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Revista Brasileira de Educação

versión impresa ISSN 1413-2478versión On-line ISSN 1809-449X

Rev. Bras. Educ. vol.27  Rio de Janeiro  2022  Epub 24-Nov-2022

https://doi.org/10.1590/s1413-24782022270106 

Artigos

A abordagem da educação baseada em evidências científicas na formação de professores: recuo da prática1

EL ENFOQUE DE LA EDUCACIÓN BASADO EN LA EVIDENCIA CIENTÍFICA DE LA FORMACIÓN DE PROFESORES: RETROCESO DE LA PRÁCTICA

Catia Piccolo Viero Devechi, Escrita – primeira edição, Escrita – revisão e ediçãoI 
http://orcid.org/0000-0002-5147-1609

Amarildo Luiz Trevisan, Escrita – primeira edição, Escrita – revisão e ediçãoII 
http://orcid.org/0000-0002-3575-4369

Ângelo Vitório Cenci, Escrita – primeira edição, Escrita – revisão e ediçãoIII 
http://orcid.org/0000-0003-0541-2197

IUniversidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil.

IIUniversidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS, Brasil.

IIIUniversidade de Passo Fundo, Passo Fundo, RS, Brasil.


RESUMO

O artigo apresenta o olhar de especialistas da educação brasileira sobre a abordagem da educação baseada em evidências na formação dos professores. Utilizando-se da hermenêutica reconstrutiva de Habermas (1987), explicita o resultado de um questionário que inquiriu especialistas da educação sobre o sentido da abordagem quando tratamos da formação de professores. Dos 25 pesquisadores consultados, quatro posicionaram-se favoravelmente à proposta, enquanto 21 foram contrários. Considerando-se que o Conselho Nacional de Educação vem protagonizando políticas de educação de forma unidirecional e sem oportunizar o contraditório, o propósito da pesquisa foi abrir um espaço de discussão sobre o assunto, trazendo à luz os silenciamentos presentes na proposta. Em síntese, a maioria dos pesquisadores afirma que a legitimidade da formação de professores compreende intencionalidade e envolve postura ética, contexto e formação humana que não se constrói sobre nem brota de fatos empíricos, simplesmente.

PALAVRAS-CHAVE educação por evidências; hermenêutica reconstrutiva; formação de professores

RESUMEN

El artículo presenta la perspectiva de los especialistas en educación brasileña referente al enfoque de la educación basado en la evidencia de la formación de profesores. Utilizando la hermenéutica reconstructiva, de Habermas (1987), explica el resultado de un cuestionario en el que se preguntaba a especialistas en educación sobre el sentido del enfoque cuando se aborda la formación de profesores. De los veinticinco investigadores consultados, cuatro se mostraron a favor de la propuesta, mientras que veintiuno estuvieron en oposición. Considerando que el Conselho Nacional de Educação viene conduciendo las políticas educativas de manera unidireccional y sin crear espacios para la oposición, el propósito de la investigación fue abrir un espacio de discusión sobre el tema, sacando a la luz el silenciamiento presente en la propuesta. En síntesis, la mayoría de los investigadores señalan que la legitimidad de la formación docente comprende la intencionalidad, involucra una postura ética, el contexto y la formación humana que no se construye ni surge de hechos simplemente empíricos.

PALABRAS CLAVE educación por evidencia; hermenéutica reconstructiva; formación de profesores

ABSTRACT

This article presents the perspective of Brazilian education specialists on the evidence-based approach to education in teacher education. Using Habermas's (1987) reconstructive hermeneutics, it explains the result of a questionnaire that asked education specialists about the meaning of the approach when dealing with teacher education. From the 25 researchers consulted, four were in favor of the proposal, while 21 were against it. Considering that the National Education Council has been leading education policies in a unidirectional way and without creating opportunities for opposite positions, the purpose of the research was to open a space for discussion on the subject, bringing the silencing present in the proposal to light. In summary, most researchers point out that the legitimacy of teacher education comprises intentionality, and involves an ethical posture, context and human education that is not simply built nor springs from empirical facts.

KEYWORDS evidence-based education; reconstructive hermeneutics; teacher education

INTRODUÇÃO

Neste artigo, propomos apresentar o olhar de especialistas da educação brasileira acerca da abordagem da educação baseada em evidências na formação de professores. Inspirada na medicina baseada em evidências, tal abordagem foi introduzida no programa nacional de alfabetização e, por consequência, está sendo incorporada na formação de professores. Entendida como estratégia política de melhoramento da prática educacional, tem sido utilizada como perspectiva de sustentação das decisões que têm sido tomadas no Conselho Nacional de Educação (CNE) e no Ministério da Educação (MEC). Assim, as diretrizes têm sido pensadas e estruturadas com base em experiências bem-sucedidas nacional e internacionalmente, seguindo evidências científicas sistematizadas por meio de revisões de literatura apresentadas em relatórios nacionais e internacionais. O Relatório Nacional de Alfabetização Baseada em Evidências (Renabe) publicado em abril de 2021, por exemplo, surge na esteira de relatórios norte-americanos, franceses, britânicos e brasileiros.

A iniciativa de basear a educação em evidências seria surpreendente caso a natureza do conceito de evidência e seu valor já não estivessem determinados e o objetivo da abordagem já não estivesse definido. Quem se oporia a defender as evidências, ainda mais no momento atual de dependência científica que vivemos diante da pandemia da COVID-19? Contudo, é possível verificar que a abordagem carrega consigo características metodológicas próprias, alicerçadas em dados objetivos em detrimento de aspectos qualitativos e das experiências profissionais (Hammersley, 2007), motivo pela qual vem sendo entendida como insuficiente mesmo na área médica (Eraut, 2007; Peile, 2007). Alcançadas por testes randomizados e/ou experimentais, tais evidências são priorizadas em desvantagem das evidências produzidas pelas pesquisas de cunho interpretativo, que consideram as singularidades e os sentidos dos contextos específicos, até mesmo pelas dificuldades de revisão sistemática da literatura.

A compreensão dos defensores dessa tese é de que as evidências científicas, por serem de cunho preferencialmente objetivo, garantiriam a melhoria das práticas e, consequentemente, melhor posição nos rankings internacionais. Em vista disso, a abordagem tem sido utilizada como perspectiva promissora pelos gestores educacionais do MEC e do Conselho Nacional de Educação (CNE) nos últimos tempos, sendo, aos poucos, introduzida como solução científica para os problemas na educação básica e, em decorrência disso, também na formação de professores. Nesse sentido, entre outros documentos, isso é visto de forma mais explícita na recente Política Nacional de Alfabetização (Brasil, 2019a), divulgada pelo Ministério da Educação em fevereiro de 2019, e nas entrelinhas das Novas Diretrizes Nacionais para a Formação Inicial dos Professores da Escola Básica — CNE/2019 n° 2 (Brasil, 2019b).

Acrescentamos também, nesse rol de medidas, o lançamento do programa Tempo de Aprender no dia 18 de fevereiro de 2020. Essa é uma iniciativa do MEC voltada para o aperfeiçoamento, o apoio e a valorização de professores e gestores escolares e está baseada em evidências científicas nacionais e internacionais. O curso Alfabetização Baseada na Ciência (ABC — Aguiar, 2021), por exemplo, oferece uma capacitação voltada aos professores da educação infantil e do ensino fundamental. Tais perspectivas destacam o fato de que, em diversos países estrangeiros conhecidos pelos altos standards educacionais, a implementação em sala de aula dos resultados da pesquisa educacional baseada em evidências tem orientado, com sucesso, estratégias pedagógicas didáticas.

