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Revista Brasileira de Educação

Print version ISSN 1413-2478On-line version ISSN 1809-449X

Rev. Bras. Educ. vol.28  Rio de Janeiro  2023  Epub Mar 14, 2023

https://doi.org/10.1590/s1413-24782023280059 

Artigos

A educação não escolar na periferia pode ensinar algo para a escola?

WHAT CAN NON-SCHOOL EDUCATION IN THE PERIPHERY TEACH FOR SCHOOL?

¿PUEDE LA EDUCACIÓN NO ESCOLAR EN LA PERIFERIA ENSEÑAR ALGO A LA ESCUELA?

Nilson Almino de Freitas, Conceituação, Análise Formal, Investigação, Metodologia, Obtenção de Financiamento, Administração do Projeto, Supervisão, Validação, Visualização, Escrita – Revisão e EdiçãoI 
http://orcid.org/0000-0003-0324-3131

Francisco Renan Dias Marques, Conceituação, Análise Formal, Investigação, Metodologia, Curadoria de Dados, Escrita – Primeira RedaçãoI 
http://orcid.org/0000-0002-5482-2857

IUniversidade Estadual Vale do Acaraú, Sobral, CE, Brasil.


RESUMO

O artigo é um ensaio teórico que surge a partir de um experimento de pesquisa compartilhado entre o Laboratório das Memórias e das Práticas Cotidianas e o Movimento Social FOME. Discute práticas de educação não formais promovidas por esse movimento, que atua em bairros periféricos de Sobral, cidade localizada ao norte do estado brasileiro do Ceará. O propósito é mostrar que essas práticas não formais de educação em bairros associados à violência e a pobreza podem ser vistas como formas de construção de resistências. A resistência das “quebradas” é pela construção de uma humanidade no sentido pleno do conceito. Essas práticas educacionais não formais também vão servir de parâmetro para repensarmos as práticas escolares em determinadas questões, com especial destaque para práticas de democracia direta, autogestão, corresponsabilidade, liberdade criativa, valorização do lugar geográfico e lugar de fala, assim como a defesa da humanidade plena.

PALAVRAS-CHAVE educação não formal; humanidade plena; educação; pedagogia da invenção da realidade cotidiana

ABSTRACT

The article is a theoretical essay that emerges from a research experiment shared between Laboratório das Memórias e das Práticas Cotidianas and Movimento Social FOME. It discusses non-formal educational practices promoted by this movement, which operates in the peripheral neighborhoods of Sobral, a city located in the north of the Brazilian state of Ceará. The purpose is to show that these non-formal educational practices in neighborhoods associated with violence and poverty can be seen as forms of resistance construction. The resistance of the “quebradas” is for the construction of a humanity in the full sense of the concept. These non-formal educational practices will also serve as a parameter to rethink school practices on certain issues, with special emphasis on practices of direct democracy, self-management, co-responsibility, creative freedom, valorization of the geographic place and place of speech, as well as the defense of full humanity.

KEYWORDS non-formal education; full humanity; education; pedagogy of the invention of everyday reality

RESUMEN

El artículo es un ensayo teórico que surge de una experiencia de investigación compartida entre el Laboratório das Memórias e das Práticas Cotidianas y el Movimento Social FOME. Se analizan las prácticas de educación no formal promovidas por este movimiento, que actúa en los barrios periféricos de Sobral, ciudad situada en el norte del estado brasileño de Ceará. El propósito es mostrar que estas prácticas educativas no formales en barrios asociados a la violencia y la pobreza pueden ser vistas como formas de construcción de resistencia. La resistencia de las “quebradas” es para la construcción de una humanidad en el pleno sentido del concepto. Estas prácticas educativas no formales también servirán de parámetro para repensar las prácticas escolares en determinados temas, con especial énfasis en las prácticas de democracia directa, autogestión, corresponsabilidad, libertad creativa, valorización del lugar geográfico y del lugar de la palabra, así como la defensa de la humanidad plena.

PALABRAS CLAVE educación no formal; humanidad plena; educación; pedagogía de la invención de la realidad cotidiana

INTRODUÇÃO

O artigo promove uma reflexão sobre o processo educacional para “além dos muros” da escola, refletindo as práticas cotidianas de agentes sociais que vivem na periferia da cidade, entendendo-as como ações pedagógicas para ensinar sobre a sua cultura e gerar aprendizagem. Neste caso, o texto tem um caráter ensaístico, visando refletir o processo educacional que acontece fora da escola, para melhor pensar a escola. A experiência empírica, que serve de ponto de partida aqui, localiza-se em bairros da periferia da cidade média de Sobral, no estado brasileiro do Ceará, onde os pesquisadores compartilharam experiências pedagógicas não formais com seus jovens moradores — particularmente, o Movimento Social FOME.1 Após sairmos da escola, voltaremos para ela com o objetivo de entender como esse pensar e ensinar que está “além de seus muros” pode ser útil para refletir como se ensina nela, a partir de experiências não escolares do FOME. A análise aqui feita pode gerar algum tipo de afecção no sentido de repensar algumas tendências de práticas pedagógicas.

A fundamentação teórica que estamos usando aqui tem como base a discussão sobre a formação das subjetividades, baseada na noção de humanidade, pensada de forma integral, para ampliar algumas dicotomias e alguns simplismos ainda presentes nos conteúdos escolares. Neste caso, a educação vai ser pensada a partir de um modelo de relações sociais vigentes na contemporaneidade em uma espacialidade específica, para podermos pensar nosso tempo e espaço de forma mais crítica e fundamentada em experiências cotidianas na cidade que, para alguns segmentos sociais, estão situadas em lugares marginais, socialmente degradantes, economicamente frágeis, mas cheios de desejos por uma sociedade melhor, promovendo resistências.

