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Revista Brasileira de Educação

versão impressa ISSN 1413-2478versão On-line ISSN 1809-449X

Rev. Bras. Educ. vol.27  Rio de Janeiro  2022  Epub 11-Nov-2022

https://doi.org/10.1590/s1413-24782022270108 

Artigos

Ensino remoto como uma alternativa obrigatória: escola públicasob ameaça?

ENSEÑANZA REMOTA COMO ALTERNATIVA OBLIGADA: ESCUELA PÚBLICA BAJO AMENAZA?

Carmen Teresa Gabriel Le RavallecI 
http://orcid.org/0000-0001-9503-6740

Marcela de Moraes CastroI 
http://orcid.org/0000-0002-1507-8463

IUniversidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.


RESUMO

O artigo inscreve-se nas disputas pela hegemonização de um sentido particular de escola pública democrática em tempos de coronavírus, nos quais o ensino remoto se tornou alternativa obrigatória para as políticas educacionais. Em diálogo com as contribuições teóricas pós-estruturalistas, o texto tem por objetivo analisar as disputas entre os processos de significação de termos como acesso universal, democracia, conhecimento escolar, relação com o saber e com a aprendizagem, mobilizados no Plano de Ação Pedagógico elaborado em 2020 pela Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro. A análise desse documento curricular oferece evidências empíricas para a compreensão dos efeitos da intensificação, no contexto pandêmico atual, da articulação discursiva de interesses neoliberais que colocam a instituição escolar sob ameaça. Ao longo de nossa argumentação, buscamos explorar, para além da linguagem da denúncia, possibilidades de reinvenção para uma possível escola de depois.

PALAVRAS-CHAVE políticas educacionais; políticas de currículo; escola pública democrática; ensino remoto; contexto pandêmico

RESUMEN

El artículo se enmarca en las disputas por la hegemonización de un sentido particular de escuela pública democrática en tiempos dela coronavirus, en el que la educación a distancia se convierte en una alternativa obligatoria para las políticas educativas. En diálogo con los aportes teóricos postestructuralistas, el texto tiene como objetivo analizar los procesos de significación de términos como acceso universal, democracia, conocimiento escolar, aprendizaje y relación con saber movilizados en el Plan de Acción Pedagógica elaborado en 2020, por la Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro. El análisis de este documento curricular ofrece subsidios para la comprensión de los efectos de la intensificación, en el actual contexto pandémico, de la articulación discursiva de los intereses neoliberales y negacionistas que ponen en peligro la institución escolar. A lo largo del argumento, tratamos de explorar, más allá del lenguaje de la denuncia, las posibilidades de reinvención para una escuela del después.

PALABRAS CLAVE políticas educativas; políticas curriculares; escuela pública democrática; enseñanza remota, contexto pandémico

ABSTRACT

This article is part of the disputes to hegemonize a particular sense of the democratic public school in times of coronavirus, in which distance education becomes a mandatory alternative to educational policy. Conversing with post-structuralist theoretical contributions, the paper aims to analyze the processes of signifying terms such as universal access, democracy, school knowledge and learning such as mobilized in 2020 in the Pedagogical Action Plan of the State Secretariat of Education of Rio de Janeiro. This analysis offers empirical evidence for an understanding of the effects of the intensification, in the current pandemic context, of the discursive articulation of neoliberal interests which put the school under threat. By developing such an argument, we seek to explore, beyond the language of denunciation, possibilities to reinvent a possible school of afterwards.

KEYWORDS educational policies; curricular policies; democratic public school; distance learning; pandemic context

INTRODUÇÃO

Este texto tem por objetivo entrar no debate sobre as disputas em torno do significante escola pública democrática nestes tempos inéditos — decorrentes da pandemia da doença por coronavírus (COVID-19) —, nos quais a modalidade de ensino remoto1 tende a tornar-se uma alternativa obrigatória2 nas redes de escolas públicas do país.

Para tal, escolhemos como objeto de análise o Plano de Ação Pedagógico elaborado, no primeiro ano da pandemia, pela Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro (SEEDUC-RJ), divulgado por circular interna (CI) expedida pela SEEDUC e pela Subsecretaria de Gestão da Rede de Ensino (SUGEN), por meio do Sistema Eletrônico de Informações (SEI), em 23 de abril de 2020. A escolha desse documento curricular justifica-se por sua intencionalidade em configurar-se como texto orientador da política educacional para a educação no estado fluminense, assumindo a função regulatória normativa.

Do ponto de vista teórico-metodológico, apoiada na confluência das contribuições do campo das Políticas Públicas Educacionais e das Políticas do Currículo, que operam com base em abordagens pós-estruturalistas/pós-fundacionais (Laclau, 2011; Laclau e Mouffe, 2015; Marchart, 2009; Mouffe, 2003; 2014; 2016; 2017; 2020), a análise busca interpretar as estratégias discursivas mobilizadas, nesse documento específico, pelos diferentes interesses políticos em jogo. Nesta perspectiva, a análise do discurso como recurso metodológico privilegiado é redimensionada também como referencial teórico na medida em que está estreitamente relacionada à Teoria do Discurso de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe (2015).

A hipótese com a qual trabalhamos consiste em afirmar que, no atual contexto pandêmico, o debate sobre a introdução da modalidade de ensino remoto nas redes públicas, ainda que anunciada como emergencial e provisória, tende a reatualizar no cenário político internacional contemporâneo tensões e disputas clássicas do campo educacional pela hegemonização de projetos particulares de sociedade, de universidade, de escola. Dependendo da forma como a política de implementação do ensino remoto é pensada e implementada nas escolas das redes públicas, corremos o risco de colocar seriamente a instituição pública escolar sob ameaça, radicalizando movimentos que nestas últimas décadas, por meio de críticas e denúncias ancoradas nas mais variadas perspectivas teóricas, vêm insistindo em considerá-la “sob suspeita” (Gabriel, 2008).

Seguindo essa linha argumentativa, interessa-nos mais precisamente explorar, entre tais tensões, os efeitos nas lutas pela significação, inseridas na nova configuração da ordem do capital nomeada por Mouffe (2020) como “capitalismo estatizado”, de termos — acesso universal, democracia, conhecimento escolar, relação com o saber e aprendizagem — recorrentemente mobilizados no processo de definição de escola pública. Segundo essa autora, trata-se de o Estado e seus entes federados assumirem uma orientação política de caráter neoliberal, por meio da qual o poder público tende a financiar grupos privados.

No caso específico deste texto e considerando-se a hipótese anteriormente mencionada, caberia, pois, analisar o Plano de Ação Pedagógico da SEEDUC (Rio de Janeiro, 2020), percebido como produtor de sentidos para o movimento de introdução do ensino remoto em contexto pandêmico na rede estadual do Rio de Janeiro, de forma a dar visibilidade a traços discursivos que podem ser interpretados como indícios da afirmação e estabilização dos interesses privados no campo educacional.

A justificativa para a escolha desse documento como campo empírico fortalece-se, para além de sua intencionalidade normativa, como já destacado, também pela própria natureza da temática que ele aborda. Afinal, não é por acaso que autores como Fiormonte e Sordi (2019) afirmam que a adoção de uma política como a do ensino remoto tende a favorecer, ampliar e fortalecer um quantitativo de potenciais consumidores no mercado de produtos virtuais. Cabe igualmente destacar que no estado do Rio de Janeiro (RJ) — inspirado nas orientações das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), traduzidas pela campanha #AprendizagemNuncaPara — o ensino remoto tem sido ofertado pela SEEDUC em parceria com a empresa Google3 e o conteúdo escolar oferecido por meio da plataforma do Classroom, sem custo para a rede no período da pandemia, de acordo com a plataforma da UNESCO (2020). Importa sublinhar, todavia, que o escopo da análise proposta é menos o de tecer uma crítica negativa do documento selecionado (ou defender um desenho “mais acertado” de política educacional) do que o de interpretá-lo como uma superfície textual tecida em meio às lutas pela significação de escola pública democrática na conjuntura atual.

