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Revista Brasileira de Educação

versión impresa ISSN 1413-2478versión On-line ISSN 1809-449X

Rev. Bras. Educ. vol.27  Rio de Janeiro  2022  Epub 20-Dic-2022

https://doi.org/10.1590/s1413-24782022270124 

Artigos

Ocupações secundaristas no Brasil em 2015 e 2016: sujeitos e trajetórias

OCUPACIONES ESCOLARES EN BRASIL EN 2015 Y 2016: SUJETOS Y TRAYECTORIAS

IUniversidade Federal do Paraná, Curitiba, PR, Brasil.

IIUniversidade Federal de Alfenas, Alfenas, MG, Brasil.


RESUMO

O artigo comunica resultados gerais de pesquisa nacional sobre as ocupações secundaristas no Brasil em 2015 e 2016. Teve como objetivo a interpretação dos sentidos da participação de adolescentes nesse movimento estudantil, destacando a caracterização dos sujeitos nas ocupações e as trajetórias educacionais, familiares e políticas pós-ocupação. Como metodologia, a análise qualitativa e quantitativa de 80 entrevistas semiestruturadas concedidas em 2019 e 2020 por jovens que, em 2015 e 2016, eram estudantes do Ensino Médio que ocuparam suas escolas, de 10 diferentes estados. Orientam a análise, as categorias de subjetivação política de Jacques Rancière, de significado de González Rey e de trajetória (inspirada em Lahire e Bourdieu). Os resultados que se destacam: o caráter popular do movimento; o protagonismo feminino e a influência decisiva da experiência da ocupação para a definição de trajetórias educacionais entre outros aspectos.

PALAVRAS-CHAVE movimento estudantil; subjetivação política; trajetória educacional

RESUMEN

Este artículo comunica los resultados generales de una investigación nacional sobre las ocupaciones escolares por estudiantes secundarios en Brasil en 2015 y 2016. Tiene como objetivo interpretar los significados de la participación de los adolescentes en este movimiento estudiantil: la caracterización de los sujetos en las ocupaciones, así como las trayectorias educativas, familiares y políticas. Como metodología, el análisis cualitativo y cuantitativo de 80 encuestas semiestructuradas concedidas en 2019 y 2020 por jóvenes que en los años de 2015 y 2016 eran estudiantes secundarios que ocuparon sus escuelas en 10 estados diferentes. El análisis está guiado por las categorías de subjetivación política (Jacques Rancière), significado (González Rey) y trayectoria (inspirado en Lahire y Bourdieu). Entre los resultados, se señala: el carácter popular del movimiento; el protagonismo femenino; y la influencia decisiva de esta experiencia para la definición de trayectorias educativas.

PALABRAS CLAVE movimiento estudiantil; subjetivación política; trayectoria educativa

ABSTRACT

This article communicates general results of a national study on high school occupations in Brazil in 2015 and 2016. It aimed to interpret the meanings of the participation of teenagers in this student movement, highlighting the characterization of the subjects who played a leading role in the occupations and educational, family, and political trajectory. The methodology employed included qualitative and quantitative analysis of 80 semi-structured interviews granted in 2019 and 2020 by young people from 10 different states, who were high school students in 2015 and 2016 and occupied their schools. The analysis was guided by the following categories: political subjectification, (Jacques Rancière’s), meaning (González Rey’s), and trajectory (inspired by Lahire and Bourdieu). The results: revealed the popular character of the movement; female students’ protagonism, and the decisive influence of the occupation experience in the definition of educational trajectories, among others aspects.

KEYWORDS student movement; political subjectivation; educational trajectory

INTRODUÇÃO

Eu agradeço as ocupações por me mostrarem que há possibilidade de fazer um processo de ensino e aprendizagem saudável, participativo, democrático, dialético, pedagógico mesmo, e as ocupações foram fundamentais para a escolha da minha profissão e para a forma que eu vejo minha profissão hoje. (Esperança, Espírito Santo)

Adolescentes, estudantes do ensino médio (EM), surpreenderam ao organizar e protagonizar os protestos de caráter progressista mais importantes no Brasil em 2015 e 2016, o movimento das ocupações de escolas públicas, contra diversas medidas regressivas nas políticas educacionais implementadas, primeiro, por diferentes governos estaduais e, depois, pelo governo federal de Michel Temer (2016-2018). Tornaram, assim, ainda mais ultrapassada a imagem de adolescentes como pessoas meramente imaturas ou pré-políticas. E a surpresa continua na capacidade dessas pessoas, a médio e curto prazo, criarem potentes significados para essa experiência, de modo que ela passa a ter grande importância para suas próprias trajetórias de vida. Desse modo, não apenas se referenda a tese de que a participação em um movimento social costuma ser uma experiência marcante na vida das pessoas que o construíram (Gohn, 2011), como também se demonstra a potencialização dessa experiência entre adolescentes, pessoas que vivem a fase inicial da juventude. (Melucci, 1997).

Este artigo comunica resultados gerais da pesquisa nacional “Ocupações secundaristas no Brasil em 2015 e 2016: formação e auto-fomação política das/dos ocupas”. A pesquisa tratou dos sujeitos das ocupações, os secundas - abreviatura de secundaristas -, como se autodenominavam os estudantes do EM que atuaram nesse movimento. Ela se realizou por meio de uma parceria entre 12 instituições de educação superior no Brasil, formando equipes em dez estados (Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro, Goiás, Ceará e Pará).1

O artigo, especificamente, tem como objetivo a interpretação dos sentidos da participação de adolescentes secundaristas nesse movimento estudantil, destacando a caracterização dos sujeitos que protagonizaram as ocupações e as trajetórias educacionais, familiares e políticas pós-ocupação. Como metodologia, a análise qualitativa e quantitativa de 80 entrevistas semiestruturadas realizadas entre 2019 e 2020 com jovens que, em 2015 e 2016, eram estudantes do EM e que ocuparam suas escolas nos dez estados descritos anteriormente. Conforme projeto aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de Alfenas, Minas Gerais (UNIFAL-MG), CAAE 4809518.1.0000.5142, as pessoas entrevistadas são referenciadas por pseudônimos escolhidas por elas.

Para a análise desses dados, foi muito importante como ponto de partida a categoria de subjetivação política de Jacques Rancière (1996), em diálogo com a clássica categoria de socialização política. Também, as categorias de sentido e significado de González Rey (2010). Finalmente, a noção de trajetória inspirada em Bernard Lahire (1997) e Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron (1975).

Essas entrevistas e suas análises têm permitido conhecer os impactos a médio prazo da participação de adolescentes em ações coletivas. Durante os movimentos de ocupação, tais adolescentes, mesmo que por um breve momento, se constituíram como sujeitos políticos, ajudando a desvelar os potenciais sentidos de participação em uma experiência coletiva radical, no sentido mesmo que essa palavra contém: de raiz, de algo que atravessou integralmente a constituição de suas subjetividades. Essa experiência tende a ser eleita como um divisor de águas nas suas trajetórias de vida, ainda que com uma relativa contradição: ela marca os sujeitos tanto pela experimentação política da democracia horizontal e por oficinas com conteúdos e metodologias educacionais alternativas, quanto pelas ameaças, violências e perseguições vividas durante e após o protesto.

Este artigo apresentou os principais resultados acerca das influências da experiência de ocupação nas trajetórias de pessoas que, quando adolescentes, participaram dos movimentos secundaristas de 2015 e 2016, os secundas. Faz isso, primeiro, apresentando dados sociais, econômicos e políticos sobre eles, assim como sobre as relações com suas famílias. Segundo, apresenta dados que indicam as influências da experiência de ocupar em suas trajetórias educacional e política, assim como nas suas relações familiares.

