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Revista Brasileira de Educação

versión impresa ISSN 1413-2478versión On-line ISSN 1809-449X

Rev. Bras. Educ. vol.28  Rio de Janeiro  2023  Epub 09-Feb-2023

https://doi.org/10.1590/s1413-24782023280017 

Artigos

Ensino remoto não é “ensino”?

¿LA ENSEÑANZA REMOTA NO ES “ENSEÑANZA”?

IUniversidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.


RESUMO

As disputas pela significação de ensino em um cenário de pandemia que inviabilizou a realização presencial das atividades escolares mobilizaram a escrita deste texto que tem como objetivo provocar reflexões sobre o que está sendo entendido por “ensino” quando o “ensino remoto” é significado como algo “menor” do que o presencial. Aportes pós-estruturais sustentam o argumento de que essas disputas articulam concepções realistas de conhecimento e projetam uma ideia genérica e idealizada de totalidade e de igualdade, além de favorecerem a produção de esquemas normativos que organizam as formas de pensar a escolarização. Tentativas de controle sobre aquilo que pode ser ensinado/aprendido, gerando constrangimentos para que docentes e estudantes se percebam como alteridade e se realizem como presença. Sem a pretensão de oferecer soluções definitivas, são apresentadas reflexões que decorrem de interpretações sobre os processos de ensinar e aprender suscitadas pelos aportes pós-estruturais.

PALAVRAS-CHAVE currículo; pós-estruturalismo; vazio normativo; ensino

RESUMEN

Disputas por el sentido de enseñanza, en un escenario de pandemia que imposibilitó la realización presencial de las actividades escolares, movilizó la redacción de este texto que pretende provocar reflexiones sobre lo que se entiende por “enseñanza” cuando la “enseñanza remota” es entendida como algo “menor” que la enseñanza presencial. Aportes posestructurales sostienen el argumento de que estas disputas articulan concepciones realistas del saber y proyectan una idea genérica e idealizada de totalidad, de igualdad, además de favorecer la producción de esquemas normativos que organicen los modos de pensar la escolarización. Intentos de controlar lo que se puede enseñar/aprender, creando restricciones para que profesores y alumnos se perciban a sí mismos como alteridad, como presencia. Sin pretender ofrecer soluciones definitivas, se presentan reflexiones que resultan de interpretaciones de los procesos de enseñanza y aprendizaje planteadas por aportes postestructurales.

PALABRAS CLAVE currículo; posestructuralismo; vacío normativo; enseñanza

ABSTRACT

The disputes over the meaning of teaching in a pandemic scenario that made it impossible to carry out school activities in person mobilized the writing of this text which aims to provoke reflections on what is being understood by “teaching” when “remote teaching” is meant as something “inferior” than the face-to-face one. Post-structural contributions support the argument that such disputes articulate realistic conceptions of knowledge and project a generic and idealized idea of totality, of equality, in addition to favoring the production of normative schemes that organize the ways of thinking about schooling. Attempts to control what can be taught/learned, creating constraints for teachers and students to perceive themselves as otherness, themselves as presence. With no intention of offering definitive solutions, the reflections presented are the result from interpretations of teaching and learning processes that stem from post-structural contributions.

KEYWORDS curriculum; post-structuralism; normative void; teaching

INTRODUÇÃO

No campo da educação, com destaque especial para o campo do currículo, tem se intensificado a produção de reflexões desenvolvidas com base em perspectivas discursivas em que a apropriação de aportes teóricos produzidos em outros campos de conhecimento tem favorecido o questionamento de “verdades” estabelecidas sobre as formas de pensar e fazer educação, reflexões que contribuem para a des-sedimentação de sentidos que legitimam e orientam decisões tomadas nos processos de escolarização.

Alguns desses questionamentos têm encontrado resistências na medida em que abalam significantes que estruturam o pensamento educacional moderno. Igualdade, universalidade, emancipação e conscientização, por exemplo, são significantes postos sob rasura a partir de leituras pós-estruturais e pós-fundacionais. Com a apropriação de aportes da Teoria do Discurso de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe (2010), é possível interpretá-los como “significantes vazios” (Lopes, 2017). São significantes que se esvaziam como resultado da saturação de sentidos que buscam preencher seus significados; processos de disputas cujos resultados não podem ser previstos a priori e que impossibilitam a fixação definitiva de qualquer significado. A ideia de “vazio” não tem a ver com ausência, mas com saturação de sentidos nas tentativas de preencher e fixar a significação.

Lopes (2013), apoiada em Mouffe (1998), defende o argumento de que o vazio favorece a hiperpolitização do social porque a proliferação de sentidos — e as disputas e negociações sobre eles — favorecem a ideia de uma democracia agonística constituída contingencialmente como devir, um processo de disputa de sentidos no campo da discursividade em que a democracia se constrói sem a ilusão de que é possível recorrer a qualquer base racional ou lógica que possa definitivamente ancorar nossas certezas e/ou decisões, sem garantias de resolução final para qualquer fenômeno humano.