O CNE, buscando atender à solicitação do MEC no que se refere à adequação da formação de professores à nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC) da Escola Básica, designou, em abril de 2019, uma Comissão Bicameral para formular as Diretrizes Curriculares Nacionais e a Base Nacional Comum da Formação Docente. Tal comissão realizou consultas e audiências públicas com a participação de diferentes entidades, aprovando a Resolução CNE/CP n° 2, de 20 de dezembro de 2019 (Brasil, 2019b), que definiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica e instituiu a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação). Tal resolução determinou o enfoque das “ciências para a educação”. Essa abordagem, que já vinha sendo utilizada pelo MEC para a implementação das políticas para alfabetização, fez parte das discussões sobre as novas diretrizes para a formação inicial de professores no âmbito do CNE.

Embora na Resolução CNE/2019 n° 2 (Brasil, 2019b) a perspectiva apareça de forma menos explícita que os documentos que regulamentam a alfabetização, é possível perceber tanto pelo “texto de referência” (Brasil, 2019c) que permeou o debate quanto pela fala de Conselheiros da Câmara de Educação Superior do CNE em lives um claro direcionamento para a utilização de evidências científicas que tem funcionado internacionalmente como base para a tomada de decisões. Ainda segundo o documento, os princípios da formação de professores devem estar norteados por “pesquisas científicas que demostrem evidências de melhoria na qualidade da formação”, devendo ter como fundamentos pedagógicos “decisões pedagógicas com base em evidências” (CNE/2019, n° 2 — Brasil, 2019b).

Tanto o texto de referência quanto a resolução vêm sendo amplamente criticados por associações e entidades de pesquisa como a Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação (Anfope), a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped) e o Fórum Nacional de Diretores de Faculdades, Centros de Educação (Forumdir). A Anped (2019, p. 2), por exemplo, compreende que a perspectiva do MEC e do CNE com relação à formação de professores vai “na contramão das preocupações explicitadas pelo movimento dos educadores e das entidades científicas da área”. Ou seja, apesar da tradição histórica das discussões acadêmicas em torno da formação de professores, dos esforços pela ampliação da compreensão de ciência na área e do consenso alcançado quanto à insuficiência dos métodos quantitativos na pesquisa em educação, o CNE tem sido irredutível ao apresentar a abordagem das evidências científicas como solução metodológica para dar conta dos problemas da formação de professores no que se refere a sua adequação à escola básica.

Cabe salientar que as atuais iniciativas e recomendações do MEC não representam uma novidade absoluta. Já no documento produzido pelo grupo de trabalho Alfabetização Infantil da Comissão de Educação e Cultura (Câmara dos Deputados), cuja segunda edição foi publicada em 2007, dizia-se: “da mesma forma que ocorreu em outros países, a aplicação dos conhecimentos da ciência cognitiva da leitura pode trazer importantes contribuições para a revisão das políticas e práticas de alfabetização no Brasil” (Brasil, 2007, p. 13). Destacava, dessa forma, a necessidade de tornarem mais eficazes as práticas de alfabetização, utilizando métodos cujos resultados estivessem cientificamente comprovados com base nas evidências.

Contudo, é significativo que, diante da atual política, nos últimos documentos, a educação baseada em evidências ganhe mais espaço e importância, de forma anteriormente ainda nunca vista. Concordamos com Hammersley (2007) quando diz ser preciso reconhecer a importância de os professores estarem bem informados em evidências científicas. Entretanto, cabe salientar que existem algumas questões a serem esclarecidas, até mesmo porque os documentos e os cursos que vêm sendo apresentados, em geral, tem sido elaborados por especialistas de outras áreas, como psicologia experimental, linguística aplicada, ciências cognitivas, neurociências e neuropediatria, com compreensões metodológicas e propósitos bastante diferenciados dos especialistas da área educacional e ainda, algumas vezes, por especialistas de fora do país. O Curso ABC, por exemplo, foi produzido por meio de uma parceria do MEC e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) com a Universidade do Porto, o Instituto Politécnico do Porto e a Universidade Aberta de Portugal, contando com a participação remunerada de especialistas, em sua maioria, do campo da psicologia cognitiva e da neurociência. Segundo o presidente da Capes, trata-se de uma das ações do governo federal para a preparação e a valorização do professores alfabetizadores com investimento de mais de 6 milhões de reais (Aguiar, 2021).

Diante desse cenário, perguntamos: a abordagem da educação baseada em evidências é adequada aos processos educativos? Existe consenso a respeito do conceito de “evidência científica” na pesquisa em educação? Que tipo de estatuto epistemológico sustenta essa compreensão da educação? Em qual concepção de ciência a noção de “evidência científica” se baseia? O enfoque paradigmático dessa abordagem é suficiente para atender às demandas da área? Quais seriam os objetivos éticos de tal abordagem? Que concepção de educação e que fins educacionais estariam sendo contemplados? Que interesses políticos e ideológicos estariam subjacentes ao direcionamento dado às políticas educacionais pela adoção desse enfoque? E, ainda, o propósito com a implementação da abordagem é contribuir com a formação de professores ou, diferentemente, seu objetivo é impor algum tipo de agenda governamental? Nossa desconfiança é que a educação baseada em evidências possa servir não para qualificar o processo pedagógico, como se poderia esperar, mas como uma nova tentativa de contrapor a intencionalidade da educação e desviar o foco dos principais problemas que a afetam.

Adotamos a hermenêutica reconstrutiva de Habermas (1987) como metodologia deste trabalho por considerarmos que é um instrumento importante de avaliação de teorias e discursos (Devechi e Trevisan, 2010; 2011). A abordagem auxilia a problematizar o âmbito do objeto investigado por levar em consideração o lugar do outro, algo negado no contexto de gestação das políticas públicas de educação que estamos vivendo. O objetivo central é fazer o movimento de desconstrução e reconstrução do problema em bases dialógicas mais horizontalizadas, levando em consideração a alteridade do outro. Essa metodologia permite desvelar os propósitos das decisões educacionais quando se pautam numa linguagem monológica, solipsista e reducionista, não passando por avaliação e concordância dos pares. Nesse sentido, auxilia a averiguar se os interesses particulares não prevalecem sobre os coletivos, problematizando a necessidade da “superação de posturas epistemológicas e/ou políticas reducionistas ou marcadamente divergentes, que a distanciam de uma visão normativa enquanto a aproximam do status quo instituído” (Devechi e Trevisan, 2010, p. 160). Elegemos como objetivo norteador do artigo compreender o sentido e os limites dessa proposta na formação de professores.

Tendo em vista que a educação baseada em evidências vem sendo utilizada nas deliberações no âmbito do CNE de forma unilateral por profissionais que, em sua maioria, não são especialistas da área educacional, resolvemos dar voz aos pares da área (pesquisadores e cientistas da educação) para que se posicionassem com relação a sua utilização nas diretrizes educacionais para a formação de professores. Para tanto, enviamos um questionário via formulários do Google a 50 especialistas em educação das principais universidades brasileiras, entre março e abril de 2020. O critério de seleção foi a participação quantitativa nos comitês científicos dos periódicos acadêmicos de melhores estratos (A1 e A2).

Três questões foram colocadas aos pesquisadores:

  1. As novas diretrizes curriculares nacionais para a formação inicial de professores da escola básica — CNE/2019 n° 2 (Brasil, 2019b), assim como as demais políticas educacionais que vêm sendo implementadas no país, têm enfatizado a abordagem da educação baseada em evidências científicas. Qual é a leitura que você faz disto?

