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Revista Brasileira de Educação

Print version ISSN 1413-2478On-line version ISSN 1809-449X

Rev. Bras. Educ. vol.28  Rio de Janeiro  2023  Epub Jan 19, 2023

https://doi.org/10.1590/s1413-24782023280001 

Artigos

Agradecimentos em teses e dissertações da área de Educação: um pouco de mim, um pouco de nós

RECONOCIMIENTOS EN TESIS Y DISERTACIONES EN EL ÁREA DE EDUCACIÓN: UN POQUITO DE MÍ, UN POQUITO DE NOSOTROS

Luciana Haddad Ferreira I  
http://orcid.org/0000-0002-8440-7347

Thiago Borges de Aguiar II  
http://orcid.org/0000-0002-7294-1200

Renata Augusta Ré Bollis III  
http://orcid.org/0000-0002-3140-0221

IUniversidade São Francisco, Bragança Paulista, SP, Brasil.

IIUniversidade Federal de São Paulo, Guarulhos, SP, Brasil.

IIIUniversidade Metodista de Piracicaba, Piracicaba, SP, Brasil.


RESUMO

Neste artigo, refletimos sobre a escrita de agradecimentos em teses e dissertações na área de educação. Selecionamos uma amostra de textos de cinco programas de pós-graduação de universidades públicas, um em cada região do país. Fizemos uma leitura indiciária dos textos, partindo do caráter autobiográfico e narrativo desse tipo de escrita. Encontramos aspectos ligados à religiosidade; relações afetivas e familiares; convivência com o orientador, professores e funcionários da universidade; vínculos de amizade e coleguismo; e apoio de agências de fomento. Sinalizamos marcas de reconhecimento das dificuldades e a persistência na pesquisa e escrita; formalidade, ironia ou estratégia de protesto; a reflexão do percurso; e a percepção do próprio processo formativo. Concluímos com o caráter político da escrita dos agradecimentos, considerando seu compromisso social com a produção do conhecimento e com o processo coletivo e humanizador do trabalho investigativo em educação.

PALAVRAS-CHAVE agradecimentos; produção acadêmica; escritas (auto)biográficas

RESUMEN

En este artículo reflexionamos sobre la redacción de reconocimientos en tesis y disertaciones en el área de educación. Seleccionamos una muestra de textos de cinco programas de posgrado en universidades públicas, uno en cada región de Brasil. Hicimos una lectura indicativa de ellos, partiendo de su carácter autobiográfico y narrativo. Encontramos aspectos de la religiosidad; relaciones afectivas y familiares; convivir con el supervisor, profesores y empleados universitarios; lazos de amistad y colegialidad y apoyo de las agencias de desarrollo. Señalamos el agradecimiento como reconocimiento de las dificultades y la perseverancia en la investigación y la escritura; acción de gracias como formalidad, ironía o protesta; el reflejo del viaje y la percepción del propio proceso formativo. Concluimos con el carácter político de estos escritos, el compromiso social con la producción de conocimiento, así como el proceso colectivo y humanizador del trabajo investigativo en educación.

PALABRAS CLAVE reconocimientos; producción académica; escritos (auto) biográficos

ABSTRACT

In this paper, we discuss the writing of acknowledgments in thesis and dissertations in education. We selected a sample of texts from five postgraduate programs at public universities, one in each region of Brazil. We read them using an evidential method, starting from the autobiographical and narrative character of this type of writing. We found aspects related to religiosity; affective and family relationships; coexistence with the supervisor, professors, and university employees; bonds of friendship and collegiality; and support from development agencies. We also pointed to recognition of difficulties and persistence in research and writing; thanksgiving as a formality, irony, or protest strategy; the reflection of the journey and; the perception of the formative process itself. We conclude with the political character of the acknowledgment writing, on social commitment to the production of knowledge, as well as the collective and humanizing process of investigative work in education.

KEYWORDS acknowledgments; academic production; (auto) biographical writings

Eu quero te mostrar minha gratidão

E expor para você:

Um momento que abriria a verdade

Eu quero te mostrar minha gratidão [...]

Pelo modo que você me reflete

Tudo de mim braços e face

Melhor que o espelho

Na minha solidão minha inquieta gratidão

Eu sou descuidado à sua vista

E minha gratidão, eu acho

Faz muito barulho para você

Na minha gratidão, eu às vezes preciso

Do espetáculo do fracasso

E na minha gratidão, toda minha vida

Assume teu sabor

(Gratitude, 1993 - tradução nossa)

No desenvolvimento da atividade de pesquisa, mais especificamente em dissertações e teses, é esperado que aquele1 que escreve se direcione por alguns elementos que já são considerados estruturantes de um trabalho acadêmico: objetivos, metodologia, embasamento teórico e análises figuram como preocupações centrais na elaboração das mais diversas investigações. Como em outros tipos de escrita, há uma estrutura comum que orienta tanto o autor quanto seus leitores. O esperado, na maior parte das vezes, é que a pesquisa seja relatada com objetividade e suposta imparcialidade, revelando pouco daquele que a produz, seus dilemas, suas escolhas e seus processos.

Sem querer aprofundar a reflexão acerca dos modos validados de fazer e publicar pesquisas na atualidade, chama a nossa atenção como, mesmo diante de parâmetros e normas, os autores deixam indícios de si na escrita: revelam as marcas daqueles que os orientam, fazem referências a publicações que levam a certas correntes de pensamento, carregam traços da regionalidade na escolha de palavras, anunciam princípios que os constituem para além da elaboração da pesquisa, marcando lugar na comunidade e no grupo social. Se nos atentarmos às minúcias e pistas deixadas, mesmo numa escrita que sabemos ter sido polida, de modo que faz reluzir métodos e resultados, reconhecemos certas características daquele que escreve.

Alguns itens textuais também se fazem presentes de forma recorrente na escrita acadêmica, mesmo que não se refiram diretamente ao tema ou objeto investigado: dedicatórias, sumário, referências consultadas e anexos compõem a obra finalizada e trazem informações que podem proporcionar ao leitor que ali se deter uma compreensão de aspectos um tanto negligenciados e marginais da pesquisa. No entanto, no negligenciável, há algo de significativo para vislumbrarmos elementos autobiográficos dos autores das pesquisas. Entre esses estão os agradecimentos, objeto de nossa análise.

Se, ao longo do texto, encontramos apenas indícios da trajetória do pesquisador e marcadores subjetivos do contexto de produção do estudo, no registro dos agradecimentos, é dada a possibilidade de escrever, com maior clareza e liberdade, sobre esse processo. Ali, percebemos a quem o autor deseja reconhecer importância após a finalização de seu trabalho. Indo além da mera formalidade, é nesse espaço de escrita que são destacadas particularidades e que emerge uma narrativa que retrata a pesquisa numa outra perspectiva, apontando para certa trama de relações sem as quais a pesquisa não seria feita. Talvez essa trama pudesse ser percebida em outras partes do texto, mas raramente ela se torna tão explícita como na escrita dos agradecimentos.

Se, por um lado, podem-se compreender os agradecimentos como texto de menor importância na elaboração de uma dissertação ou tese, como elemento pré-textual não obrigatório (formalmente sequer é compreendido como parte do texto de pesquisa), por outra perspectiva, constatamos que sua escrita é encontrada em estudos publicados de todas as áreas do conhecimento, de todos os tempos e de todas as localidades. Tendo isso em consideração, chama a nossa atenção sua recorrência e presença, especialmente quando nos propomos a olhar para sua característica narrativa: sabendo haver uma predominância da linguagem positivista usada nas pesquisas acadêmicas, que impõe certo distanciamento do autor e sua obra, os agradecimentos reservam espaço para contar percursos e restituir, de alguma forma, a humanidade do trabalho de pesquisa e de escrita - revela-se a pessoa, suas afinidades e vida.

O interesse nos agradecimentos como objeto de estudo, numa perspectiva narrativa, também se justifica pelo escasso número de investigações que tratam de tal recorte. Em revisão de literatura realizada para o início deste trabalho, foram encontradas apenas sete publicações referentes ao tema nos últimos dez anos, sendo que nenhuma delas é do campo da Educação. Dentre as encontradas, destacamos as contribuições de Martino e Marques (2019) ao analisarem os agradecimentos em teses e dissertações dos cursos de Comunicação, dando ênfase a essa escrita como reveladora das subjetividades tanto da pesquisa quanto do pesquisador. Também são relevantes os apontamentos de Ferlini (2013), ao traçar as representações e destacar a relevância de bibliotecas e bibliotecários na realização de pesquisas, por meio das menções feitas em agradecimentos de teses e dissertações. Haya (2018), por sua vez, se propõe a analisar os agradecimentos em publicações de periódicos, demonstrando seu caráter breve e pontual, mas ainda assim explicitador de redes de cooperação e apoio que extrapolam a autoria da pesquisa.

