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Revista Brasileira de Educação

versión impresa ISSN 1413-2478versión On-line ISSN 1809-449X

Rev. Bras. Educ. vol.28  Rio de Janeiro  2023  Epub 20-Ene-2023

https://doi.org/10.1590/s1413-24782023280003 

Artigos

A relação educativa na creche como forma de parentalidade positiva: contributos de uma etnografia em creches de Portugal

LA RELACIÓN EDUCATIVA EN LA GUARDERÍA COMO FORMA DE PARENTALIDAD POSITIVA: APORTES DE UNA ETNOGRAFÍA POR GUARDERÍAS DE PORTUGAL

IUniversidade do Porto, Porto, Portugal.


RESUMO

O artigo baseia-se numa observação etnográfica exploratória em quatro creches acolhendo crianças dos 3 meses aos 3 anos na cidade do Porto, em Portugal. O roteiro da observação etnográfica e da escrita foram os princípios da parentalidade positiva. Sendo psiquiatras, preocupados com a transmissão intergeracional dos transtornos que afetam a saúde mental a partir da infância, focamo-nos nas interações dos adultos com as crianças - educadoras de infância e auxiliares de educação. O objetivo foi alargar o âmbito da parentalidade positiva e evidenciar a importância dos seus princípios na relação entre profissionais de educação e crianças pequenas na creche. Salientam-se, como principais resultados, que os princípios da parentalidade positiva - conhecer, proteger e dialogar com a criança - estão, de uma maneira geral, presentes nas creches, ainda que não explicitados, e apresentam variâncias segundo o ambiente educativo de cada instituição, o qual é permeável ao meio social de origem das crianças.

PALAVRAS-CHAVE parentalidade positiva; creches; prevenção primária; transtornos intergeracionais

RESUMEN

El artículo se basa en una observación etnográfica exploratoria en cuatro guarderías para niños de 3 meses a 3 años en Oporto, Portugal. El guion de observación fueron los principios de la parentalidad positiva. Como psiquiatras, preocupados por la transmisión intergeneracional de los trastornos que afectan la salud mental desde la infancia, nos enfocamos en las interacciones de los profesionales de la educación infantil y asistentes de educación con los niños. El objetivo era ampliar el alcance de la parentalidad positiva y resaltar la importancia de sus principios en la relación entre los profesionales de la educación y los niños en las guarderías. Los principales resultados ponen de manifiesto que los principios de parentalidad positiva - conocer, proteger y dialogar con el niño - están, en general, presentes en las guarderías, aunque no se declaren explícitamente, y varían según el entorno educativo de cada guardería, que es permeable al entorno social de origen de los niños.

PALABRAS CLAVE parentalidad positiva; guarderías; prevención primaria; trastornos intergeneracionales

ABSTRACT

The article is based on an exploratory ethnographic observation in four daycare centers serving children from 3 months to 3 years old in Porto, Portugal. The roadmap for ethnographic observation were the principles of positive parenting. As psychiatrists, concerned with the intergenerational transmission of disorders that affect mental health from childhood onwards, we focus on the interactions of kindergarten teachers and education assistants with children. The aim was to broaden the scope of positive parenting and highlight the importance of its principles in the relationship between education professionals and young children in daycare. The main results highlight that the principles of positive parenting - knowing, protecting and dialoguing with the child - are, in general, present in the daycare centers, although not explicitly stated, and vary according to the educational environment of each daycare center, which is permeable to the children’s social background.

KEYWORDS positive parenting; daycare centers; primary prevention; intergenerational disorders

INTRODUÇÃO1

Desde 1974, a minha atuação profissional como psiquiatra decorreu em consultórios, clínicas, hospitais psiquiátricos, congressos e seminários, tendo ainda escrito dois livros. No exercício da clínica, cuidei de pessoas que apresentavam transtornos que afetavam as suas vidas - como depressão, delinquência, esquizofrenia, sociopatia, uso de drogas e dificuldades nas relações familiares e sociais -, além de contribuírem para doenças biológicas em fases posteriores da vida (Menahem, 1992).

Para mim, como psiquiatra, esses transtornos foram aprendidos e apreendidos através das figuras parentais e do meio envolvente desde a mais tenra idade (Schiff e Day, 1970), configurando, assim, transtornos intergeracionais. Como refere Winterhoff (2011, p. 60), “[...] a psique infantil é, antes de mais e acima de tudo, formada pela percepção que a criança tem da contraparte adulta enquanto limite da sua própria individualidade.”.

Esses transtornos possibilitaram-me olhar com maior ênfase para a educação e para o período da infância, etapa longa e dependente das relações interpessoais, dos meios sociais, da cultura e das instituições. Ao deslocar o pensamento para a educação,2 tornou-se evidente ser a creche o foco do meu interesse. Passei a olhar atentamente para esses espaços de grande potencial para o desenvolvimento desde a mais tenra idade, pois é nesse contexto que a criança é cuidada nas suas necessidades básicas, físicas e relacionais pelos adultos educadores e no qual estabelece, com grande precocidade, as relações sociais. Essa etapa de vida, dos zero aos três anos, constitui-se como a base biopsicológica para promover uma estruturação saudável da personalidade e, por isso, o locus da pesquisa deslocou-se para a creche, recorrendo-se aos princípios da parentalidade positiva (PP) como código de leitura das suas práticas. Os princípios da PP que se inspiram nos direitos da criança e na conceção da criança como ator social, formulados para promover uma relação parental baseada no bom trato, veem, neste estudo, alargado o seu âmbito aos profissionais de educação. Assim, esta pesquisa tem como objetivo evidenciar a sua pertinência para interpretar e ampliar a relação educativa dos profissionais de educação com as crianças pequenas na creche.

Nesse deslocamento da intervenção clínica para a interrogação educativa e no alargamento dos princípios da PP no âmbito de ação dos profissionais de educação, atribuí um lugar central aos adultos que se relacionam profissionalmente com as crianças: educadoras e auxiliares que, para além dos próprios pais, constituem figuras parentais.3 Esse estatuto parental resulta da existência quotidiana das crianças nas suas vidas, num vaivém casa-creche-casa. Por essa razão, as educadoras e as auxiliares são também educadoras estratégicas de pais e mães, podendo realizar, todos os dias, uma educação parental informal.

A PARENTALIDADE POSITIVA

O referencial teórico da parentalidade surge nos Estados Unidos, com Benedect, a partir da abordagem psicológica, psicanalítica e das psicopatologias mais graves da relação parental (França, 2013), tendo se tornado posteriormente um conceito transdisciplinar (Martin, 2012). As abordagens antropológica, sociológica e jurídica assumem a parentalidade e a função parental no quadro de múltiplas relações de parentesco para além das biológicas. Tomando como exemplo outros povos e sistemas de parentesco estudados pela antropologia, a sociologia e o direito interrogam a parentalidade na sociedade ocidental contemporânea, no quadro das dinâmicas da conjugalidade e das descoincidências introduzidas entre a filiação biológica e a afetiva.

A parentalidade assume ainda um importante lugar nas políticas de família e de proteção à infância desde a Convenção dos Direitos da Criança (CDC) em 1989 (UNICEF, 2019), emergindo três novos conceitos interligados e ancorados à CDC e ao princípio do superior interesse da criança: PP, responsabilidade parental e criança ator social (Daly, 2006). Sendo um conceito contemporâneo na Europa, a PP está consagrada no relatório da conferência dos ministros europeus responsáveis pelos assuntos da família organizado por Daly (2006) e que se intitula “La Parentalité Positive dans l’Europe contemporaine. Evolution de la parentalite: Enfants aujourd’hui, parents demain. Veja, sobre esse assunto, a publicação do relatório europeu coordenado por Pecnik (2006) sobre a intervenção parental levada a cabo na Europa.

Identifico, na PP, conjunto de orientações destinadas a permear as relações entre quaisquer adultos e as crianças, as quais direcionam as relações para o plano da saúde, adequação e coerência, evitando os transtornos psicológicos e emocionais.