  2. Qual seria a influência dessa mudança de perspectiva na pesquisa educacional brasileira?

  3. Quais seriam as possíveis implicações da abordagem da educação baseada em evidências na formação de professores?

O intuito foi trazer à luz os silenciamentos da área a respeito da opção do CNE por tal abordagem e ponderar se ela contempla os objetivos que temos, historicamente, traçado para essa formação, ou seja, uma formação não apenas técnica, mas reflexiva, crítica, não reducionista, comprometida com o humano e o social. Concordamos com a compreensão da Anped (2019) de que o professor é “uma pessoa que marca a vida de outras, que faz diferença na vida das crianças, de jovens e adultos, o que é possível justamente porque a prática educativa enquanto prática social não é homogênea, mas contextual, plural e diversa”. Obtivemos o retorno de 25 especialistas, dos quais identificamos argumentos favoráveis e contrários a tal abordagem, que serão apresentados e discutidos a seguir. Os respondentes são pesquisadores da área de educação de importantes universidades brasileiras, sendo reconhecidos no país pelo impacto de suas produções científicas (número de citações e índice h).

POSIÇÃO DOS ESPECIALISTAS SOBRE A EDUCAÇÃO BASEADA EM EVIDÊNCIAS NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

Com base em uma interpretação hermenêutica das respostas dos questionários aplicados, explicitamos as principais compreensões dos especialistas em educação acerca da abordagem da educação baseada em evidências na formação de professores, revelando o que tem sido compreendido sobre o assunto entre os nossos pares acadêmicos. Das 25 respostas, quatro foram favoráveis à abordagem em questão na formação de professores, e as demais apontaram argumentos desfavoráveis a ela. Sumariamente, as respostas favoráveis indicaram a abordagem como forma de:

  • incremento da qualificação da formação de professores; e

  • maior valorização do projeto da ciência na educação.

Como esses dois elementos se complementam, veremos a seguir os posicionamentos dos quatro professores que se manifestaram dessa forma.

ARGUMENTOS FAVORÁVEIS À ABORDAGEM DA EDUCAÇÃO BASEADA EM EVIDÊNCIAS NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

O entrevistado 16 ressalta a importância da valorização das evidências científicas na área e da necessidade de os professores estarem “devidamente qualificados em relação ao campo da ciência. Para promover a pesquisa brasileira, a valorização da ciência é essencial, e esta valorização tem muito a ver com as aprendizagens desenvolvidas na educação básica e também na educação superior” (entrevistado 16). O entrevistado 15 pergunta: o que “seria uma instituição de ensino superior que não se guie pelos métodos científicos. Se busco a resposta a um problema, não será via senso comum que haverá respostas pertinentes”. Para tanto, defende que “o método de verificação de um estudo deve ser rigoroso e com teoria sustentada”. Para ele, “uma das falhas na formação de docentes é a ausência de estatísticas como base para apoio a métodos quantitativos”. Para o entrevistado 15, existem hoje “estudos muito interessantes saídos da neurologia e que são muito úteis para se entender certos fenômenos educacionais de aprendizagem, por exemplo”. Tais falas ressaltam a importância das ciências para a formação de professores, identificando o método quantitativo como recurso para a produção de saberes rigorosos na área. Vale destacar que a questão do rigor ou do estatuto epistemológico do campo da educação é bastante complexa e pode ser considerada como em permanente disputa. A esse respeito, Charlot (2006, p. 1) oportunamente se pergunta: “será que pode ser definida e construída uma disciplina específica, chamada educação ou ciências da educação?” Como lembra o autor, a aposta na existência de uma disciplina específica nesse campo abre o leque para vários tipos de discursos sobre a educação, tais como o espontâneo, os práticos, o dos antipedagogos, o da pedagogia, o das ciências humanas, o dos militantes e o das instituições internacionais.

Já o entrevistado 21 considera que “as evidências científicas são importantes na medida em que os resultados da pesquisa se convertam em práticas pedagógicas possíveis em grande escala. As evidências podem gerar, por um lado, práticas pedagógicas de melhor qualidade e, por outro, indicam lacunas e questões que precisam ser aprofundadas por novas pesquisas. As evidências científicas obrigam necessariamente a um planejamento mais rigoroso dos processos formativos com vistas à formação de profissionais do magistério dotados de ferramentas que lhes permitam enfrentar os desafios de educação e aprendizagem dos alunos com maior segurança”. Tal entendimento aponta os impactos positivos das evidências científicas na prática pedagógica, alertando, entretanto, para a necessidade de preparação dos professores para sua utilização adequada. A questão, todavia, seria esclarecer o que seriam “práticas pedagógicas” de melhor qualidade baseadas em evidências científicas e a suposta identificação de educação com aprendizagem. O modelo das evidências, assim como as respostas dos entrevistados 15 e 21, está muito vinculado a esse último discurso identificado por Charlot que — hoje, acrescido do recurso às ciências cognitivas — tem, como um de seus pressupostos, que toda inovação é um progresso.

O entrevistado 19 diz que “basear-se em evidências fornecidas pela ciência é o melhor modo de demandar uma efetiva prática de pesquisa no campo educacional, entendida como construção do conhecimento”. Ressalta, entretanto, a preocupação com “toda a dificuldade que ainda temos para constituir um padrão científico consistente para a educação” e afirma que, por isso, não podemos “abandonar a meta de instaurar uma tradição de pesquisa nesse campo. O que implica construir um conhecimento de forma rigorosa, sistemática e epistemologicamente fundamentada. Isso atualiza e reforça a demanda pela busca de sustentação científica, estimulando diretamente e de forma incisiva o desenvolvimento da pesquisa no campo e sua consolidação”. Ao defender a abordagem das evidências científicas, o entrevistado parece indicar uma compreensão mais ampliada de evidência científica ao definir a pesquisa no campo como construção do conhecimento. Ou seja, defende a busca pela rigorosidade científica, mas parece não reduzir o campo ao método quantitativo. Essa preocupação com o rigor é importante, sobretudo se se considerar a natureza própria da pesquisa educacional e de seu campo, com sua amplitude, ambiguidades, fragmentação e a consequente singularidade dos seus desafios. O cuidado a ter, todavia, é o de passar apressadamente do diagnóstico das fragilidades do campo a uma perspectiva reducionista deste e da experiência humana, importando um modelo epistemológico das ciências cognitivas que, evidentemente, tem aspectos a contribuir, mas que está muito longe de abarcá-lo como um todo.

Trata-se de posições fundamentadas na compreensão de uma ciência mais objetiva, rigorosa, estatística, como forma de melhoria da formação de professores e da prática pedagógica e de uma posição voltada para a defesa das evidências científicas no sentido mais alargado e sensível às necessidades da área.

ARGUMENTOS CONTRÁRIOS À ABORDAGEM DA EDUCAÇÃO BASEADA EM EVIDÊNCIAS NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

Como as posições adversas à abordagem contemplam um grupo representativo maior, apresentaremos as posições segundo agrupamentos temáticos, uma vez que foram essas as lacunas e os silenciamentos mais enfatizados pelos entrevistados. Nesse sentido, mapeamos quatro principais dimensões das entrevistas:

  1. reducionismo científico da abordagem;

  2. não há consenso sobre a natureza da “evidência” na pesquisa da educação;

  3. a educação baseada em evidências como empobrecimento da formação do professor;

  4. a educação por evidência como discurso tecnocrático e gerencialista.

Reducionismo científico da abordagem

A maioria dos entrevistados entende que tal abordagem se utiliza de uma compreensão simplificada de ciências, que não atende de forma suficiente à área da educação e da formação de professores. De modo algum eles negam a importância das evidências ou de determinado rigor para a validação da cientificidade na educação, mas ressaltam a necessidade de ter clareza acerca do viés epistemológico existente por detrás da abordagem. Defendem as evidências e as ciências não reduzidas ao método quantitativo. O entrevistado 3, por exemplo, concorda com a busca “por uma mentalidade mais científica, mais racional”, mas alerta sobre a necessidade de observar que não se trata de “qualquer tipo de cientificismo ou pensamento unificado do que seria ciência”.