Essas reflexões possibilitam outras interpretações sobre as disputas e polarizações sobre sentidos de educação, de escola e de ensino que acontecem em tempos de pandemia. São disputas em torno das tentativas de fixar determinados sentidos para esses significantes; disputas e decisões que acontecem em torno de “certezas” alimentadas sobre o que são — e o que deveriam ser — a educação e o ensino; polarizações em torno daquilo que nos acostumamos a pensar/naturalizar como norma de funcionamento da escolarização.

Tomando como referência teórica essas contribuições, este texto é motivado pelo debate intenso que se estabeleceu entre diferentes posições e certezas sobre o ensino diante da suspensão das atividades escolares presenciais em espaçostempos1 de escolarização em todos os níveis pelo mundo afora em decorrência da pandemia da covid-19 no ano de 2020 e que persiste em 2022. A interrupção das atividades escolares presenciais e a organização de atividades remotas, síncronas e/ou assíncronas, envolveram inúmeros interesses, pontos de vista, argumentações a favor e contra o ensino remoto e/ou o ensino a distância, muitas vezes sem a devida diferenciação entre eles.

O que motiva a escrita deste texto é a compreensão de que a denúncia e as ações em defesa do direito à escola não devem nos autorizar a idealizar o ensino presencial. Pelo contrário, deveriam nos levar a intensificar as reflexões sobre as exclusões engendradas na e pela escola em tempos de “normalidade”. Por sua vez, não se trata de desconsiderar preocupações legítimas, como os riscos de precarização do trabalho docente, os impactos das desigualdades econômicas e sociais que alienam parte significativa da população, seja porque não tem acesso à internet, seja porque não tem condições estruturais adequadas para dedicação ao ensino, por parte dos docentes, e de aprendizagem, por parte dos estudantes. Mas a reflexão aqui proposta tem por objetivo provocar questionamentos e reflexões sobre o que está sendo entendido por “ensino” quando o “ensino remoto” é significado como algo “menor”, menos qualificado do que o ensino. Essa é uma discussão que tem mobilizado educadores, gestores, responsáveis e a sociedade em geral desde os primeiros meses do isolamento social.

Como foi dito anteriormente, a escrita deste texto toma como referência teórico-metodológica a Teoria do Discurso desenvolvida por Ernesto Laclau e Chantal Mouffe (1987; 2010) e os operadores teóricos desenvolvidos por Jacques Derrida (1997; 2001; 2002; 2004; 2006; 2008; 2012). Com base na apropriação das reflexões produzidas por esses autores, é desenvolvida uma discussão teórica motivada pela perspectiva desconstrucionista derridiana que tem como objetivo colocar sob rasura sentidos de ensino que organizam e legitimam os processos de funcionamento da escola.

Dito isso, deve ficar claro que a opção teórica assumida no texto não autoriza a proposição de um “novo” modelo de organização da escola, uma “nova” pedagogia. Também não se trata de negar as normas ditas ou não ditas que organizam cada nível de ensino de cada instituição. Trata-se de alertar para a dimensão de contingência, de provisoriedade dessas normas, ainda que elas possam parecer estáveis e imutáveis, assentadas em fundamentos sólidos e definitivos. Também não se trata de negar a existência de fundamentos, mas de assumi-los como contingentes.

Este texto se organiza a partir do entendimento de que é necessário desconstruir, de uma perspectiva derridiana, essa forma de pensar. Des-sedimentar sentidos de conhecimento, de educação e de ensino, afirmando a contingência desses discursos de forma que se favoreça a reativação de sentidos outros, de outras possibilidades de pensar (Lopes, 2015).

O investimento teórico se justifica na medida em que o apagamento da dimensão contingente dos fundamentos que organizam a produção de sentidos de educação, de conhecimento e de ensino favorece o controle das diferenças com a produção de esquemas normativos que passam a estabelecer decisões a priori sobre o que, como e a quem ensinar e estabelecendo quem os “aprendentes” devem se tornar, criando constrangimentos para que eles possam se assumir como agentes descobrindo e assumindo quem são e quem desejam ser; constrangimentos que podem impedir que esse outro possa se realizar como presença, como pluralidade e diferença (Biesta, 2006).

Na primeira seção, são apresentados e discutidos discursos que favoreceram a produção de sentidos realistas de conhecimento que sustentam a produção de certezas sobre a educação e o ensino. Concepções realistas são construções discursivas que operam a partir da crença na possibilidade de acesso de total inteligibilidade da “realidade”, do “verdadeiro ser” de todas as coisas, desde que sejamos dotados dos conhecimentos e das habilidades adequados para isso. Elas favorecem a compreensão do conhecimento como algo passível de ser adaptado a objetivos políticos e/ou instrumentais; algo que precisa ser apropriado pelos sujeitos para ser posto a serviço de algo definido previamente (Pereira, 2017). É dessa forma que a educação tem sido significada como promessa emancipatória (Pereira, 2012). Uma emancipação que pressupõe a apropriação de determinados conteúdos que lhe tornaria apto a ingressar em dada comunidade racional(Biesta, 2006).