Diante do cenário encontrado, indagamos: o que está dito, nos textos escritos nos agradecimentos, sobre fazer pesquisa e sobre quem pesquisa em Educação? Considerando a narrativa como principal eixo reflexivo, tomamos tal inquietação para estudo por compreender que, independente de seus métodos e suas escolhas de linguagem, o espaço dos agradecimentos possibilita, a todo autor, falar de si narrativamente. Pretendemos, pela leitura e análise dos textos de agradecimentos encontrados em teses e dissertações, destacar a dimensão narrativa desse modo de escrita e refletir sobre sua importância para o registro dos caminhos da pesquisa.

Tratando-se de uma pesquisa em Educação, escolhemos observar os agradecimentos de teses e dissertações dessa área defendidas em 2012 e constantes no Catálogo de Teses e Dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). O ano foi escolhido considerando certo distanciamento temporal do momento atual, ao mesmo tempo que fosse um período no qual os trabalhos publicados em universidades brasileiras estivessem já digitalizados e disponíveis para acesso remoto. Foram utilizados como filtros tanto a área temática como as instituições e os programas especificamente de Educação. A partir dos 2.941 resultados obtidos, foram selecionadas as pesquisas de cinco universidades públicas, totalizando 329 resultados. As instituições escolhidas foram a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade Federal de Goiás (UFG), Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Universidade Federal do Pará (UFPA). A escolha dessas instituições não foi completamente aleatória, visto que optamos por uma de cada macrorregião do país, inicialmente buscando aquelas com maior representatividade em número de trabalhos encontrados, mas também optando, subjetivamente, por evitarmos instituições com as quais tivéssemos alguma relação institucional ou pessoal anterior. Excluímos da lista os arquivos que não conseguimos fazer o download, textos que não possuíam agradecimentos, textos de agradecimento que claramente fugiam ao gênero e/ou que não fizeram uso da linguagem em primeira pessoa. O material empírico selecionado pode ser resumido nos números apresentados no Quadro 1.

Quadro 1 - Trabalhos selecionados para análise. 

Instituição Total* Dissertações Teses
Total Consideradas Total Consideradas
UERJ 93 64 19 29 16
UFG 20 8 3 12 5
UFPE 56 38 22 18 17
UFPA 41 36 12 5 3
UFRGS 119 69 44 50 50

*Total de pesquisas defendidas na instituição, no ano de 2012, na área da Educação.

UERJ: Universidade Estadual do Rio de Janeiro; UFG: Universidade Federal de Goiás; UFPE: Universidade Federal de Pernambuco; UFPA: Universidade Federal do Pará; UFRGS: Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Fonte: Elaboração dos autores.

Tomamos como pressuposto de nossa investigação que não estávamos em busca de uma leitura quantitativa nem individualizada dos agradecimentos, pois isso, a nosso ver, implicaria acesso a outras informações além daquelas a que tivemos acesso pelos textos de pesquisa. Entender por que alguém agradece de determinada maneira exige uma relação necessária entre sua escrita e sua história de vida. Precisaríamos compreender sua formação pregressa, suas escolhas temáticas, a relação entre a vida pessoal e a profissional. Mesmo uma definição de gênero da pessoa não seria tão simples. Assim sendo, considerando ainda se tratar de uma temática pouco discutida, optamos por uma abordagem de análise que levasse em conta os agradecimentos como um conjunto de modos de agradecer, como uma narrativa coletiva de um grupo de pessoas em um determinado momento. Este poderia ser um primeiro passo para diversas outras novas pesquisas que tratassem tanto das macrotendências por meio de levantamentos com amostragens estatisticamente qualificadas, quanto das microescolhas que levam cada sujeito a decidir como e a quem agradecer.

Desse modo, como exercício de análise, fizemos três movimentos: inicialmente extraímos todos os agradecimentos de seus arquivos originais e organizamos em documento único, para realizar uma leitura contínua dos textos. Fizemos então uma segunda leitura, buscando indicativos de quem foram os destinatários dos agradecimentos e quais as principais temáticas presentes em cada escrita. A partir de tal busca, elencamos oito categorias prévias, a saber: religiosidade, família, orientador, funcionários, outros professores, fomento, instituições, amigos. Em um terceiro momento, voltamos aos textos, selecionando exemplos de como essas categorias apareciam e dialogamos, desse maneira, com os autores e pressupostos teóricos que subsidiam o estudo para analisarmos e melhor compreendermos os modos de agradecer.

Trouxemos as aproximações conceituais com base nos estudos sobre narrativa de Connelly e Clandinin (1995) e Clandinin e Connelly (2011), que nos ajudam a compreender as particularidades e possibilidades desse gênero na pesquisa. O diálogo com autores como Soligo e Prado (2007) e Prado e Cunha (2007) permitiu o desenvolvimento de reflexões acerca do caráter formativo, memorial e social da escrita narrativa, sobretudo no contexto das pesquisas desenvolvidas no campo educacional.

As análises foram realizadas à luz do paradigma indiciário, tal como apresentado por Ginzburg (1989; 2001; 2007). Entendemos, a partir desse referencial, que a análise dos dados parte do levantamento de elementos normalmente negligenciáveis que, inseridos em uma série narrativa, permite que empreendamos uma leitura de estranhamento e de reconstrução narrativa preservando o caráter de indecifrabilidade dos atos humanos (Aguiar, Leonardi e Peres, 2021). Foi desse modo que, nos exemplos selecionados, buscamos recorrências e singularidades, refinando as categorias iniciais para um grupo de temáticas presentes/ausentes na escrita, como: aspectos ligados à religiosidade; relações afetivas e familiares; convivência com o orientador, professores e funcionários da universidade; vínculos de amizade e coleguismo; e apoio de agências de fomento. Compreendemos, então, que houve diferentes modos de agradecer que estiveram marcados por: agradecer como forma de reconhecer as dificuldades e a persistência na pesquisa e escrita; o agradecimento como formalidade, ironia ou estratégia de protesto; a reflexão do percurso; e a percepção do próprio processo formativo.

A escrita dos agradecimentos é reveladora dos processos e das pessoas que constituem, de alguma forma, a pesquisa. Essa é uma escrita questionadora “no sentido de escolher não só a quem se vai agradecer, mas também no sentido de enunciar, com os limites de toda e qualquer enunciação, um caminho trilhado de maneira intersubjetiva, na confluência de muitas vozes e práticas.” (Martino e Marques, 2019, p. 170). Ao ler cada agradecimento, pudemos perceber traços das histórias de vida dos autores, colocados em suas pesquisas. Rememorações de situações alegres, outras nem tão felizes, retomadas das expectativas no confronto com a realidade. Decisões da pesquisa que se entrecruzam e se embaralham com vivências pessoais, de forma que dificilmente poderiam ser separadas.

AGRADECER PARA LEMBRAR E SER LEMBRADO: POR QUE PRECISAMOS AGRADECER?

Gratuito. Era bem assim que ele entendia. Um presente. Um momento fora dos momentos. Apesar de tudo. A história noturna o liberava do peso do dia. Largávamos as amarras. Ele ia com o vento, imensamente leve, e o vento era a nossa voz. (Pennac, 1993, p. 13)

O texto de agradecimento, redigido mais frequentemente ao término da escrita das demais partes pesquisa, não é mero acessório ou formalidade. A organização das palavras, nesta que, em muitos casos, é a única manifestação narrativa e pessoal do percurso de investigação, requer intencionalidade e sensibilidade. Ao agradecer, o autor se coloca no texto a partir de outras regras: seus critérios de inclusão e exclusão são afetivos, seu método é narrativo e sua análise contempla erros e acertos, se pauta nos processos. No texto, podem ser trazidos nomes de vivos e mortos, entidades e divindades, pessoas e animais, indivíduos e grupos. É o seu momento de livre escrita, zona protegida dos olhares julgadores e da avaliação acadêmica, fora dos momentos (considerados centrais na pesquisa). Contraditoriamente é nesse fora, tão “dentro” do estudo, que parte das condições objetivas de produção são reveladas. Porque, narrativo e pautado em coerência própria, o texto dos agradecimentos traz elementos importantes para pensarmos a pesquisa “além da caixa preta” das subjetividades e efemeridades, isto é, além da noção de experiência como algo que não se pode investigar (Clandinin e Connelly, 2011).