O marginal é aqui pensado, a partir de Guattari e Rolnik (1996), como um choque entre o movimento majoritário capitalístico de controle das subjetividades e movimentos de resistência vinda de coletivo minoritário. O lugar social dos coletivos minoritários ou marginais está na contraposição ao poder de regulação dos corpos de forma que sejam constituídos padrões homogêneos. Esse lugar social fala de um contexto em que os autores citados chamam de “revolução molecular”. O marginal está situado nesse movimento de resistência contra processos gerais de serialização da subjetividade, tentando, pelo contrário, produzir modos originais de singularidade. É um movimento que tenta promover processos disruptores na produção do desejo majoritários e institucionalizados em diferentes instituições sociais. O marginal, com suas potências, cria maneiras que entende como alternativas ao que está se mostrando como majoritário do ponto de vista do controle de um modo “normal” de subjetividade. Entendemos aqui que é o desejo que manifesta o Movimento Social FOME. Desejo pela singularização do que é periférico ou das “quebradas”. Os movimentos majoritários tendem a criar uma subjetividade padronizada e conservá-la, enquanto os “marginais” querem transformá-la, não no sentido da busca por ser igual ao que institucionaliza os movimento majoritários, mas no de ser respeitado como diferente.

Como nos orienta Guatarri e Rolnik (1996), o desejo é motor de uma economia coletiva, de agenciamentos coletivos que, em algumas situações, podem se individualizar, mas que não geram concepções rígidas e estáveis de identificação e modelização da subjetividade. Para os autores, ao contrário, é a produção de subjetividade capitalística que tende a individualizar o desejo, tendendo a uma estabilidade e seriação de identificação manipulada pelos equipamentos capitalísticos, sejam aqueles vinculados ao consumo, sejam os demais ancorados nas diversas instituições sociais, inclusive a escola. Não é esse tipo de desejo que se discute aqui. O que se quer discutir é essa tensão entre o movimento majoritário que tende à criação de estabilidade e seriação de subjetividades e a economia coletiva de agenciamento de desejos múltiplos, situado em lugar social visto, por segmentos sociais que administram os instrumentos de controle capitalístico como marginal. Portanto, o marginal é transformador contra o movimento majoritário capitalístico que tende a controlar e estabilizar os corpos.

Entretanto, o artigo tende a ocupar um ponto de vista que parte da perspectiva do movimento minoritário que vem da periferia da cidade e se propõe a lutar por uma humanidade mais justa e plena. A discussão é sobre o processo, não sobre os resultados. A busca pela humanidade plena, implícita nesse movimento transformador, vai ser mais bem discutida à frente, a partir de outros marcos teóricos que complementam a discussão até o momento posta, situando esse debate no recorte temático proposto para o artigo.

O texto também promove outros deslocamentos, fugindo da ideia corrente de que o professor, no sistema escolar formal, teria competência pedagógica exclusiva para ensinar como viver na cidade. Já é comum alguns intelectuais que estudam e pensam a educação falarem que o professor não é só o que ensina, mas é o que aprende também. Não pretendemos desconsiderar a importância desse profissional e da escola formal como condutores da aprendizagem, mas pensar que o profissional que tem a prerrogativa de ensinar pode ser visto como aprendiz também é fundamental para entender a importância da educação não formal e a complexidade de como se constitui o aprendizado nesse contexto. A pedagogia freiriana já coloca isso com maior maestria, valorizando a interação coletiva, o diálogo e o movimento característico do processo ensino-aprendizagem (Freire, 1987). Desmonta-se para melhor pensar, sem destruir, hierarquias rígidas que estimulam a pensar autoridades morais e posições hierárquicas definitivas que teriam a competência exclusiva de ensinar, segundo o que pregam algumas correntes pedagógicas liberais conservadoras, que vão ser mais bem discutidas mais à frente neste artigo, refletindo com base nos argumentos de Libâneo (1989). A algumas tendências pedagógicas influenciadas pela lógica liberal concedemos o crédito de justificarem até hoje lógicas hierárquicas e rígidas que definem aqueles que ensinam como superiores e aqueles que aprendem como passivos na aprendizagem.

Nesse sentido de mostrar a educação em lugares fora da escola, alguns autores já trabalham com a ideia de que a cidade educa. Carrano (2003), por exemplo, propõe algumas recusas que são interessantes para os propósitos deste artigo. A primeira é a da ideia, já antecipada aqui, de que o jovem aluno não é sujeito de conhecimento e ação. O aluno não é passivo para o autor. Propõe também ir para fora da escola pensando a cidade como educadora, deixando de lado aquele tipo de pensamento que entende a escola como espaço exclusivo de processos educacionais. Para ele, o educativo são as relações sociais, não somente as práticas pedagógicas da instituição escolar que, geralmente, procura conformar os corpos dos alunos a modelos de saberes e fazeres. Entretanto, o espaço de relações sociais na cidade, segundo o autor, é praticado e resultado de trocas de aprendizados que não se dão em fluxos livres. As possibilidades de apreensão e aprendizado são limitadas e mediadas por coações estruturais complexas e distintas nos diferentes espaços sociais da cidade.

Ainda acompanhando os argumentos de Carrano (2003), os jovens, se os considerarmos como protagonistas neste artigo, como promotores de processos educacionais, devem ser entendidos em seu contexto sociocultural. Não há unidade na juventude de uma cidade. A busca por autonomia cognitiva e aprendizado social é mediada por uma incompletude, que vai ser uma constante na vida, mas, na juventude, parece ser ainda uma descoberta. Isso gera um desejo de mudança para aqueles processos em que os jovens de um determinado lugar avaliam como problemáticos.