SUJEITOS

As 80 pessoas entrevistadas pela pesquisa não conformam uma amostra aleatória de participantes das ocupações, dado que os principais objetivos da pesquisa são qualitativos, ou seja, buscam conhecer os sentidos e os significados da experiência de ter participado desses movimentos. Tendo a subjetividade como um macroconceito, tomamos aqui sentido e significado conforme definidos por Rey (2010), inspirado em Vygotsky, quando trata da subjetividade constituída por meio das interações socioculturais. Nessa proposição, os sentidos podem ser definidos como orientações simbólico-emocionais que o sujeito constrói e reconstrói por meio das relações sociais e mediações culturais das quais faz parte; os significados são uma das zonas desses sentidos, por meio das quais os sujeitos interpretam os sentidos que os orientam, tanto para si quanto para o mundo social. Para González Rey, os significados são mais estáveis e duradouros que os sentidos. Dessa forma, as entrevistas apresentam, sobretudo, significados atribuídos pelos secundas às suas experiências no movimento, os quais indicam os diversos sentidos subjetivos constituídos por essas pessoas: o esforço da análise é ela própria uma interpretação desses significados e sentidos, atribuindo uma nova camada de significados - via pesquisa - ao evento das ocupações secundaristas (Rey, 2010).

O recrutamento para as entrevistas se deu a partir das redes acadêmicas e políticas formadas pelas equipes de pesquisa, a partir de conhecimento pessoal e indicações; por vezes, se fez uso também de buscas nas redes sociais da internet e até mesmo, no Paraná, se fez uso de um formulário on-line. Tomou-se o cuidado de recrutar mais pessoas do gênero feminino do que do masculino, respeitando as evidências de todos os estudos anteriores e o contato das equipes com o movimento, em que as meninas compuseram a maioria dos estudantes em protesto e ocuparam posições de destaque. Buscou-se entrevistar pessoas tanto da capital quanto do interior dos estados; tanto militantes quanto independentes; tanto estudantes de escolas centrais quanto periféricas. Em geral, tinham entre 16 e 18 anos quando participaram dos movimentos em 2015 e 2016; e quando concederam entrevistas, em 2019 e 2020, tinham entre 19 e 21 anos.

Apesar de seu cunho qualitativo e não-aleatório, a amostra tem certa representatividade e os dados quantitativos extraídos têm valor para a análise geral, complementando interpretações orientadas pela análise qualitativa que vêm sendo feitas em cada estado. Fizemos uso do software MaxqDa para produzir dados a partir da análise das entrevistas semiestruturadas, que seguiram um roteiro composto por quatro temáticas: trajetória escolar; formação política; experiência da ocupação; e trajetória pós-ocupação.

Em relação ao gênero, 56,25% (45 pessoas) dos entrevistados foram mulheres, 41,25% (33) foram homens e 2 pessoas se declararam não binárias (2,5%). Como dito, houve um esforço para garantir a primazia relativa de mulheres em relação a homens, além do importante encontro com pessoas que não se enquadram no viés binário hegemônico das relações de gênero.

A ocupação em si, me proporcionou ter contato com o feminismo, foram os primeiros momentos em que eu percebi que mulheres podem liderar. (Cimeire, Santa Catarina)

Lá na escola teve meninas que a partir daquele movimento que a gente fez, das místicas, elas quiseram participar de movimentos feministas. (Mel, São Paulo)

Quanto ao tipo de município que teve a escola ocupada, em relação ao número de menções por estudante, predominaram municípios fora da capital - interior, litoral e região metropolitana da capital: 66,25% das menções (53). Da capital, foram 27 menções (33,75%). Nesse caso, se reflete o esforço de garantir representatividade - mesmo que não estatística, mas como garantia da presença de relatos - de escolas fora das capitais, nesses movimentos estudantis largamente interiorizados, em vários casos se caracterizando como a primeira manifestação política significativa depois de muitos anos em diversos pequenos municípios.

Em relação às escolas públicas ocupadas, criamos a seguinte tipologia:

  • Escolas prestigiosas: que possuem algum processo seletivo (como institutos técnicos federais), mantém prestígio por seu papel histórico de formação de elites (como uma escola central em Belo Horizonte/MG) ou são escolas de aplicação de universidades públicas;

  • Escolas centrais e de bairros de classe média - aqui, excluindo as prestigiosas, citadas anteriormente, ainda que muitas vezes se localizem em regiões centrais;

  • Escolas periféricas: localizadas fora da região central e de bairros caracterizados como sendo de classe média.

Conforme o Quadro 1, a pesquisa obteve sucesso pequeno no recrutamento de estudantes de escolas que denominamos como “periféricas”, apesar dessas escolas terem sido indicadas pela pesquisa bibliográfica como o tipo que melhor caracterizava esse movimento estudantil.

Quadro 1 - Tipo de escola ocupada pelas pessoas entrevistadas (em relação ao número de menções). 

Tipo de escola n %
Central 48 60
Periférica 22 27,5
Prestigiosa 10 12,5
Totais 80 100

Fonte: Elaboração dos autores.

Nossas redes e contatos tiveram inúmeras limitações para recrutar secundas de escolas periféricas, de modo a representar com mais justiça sua importância para o movimento. Ainda assim, os resultados foram significativos. A maioria das pessoas de nossas redes acadêmicas e políticas havia dado apoio a ocupações de escolas centrais ou prestigiosas, normalmente devido à proximidade dessas escolas com os seus locais de moradia e trabalho. No dia a dia das ocupações, apesar de sua importância, essas escolas periféricas receberam menos atenção das mídias e das organizações apoiadoras (como partidos e sindicatos), enquanto tendiam a receber repressão mais severa da polícia e até mesmo ameaças de traficantes. Nas escolas periféricas, foram proeminentes, tanto como lideranças quanto como base, estudantes que não eram nem ativistas de coletivos autonomistas, nem militantes de organizações, que se autodenominaram como independentes - ou seja, com atuação política mas sem filiação a juventude partidária, entidade estudantil ou grêmio.

A gente fazia alguns formulários para as pessoas se inscreverem propondo oficinas para as Ocupações. […] E as pessoas se inscreviam, mas sempre tinham disponibilidade para as escolas do centro. Nunca para as escolas periféricas, as escolas mais afastadas. (Juliana, Paraná)

Nos colégios periféricos houve mais repressão, nos colégios centrais não, até pelo perfil dos estudantes e da população em volta. (Resistência, Goiás)

Foi predominante entre nossas entrevistas o pertencimento às escolas centrais, localizadas em regiões centrais ou em bairros de classe média, mesmo nos casos em que recebiam, como estudantes, adolescentes das periferias - como a escola Fernão Dias, no bairro Pinheiros da capital paulistana; essa escola, apesar de ter sido a segunda escola ocupada, foi a que mais recebeu a atenção midiática e de ativistas e militantes. Essas escolas centrais tenderam a ter lideranças tanto de independentes quanto de ativistas de coletivos autonomistas e militantes de entidades estudantis; mas a base, novamente, era de independentes.

Nas escolas classificadas como prestigiosas, a tendência foi a de que a condução da ocupação estivesse a cargo de militantes de entidades estudantis e/ou partidos juvenis, locais onde suas organizações têm atuado mais organicamente. Os institutos técnicos federais, em especial, estiveram mais presentes na segunda onda de ocupações, no segundo semestre de 2016, quando instituições de educação superior (ES) também foram ocupadas, adaptando a tática usada por secundaristas das escolas de educação básica.

Verificaremos adiante, entretanto, que apesar dessa limitação no acesso a escolas periféricas, ainda assim nossa amostra de secundas é predominantemente oriunda de estratos socioeconômicos populares.

Em relação à situação político-organizacional da pessoa entrevistada no momento da ocupação, tivemos um interessante equilíbrio: 40 estudantes (50%) eram independentes; 40 (50%) pertenciam a alguma organização. Entre as organizações, praticamente todas estão claramente no campo das esquerdas. Temos em primeiro lugar as juventudes partidárias (24 filiações, destacando-se a União da Juventude Socialista - UJS [11 pessoas] e o Levante Popular da Juventude - LPJ [4]), seguidas por: grêmio estudantil (4), coletivos autonomistas e identitários (4), Pastoral da Juventude (3), entidade estudantil (2) e partido (1).