Se a redação dos agradecimentos é realizada ao fim do processo, sua posição na organização do texto é no início. Começar o registro da pesquisa agradecendo e partilhando o processo é algo coerente com a ideia de um pensamento narrativo, que se expressa na escrita não por mera formalidade, mas sobretudo para convidar o leitor a conhecer as escolhas e os caminhos que culminam no trabalho ali sistematizado. Além das homenagens prestadas, conhecemos fragmentos da história do autor e da investigação também pelos silêncios. O que muitas vezes não está dito é revelador das ambiguidades, da complexidade de se relacionar com os outros e consigo mesmo nesse momento, das dificuldades e incertezas associadas com o fazer de pesquisa.

Lendo o conjunto dos agradecimentos, lembrando de nossos próprios agradecimentos (como autores ou como orientadores), começamos a refletir sobre porque precisamos agradecer. De certo modo, percebemos o caráter formativo de registrar, como agradecimento, parte da história da pesquisa. “Tomando como certo que o exercício de narrar é sobretudo formativo, compreendemos que a narração da pesquisa é também exercício de constante reflexão e aprimoramento do próprio trabalho como pesquisadores.” (Aguiar e Ferreira, 2021 p. 7). Nos agradecimentos, é o pesquisador também escritor, interlocutor e protagonista das narrativas, indivíduo que está buscando respostas e, ao mesmo tempo, apontando caminhos para outros no seu próprio espaço de pesquisa. Sem o intuito de realizar prescrições ou aplicações gerais, ele cria um texto que pode fazer com que seus interlocutores se reconheçam na escrita e imaginem os seus próprios usos e lições em outras atividades de pesquisa.

Ao fazer uso da escrita para organizar suas lembranças, algumas lições relevantes são aprendidas, que não se evidenciam facilmente no decorrer da atividade acadêmica: a importância do trabalho colaborativo, a presença constante do outro no modo de pensar e agir, a valorização do afeto para o desenvolvimento intelectual e profissional, a necessidade de foco e persistência nos estudos. É formativo o exercício de revisão das próprias escolhas, pois também denuncia o impacto da vida social e das práticas culturais na nossa constituição como indivíduos. Percebemos a violência a que, por vezes, os pesquisadores são submetidos por estarem inseridos na lógica produtivista acadêmica, quando a fadiga, a privação de sono e o abandono da vida social se apresentam como se fossem critérios para o desenvolvimento de um bom trabalho. Sejam momentos difíceis, sejam leves, permeados por todo tipo de sentimento, aquilo que é narrado no texto dos agradecimentos denuncia que nós, pesquisadores, não estamos separados de nossa pesquisa:

Como pesquisadores, nós também somos parte da atividade. Nós colaboramos para construir o mundo em que nos encontramos. Não somos meros pesquisadores objetivos, pessoas na estrada principal que estudam um mundo reduzido em qualidade do que nosso temperamento moral o conceberia, pessoas que estudam um mundo que nós não ajudamos a criar. Pelo contrário, somos cúmplices do mundo que estudamos. Para estar nesse mundo, precisamos nos refazer, assim como oferecer à pesquisa compreensões que podem levar a um mundo melhor. (Clandinin e Connelly, 2011, p. 97)

Cúmplices do mundo, precisamos marcar nosso lugar de pesquisadores como aquele marcado pelas condições, muitas vezes, precárias de trabalho. Precisamos reafirmar que as pesquisas são realizadas por pessoas comuns, repletas de dúvidas e emoções, que sentem saudades, se afligem com os prazos e reconhecem que a ajuda que tiveram é um modo de oferecer novas e importantes compreensões sobre o trabalho de investigação e, sobretudo, é uma maneira de se fazer presente na escrita. Mesmo sabendo que a escrita habitualmente carrega a marca de cada um de nós como escritores, que constitui nossa autoria, entendemos que os fragmentos narrativos organizados nos agradecimentos revelam mais do que o ritmo, a cadência e a expressão, que faz o trabalho facilmente identificável como o de certo autor. Falamos do reconhecimento de relações que humanizam e trazem a pessoa para dentro da própria escrita de pesquisa.

Escrever agradecimentos pressupõe rememorar todo o processo da pesquisa, mas não para descrevê-lo fielmente, nem para fazer relatos de certos destaques. A busca do pesquisador é pelos rostos, afetos e gestos que foram decisivos para que a investigação acontecesse. Para uns, essa trajetória começa na infância; para outros, no ingresso do próprio curso de pós-graduação. Se o texto parte das experiências passadas, não se restringe a elas. É no momento da escrita - no hoje - que o autor expressa compreensão do que passou, ou mesmo do que está por vir, estabelecendo nova leitura do processo antes vivenciado, interpretativa, dinâmica, reflexiva. A temporalidade dessa escrita é muito mais complexa e abrangente do que a linearidade dos acontecimentos.

Textos de agradecimento, então, são mais transformadores do que catalisadores da memória. Isso significa que, ao aceitar a tarefa de revisitar o próprio processo, o pesquisador usa outras lentes para interpretar sua trajetória, já com certo distanciamento dos momentos quentes e da pressão dos prazos, o que pode lhe possibilitar novas reflexões e uma consciência ampliada das próprias condições de produção.

Nesse registro, narrar não é apenas contar um fato, é também fazer as articulações assumindo que a escrita se constitui historicamente, ou seja, quando alguém escolhe contar algo - que julga relevante para a comunidade -, essa narrativa não é só sua, pois comporta ações, sonhos e afetos que são permeados pela cultura e pelas marcas de outras experiências. Porque, tomadas coletivamente, as experiências registradas nos agradecimentos podem remeter a situações comuns, vivenciadas por muitos autores no momento de feitura de suas dissertações ou teses. As similitudes remetem, como apontado por Clandinin e Connelly (2011, p. 50) ao modo como a vida de pesquisador “[...] é ao ser experienciada em um continuum - as vidas das pessoas, as vidas institucionais, as vidas das coisas.”.

Agradecer, como atitude investigativa, significa reconhecer o nosso lugar na pesquisa, inseridos em um dado meio e em certa conjuntura que incide diretamente sobre as escolhas e os percalços ao realizar o trabalho. Assumimo-nos como portadores de histórias que se fundem com a de outros tantos (e só por elas é que a nossa própria história é possibilitada). Entendemos ainda que nossas escolhas podem ser importantes para futuros pesquisadores.

Significa reconhecer o caráter histórico de minha certeza. A historicidade do conhecimento, a sua natureza de processo em permanente devir. Significa reconhecer o conhecimento como uma produção social, que resulta da ação e reflexão, da curiosidade em constante movimento de procura. (Freire, 2001, p. 9)

Assim como posto por Freire (1986), defendemos que ser pesquisador implica admitir que sozinhos não podemos, não queremos e não somos mais. Concordamos com o autor ao dizer que o ato investigativo resulta da intimidade com a cultura e sociedade (conhecer, viver e sentir a realidade), combinados com a atitude de pesquisa e a identificação com métodos investigativos (saber perguntar e saber buscar respostas). Fazer pesquisa, sobretudo em Educação, é, dessa forma, exercício de diálogo com a comunidade, com os autores que já se debruçaram sobre o tema, com os anseios e as dúvidas provocados em outros tempos e espaços, pressupondo certa continuidade e circularidade de falas, vivências e experiências. Reservar um espaço na dissertação ou tese para a escrita que dá forma e legitima esses outros é também escolha política e ética, pois torna públicas tais relações e faz com que as compreensões, dificuldades, laços e conquistas se materializem no trabalho.

O sentimento de gratidão é despertado/alimentado com a revisão do processo e redação desse texto, nem sempre o antecede. Talvez apenas ao realizar uma parada nos demais afazeres, com o intuito de escrever tal parte da pesquisa, o autor se dê conta do que e a quem deve agradecer. Expressões de gratidão são, sobretudo, fruto do entendimento de que dependemos uns dos outros, não somos autossuficientes. Dentre tantas e tão controversas emoções vividas ao longo de um período de estudo, pesquisa e escrita, o que se explicita essencialmente é o reconhecimento, louvor/gratidão e comprometimento/retribuição - para tomarmos os três níveis de gratidão apontados por Tomás de Aquino (Lauand, 1998).