Se a cidade é plural, do ponto de vista estrutural e simbólico, então as juventudes são também plurais e diferentes. A juventude que mora em bairros periféricos pobres não é a mesma da que mora em bairros mais ricos. Mesmo essa juventude da periferia pobre carrega diferenças internas. Em função de problemas estruturais presentes nos bairros periféricos e da segmentação da cidade, os coletivos, os grupos formados geralmente se diferenciam nas experimentações de construção de sentido de identidade cultural no cotidiano e definição do que é próprio do lugar que moram, territorializando-o em suas práticas diárias com base em seus desejos e em suas potências, gerando também conflitos e tensões.

Os saberes e fazeres desses grupos periféricos são experimentações híbridas, ao mesmo tempo que definem fronteiras que tendem a falar de identidades distintas, sejam elas individuais, sejam coletivas. É o caso da ideia de uma “cultura das quebradas”, termo muito usado por jovens moradores da periferia das cidades para falarem de suas características culturais peculiares, especialmente as artísticas, ao mesmo tempo que esse termo tende a demarcar identificações e territorializações de lugares, práticas e saberes. As “quebradas” são uma categoria que serve para nomear seu lugar de moradia e de fala. É um lugar pobre, com condições sociais e de estruturas urbanas precárias. Mas, na fala de alguns grupos de jovens, as “quebradas” aparecem como símbolo de resistência, de luta por condições de vida melhores e de busca de respeito para quem vive lá. É um termo que fala da exclusão social violenta, provocada por um sistema econômico seletivo e cruel, ao mesmo tempo que é subjetivado por alguns segmentos sociais periféricos para mostrar uma força de resistência, de luta por melhores condições de existência, tentando romper a lógica do preconceito e da exclusão social. Faz parte da revolução molecular já mencionada aqui.

Assim como os jovens, todos nós somos praticantes do mundo que vivemos e criamos. Por esse motivo, entendemos aqui que a expressão “pedagogia da invenção da realidade cotidiana na periferia” seja mais aplicável aos propósitos deste artigo, já que serve para frisar a dimensão territorial da agência na territorialização da cidade educadora por parte de moradores jovens dessa espacialidade. Villar (2001) define cidade educadora como conceito que abriga a gênese de ações que incluem o território vivido como lugar de educação. Para isso, a administração do território deve ser relacional e oferecer alternativas inovadoras de ação social com convergência e transcendência de dinâmicas envolvendo associativismos, desenvolvimento cultural, políticas socioeducacionais, participação, acesso a recursos, tudo de forma descentralizada e com trabalho em rede colaborativa. Pensamos que o FOME tenta fazer isso nos bairros onde atua.

“Pedagogia da invenção da realidade cotidiana na periferia” tem o mesmo sentido que Muñoz (2004) chamou de “pedagogia da vida cotidiana e participação cidadã”. Para o autor, é no cotidiano que pensamos, sentimos e agimos. É o tempo em que o corpo cria o mundo. Portanto, é no cotidiano que a utopia de melhorar o mundo se apresenta e deve ser fomentada desde criança. O autor trata dois espaços escolares em São Paulo que usam metodologias que visam promover a cidadania de crianças e adolescentes, integrando escola e comunidade sem hierarquias. A participação plena, inclusive de crianças, é a chave para essa proposta em que todos aprendem e ensinam.

A diferença aqui é que estamos tratando de um ponto de vista de uma espacialidade específica, que abriga corpos que territorializarão o espaço geográfico e que têm agentes não integrados à escola. No FOME, alguns de seus integrantes fazem parte do sistema escolar e outros não. O desejo agenciado pelo movimento tenta imprimir uma subjetivação que fala de um lugar periférico, marginal, no sentido exposto aqui por querer a transformação. Portanto, falar da “pedagogia da invenção da realidade cotidiana na periferia” tanto tem relação com um lugar geográfico de fala, como também com o ato criativo do desejo pela transformação, frisando esses dois aspectos. Para efetivação de um processo educacional nesse viés, entendemos aqui que não é propriamente a cidade geral e plural o foco, mas um recorte geográfico dela que fala de um sujeito periférico que educa, com suas diferenças, tensões e relações, portanto, pedagogias bastante complexas e situadas em um espaço social também de extrema complexidade. Neste caso, valoriza-se aqui o esforço da subjetivação do processo educativo, tendo como agentes jovens moradores da periferia que se organizam em coletivo que promove atividades artístico-culturais no bairro que moram, como é o caso do FOME, sem a pretensão de entendê-los como exemplos modelados que representam a juventude periférica, mas como um segmento do desejo pela transformação que vem da periferia. A ideia é mostrar que eles entendem que têm algo para ensinar e acrescentar aos conteúdos escolares que discutem a cidade e as práticas sociais nessa espacialidade. Como o morador jovem da periferia pode educar outros moradores através de suas ações pedagógicas no cotidiano? Que implicações esses saberes têm para se pensar o ensino formal, especialmente aquele direcionado a fazer o aluno entender sua realidade social e cultural na periferia?

Não se quer aqui pensar que os movimentos sociais e a escola têm a mesma finalidade. Alguns aspectos são importantes para pensarmos. O primeiro, já dito aqui, envolve os integrantes do movimento: alguns deles têm vínculo com o sistema escolar e outros não. Além disso, as escolas próximas da região onde o movimento atua abrigam alunos que são vinculados ao território chamado aqui de periferia, inclusive em bairros onde o FOME atua. Outro aspecto a ser considerado é que, no caso da escola, ela faz parte de um sistema de ensino regulado por normas nacionais, em alguns casos estaduais e municipais também, que dão a ela certas prerrogativas e cobranças, limitando algumas possibilidades de práticas pedagógicas que possam propor mudanças mais radicais. No caso dos movimento sociais, do ponto de vista das práticas pedagógicas de educação não formal, teriam mais liberdade de pensar metodologias diferentes, já que não fazem parte do sistema regulador do ensino.