Na seção seguinte, são discutidos os impactos dessas construções discursivas nas formas de significar e organizar o funcionamento do ensino, sentidos de educação e de ensino que favorecem a ideia de controle das diferenças, comprometendo a percepção de docentes e estudantes como alteridade em nome de uma ideia genérica e idealizada de totalidade (Macedo, 2017).

Por fim, são apresentadas reflexões que decorrem das interpretações dos processos de ensinar e aprender suscitadas pelas apropriações de aportes pós-estruturais que podem contribuir para a des-sedimentação de verdades.

PROCESSOS DE CONSTITUIÇÃO DE “CERTEZAS” SOBRE EDUCAÇÃO E ESCOLARIZAÇÃO

Sacristán (1999, p. 150) afirma que a educação moderna foi concebida como

[...] meio para o progresso dos indivíduos e da sociedade em seu conjunto. O progresso é possível, e a escolarização universal, com sua lógica e seus conteúdos, é um meio essencial para estimulá-lo e dotá-lo de conteúdo: a educação é a sua alavanca, e o que ela proporciona representa, em si, um avanço para os sujeitos e para a sociedade. Sem essa força, ficaríamos inertes.

A ideia de progresso associada ao processo de desenvolvimento do conhecimento e, consequentemente, à melhoria da condição moral e material humana favoreceu a produção/circulação de sentidos, possibilitando a consolidação do projeto moderno. A escola teve papel fundamental nesse processo quando se constituiu como instituição social responsável pela formação das novas gerações, capacitando-as a agir pautadas em uma nova racionalidade. O sujeito moderno é o sujeito da razão; nela estavam fundadas as possibilidades emancipatórias (Lyotard, 1984).

A escola é considerada instituição responsável pela socialização dos conhecimentos qualificados e selecionados como os mais adequados para ser ensinados; conhecimentos que passaram a ser significados como universais e cuja apropriação possibilitaria não só a compreensão do funcionamento do mundo, mas principalmente a oportunidade de corrigi-lo (Pereira, 2012).

Trata-se de uma compreensão realista sobre o funcionamento do mundo e dos fenômenos do mundo que pode ser resumida na ideia de que é possível acessar e descrever, de forma inequívoca, a existência de um mundo externo ao pensamento. Laclau e Mouffe (1987) se opõem às concepções realistas, o que, conforme esclarecem, não implica negar a materialidade do mundo — a existência das coisas —, mas entender que essa existência só pode ser apreendida em um conjunto de relações, como parte de uma cadeia de articulações que constituem totalidades significativas. É essa totalidade que os autores definem como discurso, uma totalidade significativa em que são articulados elementos diferenciais que integram o mesmo campo significativo. Os autores concluem que, para que essa articulação seja possível, o ser, o objeto, o fenômeno precisam ser nomeados. Ou seja, não é o nome que descreve o ser, o objeto, o fenômeno. O nome é uma tentativa de representá-los. Tentativa porque, como afirma Bingham (2008), ao atribuir sentido a um significante, o nome produz o diferimento desse sentido. É no processo de disputa pela fixação de sentidos que o social se constitui como textualidade. Laclau e Mouffe (2010) também alertam para a impossibilidade de fechamento do total do processo de significação argumentando que a representação do significante pelo significado nunca se realizará plenamente, ela será sempre distorcida (Laclau, 2006).

Os processos de significação são processos de disputa em que os sentidos produzidos sobre o mundo e sobre os fenômenos do/no mundo são interpretações contingentes, arbitrárias e provisórias que possibilitam tornar o mundo inteligível, não representam plenamente aquilo que o mundo e os fenômenos são.

É essa compreensão que nos permite colocar sob rasura o privilégio epistemológico atribuído a determinado tipo de conhecimento a partir da premissa de que sua apropriação possibilitaria aos seres humanos que dele se apropriassem intervir de forma “[...] consciente no mundo visando à construção de uma sociedade mais justa e democrática.” (Pereira, 2017, p. 602). Esse privilégio é resultado das disputas em torno de determinados sentidos de mundo e de ser humano, discursos que produzem efeitos e nos constituem. Na mesma lógica, o processo de escolarização de um tipo de conhecimento significado como universal também é parte de um processo de disputas que favoreceu o estabelecimento do privilégio epistemológico. Um jogo de linguagem que favoreceu um tipo de simbiose entre conhecimento e conteúdo de ensino, jogando “[...] a escolarização no terreno da proprietarização de um conhecimento-coisa.” (Macedo, 2017, p. 549).

A Teoria do Discurso de Laclau e Mouffe (2010) ajuda a pensar o privilégio epistemológico atribuído a um tipo de conhecimento como resultado de processos de hegemonização, um processo de produção e disputa por significação que se realiza em meio a tensões que resultam em hierarquizações e exclusões de conhecimentos tidos contingencialmente como menos legítimos.

A apropriação de um tipo de conhecimento legitimado como mais adequado em função da sua significação como “[...] patrimônio de conhecimentos e de competências, de instituições, de valores e de símbolos, constituído ao longo de gerações e característico de uma comunidade humana particular, definida de modo mais ou menos amplo e mais ou menos exclusivo [...]” (Forquin, 1993, p. 12) pressupõe a possibilidade de forjar determinada identidade idealizada e definida a priori e, consequentemente, o bloqueio à emergência para outras identidades possíveis.