Segundo Pothet (2015, p. 97),

A súbita preeminência deste tema [da PP] e sua origem institucional nos levam a questionar o lugar ocupado pela criança, sua proteção e seu interesse na definição do referencial da política de apoio à parentalidade. No entanto, deve-se notar que o conceito de interesse da criança não se sobrepõe àquele, de proteger a criança, que é muito mais restritivo. Enquanto o último nos lembra dos argumentos sobre o conceito de risco […], o primeiro concebe uma criança ‘portadora de direitos’.

O reconhecimento institucional de uma “criança sujeito de direitos” remonta a 1992, quando o Parlamento Europeu proclamou uma Carta dos Direitos da Criança. Em 1996, a Europa adota uma convenção sobre “o direito das crianças” e continua a se posicionar no campo por meio de estratégias, programas e recomendações como a já referida emitida pelo Conselho de Ministros em 2006 sobre a promoção e divulgação do conceito de PP.

Em suma, e de acordo com o documento da organização Save the Children na sua versão espanhola (“quieroquetequiero”), a PP e o bom trato norteiam-se em três pilares fundamentais - conhecer, proteger e dialogar - e integra 10 princípios que serão o roteiro da devolução da realidade observada nas creches:

  1. Os/As meninos/as têm direito ao cuidado e orientação apropriados;

  2. A PP baseia-se em: conhecer, proteger e dialogar;

  3. O vínculo afetivo deve ser determinante;

  4. O afeto deve demonstrar-se abertamente para que os/as meninos/as se sintam queridos/as;

  5. As normas e os limites são importantes: lhes dão segurança;

  6. Os/As meninos/as devem participar do processo de tomadas de decisões e sentir-se responsáveis;

  7. Os adultos podem sancionar quando as crianças se portam mal, porém não de qualquer forma;

  8. O abuso, o insulto, a ameaça e os gritos não são eficazes nem adequados aos/às meninos/as;

  9. Os conflitos podem ser resolvidos sem violência;

  10. Para que os/as meninos/as estejam bem, os pais têm que estar bem também (Fundación Save the Children, s.d.).

Entendo que, se as relações entre os adultos significativos na vida das crianças (pais, professores) e entre estes e as crianças forem norteadas pelos princípios da PP e dos direitos das crianças, serão evitadas as atitudes que fazem adoecer, compondo dispositivos de prevenção primária que, no caso da saúde, “[...] a prevenção primária significa diminuir a incidência de perturbações emocionais, reduzir o stress e promover condições que aumentem a competência e as capacidades de reação.” (Albee, Joffe e Dusenbury,1988, p. 25).

AS CRECHES EM PORTUGAL: BREVE APRESENTAÇÃO

Em Portugal, as creches são regulamentadas pelo Ministério da Solidariedade e da Segurança Social através da Portaria nº 262/2011 (Ministério da Solidariedade e da Segurança Social, 2011), podendo ser instituições com ou sem fins lucrativos. No artigo 4º, destaca-se a família e a criança na formulação dos seus objetivos. Tratando-se de crianças muito pequenas e dependentes dos adultos e de suas famílias, impõe-se a função de guarda, permitindo, nomeadamente, a conciliação da vida familiar e profissional, assim como a função promotora do desenvolvimento da criança e dos cuidados e das necessidades que lhe são inerentes nessa fase da vida (art. 5º).

Essa dupla orientação da creche permite pensá-la como uma instituição educativa entre ambivalências, segundo Cardona (1997), entre a educação familiar e a escola; entre uma conceção assistencialista e uma educativa; entre o “pré-escolar”, sendo dada uma particular atenção ao desenvolvimento cognitivo e uma conceção mais centrada nas características específicas da criança, valorizando o desenvolvimento socioafetivo; entre uma conceção baseada nas características psicológicas da criança e outra focada nas sociológicas.

A essas ambivalências acresce outra que configura a creche como uma resposta a uma necessidade dos pais, sobretudo dos casais bi-ativos. Não integrando o sistema de educação em Portugal, focado no ensino formal, o apoio aos pais para o cumprimento das suas responsabilidades, direitos e deveres está presente no próprio conceito de creche, no artigo 3º da referida Portaria. Respondendo a uma necessidade primordial da criança e dos adultos - a de proteção e guarda durante o horário laboral daqueles -, reveste-se como um direito da própria criança. Nesse sentido, consta do artigo 5º da CDC e do artigo 18º (pontos 2 e 3) o direito das crianças aos seus naturais cuidadores e a estes o direito às condições para manter os deveres e as responsabilidades em relação à criança quando não se podem ocupar dela.

METODOLOGIA

Como refere Tillard (2011, p. 36), “[...] a aproximação às pessoas que se deseja conhecer no seu meio de vida está no centro da recolha de dados em etnografia.”. Para esse fim, a aproximação carece de transformar-se numa presença, condição subjacente à pesquisa etnográfica. A duração da presença subjaz ao trabalho paciente de recolha e de registo de dados, à apreensão das ações observadas no seu contexto cultural e social próprio e segundo o ponto de vista dos seus atores. Tal é particularmente importante em contextos densos de atores, ações e significados como são os contextos educativos, em que as dimensões formais e informais da educação se tecem para dar textura ao ambiente observável.

Preparando uma presença ulterior em creches, prolongada num tempo e espaço, consentânea com o método etnográfico, entreguei-me, numa fase exploratória, a uma observação e registo em quatro “terrenos”. Mais do que uma “deambulação pelo terreno” (Silva, 2003, p. 100), habitual na etnografia, tratou-se de uma deambulação entre terrenos similares, as creches, que, na sua totalidade, constituem o espaço da investigação. Deambulando entre creches, inseri-me em contextos educativos que me eram totalmente desconhecidos como pessoa e como psiquiatra. Através da presença em cada creche, espaço físico e social circunscrito (Marques et al., 2016), e num tempo consentâneo com a fase da investigação em curso,4 realizei observação direta das suas rotinas, das interações entre adultos, entre adultos e crianças e entre as crianças, procurando captar a realidade educativa daqueles contextos, aos quais eu era um estranho e que abandonaria depois.

Não sendo “A prática de pesquisa etnográfica [...] a priori despida de qualquer fundamentação teórica e/ou metodológica. [...] a relação entre a teoria e a etnografia é caracterizada como uma relação imbricada na qual não é possível uma distinção.” (Mattos, 2011, p. 37). Com efeito, a coleta de informações permitida pela observação direta tinha presente a lente teórica que me acompanhava e que justificava a minha presença, os princípios educativos da PP e a sua pertinência em contextos educativos.

Ainda que, na abordagem etnográfica, “[...] o pressuposto maior [seja] que o lugar do participante é como agente da pesquisa.” (Mattos, 2011, p. 32), no processo de análise falo de mim e dos outros através de mim: das crianças pequenas, das educadoras, das auxiliares, do contexto físico da creche, das rotinas, um pouco dos pais. Procuro captar a experiência das crianças e, se falo por elas, é através das suas manifestações físicas, emocionais, das interações que são estabelecidas com elas. Acresce que a minha presença nas creches nunca passou despercebida e, se não me tornei nativo, também não fui sentido como um intruso. Sendo um ambiente educativo marcadamente polarizado entre adultos femininos (as educadoras e auxiliares) e as crianças pequenas, apresentava-me como um ser masculino e adentrado na idade.

Na investigação exploratória, tive acesso a quatro creches privadas na cidade do Porto, em Portugal, que serão designadas por CrA, CrB, CrC e CrD. A CrA localiza-se em meio urbano e é frequentada por crianças oriundas da classe média, cujos familiares desempenham profissões liberais, são professores e ocupam quadros superiores do funcionalismo público, e o seu funcionamento é custeado integralmente pelos pais das crianças. As CrB, CrC e CrD localizam-se em bairros sociais municipais localizados na periferia da cidade e são pertença de centros sociais locais. Estes estabelecem com o Estado, através do Ministério da Segurança Social, acordos de colaboração para o seu funcionamento, permitindo às famílias, muitas delas desempregadas ou exercendo ocupações precárias e mal remuneradas, apoio do Estado para a frequência na creche pelas crianças. Essas creches são frequentadas pelas crianças residentes no bairro e por não residentes cujos pais trabalham nas imediações. A desigual proporção dessas duas populações, variável em cada uma das CrB, CrC e CrD, contribui para uma maior ou menor homogeneidade cultural interna e para diferenças no modo de funcionamento no que diz respeito à relação dos profissionais educativos com os pais. Essa importante questão educativa será retomada, entre outras, nas considerações finais enquanto problemática emergente, pois “[...] cada estudo etnográfico dá lugar a resultados a partir dos quais emergem novas questões [...]” (Tillard, 2011, p. 17).