Ao mesmo tempo, como nos ilumina Gusmão (2015), em função de uma influência crescente de determinadas correntes da Psicologia, a escola tem sido levada a investir no processo educativo pensado como ação educativa, deixando de lado uma reflexão mais ampla sobre o campo educacional. A autora entende que a ação educativa tem um propósito mais prescritivo no que se refere ao processo de interiorização dos valores e das práticas inerentes à “ordem” social. Ao pensar o campo educacional, a autora entende que se abre a possibilidade de se compreender melhor a sociedade em que se vive, envolvendo, inclusive, a política e a moral inseridas em um campo de disputas e relações de poder, em que todos são alunos e professores. Consideram-se assim o movimento e as transformações do mundo social. Por isso, deve-se pensar a escola como um dos elementos do processo educacional. Não se pode falar de educação sem se falar da cultura mais ampla em que a escola está inserida. Entretanto, essa cultura é heterogênea, mutante e múltipla. Nesse caso, devemos pensar as ações educativas no campo educacional propondo uma gestão de um conhecimento compartilhado, não separando a escola da comunidade não escolar ou fazendo oposições entre esses elementos. Diante disso, não há oposição entre ações educacionais gestadas no sistema formal de educação e nas práticas não formais dos movimentos sociais. Aqui neste artigo, não se propõe isso.

As proposições aqui apresentadas estão sustentadas no aprendizado promovido por experiências relacionadas a pesquisas vinculadas ao Laboratório das Memórias e das Práticas Cotidianas (LABOME),2 da Universidade Estadual Vale do Acaraú. Desde seu surgimento, em 2003, ele tem como uma das linhas de pesquisa a atuação no campo do patrimônio cultural. É um arquivo público de documentos especiais, particularmente vídeo, áudio e fotografia. O propósito do LABOME não parte do pressuposto de que os acervos nesses suportes, pensando a guarda, servem para a conservação e difusão das tradições vinculadas à identidade coletiva de uma comunidade. Pressupõe-se que a cultura deve ser pensada como invenção criativa de pessoas engajadas em interesses múltiplos, sustentados em preceitos políticos e morais que usam de sua forma de comunicação e manifestação cultural para afirmar e impor sua forma de ver o mundo, inventando-o criativamente e o tornando seu patrimônio. A proposta do LABOME é ampliar a noção de patrimônio cultural, partindo para o trabalho com lugares além dos limites do sítio histórico.3 Foi aí que começou o encontro com a periferia pobre da cidade de Sobral.

Mas o que vai fundamentar melhor os argumentos aqui expostos é a proposta de adotar uma perspectiva compartilhada de produção de saberes e fazeres entre pesquisadores e pesquisados usando a linguagem audiovisual na continuidade desse projeto vinculado ao LABOME sobre patrimônio cultural. O filme “Arte e cultura na Periferia - ACP” (2016),4 produzido com o Movimento Social FOME em 2015, foi o que consideramos um “filme de entrada” para iniciarmos uma parceria que gerou o interesse de um dos integrantes do FOME em entrar no curso de Ciências Sociais e virar bolsista do LABOME. Em 2019, o referido aluno passou a integrar o quadro discente do Mestrado Profissional de Sociologia em Rede Nacional (PROFSOCIO)5 e assumiu, como tema de sua dissertação, a proposta de mostrar que as comunidades “das quebradas” também têm algo a colaborar na produção de material didático para a escola.6 Ele é um dos autores deste artigo.

Essa proposta de trabalho para o PROFSOCIO está influenciando a gestão de algumas concepções que estão sendo discutidas até aqui neste artigo. Por exemplo, ao pesquisarmos sobre o movimento inventivo da cultura, entendemos que essa invenção criativa (Wagner, 2010) das pessoas que vivem em uma comunidade não é prerrogativa somente dos interlocutores do pesquisador. É também uma ação do próprio pesquisador. Ele inventa a cultura com seu interlocutor, compartilhando experiências e o próprio processo inventivo expresso em diferentes linguagens, inclusive a audiovisual, como é o nosso caso no LABOME. Assume-se, assim, essa condição de coparticipação.

Foi na periferia, especialmente no bairro Terrenos Novos, que ocorreu o encontro entre a equipe do LABOME e o FOME.7 O Movimento Social FOME é um coletivo de jovens moradores do bairro periférico Terrenos Novos que tem alguns agregados e ações em outros bairros próximos, especialmente no Residencial Nova Caiçara e bairro Vila União. Tem inspiração anarquista, é baseado na autogestão, sem hierarquias, e volta suas atividades para promover a relação entre expressão artística e engajamento político de resistência às opressões do sistema econômico e político vigente para promover o fortalecimento e a mobilização da comunidade dos bairros que atuam contra esse sistema. Os articulistas vivenciam experiências de pesquisa compartilhadas no bairro periférico que fazem pensar os objetivos propostos para este artigo.

PERSPECTIVAS DE UMA PEDAGOGIA NÃO ESCOLAR: VIVENDO A PERIFERIA DA CIDADE

Diante da experiência de pesquisa compartilhada exposta, faz-se um recorte sobre a compreensão do processo educativo não escolar, particularmente o que está sendo construído pelo FOME. As periferias das cidades são espaços férteis para se pensar em pedagogias da invenção da cultura e da cidade. A experiência de pesquisa compartilhada entre a equipe do LABOME e do FOME nos ensinou isso.

Começou-se a perceber, com a pesquisa, por exemplo, que a periferia não é um espaço de “crueldade” ou lugar próprio da violência, da miséria e da precariedade urbana, exclusivamente. Esses aspectos existem e são fortalecidos por um “pânico moral”, resultante de efeito espiral espetacularizado (Machado, 2004) em notícias que se espalham via veículos midiáticos e através de alguns grupos de pressão que criam diferentes formas de comunicação de uma versão dos “fatos” por meio dos quais se convencionou chamar “opinião pública”, inventando a imagem de que a periferia é o lugar da violência e da miséria humana. Isso acaba repercutindo em instrumentos de políticas públicas que justificam ações voltadas a populações pobres, respondendo à violência com mais violência, entre outros meios. Esse movimento cria o pânico moral que vai gerar imagens negativas dos bairros periféricos. Esse pânico também justifica uma visão de que aqueles que não são controlados merecem atos violentos sobre seus corpos, como nos aponta Mbembe (2016), chamando esse movimento de necropolítica.