Entendemos que o que está em disputa, neste momento, não é uma questão de decisão entre modalidades de ensino distintas (presencial ou remota), mais ou menos adequadas — até porque o ineditismo de nosso tempo presente, ao reduzir ou impedir a possibilidade de atuação presencial, não nos deixa muita margem de escolha. O que está em jogo é a defesa de uma escola pública, laica e democrática para todes, em tempos virtuais. Trata-se assim de mantermos o foco na luta pela democratização do acesso à educação e da permanência nela em uma sociedade desigual como a nossa. Se não podemos afirmar que a pandemia é responsável pelo traçado da linha abissal (Santos, 2007), marca de nossa sociedade, sem dúvida ela escancara, sem pudor, a desigualdade social e seus efeitos na relação com o conhecimento, podendo aprofundar o fosso entre os que podem e os que não podem ter acesso à escolarização. É o que apontam os resultados sistematizados de cinco estudos realizados entre maio e julho de 2020 no país, no informe Retratos da educação no contexto da pandemia (Lima, 2020).

Afinal, como continuar apostando na defesa de uma escola pública, laica e democrática para todes — perante o redimensionamento das demandas que interpelam a instituição escolar em função da crise sanitária —, em uma conjuntura na qual o Estado e seus entes subnacionais, como é o caso do Rio de Janeiro, tendem a incorporar projetos privatistas mobilizados por interesses que deslocam da agenda política cotidiana a dimensão política do social em detrimento do econômico? Quando sabemos que a implementação de plataformas como suporte do processo de ensino-aprendizagem, além de fortalecer a desterritorialização da instituição escolar, no sentido de que fala Haesbaert (2018), como espaço de representação da política democrática, desloca igualmente o compromisso social do estado com os alunos da rede, essa questão não é de fácil resposta. O desafio que está posto exige, pois, que continuemos a pensar politicamente essa instituição de forma a reafirmar sua imprescindibilidade na construção de uma ordem social democrática em um terreno movediço, no qual os riscos de intensificação de sua precarização aumentaram exponencialmente.

Organizamos nossos argumentos em três seções, além desta introdução. Na primeira, discutimos, em linhas gerais, a potencialidade da análise do discurso na perspectiva pós-estruturalista/pós-fundacional, destacando o que essa abordagem metodológica nos permite produzir como leitura política do documento curricular em foco. Na segunda seção, exploramos as lutas pela significação de acesso universal e democracia em tempos de ensino remoto tal como fixado no documento selecionado. A terceira parte focaliza, nesse texto curricular, traços das lutas pela significação de termos como conhecimento escolar, relação com o saber e aprendizagem, que desempenham uma função discursiva incontornável no processo de definição da escola.

UMA LEITURA POLÍTICA POSSÍVEL DE TEXTOS CURRICULARES

A análise do discurso do documento curricular selecionado, na perspectiva teórico-metodológica aqui privilegiada, apresenta forte potencial heurístico que vem sendo explorado tanto no campo das políticas públicas quanto no do currículo. Para melhor compreensão dessa afirmação, importa explicitar o próprio sentido de discurso hegemonizado no âmbito do quadro de inteligibilidade elaborado por Ernesto Laclau, que atravessa toda a sua obra. Visto como totalidade estruturada resultante de práticas articulatórias (Laclau e Mouffe, 2015), o discurso como categoria teórica — e não descritiva ou empírica — procura dar conta das regras de produção de sentido pelas quais determinado fenômeno encontra seu lugar no mundo social e em determinada formação discursiva. Nesse sentido, a teoria do discurso analisa

[…] o modo pelo qual forças políticas e atores sociais constroem significados dentro de estruturas sociais incompletas e indecidíveis. Isto é alcançado por meio do exame de estruturas particulares dentro das quais os agentes sociais tomam decisões e articulam projetos hegemônicos e formações discursivas. Além disso, teóricos do discurso procuram localizar essas práticas e lógicas investigadas em contextos históricos e sociais mais amplos, de maneira que eles possam adquirir uma significação diferente e fornecer a base para uma possível crítica e transformação de práticas e significados sociais existentes. (Howarth, 2000, p. 3, tradução nossa)

Apostamos que esse entendimento de discurso pode tanto oferecer elementos para fazer avançar os debates que envolvem a questão metodológica da linguagem no fazer pesquisa no campo educacional quanto produzir leituras políticas instigantes do social. Afinal, uma concepção de discurso que parte do entendimento de que o significado se define por sistemas particulares de diferenças — “algo é o que é somente por meio de suas relações diferenciais com algo diferente” (Laclau, 2005, p. 92) — pode abrir pistas interessantes para identificar as regras e convenções específicas que estruturam a produção de significados (supostamente universais) em contextos históricos particulares (Howarth, 2000).

Como documentos particulares produzidos, pois, em condições históricas específicas, os textos curriculares, como, por exemplo, o Plano de Ação Pedagógico, reatualizam mecanismos por meio dos quais o significado é produzido, fixado, contestado e subvertido (Howarth, 2000). Nessa perspectiva, a análise aqui pretendida busca explorar os processos de significação mobilizados no documento elaborado pela SEEDUC para regular a implementação do ensino remoto nas escolas de sua rede, que envolvem as lutas pela fixação e hegemonização de sentidos particulares de escola pública democrática.

Este texto investe e contribui para a compreensão dessas lutas apoiada no entendimento de significantes como acesso universal, democracia, conhecimento escolar, relação com o saber e aprendizagem. A escolha desses termos não foi aleatória, na medida em que eles tendem a condensar, quando articulados na mesma cadeia de equivalência, um sentido possível da função social e política da instituição escolar. Os dois primeiros foram objeto de análise da primeira seção, com o intuito de explorar os efeitos da implementação do ensino remoto, tal como expresso no Plano de Ação Pedagógico (Rio de Janeiro, 2020), nas disputas por suas respectivas definições. Na terceira parte do texto, enfocamos o entendimento da relação com o saber/conhecimento escolar hegemonizada no documento curricular selecionado, particularmente no que concerne à questão da aprendizagem no âmbito dessa instituição. O que está em jogo são as estratégias discursivas de reatualização dessa relação em tempos de ensino remoto. Nossa defesa por um distanciamento de perspectivas tanto conteudistas quanto conteudofóbicas (Veiga-Neto, 2012) exige buscar outras possibilidades de compreensão para o sentido atribuído a termos como conhecimento, saber e conteúdo (Gabriel, 2016; 2017; Gabriel e Moraes, 2014), bem como para o entendimento em que nos interessa investir — da própria ideia de “relação” (Gabriel, 2018) por meio da qual os sujeitos posicionados como docentes e discentes se relacionam com o conhecimento objetivado para ser ensinado/aprendido. Esse recorte pode ser visto como a forma escolhida para, do lugar de pesquisadoras do campo educacional e de formadoras de professorxs, participar dessa luta.

Como ressalta Mouffe (2003; 2016) em seus estudos sobre possibilidades de leitura política do social em nosso presente, a conjuntura atual vem afirmando uma proposta ameaçadora das instituições democráticas, mas, ao mesmo tempo, como toda e qualquer conjuntura, está sempre passível de abertura para a ação democrática. Assim, no que concerne à disputa pela hegemonização de um sentido particular de escola pública, Mouffe (2014) oferece-nos pistas que possibilitam a criação de condições para outra hegemonia, que pode recuperar o sentido de escola pública no qual apostamos, rasurando o sentido particular de escola que vem sendo propagado e reafirmado em tempos de ameaças a essa instituição.

