela lei n. 312, de 24 de novembro de 1851, segundo o relatório enviado em 1° de abril de 1865 pelo Inspetor da Instrução Pública, Antônio Marques Rodrigues, para o Presidente da Província, Ambrosio Leitão da Cunha.

9Pela lei n. 991, de 10 de junho de 1872 (Viveiros, 1936).

10A Sociedade Onze de Agosto (localizada na Rua do Egypto) foi fundada em agosto de 1870 pelos Drs. João Coqueiro, Antonio de Almeida Oliveira, Martiniano Mendes Pereira e Manoel Jansen Pereira e tinha como fins estabelecer cursos noturnos para a classe dos artistas e criar um Curso Normal (pela Lei provincial n. 1.088, de julho de 1874) para habilitar os professores para o ensino primário. No entanto, se o Curso Normal abrira “em 20 de Agosto de 1873, [e fora] frequentado por 59 alumnos” (Marques, 1876, p. 50), a sociedade não conseguiu diplomar nenhum professor (Viveiros, 1936).

11Tendo deixado de funcionar e estando o prédio arruinado, o dr. Jose Manoel de Freitas, então Presidente da Província, dando execução ao artigo 11 da lei n. 1.155, de 5 de setembro de 1876, mandou que fossem indenizados os credores da dita sociedade, passando o referido prédio a ser próprio provincial (Castellanos, 2011, p. 70).

12Ver Castellanos (2020).

13Instalada na Rua Formosa, sua comissão administrativa foi integrada pelo dr. Antonio de Almeida Oliveira, o dr. Gentil Homem de Almeida Braga e Policarpo José Pinheiro, segundo o Almanak do Diário do Maranhão de 1875, e teve como bibliotecário do estabelecimento Albano Jansen P. de Lima, segundo o Almanak do Diário do Maranhão (1878).

14Criado pela lei n. 77, de 24 de julho de 1838. Ver Castro (2009a).

15Escola criada em 1865, com a finalidade de recolher meninos pobres e desvalidos e dar-lhes uma instrução profissional agrícola.

16Estatuto do Liceu, 1838. Ver Castro (2009a).

17Duas palavras sobre a nossa lavoura. Temática divulgada no jornal O Globo (1859, n. 57, p. 1).

18Considerado pela crítica nacional e estrangeira um grande romance maranhense, que recompõe “a luta épica da raça negra no processo de nossa formação histórica” (Montello, 1917, quarta capa).

Financiamento: O estudo recebeu financiamento da Fundação de Apoio à Pesquisa e Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão (FAPEMA).

REFERÊNCIAS

ALMANAK DO DIÁRIO do Maranhão. São Luís: Tipografia de Belarmino de Mattos, 1866. 43 p. [ Links ]

ALMANAK DO DIÁRIO do Maranhão. São Luís, 1874. 4 p. [ Links ]

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Recebido: 16 de Outubro de 2020; Aceito: 15 de Junho de 2021

Samuel Luís Velázquez Castellanos é doutor em Educação Escolar pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). Professor da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). E-mail: samuel.velazquez@ufma.br

Conflitos de interesse: O autor declara que não possuir nenhum interesse comercial ou associativo que represente conflito de interesses em relação ao manuscrito.

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