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Revista Brasileira de Educação

Print version ISSN 1413-2478On-line version ISSN 1809-449X

Rev. Bras. Educ. vol.27  Rio de Janeiro  2022  Epub Dec 20, 2022

https://doi.org/10.1590/s1413-24782022270129 

Espaço aberto

Conhecimento profissional docente e formação de professores

PROFESSIONAL TEACHING KNOWLEDGE AND TEACHER EDUCATION

CONOCIMIENTO PROFESIONAL DOCENTE Y FORMACIÓN DE PROFESORES

IInstituto de Educação, Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal.


RESUMO

Este artigo encontra-se dividido em três partes. Na primeira parte, argumenta-se que a questão central da formação de professores reside num “terceiro género de conhecimento”, designado por conhecimento profissional docente. Na segunda parte, ensaia-se a definição desse conhecimento, com base nos conceitos de contingente, coletivo e público, e retiram-se consequências para a formação de professores nos planos institucional, profissional e público. A terceira parte é dedicada à análise dessas consequências, referindo-se à necessidade de um “terceiro lugar” institucional, de um reforço do coletivo docente e de uma projeção pública dos professores. Numa breve conclusão, reitera-se que os novos modelos de formação de professores devem assentar no conhecimento profissional docente.

PALAVRAS-CHAVE conhecimento profissional docente; desenvolvimento profissional docente; formação de professores; profissão docente

ABSTRACT

This article is divided into three parts. In the first one, it is argued that the central issue of teacher education resides in a “third kind of knowledge”, called professional teacher knowledge. In the second, the definition of this knowledge is rehearsed, based on the concepts of contingent, collective, and public, and consequences are drawn for teacher education at the institutional, professional, and public levels. The third one is dedicated to the analysis of these consequences, referring to the need for an institutional “third place”, a reinforcement of the collective dimension of teaching and a public projection of teachers. In a brief conclusion, it is reiterated that the new models of teacher education must be based on the professional teaching knowledge.

KEYWORDS teacher professional knowledge; teacher professional development; teacher education; teaching profession

RESUMEN

Este artículo está dividido en tres partes. En la primera parte, se argumenta que el tema central de la formación docente reside en un “tercer tipo de conocimiento”, denominado conocimiento profesional docente. En la segunda parte, se ensaya la definición de este conocimiento a partir de los conceptos de contingente, colectivo y público, y se extraen consecuencias para la formación docente a nivel institucional, profesional y público. La tercera parte está dedicada al análisis de estas consecuencias, refiriéndose a la necesidad de un “tercer lugar” institucional, un refuerzo de la dimensión colectiva de la docencia y una proyección pública de los docentes. A modo de breve conclusión, se reitera que los nuevos modelos de formación docente deben basarse en el conocimiento profesional docente.

PALABRAS CLAVE conocimiento profesional docente; desarrollo profesional docente; formación docente; profesión docente

Vivemos tempos de muitas ilusões e de muitos equívocos. Alguns, os menos maus, defendem tenazmente as escolas e os professores, recusando mesmo qualquer movimento de transformação. Outros, que são os piores, adotam linguagens da moda para anunciarem um “admirável mundo novo”, sem escolas e sem professores, substituídos por tecnologias e “tutores” de vários tipos, até mesmo robôs dotados de inteligência artificial.

A cada ano, em todo o mundo, publicam-se milhares de títulos sobre a profissão docente e a formação de professores. Essa literatura prolixa tem uma falha maior: reflete insuficientemente sobre os professores como detentores de um conhecimento próprio, como produtores de um conhecimento profissional docente. E mesmo quando essa reflexão existe, ela é dinamizada por acadêmicos, não pelos professores da educação básica. Não se pense que é um tema menor. É mesmo a questão central para os professores e a sua formação.

Se desconsiderarmos a existência desse conhecimento, podemos manter os atuais modelos de formação de professores, com pequenos retoques. Mas se afirmarmos o conhecimento profissional docente como a base do trabalho dos professores e da sua identidade, impõem-se mudanças profundas na arquitetura e nos processos de formação de professores.

Eis a argumentação central deste ensaio, escrito com palavras cruas, porque não podemos ser cúmplices, ainda que pelo silêncio, do desgaste da profissão docente a que vimos assistindo nas últimas décadas. Sinto a urgência da ação. E chamo as universidades à sua responsabilidade.

Ainda há quem sustente que os processos de mudança e de qualificação dos professores dependem, acima de tudo, da pesquisa e da universidade. Consideram que o dia a dia das escolas é rotineiro e conservador e que os professores não estão preparados para refletirem entre eles e para construírem novas práticas pedagógicas. Essa posição é raramente manifestada de forma explícita e frontal, mas influencia, e muito, implicitamente, a maioria das perspetivas e das políticas de formação de professores.

Desengane-se quem assim pensa. Apesar de todas as dificuldades e todos os problemas, qualquer mudança real na educação e na pedagogia só poderá vir de dentro da profissão docente, sempre com um forte apoio externo, nomeadamente dos acadêmicos e das universidades. Por isso é tão importante construir novos ambientes educativos, nos quais os professores, coletivamente, possam construir diferentes pedagogias e novos modos de organização do seu próprio trabalho. É um caminho mais difícil, que demora mais tempo a se percorrer? Sem dúvida. Mas é o único que, no prazo de uma geração, pode permitir uma mudança de fundo na educação e na profissão docente.

A formação de professores é um campo decisivo para essa mudança, se for capaz de evitar uma subalternização dos professores e contribuir para uma valorização e um reforço da profissão docente. É essa ligação entre formação e profissão que quero pôr em destaque neste artigo, que tem como ponto central o conhecimento profissional docente.

PARA COMEÇAR: QUAL É A QUESTÃO CENTRAL DA FORMAÇÃO DE PROFESSORES?

Desde as suas origens, há cerca de dois séculos, a formação de professores tem sido sempre atravessada por disputas e controvérsias. Não são meras questões técnicas ou metodológicas, mas visões distintas, e muitas vezes contraditórias, da educação e da profissão docente.