Para essa autora, nas lutas pela significação e hegemonização de um sentido particular de democracia, o desafio consiste em arquitetar uma composição de lutas “parlamentares e extraparlamentares” (Mouffe, 2014) que se baseie nas demandas dos grupos em oposição ao hegemônico que favoreça “a emergência de toda a diferença, plasmada em demandas sociais, no campo da discursividade política, de diferentes sociedades” (Rodrigues, 2017, p. 27). Para Mouffe (2020), a crise de coronavírus, ao exacerbar as desigualdades e dependendo da forma como as forças sociais se apropriem do momento político, torna possível o anúncio do esgotamento do modelo neoliberal em direção a uma radicalização da democracia.

Esta escrita inscreve-se, assim como sugere Mouffe (2003), num tempo político e teórico. Político porque representa nossa aposta na escola pública em relação às ameaças que vem sofrendo, como instituição pública, nos discursos neoliberais reconfigurados no campo educacional; e teórico por entendermos que o ato de teorizar, na pauta pós-fundacional, pode criar condições para fazer trabalhar de forma produtiva as tensões e aporias acirradas pela pandemia e, desse modo, ampliar o campo de possibilidades de entendimento no que concerne ao sentido dessa instituição social.

Nestes tempos inéditos, os efeitos dessas lutas no campo educacional acentuam a máxima difundida de que o trabalho docente se definiria pela necessidade permanente de decidirmos na urgência e agirmos na incerteza (Perrenoud, 2001). Com efeito, se as demandas de cada presente inscrevem-se em contextos indecidíveis que constituem as diferentes dimensões do social, as de nossa contemporaneidade — marcada por uma crise sanitária em escala planetária — redimensionam as urgências e incertezas, permitindo maior visibilidade às contradições e ambivalências que atravessam os processos de escolha e de validação de uma política que emerge das fissuras presentes em todo e qualquer significado contingencialmente fixado.

Como alerta Santos (2020), a COVID-19, que parece contrapor-se a uma situação de normalidade, atua como um oxímoro: ao mesmo tempo em que se apresenta como crise sanitária, econômica e social, contribui para a produção da condição de possibilidades para a afirmação de um sistema que se movimenta e se institui pautado pelos agravamentos provocados pelo modo como esse sistema se fundamenta. A pandemia como causa gera a demanda de ensino remoto, mas como efeito responde às demandas formuladas por um projeto de caráter neoliberal que sustenta o desenho do ensino remoto, tal como adotado no estado. A crescente associação do neoliberalismo à lógica de articulação com o capital financeiro permite explorar o sentido fissurado de escola, de forma a fortalecer um “ciclo político” (Errejón e Mouffe, 2016) no qual o Estado e seus entes federados assumem de modo frontal a prevalência de tal lógica na construção de políticas educacionais, com atenção questionável para a dimensão social. Desse modo, como alertam os Retratos da educação no contexto da pandemia, o processo educacional fundamenta-se não somente como o “reflexo das desigualdades produzidas lá fora mas também ele próprio, como um fator que pode acirrar tais desigualdades” (Lima, 2020, p. 11, grifos do original).

Nesse contexto, a retirada, da agenda política, da pauta da defesa de um projeto de construção e consolidação de uma escola pública, laica e democrática é percebida como possibilidade que — embora esteja sempre posta, exigindo vigilância constante por parte dos defensores de uma justiça social cognitiva (Santos, 2007) — hoje, em função do cenário político nacional e internacional, tem maiores chances de tornar-se hegemônica. Que estratégias discursivas são mobilizadas no documento selecionado para o enfrentamento dessas tensões?

Interessa-nos, mais particularmente, analisar os sinais de deslocamentos produzidos no entendimento de escola pública democrática com a introdução do adjetivo remoto para caracterizar as práticas pedagógicas que a configuram como instituição. Com efeito, na atual conjuntura de crise sanitária, não apenas as lutas pela significação do termo ensino remoto são reativadas, mas também aquelas que disputam os próprios sentidos de escola pública e de democracia, como já argumentado anteriormente. Na leitura do texto político produzido para o ensino remoto, é possível perceber que a reatualização e a recontextualização das demandas pela universalidade do acesso ao conhecimento, via ferramentas tecnológicas, estão atravessadas por disputas pela fixação de um sentido particular de escola pública entre grupos de interesses neoliberais, que se apresentam como defensores do direito à educação escolar, e aqueles que emergem dos movimentos sociais, cujas reivindicações históricas de igualdade expressam-se também nas lutas pela democratização da escola.

Não se trata aqui de reforçar leituras dicotômicas, tampouco posições tecnofóbicas no campo educacional. Afinal, não é de agora que vem se configurando um movimento crescente de desestabilização da escola pública como lócus de produção de políticas curriculares, de conhecimento escolar e de subjetividades. Argumentamos, todavia, que se o avanço de uma agenda conservadora pós-eleição 2018 reforça na arena política a ideia de uma escola pública “sob suspeita” (Gabriel, 2008; Gabriel e Moraes, 2014), ou do ensino “sob suspeita” (Macedo, 2012), por meio da denúncia da “não qualidade” dessa instituição referenciada em parâmetros avaliativos como o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), o distanciamento físico imposto e necessário no combate a esta pandemia abre a possibilidade, para alguns grupos de interesse que participam do atual jogo político, de explorar e radicalizar essa fissura de tal sentido de escola.

Até então, se movimentos como os da Escola Sem Partido, da Educação Domiciliar (Homeschooling), das reformas curriculares da educação básica em torno da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (Brasil, 2017) e da Reforma do Ensino Médio preconizada pelos reformadores educacionais (Gabriel, 2017) investem em sentidos particulares de escola, conhecimento e democracia dos quais nos afastamos radicalmente, eles deixam, ao menos, margem para que seja atribuído à instituição escolar algum crédito. No presente contexto, instaurado pela COVID-19, essa condição começa a ceder lugar, nos textos políticos, a uma deslegitimação ou negação mais acentuada dessa instituição. O sentido de escola pública é recolocado no jogo político, agora atravessado pelas disputas dos processos que induzem sua própria desinstitucionalização.

Parafraseando Krenak (2019) quando afirma que “[…] nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade e do próprio sentido da vida” (Krenak, 2019, p. 26) e apostando que a escola, ainda que sob suspeita, pode ser — e é —, para muitos jovens, um espaço importante de aprendizado do “viver em sociedade” e de produção do “próprio sentido da vida” no sentido de “oportunizar a construção de trajetórias mais autônomas e menos compulsórias”, como argumentam Amaral e Castro (2019), interrogamo-nos sobre as possibilidades que estão abertas para a definição dessa instituição em função da pandemia da COVID-19. Nessa perspectiva, não caberia o alerta sobre o fato de — sob o argumento do imponderável decorrente da pandemia que recoloca no jogo político o entendimento de escola — as políticas educacionais, dependendo de como enfrentam os desafios e as demandas de nosso presente, estarem contribuindo paradoxalmente para a criação da ausência — da instituição escolar — de que nos fala Krenak (2019)?