O acervo criado pelas experiências compartilhadas entre FOME e LABOME é citado aqui para lembrar que, nas entrevistas especialmente, percebemos que, na fala de muitos moradores dos bairros periféricos, existe também uma agenda positiva criada para qualificar o seu lugar, inclusive se posicionando contra essa ideia de lugar da violência.8 O indivíduo que vive nesse lugar está imerso em relações nas quais compartilha experiências de vida muito ricas com os demais. No cotidiano, somente o ato de ouvir seu interlocutor, entre outras ações, já promove algum tipo de comprometimento e afecção, fazendo com que o lugar seja entendido como território móvel e diverso de relações. Ser afetado, para Siqueira e Favret-Saada (2005), é experimentar individualmente relações e provocar, em si mesmo, algum tipo de aprendizado sobre a forma de percepção do mundo, via situações que não são totalmente controladas. De fato, as autoras estão falando do fazer pesquisa social. Entretanto, esse movimento não é exclusivo do fazer pesquisa. Com efeito, é algo que acontece no contexto de relações sociais entre diferentes agentes.

Portanto, entende-se aqui que, nas relações interpessoais no cotidiano do bairro, a situação não é diferente. Seria próximo ao que Deleuze e Guatari (1997) chamam de devir. As relações cotidianas no bairro periférico apresentam movimentos nos quais os agentes individuais saem de sua zona de conforto e promovem movimentos no seu modo de pensar e agir, estabelecendo relações com seus pares que nem sempre são confortáveis, controláveis e desejáveis ou são coniventes com aqueles que são dominantes. Nesse caso, o afeto não tem relação somente com emoção e sentimento. O afeto promove o devir que desordena qualquer forma de definição fixa de identidade pessoal ou coletiva substancial e estável. Na relação cotidiana, trata-se de se afetar, uns mais e outros menos, por forças, potências e desejos individuais e coletivos, situados em contextos sociais e de relações de poder específicos. Não se está falando aqui que, em algum momento, os interlocutores vão chegar ao consenso sobre os elementos que os identificam coletivamente de forma rígida, nem ter empatia incondicional entre todos. É, na verdade, criar com seu interlocutor, uma certa modalidade de relação para aquelas situações contextuais de encontros e desencontros, em que cada um avalia e age de acordo com os códigos e as práticas que tentam inventar para o momento.

Ao deixar-se afetar, corre-se o risco de desfazer-se o projeto individual de conhecimento e prática cotidiana rotineira com seus pares e, ao mesmo tempo, aprimorá-los. É um jogo em que se conhece mais ou menos as regras, mas não se tem o controle total delas. O descontrole parcial dos afetos também acontece nos efeitos das agências individuais que buscam um controle sobre o território. Nem sempre o efeito da agência individual é o que se espera dela. Ao mesmo tempo, o indivíduo não sabe exatamente como vão ser as agências dos demais envolvidos nas “jogadas”. Até porque as forças envolvidas não são iguais. O que provoca o deslocamento, a mudança ou a transformação é sempre aquele que resiste ao que é dominante. Se o projeto de conhecimento for entendido como imutável, não acontece nada, favorecendo àqueles que já detêm o poder de dominar e controlar as ações, como é o caso da Prefeitura Municipal, a escola, por exemplo, entre outros classificados socialmente como tendo poder de mando institucionalizado. Nesse caso, afetar é envolvimento, compromisso compartilhado, pensado e acionado pelo agente em situações nas quais se promove a relação. Por parte daqueles que detêm poder maior de definição e controle, procura-se estabilidade nessa relação, através de um desejo de segurança, mas essa busca é sempre acompanhada pela incerteza no sucesso desse desejo, o que pode ser desestabilizado pelos que detêm menos força. A ação individual busca estabilidade e precisa de sensibilidade para reconhecer como agir com maior segurança diante da complexidade da relação com os interlocutores, mesmo não tendo certeza da eficácia do ato, já que existem movimentos contrários. Essa condição de ser afetado serve também para pensar o processo educacional.

Há um movimento de territorialização e desterritorialização constante por parte dos usuários do espaço (Haesbaert e Bruce, 2002) sendo negociado pelos diferentes agentes que atuam no lugar, inventando significados, afetos, desejos, potências e práticas cotidianas que criam um território muito pouco estável e difícil de ser definido enquanto identidade coletiva rígida em função de sua transitoriedade. Essa instabilidade entra em tensão com o desejo da estabilidade identitária e a coloca em movimento. Entretanto, não é um movimento linear. É rizomático, se espalha. Portanto, a periferia é muita coisa, tanto o que está lá, quanto o que entra e o que sai dela. Só não é uma identidade estável, mesmo que alguns esforços individuais e coletivos tentem inventar e agir nesse sentido. É fluxo, ao mesmo tempo busca a definição de território e de lugar identitário. É tensão, portanto, movimento.