Para os entrevistados, a complexidade do saber educacional exige saberes com metodologias diversificadas, que possam dialogar com a filosofia, a arte e a literatura, pois, para além de dados objetivos, o campo demanda atitudes, intenções e posicionamentos não alcançáveis por métodos quantitativos. O foco das competências, por exemplo, tão enfatizado nas diretrizes de formação de professores, ressalta uma forma estreita e limitada de compreender e realizar o processo formativo. O entrevistado 9 acrescenta que a abordagem “é algo muito limitada e arriscada. A educação das artes, filosofia, literatura deveriam ter uma voz mais significativa à altura da ciência”. Para ele, é mais uma abordagem que, como o positivismo, o empirismo e o pragmatismo, reduz e obtura as diferenças.

Para o entrevistado 13, “a noção de evidência científica da atual política lembra aquela do No Child Left Behind (bem analisada criticamente por Zhao em livro de 2018 — What works may hurt — Side effects in education), especialmente no caso de “leitura”, que não por acaso voltou à baila (método fônico ou da instrução direta minúscula e maiúscula)”.2 Zhao contrasta-a com a medicina, campo em que nunca se procede assim: em nome das evidências, há que tomar em conta efeitos colaterais e a questão por inteiro (interdisciplinar) — nos Estados Unidos, colheram enorme fracasso, que será repetido aqui”. Ele admite que, embora as esquerdas possam ter exagerado no uso de métodos abertos, também porque o fracasso não mudou (o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa — Pnaic não foi além de assegurar que, após três anos no ensino fundamental, nem sequer metade esteja alfabetizada; no Maranhão, pouco mais de 20%). Em parte, é porque o “alfabetizador” continua o mesmo, a escola é a mesma, a pedagogia é a mesma. Ele diz ser interessante pensar que a BNCC fala de “recriação da escola”, termo muito estranho que cai do céu, tipo má consciência. Sabe que, se seguirmos evidências mínimas, a escola atual não tem como permanecer. Resumidamente, podemos dizer que para o entrevistado se trata de uma política inadequada a nosso contexto para dar conta dos problemas da escola básica, pois trata-se de uma nova invasão cultural.

Para a entrevistada 17, “qualquer condução da formação de professores na perspectiva apenas das ciências é limitante. Não no sentido de desvalorizar seus importantes aportes, mas pela parcialidade de sua abordagem”. Ela considera que, de modo geral, as ciências não discutem o que é ser humano, valores, crenças, conhecimento, ética etc. E acrescenta que elas partem de um conjunto categorial seguro e estável a respeito do ser humano para desenvolver suas observações, porém aduz que nenhuma insuficiência do racionalismo é discutida pela ciência. Assim sendo, considera ser necessário compreender sob que paradigmas certas evidências se sustentam. As ciências geram resultados importantes e muitos deles forçaram a própria filosofia a revisões (como foi a influência da ciência para revisar a metafísica). No entanto, elas não podem dispensar o trabalho que a filosofia (especialmente a hermenêutica) pode auxiliar a compreender.

Ainda segundo a entrevistada 17,

[…] o avesso da própria pesquisa, ou seja, compreender como determinado contexto histórico-cultural direciona nosso olhar e a construção do objeto de pesquisa, que tipo de preconceitos (não no sentido ético, mas de estruturas cognitivas) norteia o trabalho do entrevistador, quais implicações estruturam a busca de dados e quais expectativas orientam o trabalho investigativo.

Para a entrevistada, é preciso considerar na educação o avesso da pesquisa “tradicional”, que se contenta com o que o que se mostra no fenômeno, e isso só é alcançável por intermédio da adoção de perspectivas teóricas e interpretativas. Nesse sentido, pode-se argumentar que a pesquisa educacional, para fazer frente às fragilidades teóricas e ao dogmatismo vinculado à predominância do empírico, que tantas vezes afetam sua área, não pode regredir para aquém do nível já alcançado pelas epistemologias pós-empiristas e pela hermenêutica filosófica. Com efeito, Popper (1982), ao refutar o princípio da indução como critério de cientificidade defendido pelo verificacionismo, já havia indicado claramente os sérios limites do empirismo e defendido um caráter hipotético, processual e falibilista de todo fazer científico. De um outro modo, mas de maneira muito próxima a essa perspectiva, Habermas (1988, p. 282), ao tratar dos pontos de vista sob os quais a hermenêutica ganha relevância para a ciência e a interpretação de seus resultados, lembra que a própria escolha “do marco teórico e dos predicados teóricos básicos necessita adequar-se a uma pré-compreensão pré-científica do próprio âmbito objetual”.

Voltando-se mais para o aspecto específico da pesquisa educacional, o entrevistado 20 argumenta que tal abordagem poderá incorrer em uma produção exageradamente quantitativa, estatística, secundarizando a pesquisa qualitativa, analítica, crítica. Essa perspectiva é complementada pela opinião do entrevistado 22 quando diz: “temos que olhar com cuidado quais evidências estão sendo apontadas como importantes e a pesquisa que as sustenta”. Tudo leva a crer que tal abordagem “faz parte da ênfase atual de ‘accountability’ na educação, que busca critérios supostamente ‘objetivos’ para avaliar o ensino e aprendizagem”.

A compreensão dos entrevistados é de que a abordagem da educação baseada em evidências traz uma concepção equivocada sobre a natureza da pesquisa educacional e uma excessiva confiança de que tal modelo de pesquisa poderia garantir que o melhor está sendo feito. E isso tanto no fornecimento de informações sobre “o que funciona” quanto na documentação sobre os profissionais estarem realmente seguindo as “melhores práticas”, podendo ambos ser abertos, portanto, para o julgamento público. Para eles, corremos o risco de reduzir a pesquisa educacional, mais uma vez, ao modelo instrumental e reducionista de ciência.

Não há consenso sobre a natureza da “evidência” na pesquisa da educação

Segundo Habermas (1986; 1987), no acontecer do projeto moderno, predominou a tendência de fechamento do discurso ao âmbito do cientificismo, isto é, na falsa crença na racionalidade do progresso como única forma de solução de problemas. Com isso, paulatinamente os discursos oriundos do mundo da vida foram sendo colonizados por uma racionalidade neutral, culminando como o fato de que: “estes tipos de ações substituem as pretensões de validade por pretensões de poder” (Riviera, 1995, p. 27). Tal inventiva contribui para o entendimento da proposta da educação baseada nas evidências nesse momento, uma vez que a entrevistada 5, por exemplo, pergunta logo de saída: “que evidências, se a ciência não é neutra?” Para ela, a pesquisa educacional sempre buscou evidências, mas ela chama a atenção para a necessidade de análise da natureza e da utilidade da evidência que está em questão. O entrevistado 11 também pergunta: “de que tipo de evidências estamos falando?” Nessa direção, entende que, para escapar da armadilha das evidências que “mentem”, seria necessário elevar a questão das evidências científicas na área à condição ou ao estatuto de questão epistemológica, teórico-metodológica. Para tanto, considera que a formação de professores deveria caminhar em duas direções: fazer a tradução dos conhecimentos produzidos e que compõem o patrimônio cultural da humanidade, nem sempre compreendido, e atentar contra as crenças naturalizadas e naturalizadoras de informações (senso comum) elevadas ao estatuto de conhecimentos.