Independente da matriz político-ideológica, são projetos culturais homogeneizadores, são construções discursivas que contribuíram para o estabelecimento de uma suposta neutralidade metalinguística que tem sustentado determinado modelo de organização da escola que tem como pressuposto a formação de uma identidade idealizada, cujo conteúdo é plenamente definido e, em função disso, acaba se organizando de forma que silenciem as diferenças ou, no limite, reconhecendo-as, desde que subordinadas à particularidade definida como ideal.

Entretanto, apesar da aparente estabilidade da hegemonia dessa lógica, a escola, como instituição social, é permanentemente confrontada pela diferença, pelas particularidades excluídas nas tentativas de depuração/seleção de conhecimento.

Essas exclusões nem sempre são explícitas ou mesmo percebidas dessa forma. Afinal, a escola é significada como uma instituição que tem a pretensão de atender igualmente a todos, desde que todos se enquadrem em um preestabelecido, uma forma de pensar a escola, de pensar a educação e a escola que tem se mostrado ineficaz e pouco produtiva na medida em que cria obstáculos para que os processos de escolarização se constituam como um espaço de reconhecimento ético e igualitário de acolhimento da alteridade (Bhabha, 2013). As tentativas de controle não garantem o controle total do outro como alteridade, mas favorecem a produção de exclusões.

Assim, a defesa da educação escolar como direito de todos se sustenta na suposição de que compartilhamos, como seres humanos, algo que precisa ser necessariamente comum e universal e significado como condição de garantia para o estabelecimento de uma sociedade mais democrática. Macedo (2015, p. 869) afirma que se trata de uma construção discursiva em que “[...] a igualdade se alicerça numa semelhança abstrata capaz de garanti-la.”. As escolhas relacionadas aos processos de escolarização — o que ensinar, como ensinar e como avaliar — são decisões arbitrárias tomadas em nome dessa semelhança abstrata, independentemente de que essa semelhança seja projetada com base em uma posição política mais progressista ou mais conservadora.

São discursos que articulam sentidos carregados dessa lógica de pensar o mundo em que uma igualdade abstrata é enaltecida. Em nome dessa igualdade, um comum universal a ser oferecido a um todos também abstrato alimenta fetiches sobre o funcionamento da escola e sobre o ensino. Fetiches que proliferam em um contexto de disputas em torno da significação de educação e de ensino, em que o isolamento social tornou impossível a continuidade das atividades escolares presenciais, um cenário em que os discursos pró e contra a reabertura das escolas e/ou pró e contra o ensino remoto articulam sentidos de escola e de ensino que se apresentam como antagônicos, como tentativas de demarcar as diferenças entre o nós e o eles. Com base nos referenciais teóricos, é possível compreender as referências ao ensino presencial significado como aquilo que assegura o futuro das novas gerações como um desses exemplos em que as contingências dos fundamentos nas quais essa afirmação se assenta são borradas, assim como são borradas as contingências do antagonismo que parece diferenciá-las.

Sendo assim, não se trata de “ter razão” sobre aquilo que significamos como escola ou como ensino, trata-se de compreender a dimensão contingente e os limites que essas significações nos impõem; contingência que tende a ser borrada, ocultando as infinitas possibilidades de interpretação e significação das precondições que tornaram qualquer significação e, consequentemente, qualquer decisão possível.

Identificar contingências que possibilitaram certa hegemonia de sentidos atribuídos aos processos de escolarização é o trabalho de desconstrução a que se refere Derrida (1997; 2008). Um investimento teórico necessário para a compreensão daquilo que, contingencialmente, possibilitou determinadas significações bloqueando tantas outras possibilidades de pensar e interpelar o que parece estar sedimentado e estabelecido.

Dessa perspectiva, as polarizações contribuem pouco para a discussão sobre o que fazer nesse contexto de crise sanitária. Elas contribuem para o esgarçamento do espaço democrático (Mouffe, 2001), o que tem se agravado no cenário pandêmico. Polarizações produzem hierarquizações que tendem a favorecer o bloqueio do processo de significação, ameaçando a política, entendida como ação contingente, marcada por conflitos, disputas e negociações que estruturam o social (Laclau, 1996). A polarização restringe o campo de disputas e negociações, atua de forma que se apaguem as diferenças contidas entre o que é identificado como nós e o que é identificado como eles, assim como aquilo que estabelecemos como nós pode ter em comum com o que definimos como eles. No entanto, nem o nós nem o eles podem existir como “identidade” em si.

MAS O QUE TUDO ISSO TEM A VER COM O ENSINO?

O argumento defendido neste texto é o de que as políticas de currículo e de avaliação em curso no mundo têm favorecido a naturalização de esquemas normativos e processos de homogeneização curricular (Ortigão e Pereira, 2016) que alimentam as expectativas de controle das diferenças, políticas que têm sido apresentadas como a solução mais adequada para os problemas educacionais (Pereira, 2019).