A entrada e permanência nas creches decorreu segundo uma regularidade: após o termo de aceitação, no primeiro dia, realizava-se o acolhimento pela direção, que mostrava a instituição e esclarecia a sua história e vinculação institucional. Seguia-se o percurso pelos espaços e a apresentação às educadoras e às auxiliares, quem sou e ao que vou.

Nos dias seguintes, estou em cada creche antes da sua abertura e no fim do dia para observar a chegada e partida das crianças, o modo de acolhimento e despedida, momentos em que se estabelece a relação direta com as figuras parentais.

Entrando na creche, sigo para as salas onde se encontram as crianças, de preferência as menores, e vou seguindo o dia a dia: em uma sala por dia, apreendendo as suas rotinas, observando a relação entre os adultos e as crianças e a interação entre elas. Nas notas de campo destaco rotinas, relações, episódios e regularidades, com um olhar ancorado nos aspetos reconhecidamente da psicologia do desenvolvimento humano e nos princípios da PP.

Tratou-se, para mim, à semelhança das crianças pequenas, de explorar e descobrir a realidade do mundo. Utilizei os princípios da PP já explicitados para organizar as observações, analisar os dados e tecer interpretações. A cada um dos princípios foram associadas questões a observar, isto é, que permitissem descortinar na realidade das interações a sua (in)existência em cada uma das creches e que, por economia de texto, não apresentamos. Na devolução que se segue, alguns desses princípios foram agrupados por terem similaridade entre si e por partilharem as notas de campo, compondo as categorias de análise.

O DIREITO AO CUIDADO E ACOMPANHAMENTO ADEQUADO - PRINCÍPIO 1

O princípio abordado nesta categoria baseia-se no artigo 6º da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança e tem como conceito central o de cuidado, que, por sua vez, integra o de necessidades próprias da criança. Esses conceitos são definidores da concepção contemporânea de criança como ser em desenvolvimento, com necessidades próprias e cuja satisfação constitui um direito. A lei estabelece que essas necessidades, que são respondidas através dos cuidados realizados pelos adultos, são físico-biológicas, cognitivas e socioemocionais e que os cuidados inadequados ou omissos das crianças dão lugar às diferentes formas de risco e perigo (DGS, 2004).

As rotinas das creches são semelhantes entre si, organizam-se em resposta às necessidades das crianças que acolhem diariamente - como alimentação, repouso e higiene, além das cognitivas e socioemocionais, como as brincadeiras, as cantorias e os jogos que contribuem para o seu desenvolvimento e promovem a sua socialização com o grupo de pares.

As crianças são trazidas pela manhã, geralmente antes de os pais irem trabalhar, a partir das 7 horas, e são levadas para casa a partir das 17 horas. Esse vaivém cotidiano marca os momentos do começo e do fim das atividades das creches. Por vezes, a creche serve a população da zona residencial em que está instalada (CrD); outras vezes, é procurada também por pais pela proximidade do local de trabalho (CrB e CrC) ou a opção é feita exclusivamente pelo seu recrutamento social restrito (CrA). As salas são organizadas segundo a idade das crianças com uma educadora e duas auxiliares para um grupo de oito crianças. Os espaços interiores são ornamentados e coloridos com figuras de animais, plantas, sol, lua, nuvens e temas ligados à natureza. Ocasionalmente, a autoria dos desenhos expostos é das próprias crianças e, na CrA, até dos pais, que são convidados à participação. As salas são amplas e apresentam o mobiliário necessário ao desenvolvimento das principais atividades: berços e colchões para dormir, almofadas para se sentar, mesas e cadeiras da altura das crianças para os trabalhos de brincar e para as refeições.

Esses espaços são limpos, organizados e climatizados. As creches visitadas são edifícios de um só piso, demarcadas do ambiente externo por uma vedação, e dispõem também de um espaço ao ar livre. As crianças têm à sua disposição brinquedos diversificados, livros e acesso a eles sem intervenções das educadoras ou auxiliares, que os deixam livres para escolherem seus brinquedos, embora existam também sugestões de atividade, dependendo da idade das crianças.

Chegar, entregar e dar entrada: entre beijos, abraços, acenos… dar as mãos

Algumas crianças abraçam seus acompanhantes, outras beijam, outras simplesmente dão acenos e se entregam à auxiliar. Estas também dão as boas-vindas, às vezes abraçam, as mais pequenas são acolhidas no colo e adentram para as salas, as maiores simplesmente são pegas pelas mãos, algumas trocam abraços, as maiores simplesmente entram correndo para suas salas. (CrC)

Na atitude dos pais de entregarem os filhos às educadoras, e ainda na troca de abraços e beijos, fica o registro, na mente das crianças, de que os pais não as estão a abandonar, de que existe um elo com as educadoras, por serem de sua plena confiança, além de reforçar os vínculos com outras pessoas, fator estruturante para uma personalidade saudável. Esse é um momento muito importante e a norma, como decorre, diz muito sobre a cultura pedagógica de cada creche.

A brincadeira […] depende de se estar a salvo e em segurança5

A educadora mostra trabalhos para serem pintados com canetas e orienta sobre o que fazer e como fazer. Uma menina e a auxiliar brincam com as outras crianças. Três meninos brincam sós. Duas meninas brincam com montagens. Todos estão calmos, brincam e pintam. (CrD, 1 a 2 anos)

As crianças são estimuladas constantemente através de histórias, cantigas e músicas com temática infantis. Na CrB, havia espelhos nas paredes na altura das crianças. Na CrA e na CrD, são realizadas atividades de reconhecimento de animais (assisti a uma peça teatral na CrA e a uma atividade com álbum de fotos de animais). Na CrD, atividades de reconhecimento das partes do corpo humano são realizadas, as crianças são também estimuladas a interagirem entre si e a se reconhecerem por meio de fotografias.

Quem sou eu… quem é ele ou ela… estes e estas somos nós

A educadora distribui a foto de todos para eles identificarem cada um. Peguei a foto de um menino que faltou, mostrei e eles disseram: “Não veio à escola hoje”. Cada criança pegava uma foto e mostrava aos outros, eles iam dizendo o nome do ou da colega. O nível de acerto foi alto. (CrD, 1 a 2 anos)

Percebi que, nessa experiência, estava sendo ensinada e estimulada a relação social e o conhecimento entre eles. As fotos dos presentes foram afixadas num quadro. Atribuí a essa atividade uma significação importante, pela qual estaria acontecendo uma fixação da imagem de cada um na mente de todos.

A alimentação como cuidado

Uma criança de seis meses chora, é colocada no colo da auxiliar e esta lhe dá a sopa cantando suavemente uma canção de criança. As outras duas auxiliares acabam de alimentar outras duas crianças. Limpam, trocam as fraldas e colocam no berço. Retornam e pegam mais duas crianças que brincam, colocam as duas na cadeirinha de alimentação e passam a dar a sopa a elas, sempre brincando e cantando músicas de crianças. (CrB, 6 meses a 1 ano)

A alimentação servida às crianças é saudável, com frutas, sopas e sumos, sem adição de sal ou açúcar. Esses momentos são coordenados pelas educadoras e auxiliares, que alimentam aqueles que ainda não comem sozinhos. Incentivam o desenvolvimento motor de acordo com a idade das crianças, estimulando a autonomia na alimentação, na higiene e na marcha. Quando necessário, elas realizam a higienização das crianças bebés de maneira imediata.

Observo, nessa relação, uma associação dos cuidados parentais mesclados com atitudes profissionais, num contexto estruturado, para dar à criança a segurança de “ser cuidada” por outros que a acolhem. Oferecem-lhes o que é mais importante para o seu desenvolvimento psicoemocional e o preenchimento de suas necessidades básicas de cuidados, alimentação, proteção e amor.