O entrevistado 8 também demonstra a mesma preocupação: “é preciso discutir o que se entende por evidências científicas”. Para ele, a natureza das evidências existente nessa abordagem abarca a ideia de avaliação por resultados, reduzido a formação de professores — perfil e tarefa do professores — aos padrões de medida que vêm do campo físico-matemático, muito próximo do sistema internacional de avaliação da educação básica (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes — Pisa). Ele ressalta que, para uma política adequada de formação de professores, é necessário se perguntar o que fica de fora desses “padrões de medida”. Em seu ponto de vista, o que é descartado por essa abordagem talvez seja o mais importante para o processo educacional formativo humano. Perguntar sobre “quem é o ser humano conduz à problematização de muitos aspectos da formação humana que fogem às evidencias científicas, sobretudo, àquelas pensadas a partir da aliança entre didática e psicometria”. Sugere, portanto, pensar as evidências de maneira ampliada, de forma que dialogue com as ciências humanas e sociais, pois só assim será possível construir e implementar boas políticas educacionais públicas.

O entrevistado 4 sinaliza na mesma direção: “não é tão óbvio que o ‘evidente’ é exatamente o desejável, uma vez que o desejável pressupõe a atribuição de valores”. Para ele, a noção de evidências científicas pode escamotear dimensões fundamentais da educação que não são mensuráveis. Por exemplo,

[…] se uma experiência mostrar que alunos com o auxílio de um software acabam aprendendo matemática mais rapidamente do que outros que estudam matemática com um professor, seria evidente que deveríamos dispensar os professores e substituí-los por softwares?

Ou, ainda, “se for evidência científica que uma escola militarizada, com relações verticais e autoritárias, acaba tendo resultados melhores nos exames de avaliação, seria desejável que todas as escolas viessem a ter esse formato?” Para o autor, está claro que as evidências em educação não podem ser alcançadas dessa forma, pois a área, dependente de intencionalidades, diz respeito “ao educar para quê? Educar para qual mundo? Educar para formar que tipo de pessoa?” Se a educação não enfrentar essas questões irá apenas corroborar sentidos estabelecidos em âmbitos não discursivos, ou seja, inerentes ao próprio funcionamento da economia, das relações de poder.

O entrevistado 7 aponta no mesmo sentido: “é necessário investigar e discutir o que se entende por evidências”. Segue a compreensão de Bachelard quando diz que é necessária uma vigilância epistemológica para identificar os problemas a serem enfrentados na formação do espírito de investigador e evitar o equívoco de cair no totalitarismo das ideias e na instrumentalização das evidências. Lembra que Popper sinaliza a mesma direção quando defende que um processo de investigação deve ser conduzido pela proposição de problemas que são sempre informados teoricamente, e as evidências não são dadas, mas construídas teoricamente. Ou seja, a colocação de um problema de qualquer natureza é sempre informada por uma teoria, com base no horizonte de expectativas do qual o sujeito atribui significado a suas experiências, ações, observações e análise dos resultados.

Seguindo a compreensão desse autor, para uma boa formação de professores é necessária uma boa formação teórica. Por isso, a educação baseada em evidências, para ele, torna-se vazia e superficial quando confunde ciência com empiria, pois é antes de tudo um olhar teórico/conceitual sobre o mundo. Isso se deve justamente ao fato de que uma das características fundamentais da ciência, recorrendo mais uma vez a Popper, é seu necessário esforço de sempre avançar buscando melhorar suas explicações. Como lembra Popper (1982, p. 305), “a ciência não é um sistema de enunciados certos ou bem estabelecidos, nem é um sistema que avance continuamente em direção a um estado de finalidade. […] ela jamais pode proclamar haver atingido a verdade”. Há, todavia, também outro fator, complementar a este. Conforme o entrevistado 13, a “pesquisa em educação não é determinista”, pois demanda outras habilidades pedagógicas, de cunho socioemocional, muito mais difíceis de mensurar.

O entrevistado 9 pergunta mais uma vez: “o que é uma evidência? Para que formar numa direção e não outra?” Para ele, essas perguntas nenhuma evidência é capaz de responder. A entrevistada 18 diz que a pesquisa em educação está longe de ser evidente no sentido mensurável, “não somente por causa das mediações ideológicas, mas também por causa da dificuldade dos consensos sobre os indicadores de qualidade da pesquisa e do caráter incerto e incompleto do saber na formação de professores”. Para ela, precisamos ter muita cautela ao falar de evidências na formação de professores, pois aquilo que é evidência em certo contexto pode ser diferente no outro. Assim, ela entende

[…] tomar a evidência como referência para a formação de professores é, no mínimo, uma armadilha que consiste em reduzir a aprendizagem ao que pode ser mensurado, a especialização em ensino à sua eficácia, concebida como valor agregado e o valor da educação à sua instrumentalidade, pois as provas, as revisões sistemáticas e a metanálise constituem pressupostos básicos da pesquisa baseada em evidência.

O entrevistado 25 corrobora a afirmação dizendo que a “educação baseada em evidências não difere daquilo que o campo educacional já realiza. A questão a ser pensada consiste em pensar: o que significa evidência para o campo das ciências da educação?” Ele salienta que o enfoque de tal abordagem nas diretrizes educacionais poderá ter duas consequências:

  1. resistência de profissionais do campo por não ter participado da construção dos termos das diretrizes;

  2. possibilidade de aprimoramento do campo, esclarecendo o que se entende por evidência.

Ou seja, cabe aos envolvidos com a formação de professores aproveitar a problemática das evidências e aprimorar as ciências da educação. E decidir se deverão ou não colocar em prática essa perspectiva.

O entrevistado 20 compartilha dessa ideia ao dizer que a busca de explicações científicas na área não só é necessária como deve servir de sustentação para o planejamento, desenvolvimento e avaliação das políticas e das práticas desenvolvidas pelo sistema educacional. Entretanto, ela precisaria estar adequada à complexidade que caracteriza os estudos. Ele compreende que a educação não pode ser reduzida à ciência no sentido tradicional. No entanto, defende que a “não definição da natureza da ciência da educação faz com que exista uma dispersão muito grande de concepções e práticas pedagógicas, algumas inovadoras e criativas, mas, na maior parte, conservadoras e ineficazes”.

Em síntese, podemos dizer que há entre os/as entrevistados/as a compreensão de que existem na pesquisa em educação perspectivas diferenciadas da natureza da evidência, da forma como vem sendo colocada pela abordagem adotada pelo CNE, e que talvez seria oportuno para a área aproveitar o fervor para enfrentar a discussão do que seria o conceito de evidências na educação e na formação de professores. Como diz o entrevistado 14, a oposição a tal tendência pode

[…] representar um importante impulso para que a Pedagogia assuma seu compromisso — intransferível — de ciência cuja pesquisa é capaz de fornecer os fundamentos necessários aos processos de formação de seres sociais em devir, no caminho da emancipação humana.

A educação baseada em evidências como empobrecimento da formação do professor

Para o entrevistado 1, a abordagem oferece “mais uma falsa crença de redutibilidade, de fundamentação e de simplificação” para a formação de professores. Ele admite que existem críticas sobre as pesquisas em educação pelo seu excesso de empirismo, pela falta de teorização, pela dificuldade em manejar determinados métodos e procedimentos para o campo do ensino e da aprendizagem, enfim, por falhar em sua objetividade e enquanto ciência. Contudo, defende que “existem outros problemas éticos, subjetivos, relacionados ao campo, muito pouco abordados, quase ignorados e, propositalmente, ignorados por várias razões”. Segundo ele, a “concepção de educação baseada em evidências científicas parece ignorar tudo isso para aparecer como uma novidade absolutamente anacrônica, em claro desconhecimento da história da educação brasileira”. Ele entende que, se a ideia de evidência fosse adequada à área, poderia auxiliar no rompimento com um senso comum, por vezes fundamentalista, no que se denominou de pluralismo e tornar as práticas mais bem fundamentadas empírica, teórica e conceitualmente. Entretanto sublinha que, na forma como ela se apresenta, “pode gerar uma outra tábua de salvação, tão fundamentalista quanto a do senso comum”, trazendo uma paz aparente somada a um paradigma menos reflexivo, supostamente mais técnico, capaz de manter “intacta a dinamicidade da educação brasileira, os seus conflitos e desigualdades”.