No processo de socialização e de organização da vida cotidiana, nem sempre nos são dadas oportunidades de aprender e ensinar a experienciar a gratidão como um traço da personalidade consciente. Em diversos momentos, ser grato pode remeter à forma de lembrarmos a reciprocidade das obrigações, reconhecer dívidas e filiações sociais (Pieta e Freitas, 2009). No entanto, ao longo do tempo e em diferentes culturas, a expressão da gratidão remete à percepção de como as ações individuais se entrelaçam com a vida coletiva. Ao agradecer, o autor reconhece que seu trabalho é possibilitado pelo de outras pessoas, e suas criações decorrem de inúmeras outras, por vezes anônimas, que o precederam. A escrita se realiza, então, nessa relação entre a narrativa do pesquisador e a história que o conecta a seu meio. Numa constante tensão entre forma e conteúdo, a escrita permite deixar marcado um pouco de mim, um pouco de nós; “Remete a questões tipicamente humanas, por isso transversais e urgentes que entram na história dos sujeitos e se materializam nas experiências registradas. É, portanto, particular e individual, ao mesmo tempo que remete ao diverso e ao coletivo.” (Aguiar e Ferreira, 2021, p. 8).

A escrita, colocada numa fronteira entre o pensamento narrativo e os moldes acadêmicos tradicionais, reafirma que o estudo só foi possível porque o pesquisador era aquele, com aquelas condições, naquele tempo e espaço. Restitui a humanidade do processo, lembrando que o pesquisador não é uma assinatura ou uma variável filtrável. Ao contrário, é parte inseparável de sua obra (Clandinin e Connelly, 2011).

Em sua estrutura, o que ganha destaque nos agradecimentos não é apenas a informação sobre quem são as pessoas lembradas, mas especialmente os pequenos fragmentos narrativos que compõem o texto e apontam para outras histórias e memórias.

A DEUS, AOS MEUS, ÀS OPORTUNIDADES: A QUE(M) AGRADECEMOS?

Toda a obra literária leva uma pessoa dentro, que é o autor. O autor é um pequeno mundo entre outros pequenos mundos. A sua experiência existencial, os seus pensamentos, os seus sentimentos estão ali. (Saramago, 2010, p. 224)

A leitura dos agradecimentos nos abre possibilidades de compreensão mais ampla e novas perspectivas para a leitura do restante da pesquisa. Dizemos isso por acreditarmos que as marcas do autor são reveladas como um sinal a ser desvendado nesse texto: “[...] é necessário fazer uma interpretação narrativa daquele sinal antes que o sentido possa ser relacionado a ela. Sem compreender a história narrativa, o símbolo, sua importância ou significado permanecem desconhecidos.” (Clandinin e Connelly, 2011, p. 64).

Nos agradecimentos, identificamos os afetos e as presenças que tornaram possível a tessitura do trabalho publicado. Indo além, podemos dizer que, por meio das pequenas narrativas que no texto se articulam, podemos também conhecer um pouco do pesquisador e saber como sua própria vida se realizou no período compreendido na investigação, entre empecilhos e oportunidades. Reiterando e ampliando a afirmação de Saramago (2010), entendemos o texto de pesquisa como produção repleta de marcas da personalidade, pois só poderia ser realizado, da forma como se apresenta, por aquela pessoa e com seu olhar e suas indagações; mas também da humanidade, uma vez que é viabilizado pela presença, pela troca e pelo apoio de toda uma comunidade. Por isso, é escrita que leva pessoas dentro dela.

A formulação da escrita dos agradecimentos parece remeter a uma mistura de escolhas e sentimentos que oscilam entre o alívio pela finalização do trabalho, a gratidão pela conquista e a angústia da pressão sofrida.

Finalização da dissertação. Momento de reunir os escritos esparsos, as folhas rabiscadas e os bilhetes distribuídos na mesa de trabalho. É hora de organizar a escrita e os pensamentos, montar o quebra-cabeça que caracteriza o momento da conclusão. Mas é tempo também de lembrar-se de todos e todas que contribuíram, de alguma forma ou de outra, para a realização deste trabalho e, mais do que lembrar, agradecer. (D_S_39)2

Esta foi uma parte que me custou escrever ao finalizar o trabalho, face ao momento após a escrita de minha dissertação, já esgotada, e ainda assim feliz. Foram tantos os sujeitos que contribuíram para a feitura deste trabalho, que se porventura esquecer de citar alguém, deve desculpar-me por meu descuido. (D_SE_11)

Nesse caminhar acadêmico de tantas lutas, esforço, renúncias e vontade de vencer, contei com a presença, apoio, incentivo e colaboração de muitas pessoas. Assim, num gesto de reconhecimento, registro a minha carinhosa gratidão [...]. (T_SE_12)

Por mais pessoal que seja o processo de realização de uma pesquisa, tal processo, a exemplo de uma roda de capoeira, não ocorre solitariamente, mas com a participação direta e/ou indireta de muitas pessoas. Antecipo sinceras desculpas por não conseguir mencionar todos(as) os(as) que, de forma direta e/ou indireta, gentilmente ajudaram-me no trabalho em questão. Destarte, agradeço: [...]. (T_NE_11)

Observamos como parte dos agradecimentos registra crédito a pessoas, instituições, entidades, personalidades ou seres que não necessariamente contribuíram de forma objetiva para a realização da pesquisa, mas que talvez devessem ser lembrados por sua importância na vida do pesquisador. São reconhecimentos que exprimem a ideia de que a companhia, o afeto ou a presença constantes auxiliam aquele que escreve a se manter firme em seus propósitos. Além disso, percebe-se que há alguns tipos de ajuda e apoio que são tão cotidianos que nem conseguimos registrar e lembrar todos. Só conseguimos dizer “muitos”, “todos”, “indiretamente”, “alguém”.

Se o reconhecimento visa lembrar quem tem importância para o pesquisador, a despeito de seu trabalho, muitas vezes, a escrita traz também a gratidão por certa ajuda prestada, bem como o entendimento de que a ação de pessoas ou grupos influenciou diretamente as ideias, os propósitos ou as motivações para a realização da pesquisa. O agradecimento aparece, nesses casos, como forma de registrar a generosidade de quem realizou uma revisão mais atenta, um apoio com leituras e debates, a correção de pontos específicos da escrita, a escuta sensível. Também são reconhecidas as pessoas que prestaram apoio ao ficar com os filhos, cuidar dos afazeres domésticos, substituir ou assumir funções no trabalho e até mesmo o acolhimento ao prover um lugar para morar.

Externando algo ainda diferente da gratidão, há momentos em que os pesquisadores mencionam aqueles que efetivamente viabilizaram a pesquisa e a quem exprimem ter certo sentimento de dívida ou desejo de retribuição. São agradecimentos que podem tanto demonstrar obrigações, como observamos no momento em que são realizados os créditos às instituições que ofereceram apoio financeiro, quanto cumplicidade e parceria, trazendo a ideia de que o pesquisador faz parte de um grupo e que seu trabalho é de focalizador ou sistematizador de um conhecimento que é produzido coletivamente, de modo que a pesquisa só é possível graças à existência dessa rede.

Verificamos que, a depender daquele que escreve, de sua trajetória de vida, suas crenças e escolhas, uma mesma menção pode retratar diferentes expressões. Um agradecimento a alguma divindade, por exemplo, pode ser realizado de formas bem distintas entre autores, revelando ênfase e compreensões diversas sobre o papel da fé na realização da pesquisa.