Dormir... um necessário repouso

Passado todo o ritual da alimentação, ocorre o retorno para a sala dos brinquedos e é dado início a um ritual de mudança de fraldas, limpeza e arrumação para dormirem. O berçário já está em perfeita ordem, luz em penumbra, cortinas fechadas, berços forrados, som de ninar. Enquanto um está sendo trocado, os outros continuam a brincar normalmente. Assim, segue esse ritual [...], algumas choram como se não quisessem dormir, talvez por preferirem ficar brincando e não ter que ser trocadas. (CrA, 6 meses a 1 ano)

É perceptível o nível de cansaço das crianças e também das educadoras após o almoço, quando chega a hora de dormir. Desde a chegada, as actividades se sucedem dinamicamente uma após outra, o corpo está em ação: correm, pulam, abraçam, empurram, sentam, levantam-se, vão e voltam para o colo das educadoras, se deitam, rolam, levantam, cantam, riem, choram e, assim, estão em ação as funções psicológicas, físicas e emocionais num contínuo de estímulos e de relações humanas entre os adultos e as crianças e umas com as outras.

As educadoras acariciam as crianças, olham com carinho, tocam suavemente em seu rosto, nos braços, nas pernas e nos pés, as acalentam até que todas estejam a dormir. Depois vão almoçar, ficando a auxiliar até que a educadora retorne. Reflito sobre tudo o que presenciei e concluo que poderá estar nesses cuidados a verdadeira base para a estruturação de personalidades saudáveis e seres humanos felizes.

Para que servem as histórias? Esta serve para perder o medo dos monstros

A educadora abre um livro de figuras de monstros e começa a contar uma história à medida que vai passando as páginas. O objetivo é a desmistificação de monstros, isso porque uma criança anteriormente lhe informou que tinha medo de dormir porque via monstros. Ela gradativamente vai interagindo com as crianças e com a história. Nesta, os animais são ursos, dinossauros, que vão se formando nas sombras do quarto com os objetos que lá existem. Na história, o monstro que estava embaixo da cama era uma meia, noutra era o irmão, mas o irmão que vinha ver ele dormindo e lhe trouxe um bonequinho para fazer companhia, e a educadora pergunta: “Quem tem um bonequinho para dormir?”, “Eu... eu...”. Todos tinham. Ele conseguiu dormir e o irmão veio ver se este estava a roncar. Pergunta: “Quem tem papai que ronca?”, “Eu, eu...”, todos repetem. Finalizou a história e perguntou: “Quem gostou da história?”, “Eu, eu...”. (CrA, 1 a 2 anos)

Esse evento criado pela educadora muito me sensibilizou e passei a acreditar que as educadoras também atuam terapeuticamente com as crianças. Vi, nessa intervenção, uma abordagem de alto poder de desmistificação de imagens mentais que as crianças fazem e que, se não forem trabalhadas dessa forma, poderiam se transformar em poderosos sintomas neuróticos, gerando os transtornos emocionais que dificultam o bem-estar.

Tais explicações são denominadas pela psicologia como cristalização do processo, contribuem para a fixação dos aspectos positivos da intervenção e correspondem à cura do processo. Surpreendo-me e fico convencido de que a creche, com sua estrutura adequada e coerente às necessidades das crianças, associada a educadoras com uma formação em conteúdos específicos e uma grande dose de consciência e afetividade, verdadeiramente contribuirão para a construção de seres humanos saudáveis.

CONHECIMENTO, PROTEÇÃO E DIÁLOGO - PRINCÍPIO 2

Como dito anteriormente, as crianças são hoje conceituadas como seres humanos em desenvolvimento, pessoas individualizadas, com uma psicologia própria e a quem são reconhecidos direitos (Rollet, 2013). Essa nova concepção, fortemente esclarecida pelo saber psicológico e clínico ao longo do século XX, deve guiar a relação que os adultos estabelecem com a criança, pois não só ela é um ser específico, como um adulto em potência (Dencik, 1988), sendo a infância a etapa da vida em que se estrutura a sua psique e forja o seu futuro. Esse é o paradigma que se foca na transmissão intergeracional dos transtornos que afetam a saúde mental a partir da infância.

Alô, alô, pá, pá, pá…

Uma menina, com um brinquedo nas mãos, começa a expressar um som... “Pá, pá...”. A auxiliar pega um telefone e fala “Alô, alô, pá, pá” e passa o telefone para ela dizendo “Maria, fale com pá, pá...”; ela coloca o telefone no ouvido e repete, por umas duas vezes, “Pá... pá...”, depois joga o telefone no chão e continua a brincar a sua vontade. (CrA, 6 meses a 1ano)

Desde pequenos, aprendemos o mundo que nos cerca através do olhar, do ouvido, por meio das relações. A aprendizagem da fala é uma das conquistas mais extraordinárias das crianças pequenas. É, assim, comum que as educadoras e as auxiliares estimulem a fala das crianças cuja fase de desenvolvimento inclui o da linguagem.

As crianças aprendem também ouvindo o que as outras pessoas dizem sobre o modo como o mundo funciona. É a “aprendizagem por depoimento” (Gopnik , 2016, p. 131). Esse conhecimento levado a sério e praticado pelos adultos passa a ser um fator de muita importância para os pais, os educadores, os familiares e todas as pessoas que validam a saúde e o desenvolvimento saudável das crianças. Segundo Gopnik (2016, p. 104-105) “[...] este tipo de imitação é muito interessante da perspectiva da evolução cultural. Como vemos, quando as crianças imitam os seus prestadores de cuidados mostram quão profundamente compreendem a finalidade e significado dos seus atos.”.

Comunicação de igual para igual

A auxiliar lhe mostra o sapato e a meia, a criança estica o pé. Uma educadora troca e arruma a criança e a outra a alimenta. Elas falam tudo com as crianças, como se estivessem falando com adultos, sobre seus cuidados, dão comandos para a alimentação, agem com amor, o ambiente é aconchegante, os cuidados são muitos. As educadoras, as auxiliares, as copeiras, as pessoas da limpeza, todos da creche se envolvem ativamente com as crianças. (CrD, 6 meses a 1 ano)

O clima colaborativo das adultas para com as crianças permite que elas experimentem a segurança e a confiança, que poderá contribuir para a formação de seres humanos responsáveis, seguros e amistosos. O recurso da linguagem, descrevendo e dando sentido às ações, também constitui um fator de desenvolvimento psíquico apreciável.

As educadoras chamam as crianças pelos nomes reais e estimulam a chamarem cada uma das educadoras pelo seu próprio nome. O diálogo é constante, sendo comum uma comunicação de igual para igual, ou seja, as educadoras falam com as crianças como se falassem com adultos, não as infantilizam. Essa postura foi evidenciada em todas as creches.

Brincar… nem sempre só, nem sempre acompanhado

Em algum momento, uma criança sai de perto da educadora e vai brincar sozinha, logo outra e outra também vêm. Agora já são sete crianças que brincam juntas no grupo com as duas auxiliares. Um menino está fora do grupo brincando com um carrinho, sozinho. (CrB, 6 meses a 1 ano)

Uma menina brinca sozinha com uma boneca; em outros momentos, estava com mais duas em harmonia. No grupo em que as crianças livremente brincam no chão, percebe-se que elas têm autonomia para brincarem a sós, em duplas ou trios e, no fim do tempo dos trabalhos de brincar, eles arrumam todos os brinquedos nos seus devidos lugares e retornam também às mesas e cadeiras. (CrA, 1 a 2 anos)

As educadoras fazem o esforço de integrar as crianças que se isolam das demais. Aquelas que, mesmo assim, optam por brincar sozinhas são respeitadas em suas escolhas. Acreditamos que estejam sendo estimuladas as áreas de seu cérebro que denotam o início de desenvolvimento da autonomia. Percebo que os direitos da criança de brincar sozinha e seus reais interesses estão sendo respeitados. Essa é mais uma oportunidade de experimentarem a sua autonomia ocupando-se do que lhes interessa, do que lhes é mais importante.

Nem sempre a necessidade de colo é percebida

Depois de um tempo, a criança ensaia abraçar a auxiliar, ela o afasta, daí brinca de bater palmas, ele mostra-se triste e insiste em querer ir para o colo; por pouco tempo, ela permite, ele fica contente e logo ela se levanta, a criança vai para o grupo com as outras crianças… (CrA, 6 meses a 1 ano)

Nessa atitude da auxiliar, certamente, existe o desconhecimento da importância para a criança de ser atendida na sua busca por contato humano com uma expressão de atenção e amor, fatores que estimulam suas capacidades afetivas e cognitivas. Essa necessidade configura-se como uma das mais significativas. Como psiquiatra, sei que a falta de segurança é a base para o sofrimento humano e para o desenvolvimento de quadros psiquiátricos associados a importantes sofrimentos (Araújo, 2014).