Em pleno século XIX, a criação das escolas normais representa um momento decisivo na história da educação. A intenção é formar “novos professores”, dotados de uma maior legitimidade social e influência política, numa época em que os Estados impõem, em todo o mundo, a obrigatoriedade escolar. A edificação dos grandes sistemas de ensino e o seu papel na consolidação das cidadanias nacionais dependem, em grande medida, da ação desses novos profissionais docentes.

As escolas normais primárias destinam-se à formação dos professores das crianças abrangidas pelo ensino obrigatório (nessa época, de um modo geral entre os seis anos e os nove/dez anos de idade). Mais tarde, as escolas normais superiores, com essa ou com outra designação, dedicam-se à formação dos professores para as restantes etapas da educação básica.

Simplificadamente, podemos dizer que, na segunda metade do século XIX, o referencial principal da formação docente é a prática. Tudo se organiza para fornecer aos professores os métodos e os meios para transmitirem os conhecimentos. A formação de professores tem um cariz instrumental. A docência aprende-se por meio da prática, sobretudo em “estágio” junto de professores mais experientes.

Essa visão tradicionalista nunca mais abandonou o campo da formação de professores e continua presente nos dias de hoje. De tempos a tempos, voltam os discursos e as políticas que glorificam a prática como elemento estruturante da formação. Em 2012, Ken Zeichner (2012), escreveu um artigo muito interessante, denunciando o cíclico regresso dessas tendências. O título diz quase tudo: “The turn once again toward practice-based teacher education” (A virada, uma vez mais, para uma formação de professores baseada na prática).

Nas últimas duas décadas, esse regresso dá-se por vias diversas, obviamente com um argumentário mais sofisticado do que no passado, mas sempre sustentado no princípio de que os professores se formam “na prática” ou “no chão da escola”. Assinalem-se, brevemente, três dessas vias.

Em primeiro lugar, o recrutamento como professores de pessoas sem qualquer formação, apenas com o domínio de uma dada matéria e interessadas em ensinar, que são treinadas em seminários intensivos de poucas semanas e colocadas na sala de aula, ao lado de um professor mais experiente, aprendendo a docência na prática.

Em segundo lugar, a tendência para sobrevalorizar as “competências” técnicas, e agora tecnológicas, acreditando que são suficientes para formar os professores, sem sequer haver necessidade de grande reflexão, contextualização ou problematização.

Finalmente, a maneira como as “learning sciences1 olham para a educação como uma mera aplicação das “evidências” produzidas pela ciência, reforçando uma imagem dos professores como profissionais que se limitam a pôr em prática descobertas e orientações vindas de “fora” do seu campo de ação.

Qual é o denominador comum das tendências tradicionalistas? A resposta é simples: o conhecimento é visto como externo aos professores, sendo desvalorizado o conhecimento interno, produzido no interior da profissão docente. Os professores são definidos como “aplicadores” de um conhecimento alheio e ignorados como “produtores” de um conhecimento próprio. A formação de professores tem um cariz essencialmente prático e instrumental.

Ao longo dos últimos cem anos, a visão tradicionalista tem sido contestada por tendências modernas (progressistas e inovadoras2), que defendem a importância e a complexidade da formação de professores. A partir das primeiras décadas do século XX, em todos os países do mundo, as disciplinas de pedagogia, de psicologia e de sociologia da educação, de história da educação, de organização dos sistemas de ensino, de educação comparada ou de desenvolvimento curricular passam a ocupar cada vez mais espaço nos programas de formação de professores.

Essa mudança coincide com a afirmação do mais importante movimento educativo da modernidade pedagógica, a Escola Nova, que reúne o seu primeiro Congresso Internacional em Calais, no ano de 1921. Num certo sentido, ainda hoje somos herdeiros da sua Carta de princípios, que apresenta a escola nova como um “laboratório de pedagogia prática”3.

Mas, sobre isso, é impossível não recordar as palavras premonitórias de Jean Houssaye, num texto brilhante de 1984, intitulado “O escravo pedagogo e os seus diálogos”.

Paradoxalmente, a Educação Nova é, ao mesmo tempo, a consagração e a morte da pedagogia: é a consagração porque dá origem a uma verdadeira explosão das práticas inovadoras; é a morte porque instaura a referência à ciência e a deriva para as ciências da educação. O prático inovador acabará por ser enterrado e renegado em nome das ciências da educação, em nome da exclusão da prática. (Houssaye, 1984, p. 47)

As tendências modernas tornam-se mais influentes nos anos 1960, quando as ciências da educação renascem na França e no mundo inteiro. Simultaneamente, assiste-se à universitarização da formação de professores, com a extinção gradual das escolas normais e a sua substituição por cursos universitários.

As dimensões teóricas ganham grande relevância, contribuindo para uma expansão sem precedentes dos estudos pós-graduados em educação. Nas últimas décadas, publicaram-se dezenas de milhares de títulos e criaram-se centenas de revistas especializadas no campo da formação de professores. É um universo vasto, de grande complexidade e diversidade.

Três grandes eixos, interligados, dominam a maioria dos escritos e das propostas de trabalho das tendências modernas: o professor reflexivo, o professor pesquisador e as abordagens (auto)biográficas.4

O conceito de professor reflexivo difunde-se a partir do trabalho de Donald Schön, publicado na década de 1980, com base numa reinterpretação de argumentos inicialmente avançados por John Dewey. Muito influente, essa ideia marca o campo da formação de professores nos últimos 30 anos. Hoje, porém, vive-se um sentimento de insatisfação, e até de frustração, pela maneira como esse conceito tem dado origem a uma imensidão de trabalhos na esfera acadêmica, mas menos na esfera profissional docente, e pouco tem contribuído para reforçar o estatuto, a condição e a autonomia dos professores.