No entanto, apesar das críticas a essa homogeneização e ao processo de controle das diferenças (Lopes, 2015; 2017; Macedo, 2012; 2015; 2017), é fato que existe um grau de consenso, mesmo que conflituoso (Mouffe, 2001), sobre a desejabilidade de estabelecer e alcançar determinados padrões de aprendizagem. Aquilo que é projetado como padrão de aprendizagem desejável também atravessa diferentes posições contra e a favor do ensino remoto, contra ou a favor do retorno às atividades escolares presenciais mesmo sem o controle da covid-19. Um debate em que um padrão desejado é projetado sem que necessariamente haja questionamentos sobre como estudantes e docentes vivem e sentem as angústias e incertezas desse momento.

Nos encontros e nas conversas realizadas com docentes em atuação na rede pública da educação básica ao longo do ano de 2021,2 foram frequentes os relatos sobre a impossibilidade de oferecer aos estudantes as mesmas oportunidades oferecidas àqueles de escolas privadas. Em alguns casos, o parâmetro de comparação eram as ações da escola privada de seus filhos, a elaboração e o envio de exaustivas listas de atividades de fixação para serem executadas pelos estudantes, a manutenção do quadro de horários das disciplinas tal qual previsto para acontecer presencialmente, a preocupação com os “conteúdos” previstos que os estudantes iriam “perder” durante o período de isolamento, as preocupações em como aplicar as provas, etc. — tentativas de reproduzir, no ensino remoto, práticas do ensino presencial durante o período mais intenso de isolamento social. Não foram só relatos de docentes e responsáveis; inúmeras imagens circularam na internet expressando essas tentativas — frustradas — de realizar essa transposição. Imagens como a de docentes registrando observações no quadro branco diante de seu computador.

São questões legítimas, motivo de angústia de muitos — docentes, estudantes e responsáveis —, que não devem ser minimizadas porque houve, sim, muitos prejuízos. No entanto, cabe indagar: que conteúdos são, ou seriam, de fato fundamentais naquele momento? Mesmo no caso de estudantes de classe média que foram atendidos pelas escolas, o mais importante seria “não perder os conteúdos”? O quanto essa compreensão pode dizer sobre o esvaziamento da escola como espaçotempo de troca, de acolhimento, tudo em nome do privilégio atribuído a conteúdos de ensino selecionados de forma totalmente contingente e arbitrária? Para além da pandemia, o que justifica qualquer apego a um modelo de ensino presencial que se realiza de forma mecânica, baseado em certezas que não encontram sustentação em qualquer fundamento sólido a priori que possa atestar, de forma definitiva, o que é conhecimento, o que é ensino e como o ensino dos conhecimentos deve se realizar e, consequentemente, o que e como os estudantes devem aprender. Em que medida esse apego tem a ver com as expectativas de controle de como o ensino e a aprendizagem devem acontecer e de quem os estudantes devem se tornar?

Como discutido anteriormente, discursos que articulam sentidos de realismo epistemológico favorecem e legitimam a compreensão de conhecimento como aquilo que é passível de ser apropriado, acumulado e colocado a serviço de determinados fins, (Lemos, 2018), uma lógica de pensar o conhecimento que favorece o acionamento de mecanismos de normatização e de controle da aprendizagem na e pela escola. Essas expectativas de controle não levam em consideração a “[...] complexidade da função da escolarização, que não se restringe à mera transmissão dos conhecimentos socialmente relevantes às novas gerações.” (Esteban, 2010, p. 65).

Assumir uma postura de rompimento com o universalismo linguístico, afirmando que as relações entre a linguagem e os objetos que nomeamos se tornam inteligíveis em processos de negociação e tradução (Derrida, 2008), tem mobilizado reflexões sobre a necessidade de investir teoricamente no processo de desconstrução de rastros realistas articulados no pensamento educacional. Para Derrida (1997), esses rastros constituem a tradição não como a sua permanência, mas como sentidos permanentemente negociados, traduzidos, ressignificados. A ideia de permanência, de uma tradição original e imutável, é resultado dos apagamentos das contingências dos processos de negociação/tradução.

Para o autor, a tradução é o lugar da différance — “[...] movimento (ativo e passivo) que consiste em diferir, por retardo, delegação, adiamento, reenvio, desvio, prorrogação, reserva.” (Derrida, 2001, p. 14); processo em que as significações proliferam incessantemente numa rede diferencial, diferente e diferida. A tradução torna impossível a plena presentificação de algo que foi dito (Derrida, 2006; 2008).

Para Derrida (2001), é impossível a linguagem dizer de uma essência, e os usos da linguagem são tentativas fracassadas para explicar as coisas nomeadas. O movimento da différance é a produção de diferenças, condição de significação e de toda estrutura. Ela não é precedida pela unidade originária e individida de uma possibilidade presente. “O que difere a presença é [...] aquilo a partir do qual a presença é — em seu representante, em seu signo, em seu rastro — anunciada ou desejada.” (Derrida, 2001, p. 15).