Quanto à forma de participação do secunda no movimento, criamos a seguinte tipologia:

  • Lideranças ou referências: há certa tendência de negar a presença de “líderes”, especialmente em ocupações organizadas por independentes e coletivos autonomistas, não por influência de movimentos de direita (que vinham pregando a negação da política), mas sim pela adoção de ideais da horizontalidade e da democracia participativa. Apesar disso, é assumido de forma explícita ou implícita em quase todas as entrevistas que algumas pessoas vieram a ocupar posições proeminentes para a mobilização, na organização no dia a dia e no diálogo com redes de apoio; por vezes, se usam termos eufemísticos para se referir a elas, como “referências” ou mesmo “lideranças informais”;

  • Base: apesar de o termo não ser corriqueiro nesse movimento, a categoria expressa a condição de pessoas que, em geral, não participaram da fase da mobilização, que se engajaram após o anúncio do movimento (por curiosidade, solidariedade a amigas e amigos ou por se convencer da importância da pauta), mas foram atuantes nas diferentes comissões criadas (segurança, limpeza, alimentação e comunicação) e nas oficinas e outras atividades formativas que substituíram as aulas rotineiras.

Há também um interessante equilíbrio entre as duas categorias referentes à forma de participação no movimento secundarista, conforme o Quadro 2: 50% (40) das pessoas entrevistadas foram referência ou liderança; 50% (40) fizeram parte da base.

Quadro 2 - Forma de participação na ocupação em relação à situação político-organizacional da pessoa entrevistada. 

Situação Totais
Forma de participação Referência/liderança “Base”
n % n % n %
Independente 12 30 28 70 40 50
Organizada 28 70 12 30 40 50
Totais 40 100 40 100 80 100

Fonte: Elaboração dos autores.

Ao se cotejar a forma de participação na ocupação com a situação político-organizacional das pessoas entrevistadas, apesar de não se encontrar uma sobreposição entre a condição de referência e a condição de organizada, há realmente uma tendência de que pessoas já organizadas tenham vindo a ocupar posições de liderança nos movimentos, conforme o Quadro 2: das pessoas organizadas, 70% (28) ocuparam posições de referência; em contrapartida, das independentes, 70% (28) fizeram parte da base.

É preciso reconhecer a maior facilidade de encontrar pessoas que ocuparam a posição de liderança, bem como as organizadas, para a concessão de entrevistas. Primeiro, pela chance maior de serem contatadas por nossa rede acadêmica e política; segundo, pela atribuição maior de importância a essa experiência por quem veio a ocupar tais posições. Pode-se inferir que as influências dos movimentos secundaristas de 2015 e 2016 foram amplificados para além das pessoas que tiveram uma participação ativa, criando um prolongamento da ação coletiva. Mas as influências foram mais fortes, realmente, entre quem inclusive se reconhece como secunda ou ocupante da escola, mesmo na condição de base, apresentando com maior intensidade os aspectos formativos, socializadores e políticos.

As primeiras análises aprofundadas sobre os estados, como em Minas Gerais, haviam indicado três resultados (Groppo e Oliveira, 2021):

  1. havia uma correlação entre o tipo de participação e a socialização política prévia, ou seja, as pessoas que foram lideranças e eram organizadas tendiam a pertencer a famílias com maior capital político, cultural e/ou econômico;

  2. a maioria de secundas independentes tiveram na ocupação um momento diferencial em suas trajetórias de relação com a política, passando a se interessar e se envolver com questões políticas e movimentos sociais graças à ocupação - para tais é que a ocupação foi, sobretudo, um momento de subjetivação política;

  3. mesmo para quem já vivia a condição organizada, a ocupação também teve forte impacto em sua formação política, tendo sido a ocupação, de fato, a sua primeira participação direta em uma ação política.

Cabe agora, diante dos dados gerais sobre os 10 estados e as 80 entrevistas, verificar se esses resultados podem ser generalizáveis.

O resultado parcial I, sobre a importância da família na formação política, não ficou claramente comprovado quando se passou a analisar os dados gerais. Trataremos desse aspecto adiante, quando abordarmos a relação de secundas com suas famílias. Já os resultados gerais tendem a referendar os resultados II e III. Discorremos a seguir, primeiro, sobre eles.

Como dito, temos encontrado uma grande influência subjetiva na experiência de ocupar. A categoria de subjetivação política de Rancière (1996) tem dado apoio para a compreensão dos sentidos da participação de secundas nesses movimentos. Primeiro, pelo fato das ocupações terem dado ensejo a processos de rejeição ativa de secundas em relação ao modo como parte das instituições e das pessoas adultas concebem os papéis sociais de adolescente e estudante, a saber, como sujeitos não habilitados para o agir político e que deveriam ser passivos na definição de currículos e políticas educacionais. Essa rejeição produziu certa desidentificação de secundas em relação a imagens caricatas produzidas pelo senso comum sobre adolescentes e discentes do EM (Groppo e Silveira, 2020).

Segundo, pelas ocupações, mesmo que relativamente efêmeras e breves, terem sido tempo e lugar do deslocamento de identidades de gênero: as mulheres repensam sua condição feminina e secundas reconstituem as relações de gênero, aplicando e desenvolvendo um feminismo secundarista e popular (Silveira, 2019). Esse deslocamento teria permitido, nas próprias palavras de secundas, que outras identidades classicamente subalternizadas também viessem a ser ressignificadas e trazidas ao centro, durante o movimento estudantil: pessoas de orientação sexual LGBTQIA+2 e pessoas negras (Pacheco, 2018).

A gente percebeu que, majoritariamente, quem ocupava a escola eram mulheres, mulheres negras e LGBTQIA+. Quem estava à frente das ocupações eram essas pessoas, com essas identidades, o que é muito interessante. Elas e eles são os maiores marginalizados dentro da escola, mas que naquele momento disputaram a ativa e dirigiram a ocupação. (Gustavo, Paraná)

Nossa pesquisa trouxe dados quantitativos e qualitativos que referendam a hipótese da força da desidentificação em relação à condição estudantil e adolescente, assim como o deslocamento das identidades de gênero e de orientação sexual. Mas os dados têm sido menos patentes em relação às identidades étnico-raciais. Primeiro, pelos temas étnico-raciais terem ocupado nas oficinas e práticas formativas um papel secundário; às pautas educacionais e políticas foram acrescidas, em maior grau, questões de gênero e de orientação sexual, seguidos por temas étnico-raciais. Segundo, a autodeclaração de cor/raça por parte dos secundas que entrevistamos não deixa patente uma presença maior de pessoas negras, pretas e pardas, mas sim certo reflexo da caracterização étnico-racial dos estratos populares e médio-baixos da sociedade brasileira (IBGE, 2010), conforme o Quadro 3.

Quadro 3 - Cor/raça declarada pelas pessoas entrevistadas. 

Cor/raça n %
Negra (Preta e parda) 38 47,5
Branca 38 47,5
Indígena 1 1,25
Não declarou 3 3,75
Totais 80 100

Fonte: Elaboração dos autores.

Entretanto, os dados sobre a orientação sexual declarada pelas pessoas entrevistadas demonstram que estudantes com identidades sexuais hodiernamente subalternizadas e perseguidas tenderam a participar ativamente das ocupações. Pessoas que declararam orientação sexual LGBTQIA+ compuseram 53,75% da amostra da pesquisa, conforme o Quadro 4.

Quadro 4 - Orientação sexual declarada pela pessoa entrevistada. 

Orientação sexual n %
LGBTQIA+ 46 57,5
Heterossexual 26 32,5
Não sabe 4 5
Não declarou 4 5
Totais 80 100

Fonte: Elaboração dos autores.

Quando se correlaciona a forma de participação na ocupação com gênero e orientação sexual, conforme o Quadro 5, referenda-se a importância das mulheres nesse movimento: de 40 líderes, 33 são mulheres. Já em relação à orientação sexual, a condição LGBTQIA+ não determinou diferença na forma de participação, vindo a referendar a tese de que, desde a construção do movimento via posições centrais das mulheres, outras identidades secundarizadas no cotidiano escolar - e na própria sociedade em geral - ganham destaque, principalmente pessoas lésbicas, gays e bissexuais, distribuindo-se igualmente na liderança quanto dando corpo à base das ocupações.