As teses do professor pesquisador remontam a meados do século XX, mas é também nas décadas de 1980-1990 que ganham uma presença forte na formação de professores. No essencial, pretendem afastar-se de uma visão tecnicista e afirmar os professores como produtores de um conhecimento próprio, não apenas como aplicadores ou transmissores de um conhecimento alheio. No entanto a pesquisa realizada tem-se centrado, sobretudo, em temas acadêmicos (históricos, filosóficos, psicológicos, sociológicos…) e, quando se procura analisar o trabalho docente, tem sido realizada mais pelos universitários do que pelos professores. Ora, como explica Antoine Prost (1985) numa obra célebre, O elogio dos pedagogos, o mais importante são as pesquisas sobre as práticas pedagógicas, feitas pelos próprios professores, que têm uma relação direta com o seu trabalho, produzindo conhecimento ao mesmo tempo que formam aqueles que as realizam. Essa intenção raramente tem sido concretizada.

Finalmente, devem mencionar-se as histórias de vida e as abordagens (auto)biográficas que, a partir de diferentes perspetivas, procuram valorizar a pessoa do professor, as suas experiências e percursos. Apesar da vastidão de textos e escritos, muitos de inegável interesse e qualidade, essas abordagens deparam-se, há alguns anos, com um sentimento de exaustão ou saturação, revelando-se incapazes de passarem de um somatório de narrativas individuais para dinâmicas de renovação da profissão docente.5

Qual é o denominador comum das tendências modernas (progressistas e inovadoras)? A resposta é simples: apesar das intenções declaradas, há uma desvalorização da reflexão própria dos professores sobre o seu trabalho. O impacto das pesquisas teóricas na construção de uma nova profissionalidade docente é muito limitado. Os professores são apresentados como “pesquisadores”, ou mesmo “intelectuais críticos”, mas, na verdade, são substituídos no seu pensamento por outros profissionais, sobretudo por académicos, e são, também neste caso, desqualificados como “produtores” de um conhecimento próprio. A formação de professores assume um cariz teórico e universitário, o que é da maior relevância, mas pouco tem contribuído para um reforço da autonomia dos professores e da profissionalidade docente.

As reflexões anteriores identificam claramente a questão central da formação de professores: o conhecimento profissional docente. As tendências tradicionalistas nem sequer colocam a questão, pois olham para os professores como simples mediadores ou aplicadores de conhecimentos alheios. As tendências modernas reconhecem a pertinência da questão, mas não conseguem agir de forma consistente e congruente. Por quê?

É possível referir três ausências ou incompreensões que conduziram à formação de professores para a encruzilhada em que se encontra.

Em primeiro lugar, a desatenção às dimensões institucionais. Há 50 anos, os movimentos progressistas eram muito críticos em relação à instituição escolar (ver, por exemplo, Pierre Bourdieu, Paulo Freire ou Ivan Illich). Hoje, em reação a tendências de fragmentação da escola, regra geral por via de uma valorização de espaços privados e tecnológicos, assiste-se à defesa e mesmo ao elogio da escola (ver, por exemplo, Gert Biesta, Jan Masschelein ou Jorge Larrosa). Identifico-me com esses últimos autores, mas não esqueço a necessidade de uma transformação (ou metamorfose) da escola, e também na formação de professores, com a criação de novos contextos institucionais, ligando as universidades, as escolas, os professores e as suas associações e os responsáveis pelas políticas públicas de educação. No interior desses “terceiros espaços” é possível trabalhar e sistematizar o conhecimento profissional docente como base fundamental dos programas de formação inicial e contínua. O Complexo de Formação de Professores do Rio de Janeiro, ainda a dar os primeiros passos, é um dos melhores exemplos dessa nova institucionalidade.

Em segundo lugar, a depreciação das questões profissionais. Um dos grandes problemas do campo da formação de professores é a fragilidade dos debates sobre a profissão e a profissionalização docente. Ninguém pode duvidar da importância da colaboração docente e do reforço dos coletivos docentes como lugares de produção de um conhecimento próprio dos professores. Mas, estranhamente, continuamos a assistir à disseminação de textos e artigos acadêmicos que põem em causa a docência como profissão e a formação de professores como formação profissional (isto é, como formação para uma profissão). Tenho dificuldade em compreender o alcance dessas “ruminações” que, na verdade, contribuem para perpetuar uma hesitação muito negativa para a afirmação profissional dos professores.

Em terceiro lugar, a omissão dos referenciais públicos. É surpreendente que, na análise dos professores e da sua formação, não haja praticamente qualquer menção ao seu papel no debate público, na construção de um espaço público da educação. Fala-se muitas vezes da “voz” dos professores, mas é como se fosse uma voz interna, não externa. Fala-se, por vezes, da importância da escrita, mas é como se fosse uma escrita dirigida apenas aos outros professores. Importa, por isso, pensar a formação de professores a partir de um conhecimento docente que não se esgota nas fronteiras da profissão e que tem visibilidade e reconhecimento público, permitindo aos professores uma participação plena nos debates e nas decisões públicas sobre educação.

Insisto no meu argumento central. Precisamos de dinâmicas de transformação profunda da formação de professores, tendo como ponto central a produção e consolidação do conhecimento profissional docente. Para isso, é indispensável olhar com mais atenção para as dimensões institucionais, profissionais e públicas.

PARA CONTINUAR: UM CONHECIMENTO CONTINGENTE, COLETIVO E PÚBLICO

A compreensão do conhecimento profissional docente é central para pensar a formação de professores, nomeadamente nas suas dimensões institucionais, profissionais e públicas. Não pretendo aprofundar uma discussão essencialmente epistemológica, filosófica ou conceitual, mas antes juntar os três termos da expressão conhecimento-profissional-docente: um conhecimento que está na docência, isto é, que se elabora na ação (contingente); um conhecimento que está na profissão, isto é, que se define numa dinâmica de partilha e de co-construção (coletivo); um conhecimento que está na sociedade, isto é, que se projeta para fora da esfera profissional e se afirma num espaço mais amplo (público).

Não me interessa compor longas listas de capacidades, competências ou saberes que os professores devem possuir. Essas enumerações ou tipologias, tão correntes na literatura educacional, são de pouca ou nenhuma utilidade. Foi sempre com desconfiança que assisti à sua fabricação que, na minha opinião, serviu mais para o controle e a autoridade sobre os professores do que para a sua autonomia e liberdade.