O segundo princípio da PP estabelece que os adultos devem relacionar-se com as crianças respeitando as premissas do conhecimento, da proteção e do diálogo. Os estados físicos e emocionais que fragilizam a criança, a doença, a dor, entre outras, tornam-na particularmente receptiva aos atos de afeto que dão segurança. No seu contrário, as crianças sentem-se inseguras e desprotegidas.

Como é que os adultos significam o choro da criança? Quando o choro é mal acolhido

Percebo, durante esse tempo em que estava sendo servida a sopa, um menino de origem africana chorando desde o início da alimentação; estava no berço, em pé e segurando na parede do berço, o choro era por demais alto e estridente, expressando raiva e desespero. As educadoras iam trazendo as outras crianças e ele ficando por último. Esse menino ficou no berço até que todos tinham terminado e já estavam sendo higienizados pela auxiliar de educação. [...] No fim, a auxiliar o pegou e cuidou dele, levou para a pia, lavou suas mãos, trouxe para a mesinha, colocou na cadeira e deu o alimento, ele parou de chorar, a educadora fez todo esse movimento com ele cantando e depois colocou no berço para dormir. (CrC, 6 meses a 1 ano)

Ao refletir a respeito da cena descrita, pergunto-me se, possivelmente, estava havendo uma repetição do padrão de casa na relação com a mãe ou outras pessoas de seu convívio. Estaria ainda num processo de adaptação à creche? Mas, então, por que não era atendido prontamente? Essas atitudes repetidas, nessa etapa do desenvolvimento, geram sentimentos de tristeza, medo e raiva e serão lembradas na vida adulta toda vez que algum motivo lhe desperte a memória, e as atitudes serão sempre desagradáveis. Essa realidade denominamos como transtornos intergeracionais, por ter tido sua origem no tratamento com uma criança de tenra idade. Pergunto-me, na incerteza, se, por vezes, as educadoras e as auxiliares são incapazes de conhecer e entender as crianças, como se sentem, pensam e reagem aos fatos de acordo com a sua personalidade e o seu desenvolvimento.

Quando o choro é bem acolhido

Um menino que estava deitado mirando o teto começa a chorar com os bracinhos em direção à educadora, ela olha e dá um sorriso para ele, faz sinal para que ele se levante, ela pega nos dedinhos dele e diz “Vem...vem...”. Ele se encoraja e faz atitude de levantar, ela o ajuda, ele fica de pé, ela o acolhe no colo, os dois dão risadas e dão uma volta pela sala como que celebrando. (CrC, 6 meses a 1 ano)

Uma criança chora no berçário, a auxiliar de imediato se levanta e vai ao seu encontro... “O que foi meu lindooooo?... venha... eu estou aqui...”; retira-o do berço e coloca-o na cama para trocar a fralda, ele intensifica o choro, logo já está de fralda nova e para de chorar, ela o traz para o grupo. (CrA, 6 meses a 1 ano)

Uma intervenção com amor, companheirismo, cumplicidade e apoio é a base para a estruturação de uma personalidade saudável. De acordo com Araújo (2014), o atendimento em tempo real das necessidades de uma criança fá-la sentir-se amada e importante, com o que ela irá estruturar seu conceito de vida como - sou importante. Uma criança é um ser em pleno desenvolvimento de sua psique, a qual não se desenvolve no tempo espontaneamente. Para isso, recorre às atitudes coerentes e adequadas dos pais, professores, educadores e estes, aos padrões da cultura e do processo educacional. Para Winterhoff (2011, p. 12) “[...] a educação diária [...] só pode ter um efeito completo, colocando as crianças no caminho certo, se ao mesmo tempo houver a preocupação de que o seu estado de desenvolvimento psíquico esteja a um nível adequado à idade.”.

Quando as crianças perturbam e exigem uma intervenção educativa do adulto

Um menino com 11 meses, após receber o alimento, volta a brincar com os outros, vai sempre até a porta e retorna. A auxiliar me informa que ele é muito intenso, que era muito impulsivo, queria tudo para ele, muitas vezes, largava no chão um brinquedo e se dirigia a outra criança para tomar o brinquedo do outro. A auxiliar estava sempre a conversar com ele, informando que o brinquedo era do outro, que ele não tinha o direito de tomar... ela lhe orientava a devolver o brinquedo ao outro e, por fim, devolvia o brinquedo para a outra criança, e as duas passavam a brincar juntas. (CrB, 6 meses a 1 ano)

Observo, nessa atitude da auxiliar da CrB, uma forma intuitiva de atuação e me interrogo acerca do seu conhecimento específico para atuar com comportamentos e atitudes dessa ordem, bem como para reconhecer que cada um tem seu contexto, suas diferenças específicas na forma de ser, responder aos estímulos e relacionar-se com as questões da vida. Identificar um comportamento apropriado para a idade e a estrutura psicológica da criança possibilita as condições apropriadas para as intervenções dos adultos. Nesse caso, ela resolveu com orientação, informações e limites, com o que a criança compreendeu e mudou de atitude. Possam essas intervenções funcionar como um guia na mente dessa criança em qualquer momento que se perceber numa situação similar.

A formação, a atenção e a comunicação necessárias com as crianças e com os pais

Uma criança já com 11 meses apresenta uma dificuldade de locomoção e permanece no mesmo lugar por muito tempo, até que alguma auxiliar lhe troque de lugar. Enquanto as outras crianças comem, ela fica observando e, no fim, consegue comer. Segundo a auxiliar, ela tem dificuldade de se alimentar em casa e, na creche, por ver as outras crianças comerem, ela consegue também comer, mesmo que seja ouvindo a música “Mariana, Mariana” entoada por Laura. (CrB, 6 meses a 1 ano)

Curioso observar os diversos temperamentos e personalidades que emergem nas crianças durante suas atividades. Uns se comportam como dominadores, ditam as regras, e outros ficam submissos e simplesmente obedecem. Correm, empurram, puxam, tomam os brinquedos dos outros. Se agrupam, correm juntos, falam, choram, correm, acariciam uns aos outros. Uns batem nos outros por qualquer coisa que não lhes agrade. Alguns preferem ficar a sós. (CrC, 6 meses a 1 ano)

Perante a complexidade humana que se desenvolve na CrB, interroguei acerca da formação dos adultos que acolhem as crianças e que lhes permitem ter ferramentas para abordar diariamente situações diversas e contribuir para o desenvolvimento biopsicossocial da criança. Esses profissionais precisam desenvolver acuidade na observação da criança - se vem nutrida, lavada e descansada, estendendo o seu olhar à família, tentando diagnosticar quais os problemas de cada família. Por isso a relação com as famílias é tão importante.

Ficou evidente, em muitos momentos, como no relatado na CrC, que as crianças estão apresentando comportamentos que denunciam falta de proteção, orientação e limites. Estão sendo autênticas na expressão natural dos padrões educacionais do contexto social onde se insere esta creche e que indicia ser economicamente vulnerável. Interrogo-me que formação têm as educadoras e auxiliares para atuar adequadamente com as crianças que apresentam comportamentos dessa ordem e como interagem com os pais para estabelecer uma coerência educativa.

Desempenhando uma função educativa compensatória precoce, a creche constitui um meio educativo por excelência e uma oportunidade de formação parental informal na interação com as educadoras, seja esta prevista no plano pedagógico. Paradoxalmente, era nessa creche que a distância entre os pais e as educadoras era mais acentuada, talvez pela conflitualidade entre uns e outros poder acontecer mais facilmente.