Quadro 5 - Forma de participação na ocupação em correlação com gênero e orientação sexual. 

Forma de participação Gênero Orientação sexual Totais
Feminino Masculino Não-binário LGBTQIA+ Heterossexual Não sabe ou não declarou
Liderança 33 6 1 19 17 4 40
Base 12 27 1 24 14 2 40
Totais 45 33 2 43 31 6 80

Fonte: Elaboração dos autores.

Quando Rancière (1996) desenvolveu a categoria de subjetivação política, ele havia pensado primeiro nos movimentos operários do século XIX, nos quais o termo “proletariado” vinha definir um sujeito político coletivo por meio da ressignificação da condição meramente socioeconômica da “classe operária” (Rancière, 1988). Mas Rancière (1996) logo trouxe outros exemplos para pensar a categoria, como as revoltas de plebeus na Roma Antiga, o movimento feminista desde o século XIX e Maio de 1968, entre outros. São mobilizações que trazem o que é o cerne da categoria de subjetivação política, a saber, a constituição de sujeitos coletivos durante o dissenso - que é o momento da “política” genuína -, momento que revela a igualdade entre todos os seres falantes e atuantes, a despeito dos preconceitos estimulados pela ordem social (que afirmam a desigualdade “natural” entre classes sociais, gêneros, raças, categorias etárias e outras formas de classificação social).

Nesse sentido, foi um exercício estimulante verificar a procedência socioeconômica dos secundas que entrevistamos. Apesar da dificuldade de encontrar secundas das escolas periféricas, mesmo nas escolas centrais e nas prestigiosas predominou quem veio dos estratos populares. Não se generalizou algo observado na segunda e mais famosa ocupação estudantil em 2015, da escola Fernão Dias no valorizado bairro Pinheiros da capital paulista, na qual estudantes secundaristas de escolas privadas, de estrato médio-alto, ajudaram a sustentar, na condição de ativistas de coletivos autonomistas, o movimento de uma escola que, mesmo que central, era composta de estudantes que habitavam as regiões periféricas da capital paulista.

Para compor os quatro estratos socioeconômicos aqui utilizados, partimos de dados levantados pelas entrevistas, considerando: renda familiar; escolarização de responsáveis; e profissão de responsáveis. Assim, caracterizamos os estratos:

  • Estrato médio-alto: presença de ao menos três desses elementos: renda familiar (RF) acima de 4 salários-mínimos (SM); escolarização superior completa de ao menos um responsável; responsável é profissional liberal, empresário(a) ou profissional de alta especialização;

  • Estrato médio-baixo: presença de ao menos dois desses elementos: RF de 3 a 4 SM; escolarização superior de ao menos um responsável; responsável é empresário(a) ou profissional de alta especialização;

  • Estrato popular I: presença de ao menos dois desses elementos: RF de 2 SM; escolarização média completa de ao menos um responsável; responsável é profissional com especialização;

  • Estrato popular II: presença de ao menos dois desses elementos: RF abaixo de 2 SM; escolarização fundamental ou média incompleta de responsáveis; responsável é profissional sem especialização.

O Quadro 6 apresenta os dados sobre a classificação de secundas em estratos socioeconômicos. Há pequena presença de pessoas do estrato médio-alto (5 pessoas, ou 6,25%), enquanto que é mais significativa a do estrato médio-baixo (16 ou 20%). Entretanto, a presença de 59 pessoas vindas dos estratos populares I e II, compondo quase 3/4 da amostra, nos leva a considerar que os movimentos das ocupações estudantis, além de adolescentes e secundaristas, com forte presença feminina e LGBTQIA+, foram movimentos populares.

Quadro 6 - Classificação das pessoas entrevistadas em estratos socioeconômicos. 

Estrato n % n %
Médio-alto 5 6,25 21 26,25
Médio-baixo 16 20
Popular I 33 41,25 59 73,75
Popular II 26 32,5
Totais 80 100 80 100

Fonte: Elaboração dos autores.

Quando se faz a correlação entre estrato socioeconômico, cor/raça, forma de participação e condição político-organizacional, encontramos interessantes indícios de que, diferente do que poderia parecer ao se considerar a ocupação da escola Fernão Dias, houve a tendência de pessoas dos estratos populares exercerem posições de liderança e referência, inclusive por terem vindo de organizações em que encontraram espaço para atuar ou que vieram a formar. Podem comprovar isso os dados expostos no Quadro 7, que não evidenciam a superioridade de pessoas brancas em posição de liderança e condição organizada em comparação com negras, pretas e pardas. Na verdade, há uma presença significativa de pessoas negras, pretas e pardas que eram organizadas e lideranças. Mas, mais importante ainda, os dados demonstram que as posições de liderança tendem a ficar com pessoas dos estratos populares.

Quadro 7 - Condição organizacional e forma de participação na ocupação em correlação com estrato socioeconômico e cor/raça (n). 

Forma de participação Estrato socioeconômico Cor/raça Totais
Estratos populares Estratos médios Negras, pretas e pardas Brancas e outras
Liderança 32 8 18 22 40
Base 27 13 20 20 40
Condição político-organizacional
Organizada 29 11 18 22 40
Independente 30 10 20 20 40
Totais 59 21 38 42 80

Fonte: Elaboração dos autores.

Assim, há indícios de relevantes trabalhos “de base” pelas diferentes organizações onde secundas atuavam, como juventudes partidárias, coletivos autonomistas e Pastoral da Juventude; mas também, certo fenômeno de “autoformação”, na figura de grêmios e coletivos identitários. Trabalhos sobre as ocupações de São Paulo têm destacado a formação de redes de ativistas de coletivos autonomistas e militantes de partidos de esquerda críticos ao Partido dos Trabalhadores (PT), que vinham atuando nas periferias (Barros, 2017; Campos, 2019).

Longe de serem movimentos meramente reativos ou “espontâneos”, as ocupações também foram marcadas pelo período que Melucci (1989) considerava como crucial em toda ação coletiva: a latência. Isso ajuda a explicar a força e capacidade de disseminação das ocupações. Entre os elementos da latência, entretanto, existem aqueles oriundos da própria dinâmica estudantil e adolescente-juvenil, que, independente do contato com aquelas organizações e redes, vinham delineando respostas e alternativas diante das contradições da própria realidade escolar e socioeconômica - ameaçando jovens e suas famílias com ainda mais precariedade e precarização. Não à toa, a primeira ocupação aconteceu em uma escola da Grande São Paulo, em Diadema, largamente independente e que tinha feito contatos apenas episódicos com a rede autonomista que veio por organizar a maioria das primeiras ocupações paulistas - mas não a primeira.

Ao final deste item, trazemos dados gerais acerca das relações de secundas com suas famílias. Abordaremos duas questões do roteiro de entrevista, que tratam do tema: a influência da família na formação política; e mudanças na vida pessoal (incluindo a familiar) após a ocupação. Trataremos dos resultados da primeira aqui; da segunda, no próximo item.

O Quadro 8 apresenta dados sobre o reconhecimento pela pessoa entrevistada da influência da família na sua formação política. Os dados não dão muito apoio às teses clássicas da socialização política, acerca da influência decisiva da família na formação política de pessoas com engajamento político (Oppo, 1998). Metade das pessoas entrevistadas (40) não reconhecem influência da família e 2 pessoas não relataram influências familiares.

Quadro 8 - Reconhecimento pela pessoa entrevistada de influência da família na sua formação política. 

Reconhecimento da influência da família Estrato socioeconômico (n) Geral: Totais
Médio alto e médio baixo Popular I Popular II n %
Sim 14 13 11 38 47,5
Não 7 18 15 40 50
Não relatado 0 2 0 2 2,5
Totais 21 33 26 80 100

Fonte: Elaboração dos autores.