A invenção de uma pedagogia que ensina como viver nesse turbilhão de movimentos passa a ser uma necessidade premente para o morador que se apega, geralmente, em uma agenda positiva de identificação do seu lugar, contrariando o pânico moral e a necropolítica que associa seu lugar como violento, justificando a violência seletiva do Estado. Ao menos é o que se percebe nas entrevistas e nos registros audiovisuais e sonoros produzidos pela equipe LABOME em parceria com o FOME. O morador da periferia informa sobre a violência, mas a identifica como não tendo um lugar próprio, negando que seja uma característica exclusiva de seu lugar de moradia. Entretanto, mesmo falando da violência, é comum relacioná-la também como sendo praticada por aqueles que, supostamente, teriam a função de protegê-los, como é o caso dos agentes de segurança pública. A violência com que esses profissionais chegam no bairro é constantemente denunciada pelos moradores. Mesmo assim, é comum ouvirmos elogios ao seu bairro, falando que é um lugar bom de se viver e que não trocariam por outro.9

A afecção dos moradores da periferia e de qualquer lugar provocada pelas diferentes agências cotidianas, portanto, é um processo educativo. Nesse sentido, podemos observar, nesses anos de experiência de pesquisa vivenciada nos bairros periféricos, iniciados ainda no fim da década de 1990, quando começamos a nos preocupar com a discussão sobre patrimônio cultural e passamos e compartilhar experiências na periferia da cidade de Sobral, vários processos educativos que estão sendo executados e elaborados longe do ambiente escolar. Só que não são lineares nem consensuais.10 Em muitos casos, há conflitos. Não se está aqui expondo nenhuma novidade. Mas vale lembrar, mais uma vez, que a escola, nesse sentido, não é o lugar exclusivo que detém ou fornece o conhecimento e favorece o aprendizado cultural, como já dito. Mesmo assim, a tendência é vermos a escola como espaço institucionalizado que executa suas funções educacionais com toda a sua caracterização de manter os corpos dóceis, sempre adestrados a uma disciplina reprodutora de uma determinada ordem que não é planejada a partir da participação de toda a comunidade escolar, democraticamente. Pelo menos, essa é uma concepção e prática ainda corrente em muitas escolas em Sobral. Há sempre uma ideia corrente de que o corpo gestor, docente e técnico, é que teria essa competência de planejar o modelo de educação a ser seguido, excluindo discentes e comunidade de pais e parentes desse planejamento. No máximo, a comunidade de pais e parentes é avisada do que vai ser feito na escola e é convidada a ajudar na execução do que foi planejado.

Existe uma tendência na escola a adotar uma pedagogia sobre o corpo do aluno, entendendo-o como um objeto a ser domesticado e docilizado. Para Foucault (1999), o corpo dócil apresenta-se como um autômato que foi manipulado a fim de receber e reproduzir aquilo que lhes ordenam. A rebeldia desse corpo dá lugar a uma máquina-corpo adestrada a apenas receber ordens sem questionar as finalidades de seu posicionamento humano naquele espaço e tempo. Essa tendência, que ainda toma conta de algumas escolas, aponta para necessidade da submissão do corpo que pode ser transformado e aperfeiçoado.

Por outro lado, alguns corpos se rebelam, mostrando seu descrédito na escola, o que é convencionalmente chamado de “indisciplina” do aluno. É comum não se perguntar ao jovem o que ele quer fazer quando está na escola. Só ordenam, como se a gestão escolar ou o professor fossem os possuidores do saber verdadeiro e o jovem um simples receptáculo de conhecimento; um incapaz cognitivo e emocional. É uma tipo de pedagogia baseada na memorização de conteúdo, muitas vezes, desvinculada das vivências cotidianas do aluno e longe de sua capacidade cognitiva.

Logicamente que, além dessa tendência pedagógica disciplinadora dos corpos, existem outras; apesar de esta ser muito forte em algumas escolas de Sobral. Libâneo (1989), por exemplo, a chama de “tendência pedagógica liberal tradicional”. Dentre as demais tendências liberais, que apontam para formação de aptidões individualistas, o autor chama atenção para a renovada, renovada não diretiva e tecnicista. Na renovada, o aluno aprende de acordo com faixas ou estágios que designam graus de raciocínio. A variante renovada não diretiva inclui a dimensão do autoconhecimento em busca da realização pessoal. Já a tecnicista tende a ser voltada para a profissionalização em função do mercado de trabalho. Em Sobral, podemos ver um pouco de todas essas características, dependendo da escola, da gestão e até do professor. Entretanto, a crítica aqui feita vai em direção àquelas que praticam uma pedagogia liberal tradicional, nos termos do autor.

Libâneo (1989) também chama atenção para as pedagogias progressistas, que são três: a libertadora, a libertária e a crítico-social dos conteúdos. A primeira teria como foco a conscientização do aluno para a transformação da realidade social em que vive. Os conteúdos são trabalhados de acordo com as vivências sociais dos alunos. A relação do professor com o aluno é mais horizontal. A libertária insere a prática democrática de decisão coletiva da aprendizagem, dissolvendo hierarquias e práticas escolares rígidas. Já a crítico-social usa a escola como instrumento de luta política através da dialética e do confronto de ideias.

Pensamos aqui que a educação que se faz e se aprende nos espaços não escolares, particularmente a que acontece na periferia e, mais especificamente, as atividades formativas e artísticas do FOME colocam como proposta de desconstrução a própria maneira de se pensar e fazer educação, para além das salas de aulas e para além do sistema de classificação das tendências pedagógicas, aqui resumidamente expostas, já que colocam em evidência o campo educacional sem se preocuparem com enquadramentos rígidos relacionados às correntes pedagógicas. Os processos educacionais não escolares do FOME se constituem de expressões que amplificam e tornam mais complexa a relação do ensino com a aprendizagem. A vida cotidiana na cidade ensina muita coisa e de diferentes formas. Os cruzamentos desses “métodos diversos de ensino” na vida cotidiana na cidade, muitas vezes, provocam tensões e descontroles por parte dos agentes envolvidos. Mas, em outros casos, tendem a criar um sentimento de unidade.