O conhecimento profissional docente tem características próprias, é um “terceiro género de conhecimento”, tal como procurei defini-lo em artigo publicado nos Cadernos de Pesquisa (Nóvoa, 2017, p. 1.126). Não é um conhecimento facilmente reconhecível, pois escapa aos parâmetros habituais. Precisamos de adotar novos pontos de vista, a fim de conseguirmos captar a sua natureza e seu sentido. E precisamos fazê-lo com uma posição clara sobre os professores, sem nos perdermos em debates improdutivos, e até perigosos, que põem a causa da docência como profissão.

O potencial transformador do conhecimento profissional docente reside no fato de ser contingente, coletivo e público. São características que se encontram também noutras profissões, mas que adquirem configurações muito próprias no caso do professorado.

UM CONHECIMENTO CONTINGENTE

“Os pensadores que transformaram o estatuto do pensamento no século XX, fizeram-no instalando o contingente no centro desta transformação.” (David-Menard, 2011, p. 93)

A primeira característica do conhecimento profissional docente é a sua natureza contingente, num duplo sentido.

Por um lado, é um conhecimento que não existe fora da ação, que se constrói no seu interior. O trabalho pedagógico é definido pela imprevisibilidade, pela capacidade de os professores darem respostas e tomarem decisões a cada nova situação. Há uma dimensão de risco, de incerteza, no modo como esse conhecimento se elabora, a partir de uma diversidade de experiências e da sua análise. Risco e acaso, pois não é possível controlar, a priori, a sucessão de acontecimentos que têm lugar no espaço da sala de aula e da escola. Mas os acasos não surgem por acaso. São os acontecimentos vulgares e quotidianos que dão sentido à educação. É neles que reside a possibilidade de um conhecimento profissional docente.

Por outro lado, é um conhecimento contextualizado, em permanente reconstrução, que se elabora graças às relações e tensões produzidas no espaço institucional da docência. Não é possível a sua transposição para outros lugares, o que não impede que possa inspirar outras iniciativas e outros projetos. A contingência é a realidade das coisas, não a sua propriedade, alertou-nos, há muito, Spinoza. Porém, desviando-se de uma longa tradição filosófica, Jean-Claude Milner (1995) escreve que só uma proposição contingente é refutável e que, portanto, apenas há ciência do contingente. É nessa possibilidade que se firma o conhecimento profissional docente. A compreensão de cada situação educativa, dos incidentes e acidentes, dos episódios e enigmas, contém um importante poder transformador. O conhecimento profissional docente funda-se na singularidade pedagógica.

A reflexão de John Dewey (1929, p. 46), na sua importante conferência The sources of a science of education, merece ser retomada, sobretudo quando refere que o contributo dos professores continua a ser negligenciado ou, dito de outro modo, “[...] continua a ser uma mina pouco explorada.”. A sua conclusão principal é que “[...] a realidade final da ciência educacional não se encontra nos livros, nem nos laboratórios experimentais, nem nas salas de aula onde é ensinada, mas nas mentes daqueles que estão envolvidos na execução das atividades educacionais.” (Dewey, 1929, p. 32). Dito de outro modo: o trabalho dos professores inclui a ciência dentro dele (Dewey, 1929).

Nessa perspetiva, a ideia de conhecimento contingente ganha todo o seu significado, constituindo um elemento central da profissionalidade docente. Um professor tem de lidar com muitas e diferentes formas de conhecimento, dos conteúdos das disciplinas às teorias e aos métodos pedagógicos, mas a síntese deve ser feita com base num “terceiro género de conhecimento”. Produzir essa afirmação implica uma concepção do trabalho dos professores que não se limita à prática, mas que inclui, necessariamente, uma dimensão de reflexão e de análise.

A literatura educacional é fugaz e efêmera. Torna-se obsoleta rapidamente. Mas há livros que ficam connosco por muito tempo. É o caso de Le trajet de la formation: les enseignants entre la théorie et la pratique, de Gilles Ferry, publicado em 1983, no qual se defende um modelo de formação de professores centrado na análise das situações educativas e do seu carácter único, imponderável e imprevisível. A relação de regulação entre a teoria e a prática é apresentada como fonte de lucidez e conhecimento: “[...] os professores ou futuros professores colocam-se, assim, em condições para desenvolverem, eles próprios, os instrumentos da sua prática e os meios da sua formação.” (Ferry, 1983, p. 61).

Eis o sentido do que designamos por conhecimento contingente, um conhecimento difícil de codificar e impossível de generalizar, que ganha sentido enquanto inventário ou repertório de acontecimentos e situações vividas, experienciadas, analisadas e partilhadas. Não se trata, obviamente, de elaborar um qualquer “manual de atividades” ou uma “lista de experiências” a realizar. Estaríamos, nesse caso, perante uma mera lógica de reprodução. A ideia de repertório está associada a um imaginário ou coleção de imagens, algumas já existentes, outras ainda por construir.

Falar de um conhecimento repertorial em vez de um conhecimento codificado é abandonar os esforços para definir a “cientificidade” da pedagogia e partir à procura, com base na contingência, de um conhecimento profissional docente. Depois de submetidas a um processo de reflexão e de apropriação, as experiências passadas contêm um importante potencial de conhecimento. Mas as experiências futuras, isto é, as dinâmicas de experimentação e inovação, são, também elas, produtoras de novos conhecimentos. O que importa é marcar devidamente a contingência da ação como base do conhecimento profissional docente.

UM CONHECIMENTO COLETIVO

“O que mudou em mim, felizmente, são os outros, porque eu sou esse outro que me fala, que eu escuto e que me faz caminhar com ele. Como seria feliz se pudesse aplicar a mim mesmo estas palavras de Brecht: Ele pensava noutras cabeças; e, na sua, outros pensavam-no. É isto o verdadeiro pensamento” (Barthes, 1981, p. 252).

A segunda característica do conhecimento profissional docente é a sua natureza coletiva, o fato de se constituir no interior de uma profissão ou, melhor dizendo, de um coletivo profissional. Não se trata de diminuir a relação de cada um, individualmente, com o conhecimento, mas de projetar essa relação pessoal numa produção coletiva. É a passagem do cogito ao cogitamus (Latour, 2010). O princípio de um conhecimento mútuo sustenta a necessidade de uma formação mútua, de uma formação em cooperação (Niza, 1997).