O VÍNCULO AFETIVO É DETERMINANTE E O AFETO DEVE DEMONSTRAR-SE ABERTAMENTE - PRINCÍPIOS 3 E 4

Esses princípios estabelecem que a afeição deva ser exibida de forma expressiva para que as crianças sejam e se sintam amadas, pois a “[...] infância e intimidade andam juntas [...]” (Gopnik, 2016, p. 20). Nas categorias já abordadas, podem observar-se manifestações de afetividade no trato das crianças, sucedendo que elas são tratadas com carinho, paciência e amorosidade, sendo variáveis a intensidade e os momentos em que ocorrem nas diferentes creches. O momento da chegada é o que mais diferencia a CrA das demais, pois o acolhimento da criança estende-se a sua família. Nessa creche, todos são igualmente acolhidos na chegada, o espaço da creche a todos pertence, ao passo que, nas demais, apesar do acolhimento caloroso, é promovida uma distância entre a creche como o espaço da criança e a família.

Contudo, um bom indicador do clima afetivo é o fato de, ao chegarem às creches, as crianças não chorarem ou se apegarem aos pais para não entrar, pelo contrário, chegam alegres, sorridentes e empolgadas, evidenciando não terem reservas quanto àquele espaço. Por vezes, são os pais que mostram um apego dependente, não libertando saudavelmente a criança para o estabelecimento de laços afetivos com outros cuidadores.

Quando o adulto depende afetivamente da criança

Observo, ao meu lado, a chegada de uma mãe com uma criança no colo, a qual, ao ver a educadora, se lança ao seu encontro, abre seus bracinhos e a educadora a acolhe colocando-a em seu colo. Logo a mãe tenta o retorno da criança para seu colo e ela não quer voltar para a mãe; apesar de esta insistir, forçar pegar a criança de volta, ela começa a chorar e retorna ao colo da educadora. A mãe simplesmente observa e, por algum tempo, não se conforma e força que a criança volte ao seu colo. A criança entra em choro e se joga para a educadora, abre os braços, e a educadora a acolhe. Daí ela esboça um sorriso para a mãe, que simplesmente observa. (CrB, 6 meses a 1 ano)

A educadora acolhe a criança e, com essa atitude, dá um estímulo para o desenvolvimento da autonomia, com a qual a criança vai desenvolvendo sua diferenciação. O processo de dependência (simbiose) inicia sua resolução (Araújo, 2014). Fica evidenciada uma realidade experienciada por essa criança de maior acolhimento, proteção, cuidados com amor e calor humano. A capacidade de ela discernir entre o que mais lhe agrada e de fazer escolhas é inata da natureza humana, por questão de sobrevivência inclusive. Assim como ficou evidente a possessividade e inadequação da mãe em tentar negar um dos seus direitos, o de estar com quem se sente amada e protegida. Penso então, de novo, o quanto faz sentido pensar a creche também como uma instituição de educação parental informal.

O ato rotineiro de afeto com as crianças

Após a hora do soninho, as crianças acordam espontaneamente, são acolhidas pelas educadoras com um bom dia cantado. As fraldas são trocadas com cantoria. Mesmo que não sejam compreendidas, estão sempre falando alguma coisa, recebem muito afeto, não choram, estão alegres e falantes, recebem beijinhos e são abraçadas. As educadoras ou as auxiliares lhes trocam as fraldas, passam cremes e vestem roupas limpas. (CrD, 6 meses a 1 ano)

No tom de voz utilizado pelas adultas com as crianças, sobretudo com os bebês, transparece carinho e afeição. Por vezes, a afetividade das educadoras se assemelha ao amor parental. É comum que as educadoras se dirijam às crianças com frases carinhosas. O momento de adormecer e o de acordar são particularmente saudados com alegria e afeto. Atos como abraços, beijos e afagos são comuns entre todas as educadoras no trato com as crianças. Como bem salienta Gopnik (2016, p. 92), “[...] o ato de cuidar em si cria o vínculo [...]” pois “[...] os seres humanos respondem ao próprio ato de cuidar.” (idem, p. 97). Ora, como observamos, o afeto demonstrava-se abertamente, sentindo-se as crianças queridas.

REGRAS, LIMITES E RESPONSABILIDADES - PRINCÍPIO 5

O quinto princípio da PP estabelece que as regras e os limites são importantes porque dão segurança, sendo necessários para os desenvolvimentos emocional, cognitivo, social e afetivo. Em conformidade, institui, então, que meninos e meninas devem participar do processo de tomada de decisões para se sentirem responsáveis e para que compreendam e aceitem regras, limites e responsabilidades.

Agora que já terminámos essa atividade, quem sabe qual será a próxima?

“Agora que já terminámos essa atividade, quem sabe qual será a próxima?”. Em coro muitos falam em alto e bom som: “Almoçar!”. Ela pergunta depois: “E o que vamos fazer primeiro?”, eles respondem: “Ir à casa de banho”, a educadora afirma: “Isso! Vamos lá para o xixi e lavar as mãos para o almoço. Então, vamos comer e, se comeres rápido, ainda podes ir à área livre...”. A ordem agora é irem à casa de banho, depois para o refeitório; chegando lá, todos se sentam numa grande mesa onde já está servida a sopa, elas tomam sozinhas. As educadoras ficam por perto, mas ninguém necessita de ajuda. (CrA, 1 a 2 anos)

É em torno dessas rotinas associadas à satisfação das necessidades das crianças que estas vão interiorizando uma ordem social, pois encontram na creche uma estrutura espacial, temporal e sequencial das ações nas quais, individualmente e em grupo, são iniciadas e socializadas, e que subjaz às relações que elas estabelecem, pois, como referimos, a criança é um ator social. Foi percebida uma ampla compreensão das regras delimitadas pelas creches e que muitas crianças aguardavam para serem alimentadas ou higienizadas após o almoço sem choro ou birra.

Acordar… reentrar na rotina

A ordem é que não saiam da cama, que fiquem na cama até serem chamadas um a um para trocarem as fraldas. Elas se sentam na cama e aguardam sua vez, se espreguiçam, se esticam, dão risadas para mim, retribuo. São duas educadoras que vão cuidando das crianças, vão se arrumando e se sentando no chão com elas, conversam entre si. Não entendemos o que elas falam entre si, contudo entendem as orientações e as ordens que recebem das educadoras, como: “Senta”, “Levanta”, “Se bate no outro, pede desculpas”, “Fica na cama”, “Senta, não bate no outro”, “Senta aí, fica quieto”, etc. (CrC, 1 a 2 anos)

Nessa creche, observo, muitas vezes, que as atitudes das crianças geram nas educadoras e auxiliares uma atuação firme, por vezes alguma impaciência, justificada pela necessidade de conter ações consideradas inadequadas. Sendo uma creche que acolhe maioritariamente crianças do bairro social, interrogo-me se os padrões de educação familiar naquele meio estarão em dissonância com os da creche, sendo eventualmente mais permissivos. Essa questão volta a valorizar a importância do diálogo e da promoção de ações concertadas entre educadoras e família.

Quando dizer desculpa não é para “pedir desculpa”, mas para afirmar o poder do adulto

Vou ao refeitório e vejo os pratos no centro da mesa e elas [crianças] sentadas brincando entre si, aguardando os babadores e a ordem para começarem a comer. Ricardo sai da cadeira e a educadora diz “desculpa”, pega-o pelo braço e leva-o para a cadeira de volta. (CrC, 1 a 2 anos)

Nessa atitude da educadora, há o estabelecimento de um limite, a exigência do cumprimento de uma ordem, em tom firme. Uma socialização para a obediência, em que as regras que emanam do exterior regem a vida coletiva e que despreza a intenção educativa do sexto princípio, praticamente ausente neste e noutros momentos. Contudo não pude deixar de notar o desajuste no modo como decorreu a relação, a ambiguidade semântica em que a educadora envolveu a criança para fazê-la cumprir a regra: “desculpa” é a palavra que ensinam as crianças a dizer quando, nas suas ações, provocam dano a outros. Aqui a palavra desculpa foi revestida da ironia, que, por vezes, é usada entre adultos para afirmar relações de poder.

É a explicar que os adultos se fazem entender pelas crianças

Um menino chora, bate na porta querendo voltar para a área livre, a educadora lhe diz que não, pois ele já havia chegado há pouco tempo. Esclarece que todos estavam na sala onde a auxiliar e ela estavam a cuidar de todos. Continua a esclarecer que agora ele teria que estar com todos, que era importante se integrarem e estaria sendo cuidado pelas duas educadoras. Ele entendeu e tudo ficou bem em pouco tempo. (CrC, 6 meses a 1 ano)

É comum que as crianças chorem ao se defrontarem com limites impostos pelas educadoras, que procuravam explicitar certas limitações por meio de conversas e explicações sobre suas razões. Sendo a intervenção positiva pela forma e pelo conteúdo, a criança desenvolverá a sua capacidade de entendimento e aceitará os limites de forma adequada, o que irá contribuir para a construção de uma personalidade saudável e um ser humano consciente e confiante.