Primeiramente, agradeço a Deus por ter me concedido saúde, força e coragem, fatores que ao longo de toda a minha vida me fizeram vitoriosa! Em especial, por ter estado sempre ao meu lado, na minha caminhada como mestranda, cujos resultados se expressam neste trabalho. E, também, pela certeza confortadora de que sempre estará comigo. (D_SE_15)

Para chegar aqui hoje e concluir a minha dissertação de mestrado, vim navegando num barco comandado pela força dos meus ancestrais, passei pelas dificuldades de um mar revolto, quase naufraguei, por pouco não sobrevivi, mas tive força e coragem de seguir em frente, fui embalado por todos os Orixás, com Ogum abrindo os caminhos e Iemanjá me segurando no seu colo de Mãe, para que eu também pudesse ver dias lindos ensolarados de muita energia e pudesse continuar. Mas esse meu barco foi se encontrando e se juntando com outros barcos e foi crescendo... E por tudo isso, só posso agradecer: [...]. (D_SE_7)

Os louvores a deuses, entidades, congregações e instituições de diferentes matrizes religiosas, quando aparecem na escrita, costumam ser a primeira menção realizada. Expressão de um traço cultural bastante presente na vida dos brasileiros, a fé parece dialogar com a ciência quando pesquisadores registram a importância de suas crenças na preservação de uma atitude de pesquisa. Aos deuses é creditada, sobretudo, a força para conciliar a atividade investigativa com os demais aspectos da vida cotidiana. Os textos nos revelam que os percursos de investigação e escrita são tortuosos, exigentes e cansativos. Alguns pesquisadores reconhecem, ao citar a interferência divina, que apenas a sua determinação pessoal não seria suficiente para dar conta da tarefa assumida.

O relacionamento entre ciência e fé não é tema novo, pois a produção de conhecimento sobre a realidade dialoga - ou questiona - com as representações fantásticas e com o pensamento que transcende as nossas experiências concretas. A vivência religiosa é retratada, pelos pesquisadores, como uma presença que conforta, traz confiança e sentimento de pertencimento, coisas que reafirmam a crença de se estar desenvolvendo um trabalho importante. A compreensão de religião expressa nos agradecimentos leva a entender que nem sempre há disputa entre as práticas culturais que valorizam a espiritualidade e a atividade de produção do conhecimento científico.

Também observamos importantes marcas culturais nos agradecimentos destinados aos membros da família. A leitura dos textos reafirma que, ao longo da pesquisa, há momentos bastante conturbados, que exigem condições especiais de produção obtidas, muitas vezes, a partir do sacrifício de pessoas queridas e também da diminuição significativa do tempo de convívio familiar. Tolerância e compreensão diante das ausências, sobrecarga e instabilidade emocional são destacadas como motivo para agradecer:

A todos os familiares e amigos, que auxiliaram e entenderam muitas vezes os meus vários momentos de “não”: Não poderei ir... Não vai dar tempo para... Talvez um outro dia... (T_SE_9)

Primeiramente à minha família pelo incentivo para que eu continuasse nesse percurso acadêmico e pelo carinho com que me apoiaram, ainda quando minhas escolhas não lhes faziam muito sentido e por terem compreendido minhas ausências durante esses últimos anos. (D_NE_4)

À minha mãe, pela compreensão quando me via horas frente ao computador, preocupada com as várias noites mal dormidas e pelo incentivo com que me alimentava a cada dia. (T_CO_3)

A meu companheiro, que vivenciou junto a mim as angústias durante o mestrado. Desculpe-me o mau humor, os exageros que por vezes tomaram conta de mim durante o processo de escrita, e pelo exaustivo trabalho. (D_N_12)

Ainda nesse aspecto, concordamos com Martino e Marques (2019) ao observar a importância das redes de afeto familiar para auxiliar principalmente as pesquisadoras quando são mães. São muitos os agradecimentos feitos por mulheres pela ajuda com a maternidade durante a realização da pesquisa. Nos textos que lemos, apenas mulheres estendem os agradecimentos a pessoas que não são da família, mas que cumpriram a função de grupo de apoio no cuidado com os filhos. Há registros de gratidão a babás, empregadas domésticas, aos vizinhos (que acolhiam os filhos na chegada da escola), ao porteiro do prédio e a outras pessoas da convivência próxima. Os textos externam, além de gratidão, a necessidade de manter-se responsável pelo gerenciamento das tarefas domésticas e pela educação dos filhos, mesmo quando ausente, denunciando a sobrecarga emocional e física a que mulheres são submetidas.

A meus pais, que apesar de pouco escolarizados, me possibilitaram que seguisse em frente com meus estudos. Mamãe ajudou-me quando roubei algumas horas de sua vida, para ficar com meu filho durante as aulas, assim como na etapa final antecedendo a defesa. Agradeço demais a você, minha mãe querida. (T_CO_2)

A meus sogros, que me ajudaram também cedendo tempo de suas vidas para mim, ao disponibilizarem tempo para cuidar de meus filhos, quando tinha meus próprios compromissos do mestrado. Não sei como iria fazer sem a ajuda de vocês. (T_NE_12)

Ao compartilhar publicamente suas frustrações e reconhecer as limitações de ser pesquisadora e mãe, emergem temas estruturais e pouco debatidos na sociedade acadêmica, que ressoam e geram identificação em mulheres que se dedicam à ciência e à carreira universitária: a conciliação entre maternidade e vida profissional e a presença feminina nas comunidades de produção de conhecimento científico.

De acordo com a pesquisa “Parent in Science” ([s.d.]), no Brasil, as mulheres são a maioria das pesquisadoras em todos os níveis de ensino e em quase todas as áreas de pesquisa, compondo a base da ciência produzida no país. Por isso, parece urgente repensar a lógica produtivista à qual se pautam os principais mecanismos de avaliação e promoção acadêmica, que desconsidera as particularidades das condições e os tempos de produção na maternidade, o que contribui para reforçar a desigualdade de gênero e excluir das práticas acadêmicas todo um grupo de potenciais pesquisadoras.

Juntamente com as dificuldades relacionadas à igualdade de gênero, são representadas, nos agradecimentos aos familiares, as barreiras e dificuldades vivenciadas em função do preconceito racial e da classe social. Nestes casos, os pesquisadores demonstram, por meio de suas narrativas, consciência de que seu lugar na universidade foi possibilitado pela luta travada antes, por seus pais, avós e ancestrais:

À minha família que é exemplo de resistência e de luta pela vida, que enfrentou todas as dificuldades impostas pelas desigualdades sociais existentes em nosso país, agradeço pelo apoio e pelos ensinamentos. (D_S_16)

Aos meus ancestrais, de onde me chegam os fios das histórias. Em especial à Denise, minha irmã querida, que partiu durante o processo de elaboração desse trabalho. Com os conhecimentos aprendidos com África, penso sobre a possibilidade de sua ausência não ser mais do que uma nova forma de se tornar presença. (D_SE_12)

Agradeço infinitamente aos meus pais por toda dedicação e esforço empregado para me dar as ferramentas necessárias ao meu ingresso na pós-graduação. [...] Sempre ouvi de vocês que a herança a ser deixada para mim e meus irmãos seria o conhecimento. (T_N_1)

A escrita marca que o autor também é parte de certa cultura, constituído por sua etnia e classe social, e denuncia que suas condições de produção são atravessadas por essas marcas. Certos textos trazem o sentimento de que o acesso à universidade e a produção do conhecimento não faziam parte do campo de possibilidades a serem vislumbradas por pessoas como esses pesquisadores e que seu acesso é também uma ocupação política do espaço acadêmico. Apenas nesta parte do texto, ao se colocar narrativamente, o pesquisador parece assumir sua história e memória como força que o ajuda a entender seus processos, escolhas e perguntas de investigação.

Homenagens à ancestralidade e/ou aos movimentos sociais carregam o reconhecimento de que estar dentro de uma universidade e realizar atividade de pesquisa não se resume ao próprio esforço, mas também - e principalmente - à organização social. Por isso, percebemos, na escrita, o entendimento de que a finalização da dissertação ou tese de pesquisadores pertencentes a grupos considerados marginais representa uma conquista para toda a sociedade se buscamos romper com a desigualdade e o preconceito. Embora esse seja tema há tempos debatido, a equidade e valorização da diversidade só se efetiva com a inserção, na academia, de pesquisadores pertencentes a grupos que tradicionalmente têm menores oportunidades de acesso aos espaços de pesquisa.

A leitura dos agradecimentos também nos aponta para dimensões formativas da vida acadêmica que extrapolam a atividade de pesquisa. Especialmente ao registrar afetuosamente a presença constante dos amigos, são ressaltadas como produtivas as conversas que acontecem em momentos de descontração e pausa entre aulas, as viagens para participação de eventos científicos e a interlocução com pesquisadores que se conheceram no decorrer da investigação. A convivência e a experiência universitária se configuram, nestas narrativas, como oportunidades de desenvolvimento que, embora não estejam objetivamente presentes na escrita do texto, precisam ser reconhecidas.