A formulação desse alerta pauta-se no próprio entendimento do jogo político tal como defendido por Mouffe (2017) e mencionado anteriormente. Essa autora aponta a importância política da ideia de “fronteira” nas lutas pela significação, de modo a indicar a presença dos antagonismos entre as proposições de projetos distintos de sociedade e, consequentemente, de escola, de ensino e de sociabilidade nessa instituição. Afinal, a aporia da inevitabilidade e da impossibilidade — que atravessa as lutas contingenciais entre diferentes grupos de interesse e tem como horizonte o indecidível — manifesta-se com maior força no momento do corte/fronteira entre o que está sendo e o que não está sendo significado como tal. Ocupar o lugar da fronteira é ocupar provisoriamente o lugar da hegemonização de um sentido particular atribuído a um significante e, simultaneamente, produzir seu sentido antagônico.

Produzir leituras políticas no campo da educação remete à reflexão sobre “planos das orientações para a ação” (Lima, 2003), o que inclui reflexões que promovam rasuras no “plano da ação” (Lima, 2003); rasuras estas que permitam o deslocamento de um ordenamento de caráter prescritivo, positivo, para o campo de possibilidade da ação prática da norma. Importa, pois, indagarmos qual planejamento, ou qual ação educativa, é possível ou interessa-nos articular no contexto prático do ensino remoto. Ou podemos entender o ensino remoto como forma de vínculo pedagógico com o espaço (re)institucionalizado da escola que ainda poderá vir a ser (re)territorializado na escola de depois?

SENTIDOS DE “ESCOLA PÚBLICA DEMOCRÁTICA” EM DISPUTA

A leitura do Plano de Ação Pedagógico (Rio de Janeiro, 2020) permite constatar, logo de início, que uma dessas estratégias consiste em operar com uma cadeia de definição de ensino remoto construída no preenchimento das fissuras que desestabilizam as lutas pela hegemonização de um sentido particular de ensino a distância. Essa manobra discursiva permite investir em outros sentidos que escapam à estrutura de um campo de ensino constituído e regulamentado. A leitura do excerto a seguir mostra a ampliação e a diversificação do campo de possibilidades de definição para o ensino remoto:

[…] o ensino remoto não se confunde com o ensino a distância, o último trata-se de uma modalidade de ensino com natureza e singularidade próprias. O ensino remoto por sua vez, extrapola as possibilidades fornecidas por uma plataforma digital, ele diz respeito a um conjunto de ações pedagógicas que fazem uso de diferentes ferramentas e estratégias e mobilizam atores diversos, como os alunos e suas famílias. (Rio de Janeiro, 2020, p. 4)

A justificativa enunciada nesse documento para a implementação do ensino remoto e seus efeitos no entendimento da produção de políticas curriculares também oferece pistas de estratégias discursivas para tal feito. Interessante observar que elas encerram tensões que mobilizam as disputas entre os diferentes grupos de interesse que participam do jogo político por meio das demandas de acesso e de igualdade. Segundo o extrato a seguir do Plano de Ação Pedagógico da SEEDUC (Rio de Janeiro, 2020), seus esforços são na direção de alcançar dois objetivos: 1) “[…] garantir a todos os alunos, indistintamente, a possibilidade de prosseguir estudando enquanto durar essa situação de exceção […]”; e 2) “minimizar o prejuízo aos estudos de seus alunos durante o período do afastamento, bem como garantir que sejam mantidos os vínculos entre escola-aluno/aluno-escola” (Rio de Janeiro, 2020, p. 3).

Importa aqui sublinhar as estratégias discursivas mobilizadas no documento em questão para justificar a articulação do setor público com grupos privados, como possibilidade de enfrentamento da atual crise da escola de forma a atingir os objetivos traçados. O trecho a seguir apresenta um exemplo de articulação que busca dar conta dos diferentes interesses em jogo. Percebe-se, por parte dos representantes do estado, um deslocamento do discurso em defesa do acesso universal para os alunos da rede fluminense centrado na ideia de dever do Estado para aquele pautado no direito à aprendizagem.

De maneira a garantir a todos os alunos, indistintamente, a possibilidade de prosseguir estudando enquanto durar essa situação de exceção, a Secretaria ensejou esforços para estabelecer a parceria com a Google LLC, de maneira a elaborar o planejamento, suporte, acompanhamento e efetivo uso de recursos pedagógicos para a oferecer a nossos estudantes, professores e equipe técnico-pedagógica a oportunidade de manter vivo o processo de ensino-aprendizagem. (Rio de Janeiro, 2020, p. 5)

Os objetivos que sustentam essa política, explicitados nesse documento, desenham algumas possibilidades de fixação de sentidos sobre o entendimento de escola democrática ou democratização do ensino que nos parecem relevantes. Primeiramente, o compromisso da política do estado do Rio de Janeiro que anuncia como premissa a defesa da igualdade de acesso, indicada pela mobilização do significante “todos” e reforçada pelo termo “indistintamente”. Tais como mobilizados, esses significantes permitem uma primeira interpretação que remete ao dever do Estado com a educação pública para todes, previsto constitucionalmente e como objeto da Lei de Diretrizes e Bases (Brasil, 1996), assumindo o estado do Rio de Janeiro — como ente federado — a responsabilidade de equacionar o problema.

A segunda possibilidade de interpretação consiste em afirmar que, nesse documento, a justificativa para o agravamento da situação de desigualdade estaria mais articulada às dificuldades materiais da oferta do ensino remoto do que às implicações dessa oferta para o processo de ensino-aprendizagem em um contexto marcado por profunda injustiça social cognitiva. Assim, a superação da desigualdade nesse domínio, condição incontornável para a afirmação de uma escola democrática, pode ser tratada como algo de excepcional. O horizonte da democracia, que tende a ampliar a participação de todes no processo, é reduzido à eficácia de um planejamento que se propõe mitigar a desigualdade entendida como imposição de uma situação de exceção e não como estruturante de um sistema social que amplia sistematicamente a exclusão social de um grupo específico da população.

É nessa lógica que se inscreve a justificativa da SEEDUC para a opção pela plataforma do Google. Ela é anunciada no texto como solução “em razão da facilidade de acesso (seja por dispositivos móveis, notebooks, pc, dentre outros), como uma interface amigável e simples de operacionalizar”4 (Rio de Janeiro, 2020, p. 5, grifos nossos). A falta de acesso universal, que expõe a precariedade do processo de hegemonização do ensino remoto como alternativa obrigatória, tenta ser resolvida pelo estado por meio da viabilização do “uso prático da Plataforma”, com a transferência dos alunos para o ambiente virtual escolhido, “com o espelhamento do sistema de gestão do estado” (Rio de Janeiro, 2020, p. 5, grifos nossos). Segundo o documento, com a

[…] migração, foi possível atribuir uma conta institucional para cada aluno, professor e equipe técnico-pedagógica e de posse dessa conta, os beneficiários obtêm diversos benefícios, tais como: personalização de recursos, direcionamento automático dos membros da Secretaria para suas respectivas salas de aula, armazenamento de e-mail ilimitados, possibilidade de realização de videoconferências com grande número de pessoas, além da interação com membros da mesma instituição, dentre outras possibilidades. (Rio de Janeiro, 2020, p. 6)

A compreensão de que a perspectiva de acesso universal estaria associada ao significante “uso prático” minimiza a questão socioeconômica dos alunos que não têm como arcar com os custos de um pacote de dados para uma plataforma de uso contínuo, por exemplo, e, ainda assim, recai sobre a falsa premissa de que o letramento tecnológico assume caráter universal. Assim, a leitura do documento deixa entrever que essa outra fissura tende a ser igualmente preenchida, na tentativa de estabilização do acesso ao ensino remoto com vistas à democratização, pela promessa de disponibilização de chips com acesso à internet para alunos e professores no intuito de oferecer “equidade no período de ensino não presencial” (Rio de Janeiro, 2020, p. 10, grifo nosso) — logo considerada como horizonte impossível de materialização. A falta de êxito dessas ações, que se configuraram apenas como promessas somadas à proposição de uma formação aligeirada para os professores com vistas a sua adaptação para uma modalidade de ensino para a qual não foram formados, dificulta o preenchimento do significante todes e, consequentemente, a consolidação da associação buscada entre ensino remoto e democratização.