Outras vezes… o adulto é um educador inapropriado

Logo na chegada, um menino da sala onde estive no dia anterior, com 8 meses de idade, vem ao meu encontro, estende os braços e, me dando as mãos, sorri, abre os bracinhos. A educadora fala: “Não, Pedro! Volta a se sentar!”. Ele me olha surpreso, senti naquele olhar um pedido de proteção, contudo contactei com minha impotência de fazer alguma coisa por ele (era um simples observador etnográfico, neste caso, um adulto atípico,6 atendendo ao facto de ser homem e à minha idade naquele contexto). A educadora me explica: “Ele foi lhe manipular. Eu já havia mandado ele se sentar. Mas como ele não gosta de ficar sentado, foi ao seu encontro”. (CrB, 6 meses a 1 ano)

Refleti e pensei: não conheço o suficiente acerca dessa criança nem dessa educadora para saber se o sentido da ação da criança foi estratégico ou se foi uma procura genuína de afeto, um ato próprio de sua natureza. Quanto à educadora, o que senti foi um padrão desadequado de rigidez. Nessa dinâmica estrutural, em que surgem motivações diversas a cada momento, é de se esperar que, além da formação das educadoras, exista, em cada uma delas, uma dose de paciência, altruísmo, dedicação e boa vontade, tudo isso em proporções que devem suplantar a necessidade da sua própria sobrevivência num contexto educativo energeticamente exigente para os adultos e para as crianças como é a creche. Acresce que a criança é e está em processo de se tornar pessoa e tem, portanto, uma dignidade humana própria que deve nortear a ação dos adultos.

Agora é hora de arrumar

Chega a hora do almoço. A ordem agora é arrumar os brinquedos, a educadora pega uma cesta e diz: “Agora vamos arrumar a sala!”. As crianças pegam os brinquedos e levam para o cesto... (CrD, 1 a 2 anos)

Escolhe a historinha

Terminada as pinturas, param as brincadeiras e sentam-se na colcha estendida no chão, a educadora fala: “Vamos! Escolhe a historinha”. A maioria das crianças votaram na historinha “Antônio e a Matilde”. (CrD, 1 a 2 anos)

Já sou capaz de ir ao banheiro

O último menino se levanta, entrega o bico,7 ela recebe e o orienta: “Vai fazer xixi”. O menino sai e logo retorna limpo e vestido. Me chama a atenção que as crianças já estão sensibilizadas e informadas das necessidades do uso do banheiro, todas já vão espontaneamente e em conjunto, as meninas juntas com os meninos; sempre com a supervisão e a orientação da auxiliar de educação. (CrD, 1 a 2 anos)

Entre algumas das responsabilidades atribuídas às crianças estavam a organização dos brinquedos antes de partirem para outro espaço ou outra atividade. Da mesma forma, o estímulo à tomada de decisão por parte das crianças, por exemplo, quando a educadora solicita que elas escolham a historinha que seria lida. As histórias são ubíquas na cultura humana e contar histórias às crianças é particularmente comum. Elas também são orientadas a se responsabilizarem por seus cuidados pessoais.

Chegada a hora da partida

Um menino está sempre querendo abrir a porta de saída, está na espera dos pais, chora, senta-se, se distrai com as outras crianças. Uma auxiliar entra na sala com um vaso de fazer bolinhas de sabão, chama a atenção das crianças, elas mudam, ficam mais alegres e se lançam a pegar as bolas de sabão. Aqui também fica evidenciada uma forma inteligente e saudável de ajudar uma criança a mudar o foco de algo que estava lhe gerando ansiedade e ficar bem (a bolinha de sabão soprada pela auxiliar). (CrB, 6 meses a 1 ano)

No momento da espera dos pais, é frequente as crianças ficarem ansiosas e se comportarem gritando, chorando, batendo em alguém, as brincadeiras param, não fazem sentido. Observou-se que, na CrB e na CrC, esses eram os momentos mais conturbados, gerando inquietude nas crianças, que quebram as regras de convivência que eram seguidas a contento em momentos anteriores nas salas. Quando tais comportamentos ocorriam, as educadoras procuravam reestabelecer a ordem, geralmente com brinquedos ou brincadeiras.

É um momento que gera a sensação de abandono comum em todo ser humano, quando alguém esperado não vem, e se inicia nas fases da mais tenra idade, quando o pensamento lógico ainda não está estruturado para um entendimento. Está aí a base para se gerar um sentimento pessoal de não se sentir importante e desenvolver as crenças de que não se é amado e, nos casos mais graves, desenvolver uma posição existencial (“não sou bom”) como padrão psicológico de vida (Araújo, 2014). Observei o quanto as crianças sofrem enquanto esperam pelos pais ou responsáveis na saída da creche. O amor pelos pais é algo significativo e esperado. Sabe-se que uma das causas geradoras das principais dificuldades intergeracionais é a sensação de abandono e rejeição. A falta de vínculo com os pais é tão determinante para as doenças mentais quanto a existência do vínculo para a saúde e a felicidade (Winnicott, 1980).

Além disto, já estávamos no fim da tarde, as crianças já em seu limite, um nível de ansiedade e fadiga perceptível. Tomo consciência de que o tempo passado na creche para uma criança é muito longo, é superior ao tempo de trabalho do adulto, pois a criança “pega ao trabalho” e “deixa o trabalho” antes daqueles. Percebo ainda que o sentimento de pertença aos pais é muito forte.

SANCIONAR DA MANEIRA CORRETA É EDUCAR - PRINCÍPIOS 7, 8 E 9

O sétimo princípio estabelece que sancionar da maneira correta é educar, e o oitavo, que gritos, ameaças, castigos físicos e outros não são admissíveis. As regras e os limites que regem a ação das crianças na creche estão fortemente vinculados às rotinas específicas da instituição. É também nesse contexto da interação que a emergência de tensões associadas à desobediência (relação crianças-adulto) e ao reconhecimento e ao respeito pelo outro-criança (interações entre crianças) que a questão das sanções se coloca, bem como a resolução de conflitos sem violência (nono princípio).

NÃO… Santiago, para de magoar o Tomás!

Tomás e Santiago brincavam com a cortina, um empurrando o outro. A educadora fala: “Santiago, para de magoar o Tomás!”. Ele para e sai do brinquedo e ambos vão brincar com outros brinquedos e de pega-pega. Em seguida, Tomás empurra Maria, ela cai no chão e chora. A educadora vem, levanta Maria e fala: “Tomás, vem pedir desculpas a Maria!”. Ele olha para ela, reflete por algum tempo, pede desculpas, a educadora sugere que ele se comprometa que não repetirá a mesma atitude, ele vai, beija Maria e se abraçam e logo tudo fica bem. (CrB, 6 meses a 1 ano)

Uma intervenção positiva leva à reflexão. As educadoras atuam de forma firme e amorosa, dando os limites com as informações, com o que certamente as crianças aprendem a resolver suas dificuldades com coerência e amorosidade, evitando, assim, o espírito de competividade, revanches e vinganças. É na creche que as crianças encontram outras com quem interagem, compondo seus grupos de pares. As crianças assiste uma educabilidade inata e é através dela que se tornam seres sociais, na relação com os outros. A socialização é um processo complexo, em que os adultos são chamados a ser e a desenvolver, com as crianças, a “voz da razão”, isto é, os valores que devem permear a vida coletiva democrática: a liberdade, a igualdade, a solidariedade, o diálogo, a responsabilidade, o dever, pois, como afirma Vasconcelos (1997, p. 208), “As crianças precisam aprender as regras da vivência democrática [...]”. As situações e o apelo às regras de convivência associadas à civilidade ética (o imperativo do dever associado à responsabilidade da ação) e democrática são uma aprendizagem constante na vida na creche, pois as crianças dos 6 meses aos 3 anos caracterizam-se por estarem numa fase na qual sua sensibilidade está propensa a absorver potencialmente os estímulos advindos das perspetivas psicológicas, cognitivas e antropológicas, de acordo com seu desenvolvimento neurológico.