Quanto às que reconhecem alguma influência, ou seja, 38 pessoas (47,5%), apenas 8 reconheceram uma formação política stricto sensu, incluindo militância partidária e sindical. 11 apontaram como influência aspectos não diretamente políticos, como o incentivo aos estudos e valorização da educação (4), religiosidade que criou sensibilidade social (3), independência das mulheres da família, luta da mãe pela sobrevivência e o tio drag queen (4). Oito relataram a influência apenas do pai ou da mãe e 7 apontaram outras pessoas (irmãos [3], avô, madrinha, tios e padrasto). Enfim, 2 pessoas relataram a ruptura com uma formação política conservadora vinda da família. Entre as 40 pessoas que não veem influência da família (50%), a maioria considera a família pouco ou nada interessada pela política, mas 4 pessoas indicam divergências de posição política, levando inclusive a conflitos (2 pessoas) - o que não deixa de ser uma influência política, mesmo que de perfil conservador, ou por provocar conflitos.

Foi feita a correlação entre os dados sobre a influência da família na formação política com outras variáveis: atuação na ocupação; condição político-organizacional; estrato socioeconômico; gênero; orientação sexual; e cor/raça.

Não há diferença nas respostas entre a atuação como liderança ou base. Também não há diferenças significativas em relação à cor/raça. Já a condição de organizada se correlaciona a um nível um pouco maior de influência da família na formação política (21 organizadas contra 17 independentes). Em relação ao estrato socioeconômico, todas as 5 pessoas de estrato médio alto relataram a influência da família - mas uma delas diz que era retrógrada e foi preciso romper, inclusive influenciando a mãe, que se tornou militante de partido político junto com o filho. Divergências políticas chegaram a pontos extremos, como a agressão desta secunda de classe média-baixa:

Levei tapa na cara! Literalmente. Meu pai faltou me amarrar em casa, a minha mãe só brigava comigo. Meu pai falava assim: “Você não trabalha pra ver que você não vai mudar o mundo! Você não vai conseguir mudar o mundo”. Mas eu caguei pra ele! (Fernanda, Minas Gerais)

Percebe-se maior tendência de influência na formação política da família entre estratos médios, ainda que o reconhecimento pelos estratos populares seja significativo, conforme o Quadro 8. O reconhecimento da influência é proporcionalmente maior entre mulheres (54,35%) do que entre homens (40,62%) e proporcionalmente maior entre pessoas com orientação heterossexual (51,85%, ou 14 pessoas) do que LGBTQIA+ (44,44% ou 20 pessoas).

Os resultados quantitativos permitem concluir que há uma influência relativamente maior da família entre pessoas dos estratos médios, confirmando, nesse sentido, teses que relacionam posse de capital econômico, capital cultural e capital político - esse último com o sentido de habilitação à atuação nas instituições políticas vigentes e aos valores da cidadania representativa (Oppo, 1998).

Contudo, ao se considerar a correlação exposta no Quadro 6, notou-se que tanto a condição organizada quanto a atuação como liderança guardam pouca correlação com o estrato socioeconômico de origem no sentido esperado pelas teses clássicas da socialização política; na verdade, os dados do Quadro 6 subvertem essa expectativa, já que lideranças vindas dos estratos populares foram mais frequentes de forma absoluta e relativa. Ainda que para todos os estratos tenha sido relevante a influência da família na formação política, inclusive nos populares, mesmo que na forma indireta de incentivo aos estudos e conversão da formação religiosa em sensibilidade social, os dados permitem afirmar a múltipla origem dos elementos da formação política dos secundas, inclusive durante a latência das ocupações, na qual se combinou a própria vivência da condição adolescente-juvenil (na escola e em outros espaços públicos e privados) e estudantil (já que abundam os relatos da importância da formação política estimulada por parte da docência, mas quase nunca como projeto político-pedagógico da escola ou do sistema de ensino).

TRAJETÓRIAS PÓS-OCUPAÇÃO

Os trabalhos que têm sido publicados com base nesta pesquisa têm destacado o quão potente foi a vivência desse movimento por secundas. Para a pesquisa, a noção de experiência de E. P. Thompson (2002) foi muito importante, nos permitindo tratar das ocupações secundaristas como um movimento de base popular que modifica a experiência cotidiana de sujeição, opressão e resistência discreta em uma experiência política que envolve a organização, o protesto e a ruptura (Groppo e Silveira, 2020). Tal noção de experiência veio ao encontro da noção de política de Rancière (1988), como revelação da igualdade imanente entre todos os seres humanos, por meio da subjetivação política (Groppo e Silva, 2020).

A Figura 1 é um bom indicador dos sentidos múltiplos, abertos e potentes da experiência de ocupar, bem como da pertinência da noção de experiência segundo Thompson (2002) e de subjetivação política segundo Rancière (1996). Trata-se de uma nuvem de palavras criada a partir das entrevistas, quando pedimos que o(a) secunda definisse, em uma palavra, o que foi o movimento. Várias pessoas registraram a dificuldade de fazer isso, de modo que 9 não responderam e 8 citaram duas palavras ou mais. A Figura 1 registra, dessa forma, 82 menções e 42 palavras.

Fonte: Elaboração dos autores.

Figura 1 - Palavras-chave escolhidas por secundas para definir o movimento. 

A palavra-chave mais frequente foi esperança, com 9 menções, seguida por resistência (8). Com 5 menções: aprendizado, luta e revolução. Com 4, transformação. Com 3, crescimento, experiência e força. Esses resultados enfatizam não apenas o vigor da experiência de ocupar, mas a sua ressignificação ao longo das trajetórias de vida, algo que as análises qualitativas das entrevistas têm enfatizado desde o início desta pesquisa. Jovens depoentes, ao relatarem memórias de sua experiência política quando adolescentes secundaristas, têm demonstrado o quanto e como essa experiência tem sido mobilizada para decisões e tomadas de posição diversas; não apenas no que é especificamente político, mas também na esfera educacional, na carreira profissional e nas relações com a família - levando ao transborde da experiência para outras esferas da vida, elas próprias politizadas.

As ocupações foram muito importantes pra minha entrada na política, para o trabalho popular mesmo. […]. Eu sou fruto de uma ocupação, então tudo que eu sou hoje em algum ponto foi graças à ocupação. (Esperança, Espírito Santo)

Dados esses exemplos da importância da experiência de ocupar, a seguir, neste item, gostaríamos de apresentar dados que revelam os aspectos das trajetórias de vida mais afetados por ela: a trajetória educacional e as relações familiares. Também, desejamos analisar dados sobre as influências nas trajetórias políticas de secundas, essas menos lineares e bastante sujeitas aos cenários políticos regressivos vividos desde 2016 em nosso país. Há diversos outros aspectos da vida de tais jovens que receberam influências dessa experiência, como a religiosidade e a orientação sexual, que não poderão ser abordados aqui, mas que vêm sendo alvo de análises por outros membros da equipe.

A noção de trajetória tem muito a dever das análises da sociologia da educação sobre a trajetória escolar, assim definida por Bittar (2015, p. 49): “[...] os percursos percorridos pelos indivíduos ao longo da sua vida escolar.”. No Brasil, há um legado consistente, fruto de pesquisas de sociólogas da educação como Marília Pinto de Carvalho, que dialogam com referenciais como os de Pierre Bourdieu e Bernard Lahire, entre outros (Senkevics e Carvalho, 2020). Essas abordagens tendem a pensar a influência de experiências escolares em dado nível de ensino em relação aos subsequentes, ou então a fatores mais prolongados ou definitivos, externos à escola (condição socioeconômica, escolarização de responsáveis, gênero, raça, orientação sexual etc.). Entretanto, os dados a seguir indicam o quanto pode ser importante o impacto de uma experiência juvenil extra-cotidiana - no caso, a participação em protesto ou ação coletiva de caráter político.