Um exemplo da fragilização dessa cadeia de significação pode ser encontrado na denúncia do ensino remoto por parte de alunos da rede, que passam a antagonizar o discurso da SEEDUC, como sugere o Dossiê sobre o EaD na rede estadual em tempos de pandemia da Associação dos Estudantes Secundaristas do Estado do Rio de Janeiro (AERJ), publicado em maio de 2020:

O relatório nos diz que 30,8% dos estudantes não dispõe de internet suficientemente boa ou os 28,4% sem dispositivo adequado. Além disso, possuem uma forte confusão em entender o funcionamento do EaD, sem contar a compreensão da matéria passada pelo professor. Tanto é que somente 19,9% avalia que os professores estão preparados para ministrar os conteúdos online, fruto de uma mudança abrupta na realidade desses mestres que foram forçados a se adequar de uma hora pra outra. (AERJ, 2020, p. 4)

Mediante o reconhecimento da impossibilidade de preencher as fissuras relacionadas ao acesso tecnológico, outras estratégias são elencadas no próprio documento, tais como:

  1. “aulas na TV Aberta e TV Alerj, alinhadas com o Currículo Básico, para todas as séries do Ensino Fundamental e Ensino Médio” (Rio de Janeiro, 2020, p. 8);

  2. “a impressão do material de estudo — atividades autorreguladas — para atender de ‘maneira equânime, todos os estudantes’ […] a fim de que possam permanecer estudando no período de afastamento, minimizando, assim, as perdas pedagógicas decorrentes da ausência de aulas presenciais” (Rio de Janeiro, 2020, p. 9); e

  3. um serviço de ouvidoria para que estudantes entrem em contato para “colocar suas dúvidas, solicitar orientações e auxílio no planejamento de sua rotina de estudos” (Rio de Janeiro, 2020, p. 10).

Nessa mesma linha argumentativa, o documento explicita as medidas previstas para atender à diversidade de perfis socioculturais dos alunos da rede. Sobre o atendimento aos indígenas e quilombolas, afirma que o ensino será dado aos primeiros na forma presencial após o período de isolamento social, na medida que o mapeamento da SEEDUC constatou que a grande maioria dos alunos não possui telefone celular, tablet ou computador (Rio de Janeiro, 2020). No que se refere aos quilombolas, informa que “a SEEDUC não tem escolas exclusivamente quilombolas” e, portanto, esses estudantes recebem “as mesmas oportunidades e tratativas pedagógicas dos demais alunos da rede estadual no tocante às estratégias regulares já apresentadas para a rede” (Rio de Janeiro, 2020, p. 20). Com relação aos alunos da Educação de Jovens e Adultos das Unidades Escolares Prisionais e Socioeducativas, as aulas constituem-se pela “emissora de televisão em canal aberto, vídeos do telecurso e do Revisa ENEM” no “formato das atividades autorreguladas” (Rio de Janeiro, 2020, p. 25). Por fim, as estratégias pedagógicas para os alunos que são público-alvo da Educação Especial indicam orientações diversificadas, elaboração de textos acessíveis para alunos com deficiência visual, com surdez e demais deficiências (Rio de Janeiro, 2020), para serem utilizadas na plataforma, enquanto outro grupo, referente aos estudantes com “deficiência intelectual, física, autistas, etc. que apresentem grau de severidade inviabilizando o acesso à plataforma, devem ser notificados ao Diretor da Unidade Escolar para que seja verificado junto à Diretoria Regional, a logística de suporte pedagógico” (Rio de Janeiro, 2020, p. 18).

A leitura dessa proposta pedagógica ressalta um paradoxo na enunciação formulada pela SEEDUC: de um lado a justificativa de uso da tecnologia como recurso de aprendizagem para todes, atuando como petição de princípio de valor universal para os estudantes da rede; e, de outro, o reconhecimento de sua falácia no que tange à possibilidade de garantir o acesso universal. Ao propor outras estratégias que incluem, por exemplo, a proposta de envio de material impresso pelo correio, o documento reatualiza um sentido de proposta de aprendizagem remota datado da década de 1960, ou mesmo dos anos de 1980, quando o uso da televisão como recurso tecnológico passou a assumir relevante papel no processo de aprendizagem. Muito embora o discurso mobilizado no Plano de Ação Pedagógico busque justificar o uso das tecnologias para o ensino remoto como “desafio a ser vencido, por toda a comunidade escolar” (Rio de Janeiro, 2020, p. 11), que precisa entender as novas relações implicadas entre o ensinar e o aprender, transformadas diante “de um ambiente escolar para além dos muros físicos e permanentes da escola, como tradicionalmente a conhecemos” (Rio de Janeiro, 2020, p. 11), nesse mesmo documento esse discurso abre brechas e tem dificuldade de se afirmar quando apresenta outras alternativas de entendimento do ensino remoto que não passam necessariamente pelo uso das tecnologias da informação e da comunicação no tempo presente. Fica claro que a articulação direta entre facilidade de acesso e ferramenta tecnológica, embora se apresente como horizonte desejável na garantia da democratização do ensino nessa rede, não consegue se firmar como operação hegemônica.

Em vez de denunciar o fracasso dessas tentativas de hegemonização ou problematizar os eventuais efeitos nocivos de tal articulação, interessa-nos sublinhar seus efeitos nos sentidos de democratização da educação escolar que ela mobiliza. A pertinência desse interesse justifica-se quando reconhecemos que democratização do acesso a dados móveis ou a ferramentas tecnológicas não significa automática e necessariamente a democratização do acesso ao conhecimento, e a pesquisa do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação5 (CETIC.BR, 2020) corrobora essa linha argumentativa. Esse estudo aponta o fato de que não podem ser consideradas como grandezas diretamente proporcionais o crescimento da posse de celulares e a democratização dessa tecnologia na possibilidade de entrada em uma cultura tecnológica, pois indagações quanto aos usos desse dispositivo podem ser elencadas na relação que implica a qualidade e a frequência dessa conexão como elementos que induzem aos questionamentos sobre o efeito dessa adoção para o aproveitamento de oportunidades online. Assim, indagamos: a quem interessa, pois, esse discurso que tenta se afirmar nesse dispositivo de estabilização que é o texto político analisado?

A nosso ver, os elementos discursivos que vêm sendo agregados para unificar a defesa do ensino remoto na educação do estado apresentam indícios da presença de uma articulação hegemônica entre grupos de interesses, que se alinham a projetos que tendem a estruturar a defesa de orientações neoliberais. Interpretamos que, nessa conjuntura, a ideia da “escola sob suspeita”, definida em torno do significante “qualidade”, o qual passa a exercer a função discursiva de ponto nodal,6 encontra terreno fértil para desdobrar-se em um modo particular de significar a escola pública: agora não apenas como instituição de baixa qualidade, mas também e sobretudo como lócus inadequado, quando não descartável, para a garantia da efetivação do processo de ensino-aprendizagem. Esse desdobramento ou deslocamento de uma “escola sob suspeita” para uma “escola sob ameaça” não traduz um preciosismo retórico. Ele aponta a nossa preocupação com a intensificação da circulação, no debate político, de discursos neoliberais que não reconhecem o papel político de relevo dessa instituição pública em uma ordem social democrática. Nesta nova agenda, a escola pública, como instituição republicana articuladora de um projeto democrático, tende a se situar cada vez mais fora do campo de significação de uma ordem social que se projeta no contexto do Estado atual.