De acordo com Ferreira e Rocha (2016), as crianças não são passivas na interiorização, elas não se limitam à simples imitação ou à mera reprodução, mas envolvem-se com a criação e a participação em todo processo de transformação, apropriando-se de informações do mundo adulto e construindo ativamente, por meio da produção e de mudanças culturais. Essa “reprodução interpretativa” (Corsaro, 2005b, p. 31) não se faz socialmente ao acaso e, como lembra Bronfenbrenner (1996), a criança faz parte de um contexto ecológico de desenvolvimento e, por isso, há que se considerar ainda as (des)continuidades entre as regras de civilidade da creche e as do grupo social de pertença dos pais e das crianças. Mais uma vez, penso como é imperativo que as educadoras desenvolvam processos de comunicação com os pais, pela sua dupla condição de adultos educadores das crianças e parceiros educativos dos pais (Rocha e Ferreira, 2016).

À semelhança do que ocorre na mudança de turno hospitalar, os momentos da chegada e da partida eram momentos ímpares para essa transferência de informação e de conhecimento, que vão construindo uma unificação paradigmática no interesse da criança. Absolutamente conseguida na CrA, segundo me apercebi, era tanto mais precária quanto o meio social de origem das crianças era homogêneo e pobre.

ALGUMAS OBSERVAÇÕES FINAIS E UMAS NOTAS SOBRE O APRENDIZ DE ETNÓGRAFO

Sou da opinião de que os princípios da PP constituem um fator exponencial na evolução humana para a criação de indivíduos saudáveis, pois cada ser traz um potencial inato para se desenvolver. Contudo, como refere Winterhoff (2011), o fato de essa tendência ser inata não garante que ela realmente vá ocorrer. Para tal, os adultos devem estabelecer, com as crianças, uma relação baseada em conhecer, proteger e dialogar.

Os referidos princípios estão, de uma maneira geral, presentes nas creches, ainda que não explicitados. Uns de forma mais nítida, outros de modo mais frágil. Em todas as creches, a programação era organizada temporalmente em torno da prestação de cuidados para a satisfação das necessidades biofisiológicas das crianças. Pela sua precocidade na vida do ser humano e pela dimensão cuidadora, a creche é um contexto de grande importância na construção de indivíduos saudáveis. Ao observar o direito ao cuidado e à orientação apropriada, pude ver, nos atos de cuidar, atitudes coerentes, adequadas, que eram complementares para a saúde emocional e psicológica das crianças.

Ao deambular pelas creches, fiquei consciente da energia e do esforço adulto necessário para interagir saudavelmente com as crianças, sem resvalar para a disciplina e a severidade no trato inerente ao cansaço, pois os adultos podem sancionar quando as crianças se portam mal, porém, não de qualquer forma. Coloca-se, assim, a interrogação acerca do conhecer a criança, da formação necessária para o cumprimento de uma tarefa educativa de tão grande monta e também se coloca o princípio segundo o qual o bom trato das crianças depende do bem-estar do adulto, que é também um ser com necessidades próprias.

A creche é um espaço social, um contexto de vida coletivo partilhado por crianças e adultos e, por isso, permeável a valores e normas inerentes à vida em comum. Se a família das crianças é o seu meio privado, a creche é consistentemente o contexto da aprendizagem da vida em sociedade, que se quer democrática e para o que concorre o reconhecimento de cada criança como pessoa. Observou-se que, em função das idades e das atividades, era estimulado que as crianças participassem no processo de tomadas de decisões e lhes eram atribuídas responsabilidades, mas também lhes eram inculcada a obediência às regras inerentes às rotinas coletivas e impostos limites. Quando as interações assumiam a forma de confrontos ou conflitos, estes eram desestimulados e resolvidos sem violência, apelando para o respeito pela norma e pelo outro.

A vida das creches absorveu a minha atenção por completo e, como é próprio da observação etnográfica, algumas novas questões emergiram: qual o currículo de formação das educadoras e das auxiliares? Qual o grau de segurança e satisfação que encontram na sua carreira? Apercebi-me também de nuances no ambiente educativo de cada creche. Os tempos de espera das crianças quando chegam e dos pais no fim e a forma como as educadoras ou auxiliares interagiam com os pais constituem indicadores de graus de bom trato e de cuidado que merecem melhor observação. De pais, mães e demais cuidadores pude observar os momentos da chegada e da partida e prevalece nas notas um sentimento de alegria. As marcas dos grupos sociais de pertença dos pais fazem-se sentir na vida da creche, questão somente aflorada, mas que requer posterior atenção.

Por fim, nas notas de campo, percebo as oportunidades de interação com as crianças de que me privei. O papel do pesquisador que almeja interferir o mínimo possível limitou as minhas interações com elas apesar de me acolherem e procurarem e de ser alvo de disputa da sua atenção, como é normal e bom que aconteça. As crianças ficaram curiosas sobre a minha presença, me questionaram, vieram até mim, pegaram meu caderno, enfim, quiseram saber por que eu estava na sala delas.

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1 Neste artigo, o recurso a uma escrita na primeira pessoa do singular justifica-se pelo facto de se tratar de uma etnografia, a que acresce o facto de que o investigador tem uma grande relação de exterioridade com o contexto da observação. Trata-se da investigação de um doutorando em Ciências da Educação, cuja formação de base e ocupação é a medicina psiquiátrica. É da natureza da etnografia a implicação do etnógrafo na colheita de dados e na escrita de um modo muito manifesto, por isso justifica-se o uso da primeira pessoa. A segunda autora é a pessoa orientadora científica da investigação em Ciências da Educação, na qual este artigo se insere, tendo, no presente artigo, sido responsável designadamente pela orientação e “Escrita - Revisão e Edição”.

2 Doutoramento em Ciências da Educação.

3 Figuras parentais, em sentido lato, são todos os que, com e sem relação de parentesco, se ocupam quotidianamente da criança.

4 No decurso da deambulação com carácter exploratório, de inspiração etnográfica, permaneci em cada creche durante três dias em horário integral, totalizando 12 dias (96 horas) de observação: CrA: de 30 de abril a 07 de maio de 2019, em salas de 4 meses a 1 ano, 1 a 2 anos e 2 a 3 anos; CrB: de 15 a 17 de maio de 2019, em salas de 3 meses a 1 ano, 1 a 2 anos e 2 a 3 anos; CrC: de 22 a 24 de maio de 2019, em salas de 5 a 12 meses, 12 meses a 2 anos e 2 a 3 anos; CrD: de 27 a 29 de maio de 2019, em salas de 4 a 12 meses e 1 a 2 anos.

5 Título da nota de campo em referência a Gopnik (2016, p. 166).

6 O conceito de “adulto atípico” é desenvolvido por Corsaro (2005a) para se referir à aceitação da sua presença por parte das crianças na investigação etnográfica desenvolvida com elas. No meu caso, a atipicidade deveu-se à presença associada a fatores de género e de idade.

7 Chupeta, em Portugal.

Financiamento: Este trabalho é apoiado por fundos nacionais através da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), Instituo Público, no âmbito do Financiamento Plurianual do Centro de Investigação e Intervenção Educativas (CIIE - ref.ª UIDB/00167/2020; UIDP/00167/2020).

Recebido: 10 de Agosto de 2021; Aceito: 27 de Abril de 2022

Cristina Rocha é doutora em Ciências da Educação pela Universidade do Porto (Portugal). Professora da mesma instituição. E-mail: crocha@fpce.up.pt

Gervásio Araújo é doutorando em Ciências da Educação pela Universidade do Porto (Portugal). E-mail: araujogervasio@hotmail.com

Conflitos de interesse: Os autores declaram que não possuem nenhum interesse comercial ou associativo que represente conflito de interesses em relação ao manuscrito.

Contribuições dos autores: Conceituação, Análise Formal, Metodologia: Araújo, G; Rocha, C. Curadoria de Dados, Investigação, Escrita - Primeira Redação: Araújo, G. Supervisão, Validação, Escrita - Revisão e Edição: C. Rocha

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