Há um conhecimento tácito, implícito, que faz parte do patrimônio da profissão docente e que se transmite, “naturalmente”, de geração em geração. É crucial que esse conhecimento subentendido se torne “entendido”, consciente e partilhado por todos. Para isso, é necessário conduzir um trabalho de explicitação num quadro coletivo, colaborativo e colegial.

A transformação da formação de professores implica mudanças de fundo na organização das escolas e do trabalho docente. O modelo escolar que dominou a história da educação nos últimos 150 anos induz uma ação essencialmente individual do professor portas adentro da sala de aula com os seus alunos. Os novos ambientes educativos definem-se numa diversidade de espaços e de tempos e fazem apelo a um trabalho conjunto entre os professores.

A passagem de uma identidade individual a uma constituição coletiva é essencial para a emergência de um conhecimento profissional docente. É indispensável valorizar os diálogos e encontros profissionais e os dispositivos que permitem a cooperação e a colaboração; ou, dito de outro modo, que permitem um trabalho de reflexão, de partilha e de análise, no seio de “comunidades de conhecimento” organizadas por professores.

Gilles Deleuze (1964, p. 118) refere-se à contingência do encontro em texto sobre Marcel Proust: “O que nos obriga a pensar é o signo. O signo é o objeto de um encontro; mas é precisamente a contingência do encontro que assegura a necessidade por ele sugerida. O ato de pensar não decorre de uma simples possibilidade natural. Ele é, pelo contrário, a única criação verdadeira.”. Em conclusão, afirma mesmo que o “hieróglifo” se encontra por todo o lado, sob “[...] o duplo símbolo do acaso do encontro e da necessidade do pensamento: fortuito e inevitável.” (Deleuze, 1964, p. 124).

A contingência é, assim, definida pelo encontro, por uma relação e um diálogo que se produzem no interior de um coletivo. Como pensamento necessário, construído a partir de um trabalho em comum, o conhecimento profissional docente permite firmar e afirmar a profissão. É nele que radica a possibilidade de uma renovação da profissão, a partir de sucessivos encontros intergeracionais, desde os momentos da formação inicial,ao período de entrada na profissão (a indução docente) e à formação continuada.

Este interconhecimento contém, inevitavelmente, uma dimensão ética e política. Ética como compromisso de combate pela equidade e pela justiça social. Não há conhecimento profissional sem esse compromisso. Política como presença no espaço público da educação. Não há conhecimento profissional sem essa presença. Os professores não podem tornar-se invisíveis. É como coletivo que devem assumir plenamente as suas responsabilidades na escola e na sociedade.

O conhecimento de cada professor depende do conhecimento dos seus colegas, das possibilidades infinitas contidas nas suas interações e seus diálogos. Essa abertura torna os professores mais vulneráveis, na medida em que os obriga a saírem do seu espaço próprio, protegido, para se exporem aos outros e com os outros? Talvez. Mas é a condição necessária para um desenvolvimento profissional baseado num conhecimento coletivo, inscrito na profissão e fator da sua projeção pública.

UM CONHECIMENTO PÚBLICO

Faz dois séculos - disse Settembrini - vivia no nosso país um velho poeta, um excelente conversador, que atribuía suma importância à beleza da grafia, porque, segundo a sua opinião, esta conduzia à beleza do estilo. Deveria ter ido um pouco mais longe e dizer que um belo estilo conduz a belas ações. - Escrever bem já quase é pensar bem, e daí a agir bem não há muita distância. (Mann, 1958, p. 167)

A terceira característica do conhecimento profissional docente é a sua natureza pública, o que implica um processo de escrita e de publicação. O conhecimento organiza-se no momento da sua sistematização e divulgação. Só assim fica à disposição dos outros. É a leitura que garante a partilha no espaço da profissão. Muitas vezes tácito, o conhecimento profissional docente necessita não só de ser explicitado, mas também de ser publicado.

Escrever é comunicar, isto é, abrir a possibilidade de pensar em comum. O convite de Simone Weil (1966, p. 80) deve ser acolhido pelos professores: “O que eu gostaria era de lançar um apelo a todos aqueles que sabem ou fazem efetivamente alguma coisa, e para os quais não chega saber ou fazer, e querem refletir sobre o que sabem e fazem!”. Mas essa reflexão, esse entre-conhecimento, tem de se prolongar num exercício público, que inscreva os professores como elementos decisivos no debate e nas políticas públicas de educação.

Os professores têm um certo retraimento em relação à escrita, como se esse exercício lhes estivesse vedado e pertencesse apenas à esfera acadêmica. Muitas vezes, os professores recolhem-se no interior dos espaços escolares. Mas hoje não podemos prescindir da sua exposição pública, da sua voz pública. O conhecimento profissional docente ganha legitimidade e relevância quando se difunde na sociedade. É preciso que os professores tenham a possibilidade e a coragem de escrever e de publicar. Vale a pena uma vida sem risco?

Em língua portuguesa, publicar tem um duplo sentido: editar ou imprimir e tornar público. A edição torna o texto autônomo em relação ao autor, dá-lhe existência e transforma-o num “objeto comum”.

Uma das passagens mais importantes do último relatório da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO, 2021, p. 88), Reimaginar nossos futuros juntos: Um novo contrato social para a educação, refere:

A profissão docente não termina no espaço profissional, mas continua no espaço público, na vida social e na construção do bem comum. Nesse sentido, é especialmente importante que os professores participem da definição das políticas públicas. […] Ser professor é se posicionar na profissão e se posicionar publicamente sobre as grandes questões educacionais e a construção de políticas públicas. Essa participação não visa primordialmente a defender seus interesses, mas projetar sua voz e conhecimento em uma esfera social e política mais ampla.