Os dados ainda permitem dialogar com a noção de trajetória de Lahire (1997), mais fenomenológica, que enfatiza os percursos múltiplos possíveis e a influência das decisões dos sujeitos para construir os sentidos de suas trajetórias. Mas também nos fazem dialogar com a perspectiva mais estruturalista de Bourdieu e Passeron (1975), os quais ilustram o quanto o trabalho individual na construção da sua trajetória é, justamente, a ferramenta pela qual as estruturas sociais operam a sua própria reprodução, por meio do conceito de habitus.

O Quadro 9 traz os dados a respeito da situação educacional no momento da entrevista. Como dito, as entrevistas foram feitas em 2019 e 2020, ou seja, entre 4 a 6 anos depois do movimento do qual participaram.

Quadro 9 - Situação educacional no momento da entrevista de secundas. 

Situação educacional n %
Cursa a ES 59 73,75
Apenas concluiu o EM 11 13,75
Frequentou a ES, mas evadiu 4 5
Ainda cursa o EM 2 2,5
Cursa o Ensino Técnico 2 2,5
Evadiu do EM 2 2,5
Totais 80 100

ES: educação superior; EM: ensino médio.

Fonte: Elaboração dos autores.

59 pessoas, ou seja, 73,75% de jovens que foram secundas em 2015 e 2016, eram estudantes da ES em 2019 ou 2020, quase 3/4 de nossos sujeitos de pesquisa. Parte relevante das entrevistas reconhece explicitamente o movimento das ocupações como grande ou mesmo a principal influência na decisão de cursar a ES. O movimento apresentara em oficinas informações sobre o ingresso, a gratuidade e a política de cotas na ES pública, bem como criara o interesse por determinada carreira profissional, muitas vezes dando sentido político e coletivo a esse interesse, para além da ascensão individual.

Então, naquele período a gente começou […] a fazer atividades até sobre vestibular e de como é o acesso às universidades públicas […], palestras sobre temas vocacionais […], também uma explicação de como eram as modalidades de cotas e de acesso. (Ana Paula, Rio Grande do Sul).

Trata-se da principal influência da participação no movimento para tais secundas. Veja-se os dados do Censo da Educação Superior de 2019, pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP, 2019). A taxa líquida ajustada, ou seja, a porcentagem da população brasileira de 18 a 24 anos que frequenta ou concluiu a ES era de 25,5%, ou seja, ¼ desse estrato etário. Se considerarmos esse dado como um indicador, não como uma medida diretamente comparável, verifica-se a tendência muito maior de quem foi ativo(a) no movimento secundarista de 2015 e 2016 vir a ingressar na ES, praticamente – dos secundas.

De 59 secundas que estavam na ES, 43 (ou seja, quase 73%) frequentavam instituições públicas estaduais ou federais e 16 frequentavam a ES privada (pouco mais de 27%). Há uma inversão em relação à proporção geral, já que a maioria dos discentes na ES no Brasil hoje está em instituições privadas: “Com mais de 6,5 milhões de alunos, a rede privada tem três em cada quatro alunos de graduação.” (INEP, 2019). Entre quem apenas concluiu o EM, 7 disseram ter a intenção de cursar a ES, 2 não têm intenção, 2 não informaram e 1 planeja cursar ensino técnico.

O tipo de curso e carreira profissional escolhidos também foram influenciados pela ocupação, mas, principalmente, o sentido dessa escolha, que, como dito, tende a ter também significação coletiva e política.

A ocupação influenciou diretamente com as experiências que eu tive, porque na escola técnica de artes a gente realizou também projetos, a escola de artes na ocupação virou realmente de artes, porque a gente andava pela ocupação com um tecido de circo, tinha galera dançando. […]. Eu já gostava de teatro, eu também já tinha essa de pensar em educação. Aí eu vejo na universidade estadual o curso de licenciatura em artes. Aí eu falei: é isso! (Ruth, São Paulo)

Lá na ocupação eu conheci vários advogados, juízes, e foram pessoas que foram conversando muito comigo sobre o direito e foram abrindo a minha mente. E eu: “Aí, gente, eu quero ser isso quando eu crescer.” Fiquei pensando assim, por todo esse apoio que eu tive. (Marielle, Pará)

Outro dado que distingue secundas da população em geral, incluindo demais jovens de sua geração, é o voto declarado no 2º turno das eleições presidenciais de 2018, eleições que elegeram o candidato de extrema-direita. Apenas uma pessoa declarou ter votado no presidente eleito - e, na entrevista, ele afirma ter mudado de posição novamente, voltando a ser progressista como no tempo das ocupações. 65 declararam ter votado no candidato de centro-esquerda (81,25%), 4 não votaram (não haviam tirado o título de eleitor) e 1 votou em branco. Trata-se de uma informação que francamente aponta para um posicionamento político progressista, mesmo de quem votou de forma resignada no candidato do PT, por ansiar por uma candidatura entendida como mais progressista.

Entretanto, como se verá pelos dados a seguir, isso não implicou necessariamente em um engajamento militante ou no aumento da adesão à condição política organizada. Vimos no item anterior, por meio do Quadro 2, que metade de quem concedeu entrevista era organizada, metade era independente. Faltou informar que, entre os 40 independentes antes das ocupações, grande parte, ou seja, 30 pessoas, não relataram qualquer tipo de atividade associativa, nem mesmo religiosa, filantrópica ou assistencial.

O Quadro 10 flagra a condição político-organizacional no momento da entrevista. Os dados, a princípio, são desalentadores diante da hipótese de maior engajamento político suscitado pela experiência da ocupação, já que há uma diminuição do número de pessoas na condição organizada: são agora 39 pessoas (38,75%). Ainda predominam entre pessoas organizadas, as filiações a juventudes partidárias de esquerda (15), ainda destacando UJS e LPJ; mas elas quase empatam com as filiações a partidos de esquerda (13), em especial do Partido Comunista do Brasil - quase sempre a partir de secundas filiados à UJS. Enfim, há 4 engajamentos em entidades estudantis da ES: diretório central estudantil e centros acadêmicos. Chama a atenção a desaparição de menções a coletivos autonomistas e identitários, indicando que essa forma de participação tem sofrido ainda mais com o contexto sócio-político regressivo em nosso país.

Quadro 10 - Situação político-organizacional no momento da entrevista de secundas. 

Situação n %
Independente 41 51,25
Organizada/organizado 39 38,75
Totais 80 100

Fonte: Elaboração dos autores.

Em um primeiro momento, as influências das ocupações estudantis no Brasil em favor dos engajamentos militantes no Brasil são bem menores do que as observadas no Chile por Ruiz (2014). Deve-se considerar, entretanto, os diferentes desdobramentos da vida política chilena entre as ocupações de 2006 e a atualidade, em sentido progressista, de forma distinta ao que o Brasil tem vivido desde 2013, em especial a partir de 2016. Ou seja, há um contexto bastante desfavorável ao engajamento progressista no Brasil atual.

Mas também é preciso considerar que, entre as 41 pessoas na condição de independentes no momento da entrevista, apenas 8 pessoas não manifestaram qualquer tipo de engajamento político ou associativo pregresso às ocupações. 8 chegaram a se aproximar ou até mesmo a se filiar a alguma juventude partidária ou partido, sempre no campo da esquerda. 14 afirmaram que ocasionalmente participam de atos e manifestações progressistas, além de nutrir simpatias e interesse por organizações partidárias de esquerda. 5 pessoas dizem realizar seu ativismo por meio das artes (dança e teatro). 3 citaram a atuação em projeto de extensão universitária, 1 em organização não-governamental e 1 em projeto social. 1 pessoa, enfim, diz que seu engajamento é “na vida”, por meio da atuação em favor do direito das minorias no trabalho e na família.

Eu trabalho na minha vida, eu trabalho com a minha irmã, eu trabalho com a minha família e passo para as pessoas que eu trabalho a necessidade de continuar sempre crescendo, nesse movimento de ajudar e querer mudar, de querer evoluir, de querer melhorar o nosso país. (Carolina de Jesus, Minas Gerais).