Como defendemos a seguir, para além do próprio entendimento do significante escola, a defesa de uma escola pública democrática não se reduz à problematização dos meios de garantir o processo de ensino-aprendizagem, mas, principalmente, envolve debates e decisões sobre o que e para que ensinamos. Essa preocupação assume toda a sua complexidade e pertinência em um contexto no qual o sentido de justiça social e, particularmente, o de justiça social cognitiva parece ter assumido configurações mais restritivas, quiçá deixando de ser um objetivo prioritário das políticas públicas educacionais.

QUE RELAÇÃO COM QUAL SABER EM TEMPOS DE ENSINO REMOTO?

Como manter a relação com o conhecimento escolar, via ensino remoto, de forma a afirmar a validade e a pertinência de sua função de democratização, numa sociedade marcada pela desigualdade e pela discriminação de diferentes naturezas? A pertinência desse tipo de questionamento justifica-se em um quadro de inteligibilidade no qual a produção e a distribuição do conhecimento escolar são percebidas como estratégia-chave na construção de um comum (Dardot e Laval, 2015), que contribui para diminuir os privilégios de classe, raça, gênero ou credo.

Esse entendimento da função democratizante do conhecimento escolar não significa a reatualização de relações hierárquicas entre os diferentes saberes que circulam nas culturas universitárias e escolares, tampouco do fetichismo da importância da apropriação instrumental de conteúdos e/ou de competências na melhoria da qualidade da educação, como deixam entender as políticas curriculares atuais. Na postura epistêmica aqui privilegiada, o conhecimento escolar é percebido como resultante de um processo de objetivação permanente e contingencial no qual diferentes elementos podem se articular — conteúdos disciplinares e/ou transversais, percepções de mundo, trajetórias biográficas e identitárias, contextos institucionais, interesses políticos, projetos de sociedades — para a participação da construção de um comum, isto é, de um espaço-tempo nomeado entre que se inscreve a meio caminho do singular e do coletivo, dos processos de objetivação e de subjetivação.

Tal compreensão da definição do conhecimento curricularizado e legitimado como objeto de ensino-aprendizagem no âmbito das culturas escolares permite apreendê-lo como inscrito em disputas permanentes em busca da hegemonização e universalização de sentidos particulares, a despeito da modalidade de ensino privilegiada. Isso significa que não defendemos uma definição unívoca e mais correta desse termo, mas a importância de reconhecer sua dupla inscrição no domínio do político e da política (Mouffe, 2014), o que o coloca simultaneamente como um significante fissurado e, como tal, sempre aberto a novas definições e como dispositivo mobilizado para estabilizar sentidos particulares de projetos de mundo.

A questão que nos interessa mais particularmente aqui explorar tem como foco justamente os efeitos, nas lutas pela significação do termo conhecimento escolar, dessa passagem ou adaptação do ensino presencial para o ensino remoto em tempos de pandemia. Em quais sentidos particulares desse termo a alternativa do ensino remoto — tal como vem sendo implementada pelas políticas educacionais em curso — contribui para consolidar e/ou desestabilizar? Essa mudança de modalidade de ensino contribui para deslocar/consolidar as fronteiras hegemonizadas no processo de definição de conteúdo e/ou conhecimento escolar? A que grupos de interesse que participam do jogo político essa mudança tende a favorecer?

A leitura do documento permite sublinhar que a questão da definição de conhecimento escolar/conteúdo disciplinar não é uma preocupação particular desse texto oficial. Significantes como conhecimento e conteúdo são mobilizados, fazendo circular fluxos de significação sem questionar necessariamente a fixação e hegemonização de certos sentidos particulares em detrimentos de outros possíveis. De maneira geral, ao longo do documento, o termo conhecimento tende a ser associado ora ao adjetivo pedagógico, reforçando sua inserção na cadeia de definição dos saberes particulares do profissional docente, ora ao sentido hegemonicamente fixado de conteúdos como objeto de aprendizagem. Os dois excertos a seguir evidenciam essas variações semânticas.

Neste ambiente virtual, os profissionais da Seeduc encontrarão a formação Jornada da Educação On-Line que tem como objetivo o reconhecimento dos recursos do G SUITE da Google, bem como a apropriação de conhecimento pedagógico para o desenvolvimento da aprendizagem em ambientes on-line. (Rio de Janeiro, 2020, p. 12, grifos nossos)

As aulas serão planejadas e gravadas pelos professores da rede, orientados pela Secretaria, oferecendo conteúdos, reflexões e atividades simples para que os estudantes tenham mais uma oportunidade e ferramenta de estudo. As aulas também ficarão disponíveis virtualmente, para que os alunos possam consultar e aprofundar os conhecimentos aprendidos. (Rio de Janeiro, 2020, p. 9, grifos nossos)

A associação entre conhecimento e conteúdo pode ser evidenciada igualmente quando se trata de atividades formativas impressas no âmbito do ensino remoto.

[…] considerando a estrutura do material enviado que apresenta textos explicativos do conteúdo seguindo de atividades de fixação, bem como uma proposta de exercícios avaliativos que objetiva verificar a apreensão do conteúdo, além de indicação de pesquisa que possibilita ao aluno de maneira autônoma buscar os conhecimentos trabalhados, por ocasião do retorno às aulas proporcionará aos professores a realização de um processo de correção comentada coletivamente e ou individual, identificando possivelmente as lacunas de aprendizagem. (Rio de Janeiro, 2020, p. 25, grifos nossos)

O termo conteúdo, bastante mobilizado na produção desse documento, tende a reatualizar, por sua vez, o sentido particular hegemonicamente fixado nas políticas curriculares recentes e que têm sido, todavia, objeto de problematização no campo curricular há mais de três décadas. Inscrito em uma lógica articulatória de equivalência e de diferença que contribui para reforçar seu fetichismo como elemento incontornável para a garantia do processo de ensino-aprendizagem, o sentido particular desse significante hegemonizado carrega, com efeito, a presença de traços fortes de discursos conteudistas. Nesses discursos, o conteúdo é naturalizado e coisificado, algo previamente definido, fora do jogo de linguagem e de poder que atravessa a relação com o conhecimento estabelecida pelo sujeito-docente/discente. Esse entendimento evidencia-se em vários trechos do documento, como por exemplo quando se trata de expressar a preocupação da SEEDUC no momento de pensar o retorno “à normalidade de aulas presenciais” (Rio de Janeiro, 2020, p. 23). O documento sublinha a necessidade de orientar

[…] estratégias para assegurar que todos os alunos tenham acesso aos mesmos conteúdos, tais como a realização de uma diagnose, cujo resultado dará base às decisões pedagógicas subsequentes, permitindo assim criar ações para recuperar e fortalecer aprendizagens. (Rio de Janeiro, 2020, p. 23, grifo nosso)

Interessante, todavia, sublinhar nesse mesmo documento a presença de fissuras na tentativa de estabilização desse sentido particular para o termo conteúdo, sugerindo-lhe outros fluxos de sentido possíveis, ainda que mobilizados de forma marginal ou mais tímida. Quando lemos no documento, em função do perfil étnico-racial de um percentual de alunos/as dessa rede, que a “SEEDUC […] incluiu de forma transversal ao conteúdo do ensino regular, nas disciplinas de História, Geografia e Arte, a temática ‘História e Cultura Afro-brasileira e Indígena’ dada a importância do tema e em consonância com as Leis n° 10.639/03 e n° 11.645/08” (Rio de Janeiro, 2020, p. 20), é possível considerar movimentos de deslocamentos desse sentido hegemonizado com base na ampliação do campo de conteúdos legitimados como objeto de ensino-aprendizagem. Afinal, esse tipo de inclusão coloca em questão o caráter engessado atribuído aos conteúdos disciplinares. De forma semelhante, a percepção conteudista apresenta máculas quando o termo conteúdo é associado a algo necessário, mas insuficiente para garantir a qualidade do processo educativo. Nesse caso, ele tende a ser mobilizado como o exterior constitutivo de outros objetos ensináveis, como as competências e habilidades. Não é por acaso que essa secretaria entende que