O entrevistado 4 reconhece que as evidências científicas podem ter algum tipo de uso, desde que subsidiário, na pesquisa educacional. Tais dados quantitativos podem ser considerados na pesquisa, mas “jamais deveriam resultar em ações diretas e imediatas em função do que revelam, constatam”, pois a educação é constituída por um “diálogo intergeracional e que vai ser condicionado sempre pela condição viva e dinâmica dos polos desse diálogo, os educadores e os educandos”. Entende, portanto, que educar não se resume a algo que “funciona”, que pode ser previsto antecipadamente. Tal abordagem, nesse sentido, coloca-se como mais um modismo que se propõe mitigar todos os males do campo da educação. Para o entrevistado 8, trata-se de um estreitamento de horizontes para pensar e projetar a formação das novas gerações, podendo seus efeitos “gerar um processo de semiformação ou até mesmo de deformação”, acentuando o saber-fazer técnico em detrimento da formação humana geral.

O entrevistado 12 ilustra sua preocupação fazendo referência a um dos grandes defensores da abordagem no Brasil, o Instituto Alfa e Beta, que tem sustentado a ideia de que somente o uso de conhecimentos científicos sobre o que funciona em educação poderá contribuir para melhorar a qualidade das políticas e práticas educacionais. Em poucas palavras, o entrevistado anuncia que, para traduzir as fragilidades da abordagem, teríamos que compreender seus propósitos em torno da finalidade (pública) da educação, sua concepção de educação, como ela concebe a relação ensino-aprendizagem e teoria-prática, qual é o papel do professor que está subentendido, qual é a compreensão da formação do professor, se ela conhece as condições reais dos professores para o desenvolvimento de sua prática pedagógica, qual é a perspectiva de pesquisa educacional que está colocada etc.

Já o entrevistado 17 ressalta que a abordagem

[…] pode influenciar estimulando, cada vez mais, o predomínio da visão cientificista da educação, valorizando excessivamente os resultados dos testes internacionais, padronizando o ensino, fechando a formação de professores para respostas criativas e, sobretudo, desconsiderando a riqueza do encontro humano entre professor e aluno, impossível de ser apreendida por evidências científicas.

E, ainda, desvalorizar as áreas como as artes e a filosofia e outras racionalidades (como a poética, a estética, a ética) que possibilitam contato com as experiências humanas. Ou seja, tal abordagem trará o empobrecimento da experiência pedagógica e o desestímulo ao pensamento reflexivo. O entrevistado 19 complementa dizendo que é preciso formar professores ensejando-os por meio da vivência do processo de construção de conhecimento, não por produtos acabados que “funcionam”.

O entrevistado 20 entende que a investigação em educação não pode residir meramente em evidências científicas da forma como vem sendo colocada. Sua compreensão é a de que as evidências objetivas podem auxiliar as investigações, mas não podemos nos reduzir a elas sob o risco de simplificarmos a pesquisa na obtenção de escores e quantificações. “A formação de professores pode e deve basear-se em evidências, desde que estas não se reduzam a dados estatísticos e a quantificações, mas resultem sustentados em suas experiências e em suas práticas”.

O entrevistado 22 comenta que “ficaria muito preocupado com um curso de formação baseado em supostas evidências científicas de um viés teórico/filosófico questionável ou único”. Em outras palavras, não seria uma abordagem epistemológica saudável, basicamente por dois motivos básicos:

  1. nunca temos certeza de que uma ciência ou abordagem científica seja a melhor e todas têm que estar contestadas sempre;

  2. o entrevistado não concorda com o cientificismo, que diz que tudo que é importante na educação, incluindo nos conteúdos a serem ensinados bem como nos métodos de ensino etc., pode ser fornecido pelas ciências.

Ele conclui dizendo que há outras áreas de estudo (especialmente as humanidades) que podem descobrir ou mostrar aspectos importantes da realidade e do ensino e aprendizagem que a ciência não pode enxergar ou analisar.

O entrevistado 23 até concorda que, se houver um trabalho coerente e consistente para estabelecer uma revisão conceitual das ciências que têm tratado da educação para alcançar uma ciência da educação, então as evidências produzidas por essa nova ciência serão relevantes na formação de professores. Todavia, parece-lhe que isso não ocorrerá em breve, se é que ocorrerá em algum momento. Por isso, ele amplia o leque de compreensão do que é concebido como “ciência”, dizendo que o mais importante é “que as diversas ciências que tratam da educação sejam ensinadas como ciências, ou seja, o futuro professor aprenda a pensar e agir como um cientista, como sociólogo, psicólogo, antropólogo, bem como aprenda os principais problemas da filosofia das ciências”. Referindo-se a outros campos do conhecimento, aduz que um desses problemas é o da validação do que se diz ser uma evidência nas ciências, o que não é uma particularidade das ciências, pois se encontra no âmbito do direito, especialmente no criminal. O domínio dos instrumentos cognitivos necessários para validar algo apresentado como evidente são os mesmos em todas as áreas de conhecimento e na vida social. Enfim, o entrevistado defende ser necessária a aprendizagem desses instrumentos pelos estudantes universitários, especialmente os futuros professores, pois é por meio deles que somos capazes de apreender a mentira, as falsidades e as falácias.

A entrevistada 18 destaca ser importante ir mais além da proposta em questão, afirmando que gosta muito de pensar a formação de professores como “uma experiência formativa que é muito mais ampla do que ficar agarrado a evidências científicas”. Já o entrevistado 14 entende que a Pedagogia, se aceitar sem mais os pressupostos e conclusões dessa proposta, “reduzirá seu estatuto epistemológico, desconstituir-se-á enquanto ciência e aceitará o papel de técnica especializada”. Para ele, o resultado disso seria “retirar da pesquisa educacional o caráter científico, transformando-a em simples procura de práticas desejáveis”.

Tais compreensões podem ser resumidas pela ideia de que, na educação e, pois, também para a formação docente, a interpretação do social e do científico deveria andar de mãos dadas e não em oposição. Concepções epistemológicas reducionistas e considerações de ensino e aprendizagem estreitas tenderam historicamente a nos levar a formas de organização escolar que recaíram em práticas mecanicistas e discriminatórias de crianças, quando não as segregam e as excluem do processo pedagógico pelos filtros da “normalidade” adotada.

A educação por evidência como discurso tecnocrático e gerencialista

Outra lacuna apontada pelos entrevistados na proposta das evidências atém-se a sua adesão ao discurso tecnocrático e gerencialista que permeia o mundo sistêmico, preocupado com a reprodução material e o poder estratégico. Segundo Habermas (1987), com o advento da racionalidade moderna, esse discurso saiu de seus nichos próprios de atuação (os sistemas econômicos e administrativos, como os grandes bancos, as empresas públicas e privadas, por exemplo) e invadiu o mundo da vida e o social, ocasionando as patologias sociais. O entrevistado 12, por exemplo, diz ser

[…] evidente que a educação deve orientar-se com base em estudos científicos. Todavia, o discurso atualmente em voga nas esferas de formulação das políticas educacionais no Brasil vale-se do verniz das evidências científicas para deixar de enfrentar as questões que são essenciais ao campo educacional.