Ao criticar a busca incessante pela origem/totalidade das coisas e a afirmação da presença “[...] do objeto, presença do sentido à consciência, presença a si na palavra dita ‘viva’ e na consciência de si [...]”, Derrida (2001, p. 11) oferece a possibilidade de refletir sobre como a centralidade da razão opera promovendo fundamentos e restabelecendo um lugar de verdade e identidades essenciais; tentativas de interditar a diferença que a linguagem sempre propiciou, porque o pensamento educacional é, ao mesmo tempo, instituído por e instituidor dessa interdição; tentativas que explicam e justificam as expectativas de controle que permeiam as concepções e a organização do ensino.

No entanto, as demandas particulares e de lutas pelas diferenças têm se intensificado. Diferentes formas de ser e estar no mundo disputam espaçostempos de afirmação, reivindicando legitimidade. O desenvolvimento de tecnologias de informação e comunicação tem intensificado trocas culturais e fluxos globais que favorecem transformações muito rápidas e intensas que contribuem para a percepção de um mundo em caos, terreno fértil para a proliferação de sentimentos de medo, insegurança e incerteza que nos levam a ansiar pela “estabilidade perdida”; uma postura nostálgica na qual nos apegamos ao sentimento de saudade de um passado imaginado em que, do presente, pensamos que tínhamos mais controle sobre nossas vidas e, consequentemente, sobre o que deve ser ensinado e aprendido e como deve ser ensinado e aprendido. As incertezas provocadas pela pandemia parecem ter ativado lembranças de um passado imaginado em que o controle das coisas era possível sem deixar lugar para as incertezas. Mas nunca foi assim. Na pandemia, os problemas se agravaram, mas eles continuarão lá nos esperando quando retomarmos à “normalidade”.

Continuaremos vivendo as incertezas descritas por Esteve (1991, p. 97) na alegoria em que compara os docentes a

[...] um grupo de actores, vestidos com traje de determinada época, a quem sem prévio aviso se muda o cenário, em metade do palco, desenrolando um novo pano de fundo, no cenário anterior. Uma nova encenação pós-moderna, colorida e fluorescente, oculta a anterior, clássica e severa. A primeira reacção dos actores seria a surpresa. Depois, tensão e desconcerto, com um forte sentimento de agressividade, desejando acabar com o trabalho para procurar os responsáveis, a fim de, pelo menos, obter uma explicação. Que fazer? Continuar a recitar versos, arrastando largas roupagens em metade de um cenário pós-moderno, cheio de luzes intermitentes? Parar o espetáculo e abandonar o trabalho? Pedir ao público que deixe de rir para que se oiçam os versos? O problema reside em que, independentemente de quem provocou a mudança, são os actores que dão a cara. São eles, portanto, quem terá de encontrar uma saída airosa, ainda que não sejam os responsáveis. As reacções perante esta situação seriam muito variadas; mas, em qualquer caso, a palavra mal-estar poderia resumir os sentimentos deste grupo de actores perante uma série de circunstâncias imprevistas que os obrigam a fazer um papel ridículo.

No artigo “Alliens in the classroom”, publicado em 1993, Green e Bigum (2011, p. 7) defendem que são esses sentimentos de insegurança como resultado da intensificação de uma cultura da mídia e do suposto declínio da vida contemporânea que possibilitam a emergência de “[...] uma nova geração, com uma constituição radicalmente diferente [...]” e, de forma provocativa, sugerem que a relação entre docentes e estudantes seja pensada como encontro entre sujeitos que compartilham sentimentos de mútuo estranhamento.

As reflexões de Green e Bigum (2011) suscitam indagações acerca dos conflitos e das tensões que decorrem das dificuldades de acolhimento das diferenças que nos interpelam cotidianamente em cada sala de aula. E, se presencialmente podemos nutrir a pretensão de controlá-las, remotamente somos obrigados a reconhecer que isso é impossível. Mas é desejável? Dessa perspectiva, a pergunta “mas como eu vou aplicar uma prova remotamente?” é reveladora de como nos mobilizamos para controlar aquilo que achamos que o outro deve aprender e que os aportes pós-estruturais nos auxiliam a compreender como constrangimento das diferenças, como tentativas para evitar que o outro possa se afirmar como presença singular em um mundo que é só pluralidade (Biesta, 2006).

A escola, tal como a conhecemos, se organiza orientada por fundamentos que estão sedimentados e naturalizados, fundamentos que têm implicações nos inúmeros problemas que podemos identificar na instituição. Problemas que tendem a ser enunciados como equívocos pedagógicos, desvios de formação e ausência de metodologias adequadas e que dão margem à proliferação de soluções salvacionistas sem que se aprofundem as reflexões sobre a rede de certezas tecidas ao longo dos séculos que tornaram possível que a escola se consolidasse como instituição social, mas que também acabaram nos enredando em dilemas e paradoxos que temos dificuldade de compreender.