[…] a função da escola vai além da mera transmissão de conteúdos, pois se faz necessário o desenvolvimento de múltiplas competências e habilidades para a vida diante dos desafios impostos pela sociedade do século XXI, marcada pela liquidez e constantes mudanças que fazem com que o ser humano precise se reinventar a cada momento, o que exige, cada vez mais da escola, o desenvolvimento de estratégias de aprendizagem mais flexíveis e abrangentes, de modo a valorizar e incluir o trabalho com as competências socioemocionais na educação para o século XXI, de forma intencional. (Rio de Janeiro, 2020, p. 4, grifos nossos)

Esses tímidos movimentos deslocatórios em relação ao termo conteúdo não ganham, todavia, força no documento analisado. Uma hipótese a ser explorada que entendemos ser fecunda consiste na forma como a relação com o saber, particularmente quando pensada com base no significante aprendizagem, é articulada à cadeia de equivalência produzida em torno dos termos conteúdo e/ou conhecimento. A abordagem discursiva pós-fundacional com a qual operamos neste texto autoriza afirmar que o entendimento de aprendizagem implica a mobilização de sentidos particulares de significantes como conteúdo, conhecimento escolar, sujeito-docente e sujeito-discente. Dependendo do sentido particular hegemonizado para cada um desses termos, é possível que a cadeia de equivalência definidora de aprendizagem assuma contornos distintos.

A leitura atenta do Plano de Ação Pedagógica revela tanto a ênfase dada ao processo de aprendizagem quanto a hegemonização de um sentido particular desse significante que tende a reforçar perspectivas conteudistas. No que concerne ao lugar de destaque atribuído à questão de aprendizagem, é possível sublinhar duas linhas argumentativas. A primeira reforça discursos que preconizam os efeitos positivos do ensino virtual no processo de aprendizagem. A relação estabelecida, no documento, entre as novas tecnologias o ensino remoto pode ser ilustrada em diferentes passagens, como por exemplo:

Neste ambiente virtual, os profissionais da Seeduc encontrarão a formação Jornada da Educação On-Line que tem como objetivo o reconhecimento dos recursos do G SUITE da Google, bem como a apropriação de conhecimento pedagógico para o desenvolvimento da aprendizagem em ambientes on-line. (Rio de Janeiro, 2020, p. 12, grifos nossos)

A segunda linha argumentativa mobilizada nesse texto oficial para sustentar a centralidade atribuída à questão da aprendizagem vai ao encontro do movimento contemporâneo nomeado por Biesta (2012) de “a nova linguagem de aprendizagem”, que se manifesta “na redefinição do ensino como facilitação da aprendizagem e da educação como o provimento de oportunidades de aprendizagem ou de experiências de aprendizagem” (Biesta, 2012, p. 816).

Não se trata de negar, na análise crítica desse autor, a importância da aprendizagem em contexto escolar, mas sim de problematizar o sentido particular desse termo, hegemonizado no campo político-educacional contemporâneo. Essa reflexão remete à segunda evidência observada no documento analisado e anteriormente mencionado. Em linhas gerais, Biesta (2012) identifica dois fluxos de sentido de aprendizagem que estão em disputa no campo educacional: um que a associa à ideia de aquisição de conhecimentos escolares objetivados, sem levar em conta, nesse processo, a participação ativa do sujeito-aprendiz; e outro que opera com a interface aprendizagem-resposta-experiência de um ser social-singular (Delory-Mombeger, 2012), ao ser confrontado com um conhecimento/conteúdo que o afeta. Essa associação entre aprendizagem e reposta singular implica considerar tanto o contexto no qual ele se inscreve quanto sua trajetória individual, que afeta diretamente o processo de ensino-aprendizagem.

Nessa perspectiva, caberia assim interrogar-se sobre as possibilidades de pensar a questão da aprendizagem em um contexto como o do nosso presente, no qual uma crise sanitária acirra os efeitos de uma ordem social marcada pela desigualdade social, reverberando, pois, de forma diferenciada entre os alunos/as e professores/as da rede pública. Como garantir a democratização da educação quando o acesso ao conhecimento escolar tende a dissociar os efeitos do contexto pandêmico vivido nas trajetórias singulares de vida? Dito de outra forma: como assegurar a aprendizagem sem questionar, necessariamente, as relações de poder assimétricas presentes e, simultaneamente, a agência do sujeito-aprendiz nesse jogo?

No documento, esses diferentes fluxos de sentidos entrecruzam-se e produzem configurações discursivas ambivalentes. Ainda que o reconhecimento do papel ativo desempenhado pelo sujeito posicionado como aluno/a seja reconhecido em algumas passagens do documento, a hegemonização do sentido de aprendizagem como aquisição de um conteúdo coisificado passível de controle e de mensuração faz com que esse protagonismo ou agenciamento do sujeito-docente e/ou discente se reduza de forma significativa, afetando o sentido particular de aprendizagem priorizado pelo documento em tela. Essa ambivalência pode ser assim ilustrada:

A proposta prevê formação aos profissionais de educação da SEEDUC para os mais variados e possíveis “usos” (CERTEAU), buscando a aprendizagem e a produção de conhecimentos. (Rio de Janeiro, 2020, p. 12)

Além disso, também foi feita a recomendação de que o professor insira seus conteúdos no momento de sua aula presencial, de maneira que a Secretaria possa permanecer contabilizando a carga horária regente, aperfeiçoar a organização das dinâmicas da sala de aula virtual e garantir que o estudante estabeleça, em sua rotina de estudos, um horário fixo para ter contato com o professor para interação, esclarecimento de dúvidas e realização das atividades propostas. (Rio de Janeiro, 2020, p. 6, grifos nossos)

No primeiro trecho, ressaltamos a menção à articulação projetada entre os atos de ensinar e de aprender e a produção de conhecimentos, permitindo assim, ainda que timidamente, a possibilidade de uma interpretação que reconhece a participação ativa dos sujeitos envolvidos no processo de aprendizagem. No entanto, a recorrência ao significante “usos”, atribuído ao teórico Certeau sem referência ao texto do qual foi retirado, enfraquece, quando não dissipa, essa possibilidade de entendimento. Com efeito, tal como mobilizado, esse termo conduz-nos ao argumento que valida a plataforma como instrumento de aquisição do conteúdo que, coisificado, articula-se tanto na formação do sujeito-docente quanto na do sujeito-discente; assim, a escola, como efeito da tecnologia moderna, cumpre cada vez mais sua ação educativa por meio de provas do conteúdo ofertado, evidenciadas pela inserção deste na plataforma, como sugerido no segundo extrato.

ESCOLA DE DEPOIS: ENTRE HERANÇAS E REINVENÇÕES

Se concordarmos com a perenidade dos rastros dessa pandemia no tempo presente e com o fato de que ela deixará marcas profundas em nossa forma de habitar este mundo, justificando para alguns a emergência de outro normal, parece-nos importante começarmos a pensar sobre caminhos e estratégias, desde o nosso presente, que possam contribuir para uma escola de depois, sem que isso coloque sob ameaça a potência da instituição escolar na construção de um comum que se inscreva no interstício da diferença, em vez da hegemonização de um particular. Desse modo, a interrogação sobre qual escola é possível nestes tempos de pandemia pauta-se numa reflexão sobre as estratégias discursivas nas quais podemos/devemos investir, com o intuito de manter a defesa do lugar de relevo ocupado por essa instituição escolar na construção de uma sociedade democrática.