Os dados ilustram menos a despolitização de secundas e mais uma politização de sentido progressista que nem sempre encontra lugar nas organizações partidárias e entidades estudantis, enquanto os coletivos autonomistas que foram formados não tiveram fôlego para superar os retrocessos políticos e sociais dos anos seguintes ao movimento das ocupações. A frequência ocasional a manifestações e certa disposição para o engajamento ou reengajamento ilustram uma significativa prontidão de parte da atual geração jovem para novos protestos e ações coletivas progressistas, em especial quando se consegue recriar o caráter horizontal e participativo vivido nas ocupações. Referendam esta última conclusão os motivos alegados por secundas para o engajamento em projetos de extensão, organizações não-governamentais e projetos sociais, e até mesmo nas Artes: são ações de maior flexibilidade e direcionadas a políticas identitárias e inclusivas, com mais capacidade de se aproximar das populações em situação de injustiça social e dialogar com elas.

Desde que entrei na faculdade eu criei um intuito de que, se eu participasse de um movimento social, eu queria que uma pauta fosse norteadora de todas as outras - raça. E todos os movimentos sociais que eu já li sobre, ouvi falar, essa pauta que eu queria não era norteadora. Daí eu acabei querendo sair e preferi ficar só no projeto social e nesse projeto de extensão mesmo (Isadora, Ceará).

Esses dados referendam as proposições de Oscar Aguillera Ruiz (2016), quando demonstra como jovens compartem uma crítica profunda aos modos de organização da sociedade e às formas tradicionais de participação política. O antropólogo chileno, indo além, observa que as condições culturais de participação vão se convertendo no que aparece como uma ruptura geracional entre as culturas políticas tradicionais e as políticas das culturas juvenis (Ruiz, 2016).

Finalmente, chamou a atenção, durante o cruzamento de dados quantitativos, as mudanças nas relações de secundas com as suas famílias, influenciadas pela experiência de ocupar. Trata-se de uma influência menos marcante em comparação com as trajetórias educacionais, mas mais clara que aquela registrada logo acima, sobre as trajetórias políticas. Enquanto a importância da família na formação política de secundas já havia contrariado as expectativas das teorias clássicas sobre socialização política, tanto por sua mediana importância, quanto por não ter sido estritamente política, os relatos sobre as mudanças nas relações familiares surpreendem por sua relativa grandeza, conforme apresentado no Quadro 11.

Quadro 11 - Reconhecimento de mudanças nas relações com a família após o movimento das ocupações estudantis. 

Relato n %
Reconhece mudanças 49 61,25
Não reconhece mudanças 14 17,5
Não relata mudanças 17 21,25
Totais 80 100

Fonte: Elaboração dos autores.

O Quadro 11 foi construído com base nas respostas à questão: “Houve mudanças significativas na sua vida pessoal após as ocupações?”. Ela não direcionava a resposta explicitamente às relações familiares, mas havia expectativa de que, caso acontecesse, fossem ali relatadas.

Poucos relatos que reconhecem a mudança não a atribuem, ao menos em parte, às ocupações. Em torno de ¼ dos relatos reconhece que as mudanças foram apenas negativas, destacando-se os conflitos por diferenças político-ideológicas (6 entrevistas), o que está envolvido também na ruptura com a mãe em uma entrevista, e com o pai em outra; enfim, há um relato de conflito por não aceitação da sexualidade da pessoa entrevistada. Outros – dos relatos registram mudanças positivas, destacando-se: mais respeito, compreensão e diálogo (11 entrevistas), influência política na família (8), mais autonomia, independência e libertação em relação à família (3), aceitação da orientação sexual (2), saída de casa (2), formação da própria família (2) e apoio (2).

Os relatos merecem uma análise qualitativa própria, mas vale a pena já trazer aqui algumas inferências a partir dos dados anteriores e de alguns exemplos mais. A conquista de respeito dentro da família, assim como a criação de uma compreensão recíproca e um ambiente de diálogo dentro da família, pode significar a construção de relações familiares mais saudáveis e positivas por meio da síntese de várias contribuições, entre as quais as ocupações ganham relevo. As ocupações, por um lado, foram processo formativo potente, que trouxe novas ou maiores compreensões de si e do mundo, como é abundante nos relatos; mas por outro, como os próprios relatos comprovam, elas foram uma espécie de prova: prova da capacidade do(a) secunda fazer algo construtivo, de demonstrar coragem, de ter papel de relevo e liderança diante da coletividade e até mesmo de perder a timidez.

Quando eu assumi um papel na ocupação, acho que de certa forma a família começou a me olhar de outra forma, não mais como a filha ou a sobrinha que não toma muitas iniciativas, mas sim como um sujeito político. Eu acho que eu tomei esse papel. Não era mais uma adolescente qualquer, era um sujeito político, assim como todos os outros colegas da ocupação (Natália, Paraná).

Mas talvez seja mais surpreendente o fato de que 8 secundas passaram a se considerar como referência política da família, tanto no sentido mais estrito de preocupação com as questões da política institucional, da democracia representativa e das pautas dos direitos sociais, quanto em sentido mais amplo, como a assunção da identidade étnico-racial e o estímulo de membros da família a retomarem suas trajetórias educacionais. “Da ocupação pra cá, eu virei a referência política da casa, da família. Assunto político, eu estou no meio, ou me pedem a opinião.” (Bernardo, Ceará).

Como último aspecto referente às relações familiares, relatamos o resultado das correlações feitas entre o reconhecimento da influência e as variáveis que vêm sendo utilizadas neste artigo. Há uma tendência um pouco maior de reconhecimento de mudanças na relação com a família entre pessoas que foram lideranças na ocupação (28 pessoas, contra 21 das que foram base). Porém, se notou uma pequena tendência a maior reconhecimento de mudanças na relação com a família entre quem era independente no momento da ocupação (27 pessoas, contra 22 que eram organizadas). Não há diferenças relevantes no reconhecimento entre o gênero masculino e feminino, enquanto a diferença do ponto de vista étnico-racial é pequena, com o reconhecimento por 59,5% das pessoas brancas contra 63,2% de negras, pretas e pardas.

As variáveis em que encontramos as diferenças mais significativas se referem ao estrato socioeconômico e, principalmente, à orientação sexual. Pessoas LGBTQIA+ reconhecem bem mais as influências do que as heterossexuais, ou seja 73,3% das LGBTQIA+ contra 48,2% das heterossexuais. Esse dado clama por uma análise mais refinada, que se debruce sobre os relatos. É possível adiantar sobre a presença de relatos acerca da conquista do respeito da família em relação à orientação sexual não heterossexual do(a) secunda, ao lado de relatos que enfatizam, em contrapartida, a construção de um maior respeito consigo mesmo, modo como se conseguiu angariar o respeito da própria família. Entretanto, também há relatos de conflito e incompreensão.

Hoje a minha família é muito aberta com relação à minha sexualidade, muito receptiva com relação à minha militância, mas eu acho que foi fundamental eles meio que rejeitarem esse meu lado no começo, para fazer de mim o que eu sou hoje. Acho que eu não teria lutado tanto se não fosse a resistência deles (Kamilo, Santa Catarina).

Quanto à variável estrato socioeconômico, o reconhecimento da mudança aumenta conforme se passa do estrato popular II aos estratos médios, ou seja, 53,8% de secundas do estrato popular I reconhecem as mudanças, contra 63,6% no estrato popular II e 75% nos estratos médios. Assim como em relação às diferenças observadas conforme a orientação sexual, as diferenças segundo os estratos sociais demandam uma análise qualitativa, se acercando dos relatos, mas partindo da constatação de que, em todos os estratos, o reconhecimento é relevante, sempre acima da metade das pessoas entrevistadas. Em todos os estratos, se reconhece, em diferentes graus, aspectos positivos como a construção de um clima de confiança, respeito e diálogo, a influência política fluindo do sujeito jovem para o núcleo familiar e, enfim, a capacidade de ganhar aceitação do modo como é perante a família - incluindo a orientação sexual LGBTQIA+ e a atuação política.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nossas análises, que buscaram caracterizar os sujeitos dos movimentos secundaristas de 2015 e 2016 no Brasil - secundas que ocuparam escolas públicas - assim como objetivar e interpretar as influências dessa experiência nas trajetórias de tais adolescentes, tiveram como principais fontes os relatos concedidos em entrevistas semiestruturadas para a pesquisa nacional aqui comunicada. Esses relatos trouxeram os significados que secundas foram criando e recriando acerca dessas experiências e influências em suas trajetórias. Os dados expostos neste artigo, ainda que sobretudo quantitativos, ajudam na interpretação dos significados subjetivos e sociais da experiência de ocupar. Permitem compreender não só os veios principais desses sentidos e o que há de geral nesta experiência, mas também as especificidades influenciadas por variáveis sociais, étnico-raciais, de gênero e orientação sexual.