Insistir em pensar o conhecimento e, consequentemente, o ensino e a aprendizagem com base em fundamentos tidos como sólidos e imutáveis implica insistir na falência de um modelo que não se sustenta. Um modelo em que, como ilustrado por Esteve (1991) na alegoria citada acima, atuamos numa mesma peça vivendo a ilusão de que somos orientados pelas mesmas normas e que, de algum modo, elas são imutáveis. Muitas vezes o apego ao ensino presencial expressa essa ilusão acerca de um passado idealizado em que todos os conteúdos previstos eram ensinados e aprendidos por todos, como se no passado tivéssemos sido capazes de garantir 100% de audiência e aceitação para a peça que encenávamos. Pior: assumindo que o direito à educação deve ser reduzido ao dever de todos aprenderem conteúdos, competências, habilidades predefinidas; uma ideia de todos que sempre remete a um sujeito genérico tomado como identidade ideal, o que favorece a exclusão dos sujeitos reais que muito dificilmente serão contemplados nessa totalidade.

Sem a pretensão de oferecer soluções salvacionistas, para ser fiel aos aportes teóricos que organizam essas reflexões, trata-se de convidar os leitores a uma reflexão sobre a necessidade de investir teoricamente na superação das certezas relativizando as tentativas de controle do imponderável; características que marcam a existência humana, mas que as intensificações das transformações que experimentamos no mundo contemporâneo tornam cada vez mais perceptível que somos “seres linguageiros, cindidos e precários” (Lopes, 2013, p. 8) vivendo em um mundo que é puro caos (Derrida, 2005). E é porque tudo que temos é o caos que ansiamos pela estabilidade.

OUTRAS INTERPRETAÇÕES SÃO POSSÍVEIS...

A apropriação de aportes pós-estruturais tem sido produtiva para o processo de desconstrução e des-sedimentação de sentidos de educação e de ensino. Nem o ensino, nem a educação podem garantir a salvação de ninguém. Por outro lado, o que nos autoriza a pensar o outro como alguém a ser salvo é a compreensão de educação como processo de produção do outro e de docente como técnico, como parteira responsável por liberar o potencial racional do outro (Biesta, 2006). Em uma perspectiva salvacionista, a tarefa docente é produzir o outro de forma que ele possa ser inserido em uma ordem preexistente, em uma comunidade racional preexistente, uma lógica essencialista de pensar os seres humanos e a sua formação como identidades comuns. No entanto, Biesta (2006) alerta que vivemos em um mundo de pluralidade e diferença; portanto, o desafio da educação é, ou deveria ser, possibilitar que cada ser humano, único e singular, possa se tornar presença em um mundo que é pura diferença.

Dessa forma, o problema não é onde o ensino se realiza, mas como se realiza, de que forma metanarrativas universalizantes e essencialistas contribuem para o bloqueio das diferenças, das subjetividades, criando obstáculos para que o outro se realize como alteridade e diferença, além de criar constrangimentos para que os docentes possam experimentar o seu fazer de outras formas, pois, como afirma Derrida (2002), o ensino funciona como uma prática pela qual o docente precisa produzir o outro, apagando a si mesmo nesse processo para se tornar “instrumento” pelo qual o conhecimento pode falar por si só. Aqui é preciso destacar que, para o autor, esse apagamento nunca se realiza completamente, o diferir nunca se estanca. Portanto, pensar o lugar do docente e o ensino dessa forma é uma maneira de disputar significados de ensino e o lugar do docente nesse processo.

As reflexões do filósofo sobre o apagamento do docente quando se torna instrumento a serviço de algo também nos ajudam a pensar no processo de apagamento dos estudantes: os docentes objetificados como “canal de transmissão” e os estudantes objetificados como “receptáculos” do conhecimento com o pressuposto de que essa é a condição para que os sujeitos possam se reconhecer em uma dada cultura preexistente à sua própria existência (Biesta, 2006).

Pensar o ensino como transmissão de algo por alguém e que deve ser aprendido como foi preestabelecido obedece a uma lógica realista que tem favorecido a submissão da educação ao ensino (Macedo, 2012). E, como a autora afirma de forma provocativa em outro texto, a função da escola não é ensinar. Ou pelo menos não deveria ser. “Ela tem que educar, e isso não é ensinar.” (Macedo, 2017, p. 541).

Refletir sobre a provocação feita por Macedo (2017) pode ser um produtivo exercício de desconstrução acerca das nossas “certezas” sobre a educação, a escola e o ensino e, em especial, para desconstruir a ideia de que a educação se reduz ao ensino. Esse exercício poderia evitar uma discussão polarizada e infrutífera que busca fixar em lados opostos aqueles que defendem e os que são contra o ensino remoto, drenando energias que poderiam ser direcionadas para garantir condições materiais de acesso à escola para todos, mas com a compreensão de que oportunizar condições materiais é garantir um direito, assim como se tornar presença sem o dever de se submeter àquilo que foi estabelecido como comum e adequado a todos, porque o estabelecido é resultado de decisões contingentes que favorecem o “[...] apagamento da diferença sem a qual não é possível conceber o sujeito-outro ou mesmo a própria cultura.” (Macedo, 2017, p. 550). A autora assume, com Bhabha (2013), uma perspectiva tradutória de cultura. Cultura como prática de enunciação cultural e, como enunciação, “[...] sempre aberta à alteridade, obrigando à negociação constante com essa alteridade [...]” (Macedo, 2017, p. 551).