Consideramos que a busca dessas estratégias inscreve-se em uma zona de interstício entre os campos das políticas públicas educacionais e do currículo. Trata-se de — em vez de operar com uma política educacional que encerra uma racionalidade única de escola, de professores e de alunos, como sugere o documento analisado sobre as orientações para a implementação do ensino remoto — assumir as condições objetivas, estruturantes da sociedade brasileira, para analisar a instituição escolar como organização político-social resultante desta conjuntura, composta de sujeitos que, embora contemporâneos, participam de diferentes grupos de interesses e são formuladores de demandas que interpelam a escola em seu cotidiano, seja ela configurada pelo ensino remoto, seja pelo presencial.

O sentido deste tempo inédito aponta graves problemas sociais que assolam a contemporaneidade em diferentes campos de estudos, reafirmando a aporia já anunciada por Laclau (Mendonça, 2010, p. 482, grifos do original): “em termos de estratégia política não existe, portanto, a real possibilidade de se chegar ao ‘fim da história’”; e, neste tempo, estamos induzidos a operar na tensão, não mais por escolha, mas pela própria condição de possibilidade de existência. Desse modo, nossa condição exige que o social seja pensado por meio das relações de paradoxos, assumindo que a contradição vivida impede o fechamento de uma única proposição, na certeza de um projeto político definitivo. Nesse viés, o desafio consiste em operar nas articulações que movimentam a política democrática, entendendo que os campos que articulam a política hegemonizam sentidos contingentes, mas que produzem efeitos em nosso presente.

Neste caminho, o que está em jogo pois, neste momento, não é a defesa ou a crítica do ensino remoto “em si”. A disputa é pelo próprio entendimento de escola pública laica e democrática para todes, que entendemos estar “sob ameaça”. Como “alternativa obrigatória” em função do isolamento social necessário, o ensino remoto não é necessariamente o vilão, e concentrar nossas críticas nessa modalidade pode nos fazer desviar da luta pela defesa da imprescindibilidade da instituição escolar para a construção de uma sociedade democrática neste cenário político.

Com isso, reafirmamos que nosso propósito não foi o de argumentar contra o ensino remoto em tempos de pandemia, pois entendemos que essa alternativa tem seu lugar contingencial no contexto atual. Interessou-nos aqui mais continuar defendendo uma escola pública e democrática do que sustentar a crítica a uma ou outra modalidade de ensino. Importa assim, na perspectiva teórica aqui privilegiada, investir em determinados fluxos de sentidos em detrimento de outros, como estratégia política.

Apostamos, pois, como sugere Mouffe (2016), na ideia de que toda articulação hegemônica recria-se e renegocia-se constantemente, uma vez que “não há ponto de equilíbrio em que se logre a harmonia final” (Mouffe, 2016, p. 12, tradução nossa). Ponderamos com a autora que “nesse precário entre dados” (Mouffe, 2016, p. 12, grifos do original, tradução nossa), marcado contingencialmente pela crise sanitária que assola nosso tempo presente, “é possível experimentar o pluralismo, isto é, que esta democracia estará sempre ‘por vir’, para usar a expressão de Derrida, que sublinha não somente as possibilidades não realizadas, mas também a impossibilidade radical de realização final” (Mouffe, 2016, p. 11, grifos do original, tradução nossa).

Assim, pensar uma escola de depois exige entrar na disputa desde já e isso não pressupõe a opção entre a fidelidade à tradição ou a ousadia do novo. O que está em jogo é nossa possibilidade de continuarmos agindo do lugar de herdeiros (Derrida e Roudinesco, 2004) e, desse modo, recebermos e relançarmos a herança em prol da consolidação de uma escola pública, laica e democrática.

1O debate em torno das potencialidades e dos limites da modalidade de Ensino a Distância (EaD) no campo educacional é antigo e tem sido marcado por tensões e polêmicas que não nos cabe aqui aprofundar. De modo semelhante, não nos parece produtivo para a reflexão aqui proposta debruçarmo-nos sobre as diferenciações entre as expressões ensino a distância e ensino remoto. Compreendemos que essas diferenciações existem e precisam ser pontuadas nos debates educacionais atuais sobre a temática, principalmente quando envolvem diretamente a educação básica. No entanto, ponderamos que a porta de entrada escolhida para participarmos desse debate, neste texto, coloca nossas lentes sobre outros aspectos e tensões. Em nosso entendimento, as lutas pela significação do próprio sentido da instituição escolar antecedem a reflexão sobre modalidades de ensino-aprendizagem.

2Esta expressão foi cunhada pelas autoras para nomear as formas de enfrentamento, por parte das instituições de formação — como escolas e universidades —, dos desafios impostos pela crise pandêmica em função da necessidade de isolamento social e, consequentemente, da interrupção de suas atividades presenciais.

3Os setores privados parceiros anunciados na página da UNESCO (2020) formam o grupo denominado pelo acróstico GAFAM: Google, Amazon, Facebook, Microsoft. Fiormonte e Sordi (2019, p. 108) afirmam que esses grupos “assumiram o controle das tecnologias que direcionam nosso consumo, evidenciando novos tempos e maneiras na produção e o acesso ao conhecimento digital”, por meio de um ecossistema de “dispositivos e aplicativos” (Fiormonte e Sordi, 2019, p. 109, tradução nossa) e operando, também, via plataformas de conteúdos educacionais.

4Sobre a influência das redes como nova “paideia” (Fiormonte e Sordi, 2019) dos projetos formativos, interessa-nos a consideração no modo como os sistemas de comunicação global ampliam seus negócios: a oferta de dados individuais constitui a matéria-prima da estrutura político-tecnológica das referidas multinacionais (Fiormonte e Sordi, 2019).

5Em 2005, o Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.BR), responsável por implementar as decisões e os projetos do Comitê Gestor da Internet no Brasil, estabelece uma parceria com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) com o objetivo de coletar dados sobre o acesso à internet e a posse de telefone móvel celular para uso pessoal. Assim, o Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (CETIC.BR), como departamento do NIC.BR, tem o objetivo de produzir indicadores sobre o acesso e uso das tecnologias de informação e comunicação (TIC) no Brasil. Disponível em: https://www.cetic.br/pt/historicos/. Acesso em: 14 jun. 2020.

6O ponto nodal pode ser considerado como a unidade de uma formação que fecha uma formação discursiva, de modo contingente. Não tem identidade própria, mas é um significante que se apresenta como articulador de uma pluralidade de sentidos, cumprindo uma função de articulações de fixação de um nó (Southwell, 2017).

Financiamento: O presente trabalho foi realizado com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Bolsa de Produtividade 1D da Fundação de Amparo à Pesquisa ao Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior no Programa Internacional de Institucionalização (CAPES-Print).

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Recebido: 15 de Maio de 2021; Aceito: 07 de Fevereiro de 2022

Carmen Teresa Gabriel le Ravallec é doutora em educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). E-mail:carmenteresagabriel@gmail.com

Marcela Moraes de Castro é doutora pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Universidade do Minho (UMinho). Técnica em Assuntos Educacionais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). E-mail:marcelamoraesdecastro@gmail.com

Conflitos de interesse: As autoras declaram que não possuem nenhum interesse comercial ou associativo que represente conflito de interesses em relação ao manuscrito.

Contribuições das autoras: As autoras contribuíram de forma igual na elaboração do artigo.

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