É este o ponto decisivo do meu argumento. A reflexão em comum deve prolongar-se por uma sistematização escrita, de modo a instaurar o conhecimento profissional docente no espaço público. A ressonância dos gestos marca o vigor e a credibilidade dos professores. Uma profissão que não se escreve, não se inscreve do ponto de vista social e fica diminuída na sua capacidade de participação no espaço público e no espaço das políticas públicas. Escrever bem é condição necessária para pensar bem; e pensar bem aproxima-nos da possibilidade de agir bem. O que significa publicação, no seu sentido literal? Significa publica ação. O conhecimento profissional docente define-se numa ação pública.

O que estou a advogar implica mudanças profundas na organização da profissão docente e da formação de professores. A identidade profissional dos professores não pode ser diluída num conjunto de “figuras” (facilitador, colaborador, tutor…) que parecem trazer uma “linguagem inovadora” quando, na verdade, destroem o núcleo central da profissionalidade docente. Do mesmo modo, os programas de formação docente não podem ser substituídos por uma série de workshops, oficinas ou atividades edtech, como se bastasse um treino rápido ou um contato com as escolas para alguém se tornar professor.

Precisamos de dar consistência ao conhecimento profissional docente e de afirmar a sua centralidade no desenvolvimento profissional dos professores. Quais as consequências concretas dessa posição para a formação de professores? Eis a pergunta que orienta a última parte deste ensaio.

PARA CONCLUIR: CONSEQUÊNCIAS PARA A FORMAÇÃO DE PROFESSORES

Um professor não é um guru…/ Um professor não é um iniciador…/ Um professor não é um mediador…/ Um professor não é um autor…/ Um professor não é um treinador…/ Um professor não é um produtor…/ Um professor não é um gestor…/ Um professor não é um fornecedor de serviços…/ Um professor não é um pai, nem uma mãe…/ Um professor não é um companheiro…/ Um professor não é um amigo…/ Um professor não é um líder…/ Um professor não é um ativista…/ Um professor não é um conselheiro espiritual…/ Um professor não é um conselheiro emocional…/ Um professor não é um sedutor…/ Um professor não é um condutor…/ Um professor não é um guia…/ Um professor não é um comunicador…/ Um professor não é um moderador[…]. (Larrosa, 2019, p. 329)

Num dos seus livros mais recentes, Esperando não se sabe o quê: Sobre o ofício de professor, Jorge Larrosa apresenta, provocatoriamente, os resultados de um exercício sobre “o que não é um professor”. A provocação poderia continuar ad infinitum: Um professor não é um facilitador…/ Um professor não é um tutor…/ Um professor não é um colaborador…/Um professor não é um animador…/… e terminar inevitavelmente com uma tautologia: Um professor é um professor.

A formação de professores não pode alimentar esse tipo de ambiguidades e de linguagens que traduzem visões e ideologias perniciosas para o futuro da profissão docente. Para as combater e firmar os professores como professores, é indispensável consolidar o conhecimento profissional docente e identificar as suas consequências institucionais, profissionais e públicas no campo da formação de professores.

CONSEQUÊNCIAS INSTITUCIONAIS

O conhecimento profissional docente é um “terceiro género de conhecimento”. Naturalmente, precisa de um “terceiro lugar” para a sua sistematização e mobilização nos processos de formação de professores.

Regra geral, a formação inicial é da responsabilidade das universidades. Hoje, é impossível ignorar que as universidades, só por si, não são capazes de assegurar uma adequada formação profissional dos professores. São indispensáveis como espaços de conhecimento e de ciência, mas precisam da colaboração das escolas e dos professores da educação básica, e de outros atores. Essa colaboração não pode ser baseada em hierarquias de poder e em relações desequilibradas, nomeadamente entre os professores das universidades e das escolas.

Regra geral, a formação continuada é da responsabilidade das escolas de educação básica e dos governos estaduais e municipais. Muitas vezes, recorrem à ajuda de outras entidades, nomeadamente a empresas e a fundações. Noutros casos, pedem apoio às universidades, mas frequentemente apenas para a oferta de cursos de determinadas matérias. Não pode haver formação continuada sem uma presença forte dos professores e das escolas da educação básica, mas essa presença, só por si, não chega para construir modelos efetivos de formação continuada. A prática pela prática é repetição, não tem qualquer interesse ou utilidade para a formação dos professores.

Se o meu diagnóstico estiver certo, então a solução é óbvia: precisamos de juntar as universidades e as escolas de educação básica. Essa “junção” não pode ser feita, como até agora, apenas por parcerias ou acordos pontuais, nomeadamente para os estágios - precisa de se configurar como uma nova institucionalidade. É a solução adotada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro com o Complexo de Formação de Professores do Rio de Janeiro, uma experiência original e de grande alcance.

O Complexo procura reunir numa mesma estrutura institucional os vários atores da formação de professores, em pé de igualdade e com idêntica capacidade de participação e de decisão: universidades, escolas, professores, entidades municipais, estaduais e federais etc. É nessa responsabilidade conjunta, compartilhada, que podemos encontrar novos caminhos para a formação de professores.

Construir esse “terceiro lugar” é a consequência natural de pesquisas e reflexões produzidas há décadas por vários autores, com destaque para Ken Zeichner (2017, p. 10-11):

Precisamos de um novo modelo para os programas de formação de professores, mais centrado nas comunidades e nas escolas, no qual as universidades, as autoridades municipais e estaduais, as associações de professores e as comunidades locais compartilhem a responsabilidade pela preparação de professores sensíveis do ponto de vista cultural e comunitário, e capazes de ensinarem todas as crianças.

Espera-se que este “terceiro lugar” seja capaz de agir no continuum do desenvolvimento profissional docente, dando coerência e consistência aos processos de formação inicial, de indução docente e de formação continuada. Uma palavra para sublinhar, uma vez mais, a importância do período de indução docente ou profissional - os anos de transição entre a formação e a profissão - na história de vida e na formação dos professores. Ignorar esses anos, como tem sido recorrente nos programas e nas políticas de formação de professores, é um erro de consequências graves para a profissão docente.

A concretização de uma proposta desse tipo não será idêntica em todas as universidades, em todos os municípios e estados. A diferença é bem-vinda, pois marca a necessidade de, a partir de princípios genéricos, enraizar a formação de professores nas distintas realidades locais. O futuro conjuga-se no plural, não nos esquemas uniformes do passado.