A covid-19 provocou transformações intensas em todas as dimensões de nossas vidas. Afetados de formas diferentes, comportamo-nos de formas diferentes, significamos essas transformações de formas diferentes; significações que são enunciações culturais. Estamos enredados em jogos de linguagem, em construções discursivas que operam na lógica da normatização, da regulação e do controle, com a ilusão de que é possível controlar o caos, de que existe uma solução salvadora capaz de nos tirar desse lugar; sentimentos que tendem a se intensificar com o acirramento das incertezas.

Entretanto, seja para defender o ensino remoto, seja para construir argumentos para sustentar a sua inviabilidade, parece ser mais produtivo problematizar os motivos pelos quais as diferenças nos afetam e nos levam a naturalizar os efeitos de uma norma que nos violenta como docentes e como estudantes. Apelar para a “normalidade do passado” é ilusão. Logo, por que não tentar olhar para a situação de outra forma, percebendo as brechas que se abrem quando as relações precisam ser pensadas em outros espaçostempos virtuais, refletindo sobre outras possibilidades de pensar educação, ensino, aprendizagem, rompendo com uma perspectiva linear da ideia de ensino-aprendizagem para pensar essa relação como espaçotempo de enunciação, rompendo com concepções realistas que sustentam a lógica de transmissão contida na ideia de alguém que ensina e outro alguém que aprende?

Mais uma vez é Derrida (2012) quem fornece argumentos para pensar o ato de aprender como acontecimento, como aquilo que escapa às tentativas de calculabilidade e perverte as relações, que se demarca pelas alteridades ao mesmo tempo que as desaloja, acontecimento como algo “excepcional, sem regra”, como aquilo que “[...] deve ser excepcional, e essa singularidade da exceção sem regra não pode dar lugar senão a sintomas.” (Derrida, 2012, p. 247). Pensar o ensino como acontecimento implica colocar sob rasura as certezas sobre educação, conhecimento, escola e ensino que são carregadas de sentidos objetificados de cultura; implica operar na lógica de desconstrução do que parece instituído e estabilizado como parte de uma tradição escolar, que se expressa em um discurso normativo em que a educação se reduz a um projeto que objetiva a conformação da subjetividade, um projeto de reconhecimento que desconsidera as subjetividade e provoca efeitos perversos sobre a diferença.

Trata-se então de indagar e atuar de forma que se ofereçam possibilidades para que outros sentidos, outras formas de fazer possam emergir, mas também para que possamos compreender as dificuldades postas para que essas novas práticas possam emergir; desconstrução da dimensão de racionalidade como capaz de garantir objetividade do ensinar e do aprender, admitindo a arbitrariedade contida nas decisões sobre o que ensinar abdicando da pretensão de controle sobre o que deve ser aprendido e como deve ser ensinado e aprendido; pensar, como sugere Macedo (2017, p. 549), “[...] a escola como lugar de inter-relações, onde o sujeito que não foi inventado [...] possa ser re-conhecido [...]”. Planejar, estabelecer objetivos para o desenvolvimento de um novo que ainda não existe e/ou que não sabemos quem é exige de cada docente uma postura de responsabilidade ética (Derrida, 2004). É dessa perspectiva que uma epistemologia não representacional pode ser produtiva.

Assim, o protagonismo da escola deixa de ser pensado como privilégio do docente, o que não implica passar a ensa-lo como privilégio do estudante. Trata-se de pensar em uma relação dialógica e intersubjetiva entre docentes e estudantes; processos em que sejam articuladas práticas éticas e democráticas de responsabilidade ética e coletiva (Derrida, 2004). Trata-se de pensar em um tipo de responsabilidade que tem a ver com a resposta a uma convocação (Derrida, 2004), uma ética da alteridade que nos impele a agir conforme e apesar da regra para responder ao apelo do Outro que nos convoca; um tipo de ética e responsabilidade que não podem ser objetivadas. Que nos torna “[...] responsáveis diante da vida, dos seres, das coisas, do mundo, da natureza.” (Farias, 2012, p. 188). Responsáveis, docentes e estudantes, por aquilo que foi aprendido como acontecimento. Nesse caso, a escuta e a mediação são importantes para que a sala de aula, não importa se física ou virtual, se constitua como espaçotempo vigoroso e potencializador de enunciação e negociação de sentidos.

REFERÊNCIAS

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1 A grafia é apropriada a partir da proposta de Elizabeth Macedo de pensar o processo de produção curricular como espaçotempo de negociação cultural.

2 Atividades organizadas ao longo de 2021 por um grupo de docentes de um curso de Pedagogia de uma universidade pública para atender à demanda de uma escola da rede municipal do Rio de Janeiro localizada em uma comunidade periférica.

Financiamento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ).

Recebido: 11 de Março de 2021; Aceito: 06 de Maio de 2022

Talita Vidal Pereira é doutora em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professora da mesma instituição. E-mail: p.talitavidal@gmail.com

Conflitos de interesse: A autora declara que não possui nenhum interesse comercial ou associativo que represente conflito de interesses em relação ao manuscrito.

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