Quero agradecer em especial a Maria, Joana e Caio, pelo apoio nos momentos de conflito, diante de tantas teorias, buscas, prazos, congressos, editais, artigos. Por compartilhar experiências, vitórias e falhas. Enfim, diante da loucura de uma vida de estudante de pós-graduação. [...] Agradeço também pelas contribuições sobre o texto nas reuniões de orientação, que ajudaram no crescimento desta pesquisa. (D_NE_16)

Katia, pessoa incansável em ajudar-me a tecer esta dissertação. [...] Você conseguiu me ajudar a organizar e a escrever meu pensamento, ou melhor, entender o que eu queria dizer. E quando me faltavam palavras, vinha com seu sorriso dizendo: essa palavra serve, e nós ríamos. Acredito que não tenho mais uma colega de turma, tenho uma nova irmã. A você, que por vezes me viu chorando e ficou me olhando, sem me interromper, até eu terminar de falar, eu te agradeço, muito obrigado. (D_SE_19)

Dentre as relações valorizadas e positivamente retratadas, do período de realização da dissertação ou tese, a companhia e o apoio entre pares se destacam em muitos agradecimentos. De acordo com Ferreira (2020), um grupo de pesquisadores que reflete e vive experiências conjuntamente pode partilhar o sentimento de amizade, o que representa a identificação mútua e também o aprendizado pela diferença e alteridade. A amizade, nesse sentido de coletividade, se constitui como uma possibilidade de transformação e aperfeiçoamento. Aprendemos que é possível aliar a formação e atuação profissional a um forte sentimento de cumplicidade e companheirismo.

Compreendemos as amizades estabelecidas no ambiente profissional como relações compromissadas com o outro, que vão além de simpatia, convivência cotidiana ou coleguismo. Os amigos desempenham um papel na vida e na escrita do pesquisador por oferecer outras compreensões e leituras de sua produção que o próprio pesquisador jamais conseguiria ter de si. São relações que levam a querer ser mais, fazer o melhor e superar o que parece cômodo. “Escuta-se, confessa-se, aceita-se, apazígua-se das inquietudes, mas também espera-se […] seriedade no discurso sobre o outro. Daí as relações de amizade são […] um espaço ético-estético, de invenção, criação, experimentação.” (Loponte, 2009, p. 932).

O vínculo afetivo e o sentimento de amizade também aparecem nos agradecimentos ao orientador. A relação de parceria e o amparo na condução da pesquisa são apresentados como características a serem valorizadas no processo de orientação. A admiração e o respeito ao professor mais experiente também se evidenciam na escrita.

Ao meu professor orientador, por sua confiança em mim para a realização deste estudo, pelos desafios acadêmicos propostos e pelas sábias, valorosas e fraternas orientações no decorrer da jornada de produção do conhecimento, durante a construção da pesquisa. (D_NE_5)

À minha orientadora, pela paciência em conviver com as minhas ansiedades e pela firmeza na condução dessa pesquisa. (D_SE_14)

Quero iniciar, agradecendo ao meu orientador e, agora, um novo amigo, que através de sua sensibilidade, me mostrou caminhos lindos, angustiantes e reflexivos. Foi com sua boa base, que caminhei com firmeza nesta longa jornada. (T_SE_9)

Ao orientador, por ser guia, amigo e por permitir que eu fosse “pássaro em vôo”. Ancorada em Rubem Alves, agradeço por você não querer ser “escola-gaiola”, mas sim “escola-asa” que nos encoraja a voar. (T_SE_5)

A relação de orientação prevê a convivência contínua e o contato frequente por períodos entre dois e seis anos em um momento que costuma ser dos mais desafiadores para os pesquisadores, a tessitura da dissertação ou da tese. Nesse contexto, entendemos que o processo de construção do conhecimento não é atividade isolada e necessita de partilha e colaboração mútuas. O acompanhamento da investigação não é mera formalidade e costuma ser determinante para a realização de um trabalho que dialogue com a comunidade acadêmica e reverbere novas reflexões. Trata-se, como lembra Severino (2013, p. 146), de uma relação educativa:

O papel do orientador não é o papel de pai, de tutor, de protetor, de advogado de defesa, de analista, como também não é o de feitor, de carrasco, de senhor de escravos ou de coisa que o valha. Ele é um educador, estabelecendo, portanto, com seu orientando uma relação educativa, com tudo o que isto significa, no plano da elaboração científica, entre pesquisadores. A verdadeira relação educativa pressupõe necessariamente um trabalho conjunto em que ambas as partes crescem. Trata-se de uma relação de enriquecimento recíproco. É necessário que ocorra uma interação dialética em que esteja ausente qualquer forma de opressão ou de submissão.

Curiosamente, autores demonstram gratidão por atitudes que deveriam ser esperadas dos seus orientadores por fazerem parte de sua atividade profissional: encorajar a independência, demonstrar segurança nas conduções, fazer-se presente, agir com paciência e respeito, realizar questionamentos e apontar possibilidades. Tal reconhecimento nos leva a pensar nas dificuldades encontradas no processo de pesquisa, que fazem com que, muitas vezes, a orientação não ocorra de maneira tranquila.

Vemos ainda, retratada nas palavras dos pesquisadores, a situação difícil de excesso de trabalho que se impõe aos orientadores e também aos orientandos, dada a lógica produtivista que rege as avaliações de programas e de docentes na atualidade. Assim como destaca Zabalza (2019, p. 12), professores, por vezes, se encontram “[...] em situação precária, sobrecarregados de horas para poder alcançar um salário aceitável, em situação de interinidade permanente ou sob o risco de perder seu trabalho [...]”. Administram, frequentemente, um excessivo número de alunos orientandos, com pouco tempo para o acompanhamento das pesquisas, e ainda conciliam uma diversidade de temáticas e afazeres que podem tornar difícil o acompanhamento efetivo do pesquisador orientando. Por outro lado, pesquisadores que iniciam a atividade de investigação de mestrado ou doutorado em Educação, muitas vezes, o fazem em concomitância com outras atividades profissionais, destinando tempo parcial aos estudos, administrando múltiplas tarefas e dedicando tempo de menor qualidade à escrita. Zabalza (2019) reafirma que é necessário garantir as condições mínimas e equiparáveis aos demais profissionais da categoria que permitam aos professores e pesquisadores da Educação exercer seu trabalho em condições dignas.

Do mesmo modo afetuoso a que se referem aos orientadores, as homenagens a funcionários das universidades e também a pessoas que colaboraram com seu ofício, em algo que foi solicitado pelos pesquisadores, enfatizam presteza e gentileza, atitude colaborativa e disponibilidade em auxiliar, mesmo quando as condições de trabalho dessas pessoas não são as mais adequadas.

Aos bibliotecários do Centro de Educação, pela pronta colaboração, gentileza e qualidade dos serviços prestados, os quais contribuíram imensamente para a realização de nossa investigação. (T_NE_5)

Aos funcionários do Arquivo Público, que mesmo em condições de trabalho nada favoráveis, sempre se esforçaram por atender as minhas inúmeras solicitações. (D_S_16)

Aos vendedores de livros novos e usados do centro e dos subúrbios da cidade, por possibilitarem o acesso a materiais raros e a preços módicos, sobretudo, acompanhado de nossas conversas. (D_NE_14)

Um aspecto a ser considerado é que colaboradores, como os mencionados, possivelmente não serão leitores do trabalho e não supõem que seu auxílio será reconhecido no texto acadêmico. Diferente do orientador e dos membros da família, que figuram na maior parte dos trabalhos (e de certa forma esperam por isso), esse tipo de reconhecimento parece ter grande valor por ser realizado de forma mais espontânea. São destacadas as contribuições de pessoas que realizam fotocópias, auxiliares de secretaria, bibliotecários, técnicos de informática, revisores de texto e outros profissionais que facilitaram o acesso às informações necessárias para a realização da pesquisa. Percebemos, com essas frequentes menções, que há o reconhecimento, por parte do pesquisador, do trabalho constante e, por vezes, menos valorizado daqueles que se ocupam com os fazeres administrativos nas instituições.