Os relatos constituem um perfil do movimento secundarista das ocupações que foi eminentemente popular, feminino, LGBTQIA+ e independente, sem excluir o apoio de pessoas de estratos médios, a participação masculina, de heterossexuais e de organizações políticas. As ocupações contiveram processos de subjetivação política que abrigaram pessoas de diversos status sociais em um momento - o da política como desentendimento (Ranciére, 1996) - que instituiu a igualdade de fala e de ação. Mas isso só foi possível pela atuação “na linha de frente” de pessoas que tendiam (e tendem, ainda) a ser desqualificadas e vistas como inabilitadas politicamente do ponto de vista da ordem “policial”: adolescentes, estudantes de EM, discentes de escolas públicas, filhas e filhos das classes populares, meninas e pessoas LGBTQIA+.

Há de se recordar que o movimento, ainda que secundarizando a pauta étnico-racial em relação à feminista e LGBTQIA+, não sub-representou pessoas negras, pretas e pardas: elas ocuparam em condição de igualdade posições de liderança e já vinham angariando espaços nas organizações políticas que ajudaram na latência dessa mobilização coletiva. Por outro lado, a pesquisa teve dificuldades em conseguir entrevistas com secundas de escolas situadas nas periferias, pelos limites de nossa própria rede de contatos e, como trazemos aqui agora, também por uma tendência na forma de contar a história das ocupações - anunciada muito cedo, quando a ocupação precursora de Diadema ganhou papel secundário em certas narrativas em comparação com a do bairro prestigioso de Pinheiros, na capital paulista:

Eu descobri que movimentos de militância, muitas vezes, não dão o nome a quem faz. Então, vão ter muitas pessoas que vão aparecer no livro [...] que nós achamos que fizeram muito, mas não fizeram muito. Muitas vezes [...] dão diretrizes, dão noções, mas não estamos ali para receber isso, estamos ali para construir (Have, Minas Gerais).

Nossa pesquisa buscou superar essa limitação, diversificando as características de quem nos concedeu entrevista e tomando o cuidado para que fossem indicadas também pessoas que não eram militantes, além de nos esforçar para conseguir ao menos alguns relatos das periferias. Fomos descobrindo que a severa repressão do movimento, durante e após o protesto, atemorizou e calou secundas, especialmente de quem se manteve independente; tivemos várias negativas, mas quem veio por conceder entrevistas, raramente demonstrou apatia ou economia nas palavras. Ocupar foi uma experiência no sentido de construção coletiva de um sujeito político, tanto quanto uma vivência da plenitude do ser político em um radical experimento democrático, participativo e horizontal.

As influências que secundas têm carregado para suas trajetórias pessoais são inúmeras e potentes. Os dados destacaram as trajetórias escolares e, em consonância, futuras trajetórias profissionais: – de quem entrevistamos está na ES, quase sempre pública, em cursos e carreiras que receberam alguma influência da experiência de ocupar - por oficinas, atividades formativas ou a admiração do gesto solidário de profissionais que apoiaram a causa. O protesto secundarista veio por se revelar em um potente instrumento de acesso à ES e na formulação de projetos escolares e profissionais. Na falta ou insuficiência de ações especificamente educacionais emanadas dos próprios sistemas de ensino, secundas instituíram uma política pública rebelde de acesso à ES pública, combinando influências diversas, como a formação política emanada de parte das famílias - incluindo o incentivo aos “estudos” -, a formação política de uma pequena parte da docência durante a educação básica, o apoio de organizações políticas e sindicais e a ressignificação das vivências escolares e juvenis.

O movimento das ocupações foi, dessa forma, não apenas político, mas também educacional. Talvez melhor, os sentidos políticos do protesto secundarista transbordaram as instituições e os espaços políticos - inclusive graças ao fechamento ainda maior deles desde 2016 - e ressignificaram as trajetórias de vida. Como temos analisado em outros trabalhos, o feminismo secundarista faz mulheres e homens repensarem suas condições e as relações de gênero. Também, as ocupações foram espaços de assunção da orientação sexual de número relevante de secundas, outrora sob a sombra da discriminação e da insegurança a respeito de sua identidade; elas inclusive foram lugar para repensar ou pensar melhor a religiosidade. Neste artigo, as dimensões socioculturais do protesto político, na forma de influências nas trajetórias de vida, puderam ser vislumbradas também nas mudanças nas relações com as famílias.

Mais da metade das entrevistas reconhecem as mudanças nas relações familiares: em geral, positivas; quase sempre guardando relação com a vivência do movimento secundarista. A experiência de ter sido secunda não passa incólume por suas famílias, mesmo naquelas - que foram a maioria - que não influenciaram a formação política. Ao mesmo tempo, as famílias se revelaram também como lugar de expressão do recente acirramento político-ideológico da sociedade brasileira. Os resultados da politização vivida por adolescentes que se tornaram secundas não tiveram direção única: oscilaram da conquista da posição de referência política à ruptura com o núcleo familiar, ainda que tenha sido mais comum a construção de um espaço de convivência respeitosa.

Como conclusão, os resultados trazidos aqui indicam os sentidos e as influências poderosas da conjunção entre tantas experiências de adolescentes como sujeitos políticos: nas trajetórias pessoais, nas relações familiares, nos cenários políticos e nos sistemas educacionais. Agora, como jovens, seus relatos não deixam de serem transpassados pela angústia de suas derrotas imediatas, pelo recuo das organizações progressistas, pelo retrocesso da democracia representativa e pela penalização severa das novas gerações das camadas populares como resposta aos efeitos da crise econômica.

AGRADECIMENTOS

A toda equipe de pesquisa e às suas instituições, descritas na página da internet https://www.unifal-mg.edu.br/ocupacoessecundaristas/equipe/.

A Luiz Carlos Felizardo Júnior e a Kimi Aparecida Tomizaki pelo diálogo acerca de alguns conceitos e análises deste artigo.

REFERÊNCIAS

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1 Resultados e fontes da pesquisa estão disponíveis no site https://www.unifal-mg.edu.br/ocupacoessecundaristas/.

2 Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Transsexuais, Queers, Intersexuais e mais.

Financiamento: CNPq Processo nº 302633/2018-9 (Demanda/Chamada: Chamada CNPq nº 09/2018 - Bolsas de Produtividade em Pesquisa - PQ, Nível 2) e Processo nº 428160/2018-2 (Chamada MCTIC/CNPq nº 28/2018 - Universal/Faixa C).

Recebido: 06 de Outubro de 2021; Aceito: 21 de Março de 2022

Ana Luísa Sallas é doutora em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professora da mesma instituição. E-mail: analuisasallas@gmail.com

Luís Antonio Groppo é doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professor da Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL). E-mail: luis.groppo@unifal-mg.edu.br

Conflitos de interesse: Os autores declaram que não possuem nenhum interesse comercial ou associativo que represente conflito de interesses em relação ao manuscrito.

Contribuições dos autores: Conceituação, Curadoria de Dados, Análise Formal, Obtenção de Financiamento, Investigação, Metodologia, Administração do Projeto, Software, Escrita - Primeira Redação: Groppo, L. A. Conceituação, Metodologia, Administração do Projeto, Escrita - Primeira Redação, Escrita - Revisão e Edição: Sallas, A. L. F.

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