CONSEQUÊNCIAS PROFISSIONAIS

A produção do conhecimento profissional docente não é um gesto individual, mas coletivo, que se faz no interior da profissão. A reflexão conjunta, em comum, é central para construir esse conhecimento, mas também para organizar os programas de formação de professores

O trabalho dos professores teve desde sempre uma base individual. Tradicionalmente, no ensino primário, as escolas eram isoladas, por vezes apenas com uma única sala de aula, e tudo se passava numa relação de proximidade entre cada professor e os seus alunos. No ensino liceal, apesar de as escolas serem maiores, o trabalho docente manteve-se fechado no interior de cada sala de aula.6 Essa matriz identitária está a mudar, com a transformação dos ambientes educativos e a necessidade de um trabalho colaborativo entre os professores. A profissão docente está a adquirir uma dimensão cada vez mais coletiva.

O que é verdade para a profissão é igualmente verdade para a formação de professores. Precisamos de instaurar processos de formação mútua, cooperada, impossíveis de concretizar sem uma presença conjunta das universidades, das escolas e dos professores da educação básica.

A formação de um profissional não se limita à aquisição de determinados conhecimentos ou determinadas competências, implica vivências, interações, dinâmicas de socialização, a apropriação de uma cultura e de um ethos profissional. É uma realidade complexa que exige uma presença e um trabalho em comum entre quem se está a formar e quem já é professor.

A situação torna-se muito evidente na fase da vida em que nos tornamos professores, isto é, nos primeiros anos de exercício docente. É um tempo decisivo da nossa história profissional, mas frequentemente descuidada tanto pelas políticas públicas como pelas universidades e pelas escolas. Porém é nesses anos de transição entre a formação e a profissão que se decide grande parte do nosso futuro como professores.

Ninguém se torna professor sem a colaboração dos professores mais experientes. Nessa convivência adquirimos os gestos e a cultura profissional. Convivência no seu preciso sentido, viver com, ou seja, trabalhar com e pensar com os outros. Para que isso aconteça, tem de haver condições concretas nas escolas e uma nova organização do trabalho dos professores.

A partir da compreensão das mudanças em curso na profissionalidade docente, é possível transformar os modelos e os programas de formação de professores. Não se trata, apenas, de formar individualmente cada professor, mas também de reforçar o coletivo docente. Como escrevi, provocatoriamente, em texto já antigo, é preciso “uma formação de professores construída dentro da profissão” (Nóvoa, 2009, p. 25).

Não se trata de diminuir o papel das universidades, nomeadamente no que diz respeito aos conhecimentos científicos e aos conhecimentos pedagógicos. Mas é preciso repetir que, sem um “terceiro género” de conhecimento, o conhecimento profissional docente, não há qualquer possibilidade de formar um professor. É preciso retirar todas as consequências dessa afirmação e assegurar a presença dos professores nas diversas fases do continuum da formação docente: desde a formação inicial à formação continuada, passando pelo momento da indução profissional.

CONSEQUÊNCIAS PÚBLICAS

Uma profissão não é apenas uma realidade interna; contém também uma dimensão externa. O trabalho dos professores não se destina unicamente a servir um público, mas também a formar e a criar públicos. O conhecimento profissional docente projeta-se para fora das escolas e do ensino, para o espaço público da educação.

Nas últimas décadas, os professores perderam visibilidade pública e a sua voz foi sendo substituída por especialistas de matérias tão diversas como o currículo, as tecnologias, as competências socioemocionais ou os estudos do cérebro. Publicamente, ouvem-se muitos discursos sobre educação, o que é de enaltecer, mas falta uma maior presença e participação dos professores.

No momento presente, de transformação profunda da educação, certo retraimento dos professores “dentro” dos espaços escolares é prejudicial ao seu prestígio e reconhecimento público. O conhecimento profissional docente é fundamental para o trabalho escolar, mas dota também os professores de melhores condições e de uma maior legitimidade para participarem nos grandes debates públicos sobre educação.

Para além das outras missões, os “complexos de formação de professores” devem assumir, igualmente, o objetivo de promover a participação pública dos professores. A junção num mesmo espaço de professores, universitários, pesquisadores e autoridades políticas cria boas condições para que os momentos da formação sejam também momentos de afirmação dos professores. Isolados, os professores podem pouco, mas reunidos em instâncias fortes não deixarão de ser devidamente tidos em conta pelas políticas públicas.

Nesses “complexos”, a formação está ligada à ação, mas também à pesquisa. Repito: a escrita é muito importante. Por isso, falar da dimensão pública do trabalho dos professores significa valorizar a publicação das suas ideias, experiências e reflexões. São palavras que têm a mesma raiz e intencionalidade.

No caso dos professores há três palavras que devem seguir par a par: profissão, público e participação. Não se espera dos professores que cuidem apenas da melhoria das escolas e do ensino, mas que se envolvam, também, numa reflexão e ação sobre o que deve ser o futuro ou os futuros da educação. A sua credibilidade e o seu prestígio dependem dessa projeção no futuro. Detentores de um conhecimento próprio, desse “terceiro género” de conhecimento de que falei ao longo deste ensaio, estarão preparados para cumprir o seu papel como profissionais públicos, isto é, como profissionais publicamente comprometidos.

CODA: PARA DEIXAR TUDO CLARO

O que me interessa, desde sempre, é a defesa dos professores e da sua profissionalidade, no contexto de uma valorização da escola pública e do espaço público da educação. Assumo, pois, uma postura crítica diante dos discursos que diminuem ou corroem a profissão docente. Refiro-me às intermináveis discussões, que se se prolongam há mais de meio século, sobre a pertinência de aplicar, ou não, à docência o conceito de profissão: é como se estivéssemos perante um círculo vicioso que só contribui para rebaixar os professores. Refiro-me também às expressões, cada vez mais correntes, que tratam os professores como colaboradores, facilitadores ou mediadores: é como se a palavra “professor” fosse incômoda e inadequada para pessoas e grupos que pretendem diluir a profissionalidade docente.