Vale a pena descrevermos o caso do que faz o Movimento Social FOME. Como dito, é um coletivo de jovens, moradores da periferia, que promovem atividades culturais, especialmente nos bairros Terrenos Novos, Residencial Nova Caiçara e Vila União. O coletivo tem uma proposta de autogestão, sem hierarquias internas, o que também já foi dito. São voluntários que discutem as diferentes maneiras de transformar radicalmente o modelo de relações sociais pautado no individualismo e na lógica das explorações econômica, social e política vigente no país. O instrumento básico para isso é mobilizar os moradores do bairro através de atividades como: Biblioteca Ambulante, Biblioteca Comunitária Adalberto Mendes,11 Cine Mucambim,12 Batalha do TN,13 Jornal Comunitário TN em Foco, Web Rádio FOME,14 além de atividades voltadas para a oficina de grafite. Existe no coletivo o Núcleo Feminista Mulheres do Gueto, voltado para pensar atividades direcionadas para discussões sobre gênero, ampliando a perspectiva dualista e desconstruindo a falsa oposição entre dois sexos, pensando também a diversidade de outros gêneros. O núcleo organiza o Miss Perifa, concurso de beleza que envolve não só mulheres, mas também outros gêneros LGBTQI+.15 O FOME promove o sopão comunitário, distribuindo alimentos a partir da colaboração e doação da comunidade. Também promove formação política, especialmente discutindo, teoricamente, o anarquismo e a crítica que essa tendência teórica e política promove contra o modelo de sociedade que vivemos. O FOME organiza sarau artístico batizado de “Força e Resistência” para que os moradores possam se expressar com poesias, música e dança.16

Essas e outras atividades são pensadas como expressões que englobam manifestações educacionais e estão preocupadas em produzir ou reproduzir uma pedagogia do fazer, que ali se manifeste coletivamente. É próxima de uma pedagogia libertária. Entretanto, não tem a pretensão de se entender a partir de uma escola pedagógica formal e institucionalizada. Por isso, não se preocupam em criar uma entidade com estatuto e hierarquia interna. O propósito é perceber, nesses processos educacionais não escolares, via atividades culturais, a potencialidade de uma educação que se preocupa em valorizar as pessoas dentro de suas individualidades, coletividades e singularidades. É tornar os processos educacionais não escolares mais próximos dessas pessoas que se rebelam contra o sistema educacional institucionalizado. Melhor dizendo, nas ruas e praças das periferias, o que podemos ver é um movimento que não está descolado da construção de uma humanidade plena.

Vale a pena discutir o que significa humanidade. O problema é que o conceito corrente restringe sua constituição a um modelo abstrato, que oferece um cardápio pronto em forma de vida, existência e hábitos comuns. A consequência desse modelo, entendido como básico de humanidade, acaba separando alguns considerados “quase-humanos”, como acontece noutros modelos de escola mais liberais, no sentido exposto por Libâneo (1989), e até em alguns modelos pedagógicos progressistas, quando falam dos “indisciplinados” que não se adaptam ao controle de seus corpos. A eles se justifica a punição, já que estão destituídos daquilo que se convenciona entender como regra de convivência e conveniência de práticas e pensamentos.

Krenak (2019) vai nos chamar atenção para o fato de que é comum se pensar a humanidade, naturalizando uma relação desigual entre aqueles que se dizem esclarecidos, que sentem a necessidade de ir ao encontro e intervir nas dinâmicas sociais, daqueles considerados pelos primeiros como humanidade obscurecida, inocente porque são despossuídos ainda da razão. Essa “inocência” é usada para justificar ações que visam discipliná-los e controlá-los, no sentido da exploração, para que possam ser civilizados. A relação de força e poder assimétrico entre os “iluminados” e os “ignorantes” despersonaliza aqueles que estão no lado mais fraco da relação, os “ingênuos”, e os tornam objeto de manipulação de suas forças. Após o consumo e a tentativa de extinção da “inocência”, acabam virando restos, resíduos que podem ser descartados se não se transformarem de “quase-humanos” em “humanos”. Nas concepções pedagógicas que Libâneo (1989) chama de liberais, só são considerados humanos aqueles que adotam um determinado padrão civilizatório, visando ao consumo desenfreado do mundo. A tendência, nesse movimento, é pensar que existem coisas fora de nós e o “nós”. O que está fora é entendido como outro. O “outro” é o “inocente” que não se consegue converter, assim como a natureza é também o outro. O humano, nessa perspectiva, não se entende como integrado à natureza. O “esclarecido” define “sub-humanidades”. As “sub-humanidades”, segundo Krenak (2019), ficam nas bordas do planeta, meio esquecidas. Para o autor, a abstração civilizatória suprime a pluralidade das formas de vida. A tendência é de que as periferias da humanidade sejam deletadas.

É possível fazer a mesma analogia com relação ao espaço urbano. As “quebradas”, quando pensadas como espaço da violência, são uma forma de definir um lugar próprio da não-humanidade. Os moradores, portanto, são pensados como “inocentes vítimas” que, em função da ignorância, precisam ser assistidos por instituições as quais possam agenciar o padrão civilizatório, pautado em separar e classificar como “desclassificáveis” para buscar integrar. Os que se rebelam são considerados pelo padrão civilizatório como inconsequentes e acabam sendo classificados, por parte dos “civilizados”, como não humanos, no sentido negativo do termo.

Esse investimento em criar “clientes” que teriam a obrigação de consumir, favorecendo a destruição do que consomem, para que possam consumir mais, passa a esquecer a ideia de cidadania plena e de respeito à diferença. Pensa-se aqui as ações que visam trabalhar a cultura, mesmo restringindo-a ao recorte artístico, como no caso do FOME, como tendo potencial de redefinir e ir contra esse exercício de padronização de uma humanidade homogênea. Uma ecologia complexa dos saberes e fazeres favorece a inspiração para se pensar uma ecologia do lugar que integra experiências cotidianas diversas, vivenciando pedagogias criativas na idealização de como pode ser a prática comunitária. O esforço de respeito à diferença desconstrói o que Krenak (2019) chama de “humanidade zumbi”, adiando o “fim do mundo”. Enquanto pudermos sonhar, circular, viver novas experiências com aqueles espaços e tempos diferentes, enquanto pudermos contar novas histórias e experimentar de forma sinergética o mundo, podemos adiar a consolidação definitiva desse projeto de humanidade destrutivo, colonialista e pautado no consumo, adiando o “fim do mundo”.