E isso ele cataloga como “uma das matizes do discurso tecnocrático, privatista e gerencialista em voga”. As limitações, anacronismos e a estreiteza da compreensão do campo educacional estão na base de tais políticas e são iniciativas típicas do estado de exceção que estamos vivendo no Brasil. Depois, o entrevistado passa a analisar a Resolução CNE/2019, n° 2 (Brasil, 2019b) que, segundo ele, lembra a lógica e determinados elementos presentes na 5692/71 do regime militar. Por fim, refere ainda que há o lado privatista dessa ideologia da educação baseada em evidências. Ela é vendida por fundações oriundas do setor privado, como Lemann, Ayrton Senna, etc. Ou seja, ela traduz — com recurso a um tipo reducionista de cientificismo — os interesses do setor privado em direcionar as políticas educacionais em suas diferentes esferas, escondendo, entre outras coisas, a mercantilização da educação. Em suma, o entrevistado afirma que isso não passa de uma nova forma (moda) de direcionar políticas públicas e de vender produtos educacionais que colonizam a educação pública.

Para o entrevistado 24, a “educação baseada em evidências” é apenas uma das múltiplas competências destacadas pela CNE/2019 n° 2 (Brasil, 2019b), particularmente no Anexo. Esse termo, “competência”, já possui um sentido específico no contexto da proposta das “novas diretrizes curriculares nacionais”, pois é diretamente vinculado à formação prioritariamente para o mercado, portanto, sob os auspícios da ideologia neoliberal. Nessa perspectiva, ele cita a conceituação apresentada por Dardot e Laval (2016, p. 7) no livro A Nova Razão do Mundo: “O neoliberalismo não é apenas uma ideologia, um tipo de política econômica. É um sistema normativo que ampliou sua influência ao mundo inteiro, estendendo a lógica do capital a todas as relações sociais e a todas as esferas da vida”. A educação tornou-se uma de suas prioridades, particularmente nos últimos dez anos. E, entre os membros do CNE, os defensores das parcerias público-privadas, os reformadores empresariais, ganham aos poucos presença e destaque. O entrevistado percebe que a categoria “qualidade da educação” foi progressivamente sendo substituída pelo termo “competência”, que se expressa no referido documento de forma abrangente: o Anexo da CNE/2019 n° 2 (Brasil, 2019b) é testemunha da presença marcante desse termo, seja nas denominadas “competências gerais docentes”, seja nas múltiplas “competências específicas” relacionadas “ao conhecimento profissional”; “à prática profissional”; “ao engajamento profissional”. Ou seja, embora o texto da CNE/2019 n° 2 (Brasil, 2019b) em seus 30 artigos deixe entrever orientações aparentemente críticas, democráticas, progressistas, seu Anexo, porém, que sintetiza a proposta e a encaminha para a prática, é todo ele carregado e ilustrado pela “competência” para o mercado.

Para o entrevistado, a orientação metodológica de uma educação baseada em evidências científicas, com apoio específico das novas tecnologias digitais e outras, expressa-se de forma manifesta no corpo da CNE/2019 n° 2 (Brasil, 2019b) e, sobretudo, em seu Anexo. Certamente, as pesquisas educacionais que caminharem na direção da referida Resolução terão mais espaço e apoio das agências de pesquisa, pois estarão mais diretamente voltadas aos interesses do capital, do mercado e da expansão da ideologia neoliberal. Isso não impede, embora crie obstáculos para tanto, que os pesquisadores críticos do sistema e da articulação da educação com as parcerias público-privadas desenvolvam investigações nas áreas da educação, da saúde e de outros setores da vida pública e social. O que poderá se apresentar como uma luz de esperança é o fato de, na academia, particularmente nas áreas das ciências humanas, sociais e da saúde (mas não só) predominarem, entre os pesquisadores e pareceristas ad hoc, intelectuais críticos e democráticos. Mas também não se deve ter a ilusão de que o sistema deixará de interferir sobre a escolha de seus pareceristas. Ou seja, antes de afirmar a possível influência de tal abordagem da educação sobre a pesquisa educacional no país, é preciso considerar criticamente o papel dessa interpretação presente na resolução como expressão de uma política pública.

Se analisarmos apenas a dimensão da abordagem da educação baseada em evidências científicas na formação de professores, perceberemos que há nela uma dupla perspectiva. De um lado, é inegável a contribuição da pesquisa, da ciência, particularmente a partir da era moderna, na busca e na descoberta de conhecimentos que foram importantes para a humanidade seguir seu trajeto, sua caminhada. De outro lado, o entrevistado 24 lembra que a história nos revela que, sobretudo, a partir da consolidação do capitalismo como modo de produção dominante, as principais descobertas científicas e empreendimentos tecnológicas estiveram antes a serviço do capital que da humanidade, antes a serviço da dominação, da destruição que da emancipação do homem. Ele apresenta uma citação de Adorno e Horkheimer (1985, p. 48), na Dialética do Esclarecimento, que expressa essa realidade: “No trajeto da mitologia à logística, o pensamento perdeu o elemento da reflexão sobre si mesmo e hoje a maquinaria mutila os homens mesmo quando os alimenta”. Sendo assim, ele pensa que a perspectiva crítica e reflexiva deve orientar as atividades formativas dos professores, para que eles possam contribuir realmente para que as “evidências científicas” sejam testadas, questionadas e apoiadas quando verdadeiramente estiverem a serviço do desenvolvimento da maioridade de seus educandos, tal como Kant, no final do século XVIII, indicava.

O entrevistado 7 vai nessa mesma direção de raciocínio, reiterando que a

[…] formação é algo muito sério para acreditar que o mercado consegue regular alguma coisa. Uma boa formação leva tempo, exige investimento, requer atitudes éticas, exige rigor, pressupõe condições adequadas de infraestruturas, corpo docente qualificado, boa biblioteca, boa interação.

Enfim, para os entrevistados, tudo leva a crer que se trata de uma perspectiva impositiva de uma agenda governamental voltada ao empreendedorismo, ao controle dos professores e à fiscalização profissional no que tange ao sucesso nos rankings internacionais e nas pautas economicistas. A falta de uma perspectiva mais consolidada certamente não é interessante para os formuladores das políticas, pois dificulta a fiscalização do desempenho profissional e, assim, a responsabilização do setor público.

É perceptível que a ação comunicativa está sendo sonegada nessa proposta em prol de um agir estratégico e instrumental, próprio do âmbito do sistêmico. Os imperativos dos tecnocratas fazem-se presentes nessas ações, seja por iniciativas que advêm do setor privado mercantilista, seja pelo impositivos dos rankings internacionais, que, a pretexto de eficácia e desempenho, vão passando sua agenda carregada de ideologia privatista e neutral: “É uma racionalidade da ação segundo a qual os agentes se desobrigam de prestar contas em público de suas intenções e modos de fazer, não atentando para as consequências possíveis dos seus atos” (Riveira, 1995, p. 20).

NOTAS CONCLUSIVAS

O artigo buscou compreender o processo de implementação da abordagem da educação baseada em evidências na formação de professores no Brasil, levando em conta a consulta hermenêutica das 25 falas de especialistas da educação. Embora haja argumentos concordantes de quatro entrevistados, os outros 21 sujeitos mostraram-se desfavoráveis, destacando-se em suas falas, em geral, os seguintes aspectos: a natureza das evidências, a existência de diferentes tipos de evidências na pesquisa em educação, as consequência negativas da abordagem na formação de professores e a agenda governamental presente na implementação da abordagem.