Esses discursos traduzem-se em políticas de formação de professores nocivas aos professores. No primeiro caso, recusam a ideia de uma formação profissional dos professores e contribuem para organizar licenciaturas onde pouco se trabalha ou se reflete sobre a profissão docente e o trabalho pedagógico. No segundo caso, dão origem a processos de recrutamento de pessoas sem qualquer formação, como se bastasse possuir conhecimentos de algum tema ou matéria para ser professor

Nada disso é inocente. A formação de professores é atravessada por interesses diversos (corporativos, universitários, econômicos…), parecendo, por vezes, que o menos importante é o reforço da profissão docente. Sabemos bem o que é preciso fazer, mas enredamo-nos em justificações para não o fazer. Agora, chegou o tempo da coragem da ação, também para as universidades.

Há muitas maneiras de ser professor, uma diversidade de opções e de caminhos. Mas em todos eles há um ponto imprescindível: o conhecimento profissional docente, um conhecimento contingente, coletivo e público. É com base nele que se devem organizar os novos modelos de formação de professores.

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1Learning sciences” quer dizer, literalmente, “ciências da aprendizagem”, ainda que no Brasil a tradução corrente seja “ciência para educação”: “A Rede Nacional de Ciência para a Educação tem por objetivo integrar esforços dos vários laboratórios e pesquisadores do Brasil, de qualquer especialidade, cujo trabalho possa ser aplicado à Educação” (ver http://cienciaparaeducacao.org/sobre/).

2 Hesitei muito na designação “tendências modernas”. Por isso, faço-a acompanhar dos termos “progressistas” e “inovadoras”. Mas é necessária uma explicação. O conceito de “progressista” vem da expressão habitual, na cultura norte-americana, de “progressive education” (frequentemente traduzida por “educação nova”), não de qualquer conotação ideológica. O conceito de “inovador” procura dialogar com o movimento da escola nova, não com o sentido que hoje damos a inovação.

3 Essa Carta de princípios foi publicada pela primeira vez em 1915, no prefácio de Adolphe Ferrière (1915) escrito para a obra de A. Faria de Vasconcelos (1915), Une école nouvelle en Belgique.

4 As considerações seguintes resultam de uma análise sistemática dos principais temas tratados em 35 obras de síntese, publicadas fundamentalmente na última década. A escolha teve como ponto de partida o famoso relatório apresentado por Marilyn Cochran-Smith e Kenneth Zeichner, em 2005 (Studying teacher education: The Report of the AERA Panel on Research and Teacher Education), e recolhe os principais “handbooks” e estudos de âmbito internacional no campo da formação de professores. A lista das obras analisadas encontra-se no final, depois das referências bibliográficas, conforme Anexo I.

5 No momento em que apresento esta visão crítica, não esqueço que dei um contributo significativo para a divulgação, em língua portuguesa, desses três movimentos, nomeadamente em obras publicadas sob a minha coordenação há cerca de 30 anos: O método (auto)biográfico e a formação (1988), em colaboração com Matthias Finger; Profissão: Professor (1991); Os professores e a sua formação (1992); Vidas de professores (1992); Reformas Educativas e Formação de Professores (1992), em colaboração com Thomas Popkewitz.

6 Em Portugal, até uma época recente, o ensino primário abrangia os três ou quatro primeiros anos de escola (crianças entre os seis e os nove/dez anos de idade) e o ensino liceal tinha lugar nos anos seguintes (entre os 10 e os 16/17 anos de idade).

ANEXO I

LISTA DAS OBRAS MENCIONADAS NA NOTA 4 (POR ORDEM CRONOLÓGICA)

COCHRAN-SMITH, M.; ZEICHNER, K. (org.). Studying teacher education: The Report of the AERA Panel on Research and Teacher Education. Mahwah: Lawrence Erlbaum Associates, 2005.

TOWNSEND, T.; BATES, R. (org.). Handbook of Teacher Education — Globalisation, standards and professionalism in times of changes. New York: Springer, 2007.

COCHRAN-SMITH, M.; FEIMAN-NEMSER, S.; MCINTYRE, D. J. (org.) Handbook of Research on Teacher Education — Enduring questions in changing contexts. 3. ed. New York: Routledge, 2008.

SAHA, L.; DWORKIN, A. G. (org.). International Handbook of Research on Teachers and Teaching. New York: Springer, 2009.

ZEICHNER, K. Teacher education and the struggle for social justice. New York and London: Routledge, 2009.

DARLING-HAMMOND, L.; LIEBERMAN, A. (org.). Teacher education around the world — Changing policies and practices. New York-London: Routledge, 2012.

KARRAS, K.; WOLHUTER, C. C. (org.). International handbook of teacher education — Training and re-training systems in modern world. Nicosia: HM Studies, 2014.

RODRIGUES, S. (org.). Handbook for teacher educators — Transfer, translate or transform. Rotterdam: Sense Publishers, 2014.

KARRAS, D. K,; CALOGIANNAKIS, P.; Wolhuter, C. C. (org.). Education and teacher education in the modern world. Cambridge: Cambridge Scholars Publishing, 2015.

BRANDENBURG, R.; MCDONOUGH, S.; BURKE, J.; WHITE, S. (org.). Teacher education: innovation, intervention and impact. New York: Springer, 2016.

KENNEDY, I. G.; LATHAM, G.; JACINTO, H. (org.). Education skills for 21 st century teachers — Voices from a global online educators’ forum. New York: Springer, 2016.

LOUGHRAN, J.; HAMILTON, M. L. (org.). International Handbook of Teacher Education. New York: Springer, 2016. 2 v.

WELCH, A.; AREEPATTAMANNIL, S. (org.) Dispositions in teacher education: A global perspective. Rotterdam: Sense Publishers, 2016.

BRANDENBURG, R.; GLASSWELL, K.; JONES, M. (org.). Reflective theory and practice in teacher education. New York: Springer, 2017.

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Recebido: 01 de Setembro de 2022; Aceito: 25 de Outubro de 2022

António Nóvoa é doutor em Ciências da Educação pela Universidade de Genebra (Suíça) e doutor em História pela Universidade de Paris IV - Sorbonne (França). Professor do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa (Portugal). E-mail: novoa@reitoria.ul.pt

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