Destacamos também a presença de elogios tanto a atributos pessoais quanto profissionais dos funcionários, como aponta Ferlini (2013). Se parece ser importante registrar nos agradecimentos que as pessoas desempenharam seu trabalho com presteza, atenção, rapidez e eficiência (o que nos leva a pensar na possível expectativa de que esses profissionais atenderiam com rispidez, morosidade ou desinteresse), também há intenção de destacar que os funcionários mencionados se diferenciam por manterem relações cordiais com a comunidade, serem solícitos, bem-humorados e amigáveis.

Professores que passaram pela vida dos pesquisadores e que são admirados, em especial aqueles que ministraram disciplinas impactantes ou que foram leitores privilegiados do trabalho (compondo as bancas de qualificação e defesa, ou em arguições e discussões informais dentro do próprio grupo de pesquisa), são homenageados com carinho e respeito.

Há nesta tese uma presença muito sentida da professora Raquel. Não por citações e referências explícitas, pois que é preciso ir mais fundo para, de fato, encontrá-la no texto. Presença atada às formas de pensamento, à intencionalidade crítica, à crença na polissemia como forma de ver. São incontáveis as palavras dela que perderam aspas em meu próprio pensar... Se um agradecimento é pouco para tanto, a amizade que fica é a certeza da bela caminhada compartilhada e a aposta em tudo o que virá. (T_SE_11)

Nesta ocasião, preciso, portanto, destacar o papel das professoras Telma e Ana pela gentileza em socializar sua experiência de pesquisa, incentivando e potencializando sempre nossas curiosidades sobre as pesquisas desenvolvidas. Com elas aprendi a ludicidade da pesquisa e a importância de ealiza-la com prazer e seriedade. (D_NE_8)

A formulação de agradecimentos a professores, que não ao próprio orientador, remete às aproximações e afinidades criadas no decorrer da pesquisa. Concordando com Haya (2018), percebemos que, em alguns textos, tais menções parecem ganhar uma tônica de autopromoção, como se o destaque da proximidade com certos intelectuais do campo de produção científica trouxesse credibilidade ao trabalho apresentado. No entanto, a predominância é de narrativas relacionadas a encontros com docentes que foram marcantes para reafirmar escolhas profissionais e que são admirados por suas capacidades intelectual e relacional.

A gratidão expressada aos professores faz pensar na relevância do trabalho pedagógico de formação permanente que é desenvolvido ao mesmo tempo em que a pesquisa se desenvolve nos programas de pós-graduação. Docentes podem se tornar figuras inspiradoras e, com isso, oferecer modelo de profissionalismo e compromisso com o conhecimento acadêmico. Extrapolando o coleguismo, é enfatizada a dimensão profissional e o engajamento na área. Concordando com Zabalza (2019), entendemos que é imprescindível reafirmar o professor e pesquisador como trabalhador da Educação, que vivenciou uma formação específica e de alto nível, alguém que reconhece e preza pela autonomia em seu trabalho, que partilha os saberes e se enxerga em formação permanente. Distancia, então, sua imagem da “[...] zona difusa e límbica do amadorismo vocacional com o qual durante muitos anos exerceram sua profissão [...]” (Zabalza, 2019, p. 16). O destaque a professores memoráveis enfatiza o exercício de uma profissão que se funda na convivência, mas sobretudo em ações intencionais, propositivas e efetivas de ensino.

Em diálogo com as homenagens prestadas aos professores que os constituem, pesquisadores também agradecem aos autores lidos, com quem não tiveram a oportunidade de diálogo próximo, mas a quem se sentem gratos pelas contribuições, que dizem ter alterado significativamente sua forma de pensar e entender o mundo.

Às leituras e reflexões empreendidas sobre/de Jorge Larrosa, Michel Foucault e Zygmunt Bauman; Clarice Lispector, Fernando Pessoa (e seus diversos heterônimos), Mário Quintana e Rainer Rilke; Epicteto e Sêneca; Chögyam Trungpa, Osho e Pema Chödron. Como alimentam e animam a minha alma, dando-me razões para me sustentar nesse mundo. Na presença inspiradora e vívida deles, nunca me sinto sozinha! (D_NE_10)

Enfim, aos autores que li e conversei secretamente em minhas leituras e aos que, inesperadamente, aparecerem e me fizeram refletir em questões anteriormente não pensadas por mim. (D_N_2)

A retomada desses encontros teóricos e o reconhecimento da importância daqueles que, em outros tempos e espaços, também dedicaram a vida à ciência (e à arte) nos faz compreender a atividade de pesquisa também como situação que propicia o desenvolvimento da consciência e a ampliação de horizontes. Autores nos dão pistas de que a leitura significou muito mais do que o cumprimento de algumas das mais importantes tarefas de estudo, o levantamento bibliográfico e a apropriação teórica. Eles demonstram que ler possibilita a emancipação do pensamento, pelo contato com outros modos de pensar e compreender a realidade. De acordo com Soligo e Prado (2007, p. 34), o diálogo com autores, realizado por meio da leitura, “[...] possibilita acessar informação, conhecer o que era até então desconhecido, produzir sentidos a partir dos textos escritos pelo outro, [...] o exercício da necessária expressão. E da generosidade. E do compromisso. Não só com o outro, mas também conosco.”.

Entre as instituições que são lembradas, é constante o registro de agradecimentos às agências de fomento, que oferecem suporte financeiro para que os pesquisadores desenvolvam suas pesquisas. Por vezes, o texto utilizado nesta parte é protocolar e remete ao compromisso ético do autor de creditar o apoio e dar visibilidade às políticas de investimento em produção científica no país. No entanto, alguns pesquisadores utilizam este espaço para escrever mais livremente e registrar seu entendimento:

Gostaria de reconhecer o povo brasileiro como responsável por grande parte de minha formação, em função dos recursos aplicados em serviços públicos que permitiram dar continuidade a meus estudos, através da manutenção de colégios e universidades onde estudei; financiamento de bolsas de estudo recebidas nos cursos de mestrado e doutorado. (T_SE_19)

Sou especialmente grata pelo financiamento de minhas viagens para participar de eventos nacionais e internacionais, nas quais pude aprimorar meus conhecimentos, expor ideias, discutir, rever e aprofundar as questões da tese. Conhecer algumas cidades brasileiras aproximou-se de forma mais sensível e prazerosa de meu objeto de estudos. A participação de eventos no exterior, possibilitada pelo programa, rendeu-me uma bagagem cultural e teórica que contribuíram significativamente no processo de escrita da tese. (T_SE_10)

O posicionamento político dos pesquisadores, ao reverenciar a população brasileira como principal financiadora da pesquisa em nosso país, chama a nossa atenção para o compromisso assumido ao realizar uma investigação com recursos públicos e reiterado em forma de agradecimento com o desenvolvimento de estudos que possam reverberar mudanças na vida comum e na esfera pública, num ciclo afirmativo.

Ainda os agradecimentos a instituições de apoio ressaltam as experiências de intercâmbio, acadêmico e cultural, bem como a participação em eventos científicos e as visitas técnicas possibilitadas, as quais estreitam vínculos e potencializam as iniciativas de cooperação interinstitucional e de internacionalização dos programas de pós-graduação, uma vez que possivelmente os pesquisadores seriam incapazes de arcar, com recursos pessoais, com tais investidas durante os anos de tessitura da dissertação ou tese.

Em algumas situações, identificamos também o uso de termos e marcadores que sugerem ironia ou protesto ao agradecer. Autores (supostamente) agradecem aos inimigos, à recusa de financiamento, ao chefe que não permitiu a dispensa do trabalho, à falta de estrutura das universidades, às noites mal dormidas. O registro aparece, nesses momentos, como forma de manifestar que nem tudo caminha bem no decorrer da pesquisa e expressar que os empecilhos contribuem, em alguma medida, para nutrir o olhar crítico para a realidade.

Entre outros grupos e outras pessoas mencionados na escrita de agradecimento, há autores que citam os leitores futuros da pesquisa. Essa referência nos leva a pensar no sentimento mobilizado no pesquisador ao imaginar suas palavras lidas pelo outro, à possibilidade de o estudo atingir diversas pessoas que se interessem pelo tema. É um agradecimento futuro que contempla a previsão de certa circulação do texto no meio acadêmico e também entre professores de educação básica, a depender da natureza da pesquisa. De acordo com Haya (2018, p. 197), “[...] a audiência existe na imaginação do pesquisador desde o início da pesquisa e é condição necessária que deve ser cumprida pelo texto de pesquisa. Admitir a audiência, no entanto, cria tensão.”.