Como vimos, a educação baseada em evidências representa uma tentativa de traduzir para o contexto educacional nacional o mesmo modelo da medicina baseada em evidências, o que significa “integrar a experiência individual de ensino e aprendizagem com a melhor evidência externa disponível da pesquisa sistemática” (Davies, 1999, p. 117). Por um lado, os defensores de tal iniciativa compreendem ser possível transportar experiências que “funcionam” de outros países, mapeadas por revisões sistemáticas de literatura, para nosso contexto, desconsiderando tanto as realidades diferentes nos aspectos sociopolíticos e culturais quanto as pesquisas qualitativas que não são compatíveis com sistematizações de literatura. Não obstante, por outro, os críticos de tal abordagem argumentam que ela vai contra a tradição pedagógica no que se refere ao compromisso com a educação, sendo o conceito de evidência colocado como uma armadilha para auferir uma formação de profissionais em desvantagem com relação ao compromisso ético-moral e social com a “educabilidade humana” (Dalbosco, 2019).

Tudo indica que se trata de uma maneira de burlar o problema do financiamento da educação, da formação crítica do professorado e da melhoria das condições de vida das populações, com a justificativa retórica da mistificação do culto a “evidências científicas”. Estas são apresentadas com a roupagem de um discurso neutral, quando na verdade estão a serviço dos interesses do sistema (Habermas, 1986; 1987; Riveira, 1995), aliados a projetos privatistas, gerencialistas e tecnocráticos. E, assim, a abordagem coloca-se como forma de fazer o gerenciamento da educação e a fiscalização do desempenho dos professores em favor da agenda econômica, como apontaram os/as entrevistados/as. Com efeito, como lembra Ball (2005, p. 544), “o gerencialismo desempenha o importante papel de destruir os sistemas ético-profissionais que prevaleciam nas escolas, provocando sua substituição por sistemas empresariais competitivos”.

Procuramos, desse modo, compreender melhor o sentido da abordagem da educação baseada em evidências na formação de professores, oportunizando espaços para sua confirmação ou confrontação perante representantes abalizados da comunidade dos pesquisadores da educação brasileira. Trata-se de uma contribuição que visa preencher uma lacuna diante do protagonismo unidirecional do CNE na tomada de decisões que tem acontecido sem considerar o contraditório e a posição dos especialistas da área, embora eles tenham participado de alguns dos debates do âmbito do Conselho. Ao abrir esse espaço, o artigo revela um projeto desviado dos propósitos da formação de professores defendidos na universidade.

Como vimos, os pesquisadores entrevistados reiteram que a legitimidade da formação de professores compreende intencionalidade e adequada compreensão das singularidades do campo educacional, envolve postura ética, contexto e formação humana que não se constrói sobre ou brota de fatos empíricos, simplesmente. A compreensão dos especialistas, em sua maioria, aponta para uma perspectiva de evidência bastante diferenciada do campo da educação, que não pode, por suas características específicas, se fechar no âmbito dos métodos quantitativos, objetivos e experimentais, muito menos dos randomizados, como já discutido exaustivamente na área.

Diante desse diagnóstico, no que se refere à questão político-ideológica, trata-se de uma abordagem com interesses economicistas, colocada como solução para os problemas da educação básica, como se houvesse “soluções técnicas, baseada em fatos, para problemas que necessariamente envolvem julgamentos de valor” (Hammersley, 2005, p. 94). Entendida por seus defensores como um projeto educacional de sucesso da aprendizagem diante dos rankings internacionais, ela utiliza-se do nome da ciência como manobra para despolitizar a educação, ao mesmo tempo que descredibiliza as pesquisas e as experiências da área e controla a atuação dos professores. Em relação a isso, Flickinger (2019) pontua que a perspectiva de ranquear países ao fim e ao cabo prioriza necessidades econômicas em detrimento das demandas sociais.

Assim como colocado pela maioria dos/as entrevistados/as, o objetivo da formação de professores não é apenas permitir que a aprendizagem aconteça, pois deve estar comprometida com um projeto educacional mais amplo que autorize posturas reflexivas, críticas, contextualizadas, individualizadas e a tomada de decisões segundo as demandas de cada contexto. É preciso que o professor tenha condições de conduzir a educação das futuras gerações para o exercício profissional, bem como para a atuação reflexiva voltada às necessidades de caráter público. E isso exige uma formação para além de evidências que “funcionam”, segundo compreensões políticas já definidas. Em síntese, a educação requer não apenas certezas, mas intencionalidades responsáveis. Nesse sentido, Biesta (2007, p. 11) diz que,

[…] até agora, a única conclusão alcançada é que a educação deve ser entendida como uma prática moral, não causal, o que significa que os julgamentos profissionais em educação são, em última análise, julgamentos de valor, não apenas julgamentos técnicos.

Concordamos com D’Agnese (2014, p. 76) quando argumenta que o enfoque das evidências acaba por “mostrar como tais leituras não são apenas perigosas em um nível político-ideológico, mas pouco fundadas precisamente de um ponto de vista científico, e altamente redutoras com relação ao papel e às funções da educação”. Logo, apesar do apelo pela defesa da cientificidade, tal abordagem traria uma solução enganadora para a formação de professores, tendo em vista o claro desvio de foco dos verdadeiros problemas educacionais.

Enfim, seria possível discutir também o que o enfoque das evidências oculta ao apresentar-se como possível solução (científica) aos problemas educacionais. Além disso, seria preciso refinar um pouco mais a crítica ao modelo das evidências. Ainda, seria possível desnudar um pouco mais a resistência ao enfoque tecnocrático e gerencialista subjacente a tal abordagem. Fundamentalmente, porém, é preciso recuperar a dimensão da racionalidade hermenêutica (e de arte) da educação, que é essencialmente dialógica, sob pena de descaracterizar seu estatuto epistemológico (Charlot, 2006), que não é uniforme nem fechado, mas aberto. Desse modo, reforçamos o alerta para os reducionismos, como o de identificar educação com aprendizagem e a um enfoque cognitivo desta (Biesta, 2007). A ideia de saberes generalizáveis é mais favorável ao controle da formação, tendo em vista a facilidade da medição do desempenho e a restrição das ideias alheias ao planejado. Por isso, a tendência parece ser a de sair do paradigma das competências em favor do paradigma das evidências. Isso porque as competências são de difícil mensuração quando comparadas com as evidências. Nosso diagnóstico é que, em termos de formação de professores, já recuamos da teoria (Moraes, 2001) e, agora, estamos recuando da prática.

1Agradecemos à professora Benedetta Bisol (UnB) pelo importante diálogo realizado com o texto.

2A lei No Child Left Behind (NCLB), de 2001, que em tradução significa “nenhuma criança deixada para trás”, foi uma lei aprovada no Congresso Americano, baseada justamente na premissa de que as experiências dos melhores resultados mensuráveis deveriam nortear as escolhas realizadas no campo educacional.

Financiamento: O artigo é fruto da pesquisa que está sendo realizada por meio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), com auxílio aprovado na Chamada MCTIC/CNPq n° 28/2018 — Universal, e da Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAPDF), com auxílio aprovado pelo Edital 03/2018 — Demanda Espontânea.

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Recebido: 27 de Julho de 2021; Aceito: 07 de Fevereiro de 2022

Catia Piccolo Viero Devechi é doutora em educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora da Universidade de Brasília (UnB). E-mail: catiaviero@gmail.com

Amarildo Luiz Trevisan é doutor em educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: amarildo1.trevisan@gmail.com

Angelo Vitório Cenci é doutor em filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professor da Universidade de Passo Fundo (UPF). E-mail: angelo@upf.br

Conflitos de interesse: Os autores declaram que não possuem nenhum interesse comercial ou associativo que represente conflito de interesses em relação ao manuscrito.

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