Junto com o entusiasmo de ser visto e lido, há também o constrangimento e receio da exposição. Especialmente a escrita dos agradecimentos, que narra, por vezes, a intimidade e/ou as minúcias dos anos de pesquisa, comporta essa ambivalência. Por isso, certas vezes, encontramos trechos da escrita que se apresentam compreensíveis apenas a quem vivenciou determinadas situações ou tem intimidade com o autor. “Sua leitura é pública, mas sua compreensão, restrita. Mesmo assim é possível inferir, nas pistas oferecidas, presenças e ausências durante a trajetória acadêmica.” (Martino e Marques, 2019, p. 160).

Por fim, entendemos ser necessário refletir sobre as ausências, por vezes, sentidas, em alguns trabalhos de pesquisa: a falta do próprio texto de agradecimento, o silêncio em relação a pessoas que geralmente são contempladas na escrita, as lacunas ao escrever sobre as parcerias de orientação, a recusa de narrar a si mesmo e sua experiência de pesquisa. Em atenção àquilo que não foi dito, o silêncio torna-se relevante como indício. No entanto, como tal, não pode ser considerado sem o entendimento dos contextos e das palavras dadas, das escolhas realizadas.

Sem querer associar as ausências à ingratidão, retomando a ideia de que essa parte da escrita da dissertação ou tese é particularmente difícil por ser realizada no momento de esgotamento físico, emocional e intelectual - o que sucede a arrancada final da redação do corpo do texto - e, ao mesmo tempo, por demandar uma tessitura em primeira pessoa, que aproxima e revela as condições de produção, as ausências podem nos levar à falta de fôlego, a pouco distanciamento e perspectiva para que o autor reconheça todas as pessoas importantes ou memoráveis. Ainda remete às mesmas durezas do processo de realização da dissertação ou tese, presentes nas palavras outras vezes escritas: um percurso repleto de escolhas e renúncias, que gera conhecimento e emancipação, mas também nos leva a conviver com nossas dificuldades e enfrentar as condições nem sempre justas e igualitárias de produção. Caminho este que, talvez, certos autores ainda não estejam dispostos a narrar.

DEVER, CORDIALIDADE E AMIZADE: O QUE ACONTECE CONOSCO NA ELABORAÇÃO DA PESQUISA?

Escrever é uma salvação. Salva a alma presa, salva a pessoa que se sente inútil, salva o dia que se vive e que nunca se entende a menos que se escreva. Escrever é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada. (Lispector, 2006, s.p.)

Ao iniciar este texto, indagamos: o que se evidencia, nos agradecimentos de teses e dissertações, sobre fazer pesquisa e quem faz pesquisa em Educação? Na busca por respostas, fundamentamos que a escrita dessa parte de um trabalho acadêmico é composta de diferentes excertos narrativos, reveladores das condições de produção científica que possibilitam a compreensão não apenas das particularidades vivenciadas por determinado pesquisador, mas sobretudo de elementos recorrentes, ausências, escolhas e recusas que perpassam a trajetória de muitos autores no decorrer da investigação.

A escrita narrativa, por estar focada nas pessoas e suas relações, valoriza o que é vivido, pois das vivências extraímos lições para outras dimensões da experiência humana. Por isso, assim como apontam Connelly e Clandinin (1995), é importante que o pesquisador conte a sua história (mesmo que brevemente, nos agradecimentos, quando a tessitura do restante do texto não possibilita essa presença explícita), anuncie seu processo e não se deixe silenciar, pois sua história e suas memórias também devem ser preservadas.

Observamos que a redação dos agradecimentos torna perceptível, ao leitor do trabalho, o desenvolvimento e os aprendizados decorrentes da pesquisa, mas não explicitados em outras partes do texto. O movimento de retomada da própria trajetória, possibilitado por essa escrita, também se configura como exercício de revisão e avaliação dos anos dedicados ao estudo, o que é formativo para o pesquisador.

A leitura dos textos escolhidos mostrou que a atividade de pesquisa exige dedicação, coragem e forças (por alguns reconhecidas como graça, proteção ou bênção) que, por vezes, levam a ausências prolongadas da vida social e da convivência familiar. É uma atividade que, quando desempenhada por educadores, precisa ser conciliada com outras frentes de trabalho e com as tarefas do cotidiano, sobretudo quando são mulheres a realizar seus estudos. Essas demandas acumuladas, somadas às precárias condições oferecidas, na atualidade, aos professores orientadores e também aos orientandos, torna o percurso da pesquisa eventualmente doloroso, árduo e motivo de sofrimento.

Os agradecimentos nos lembram, por outro lado, que ocupar a posição de pesquisador numa universidade é gesto político e de rompimento de barreiras sociais, uma conquista possibilitada pela luta e pelo trabalho de muitas gerações. A vivência acadêmica se revela como formativa e transformadora, pois os encontros com professores (que se tornam memoráveis), a aproximação com teorias e leituras, a circulação em eventos nacionais e internacionais, o diálogo com pessoas que também estão realizando pesquisa e todas as outras atividades científicas, ocasionalmente tomadas como rotineiras, são imprescindíveis para que os pesquisadores se insiram na comunidade acadêmica e se vejam como produtores de conhecimento.

Apontam ainda que a realização dos seus estudos é possibilitada por redes de apoio e de diálogo, bem como por parcerias estabelecidas dentro e fora das universidades. O reconhecimento de tais aspectos condicionantes, da interdependência existente entre a própria comunidade acadêmica e das dificuldades enfrentadas no decorrer da pesquisa não minimizam, entretanto, a construção da autonomia do pesquisador. Ao contrário, a rememoração do processo e a escrita dos agradecimentos torna evidente que o estudo e a tessitura do texto acadêmico são transformadores e emancipam o autor. Assim como apontam Martino e Marques (2019, p. 172), “[...] a construção da autonomia intelectual é intersubjetiva, dependente do modo como apreendemos, consideramos e reconhecemos aqueles que, por estarem a nós ligados - pela linguagem ou por outra forma de institucionalidade - nos auxiliam [...]”.

Finalizamos destacando a contribuição da escrita dos agradecimentos para a valorização da Educação como campo de pesquisa e da atividade do pesquisador. Vivemos tempos difíceis, nos quais, como aponta Canário (2007, p. 15), professores e pesquisadores “[...] têm se visto ameaçados por um processo de proletarização que só pode ser contrariado pela afirmação da sua autonomia na produção de saberes profissionais encarados como legítimos.”. Ao estruturar e fazer circular a escrita desse processo, damos visibilidade à resistência e insistência dos pesquisadores, que se deparam com condições desfavoráveis e, mesmo assim, mantém o compromisso social com a produção de conhecimento na área. Humanizamo-nos, reconhecemo-nos nas dificuldades do outro, deixamo-nos de nos ver sozinhos na pesquisa. Com isso, compreendemo-nos como um coletivo que pode agir de forma transgressora e emancipatória.

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1 Usaremos a flexão de gênero para o masculino exclusivamente por ainda ser o modo convencionado na norma culta em língua portuguesa, lembrando, porém, que nos referimos a todas as pesquisadoras e todos os pesquisadores.

2 Para preservar a identidade dos autores, identificamos cada texto analisado com um código: T (Teses) e D (dissertações)/as siglas de cada macrorregião/identificação numérica sequencial. Assim, D_S_39 corresponde à 39ª dissertação analisada da região Sul.

Financiamento: O estudo não recebeu financiamento.

Recebido: 22 de Abril de 2021; Aceito: 27 de Abril de 2022

Luciana Haddad Ferreira é doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professora da Universidade São Francisco (USF). E-mail: haddad.nana@gmail.com

Thiago Borges de Aguiar é doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Pesquisador da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). E-mail: tbaguiar@outlook.com.br

Renata Augusta Ré Bollis é doutora em Educação pela Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP). In memoriam. E-mail: renata.bollis@hotmail.com

Conflito de interesses: Os autores declaram que não possuem nenhum interesse comercial ou associativo que represente conflito de interesses em relação ao manuscrito.

Contribuições dos autores: Conceituação, Metodologia, Escrita - Revisão e Edição: Ferreira, L. H.; Aguiar, T. B. Curadoria de Dados, Escrita - Primeira Redação: Ferreira, L. H.; Bollis, R. A. R. Análise Formal: Ferreira, L. H.; Aguiar, T. B.; Bollis, R. A. R.

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