O que acontece na periferia de Sobral com o movimento social FOME pode ser entendido como uma resistência a esse modelo destruidor. Resistência que tem várias formas.17 Uma delas se refere à intenção do coletivo de não perder sua autonomia, mesmo estando aberto para negociar com aqueles que estão no poder sobre a definição do que se deve fazer na cidade e no bairro periférico. Nas suas atividades culturais, fazem porque se organizam, entre eles, decidindo coletivamente o que fazer e como fazer. Ao se relacionarem com agentes do estado, os jovens que constituem o FOME decidem, coletivamente, admitir ou não esse envolvimento, buscando negociar os termos para não perder sua autenticidade e autonomia. Nesse caso, a criatividade, a poesia, o lúdico, a dança, a moda (periférica), a música, entre outras atividades artísticas inspiram resistência, mas com autonomia, o que acaba influenciando, inclusive, agentes do Estado, como já aconteceu em Sobral, em eventos promovidos pelos agentes das políticas culturais locais. A perda de autonomia é sempre um problema, porque sem ela os coletivos acabam sendo engolidos pelo investimento na padronização civilizatória que também acomete os esforços das políticas públicas no âmbito da cultura artística.

Outro aspecto relacionado a essa resistência é a possibilidade de expansão da subjetividade, não aceitando a homogeneidade cultural imposta pelo modelo civilizatório. Dentre os jovens envolvidos no FOME, não se pensa na igualdade cultural no sentido da padronização rígida, a não ser que seja uma decisão coletiva, o que é sempre problemático e gera tensões entre os integrantes do coletivo. Na periferia, especialmente essa pensada pelas ações do FOME, procura-se criar uma sensação de humanidade, em que o coletivo é uma sinergia de misturas de desejos, afetos e potências que tentam caminhar juntos. Se conseguem ou não, de fato, é outra questão. Isso porque depende muito dos desejos, dos afetos e das potências individuais dos envolvidos. Os conflitos e as tensões fazem parte desse processo de fazer e acontecer na cidade. As tensões enriquecem e criam o movimento.

A transcendência dessas experiências é que dá sentido à vida no lugar. A arte acaba sendo um instrumento importante para esse exercício, no qual podemos sentir que não estamos sozinhos. Ao mesmo tempo, favorece a criação de uma sensação de responsabilidade sobre o mundo, nos integrando a ele de forma mais coletiva. Somos únicos, porque somos coletivos, compartilhando nossa pluralidade. Não temos como nos entender como sujeitos sem a comunhão e o compartilhamento de responsabilidades. Quando classificamos as pessoas como não humanas, as despersonalizamos. Dessa forma, liberamos contra elas ações destrutivas. Ações que também vão ao encontro do espaço geográfico social do que se define como não civilizado, fortalecendo o pânico moral e o medo de circular nele. É isso que faz com que a violência, por parte do Estado, seja entendida como justa por alguns segmentos sociais que se entendem “civilizados” e “humanos”. A polícia pode chegar batendo, ofendendo, exatamente porque, nessa perspectiva, estão fazendo isso com o “outro” classificado como não humano.

Essa violência nos faz perceber um outro aspecto da resistência: a tentativa de mostrar que o morador da periferia é humano, ao contrário da visão corrente de entender a periferia como lugar do que é cruel e criminoso. A humanidade, na perspectiva da resistência, tem um sentido crítico porque provoca uma cisão na proposta do modelo civilizatório que visa à homogeneização. Essa reação leva a algumas considerações radicais pautadas no pânico moral de alguns segmentos sociais que entendem que o morador desse lugar sequer tem direito à vida. Para esses segmentos, torna-se mais fácil entender que todos que vivem no mesmo local também são criminosos cruéis. Essa atitude de negação da vida tem reações por parte da comunidade do bairro. Nas atividades promovidas pelo FOME, é comum a reação contra essa atitude de truculência policial, por exemplo. Para esses jovens, a resistência e a crítica ao “sistema”, incluindo as forças de segurança, é uma atitude de compromisso com a vida. A arte passa a ser um exercício político e moral de definir os rumos do sentido prático da defesa da vida do morador das “quebradas”. A busca é por uma vida sem medo, inclusive indo de encontro àqueles que, no bairro, também praticam a violência. Há uma disciplina e orientações pautadas em um modelo de formação social, decidida de forma compartilhada, que usa o sonho, a criatividade, portanto, a arte como caminho para o aprendizado, ao mesmo tempo o autoconhecimento, visando à invenção de uma cultura de paz em uma comunidade constituída por diferentes subjetividades e sustentada na tolerância aplicada a seus vizinhos e aos que são diferentes.

Acompanhando esse movimento complexo da resistência, entende-se aqui que esta seja a chave para se pensar uma educação sem um lugar próprio. A escola, pensada como lugar próprio e institucionalizado de educação, pode aprender com a resistência que se apresenta nas ruas das periferias da cidade.

O QUE AS “QUEBRADAS” ENSINAM PARA A ESCOLA?

Gusmão (2015) reforça que, dentro dos processos educativos não escolares, surge a necessidade de se pensar uma educação em sentidos múltiplos de metodologias, já que ela está na experiência no mundo. Essa necessidade de pensar padrões educacionais e institucionalizá-los interfere de imediato nas mais variadas formas de se estabelecer as relações metodológicas do campo da Educação, pois, dependendo da perspectiva pedagógica, desconsidera a vida lá fora como espaço e tempo criativos de possibilidades educacionais que não se enquadram em ações pedagógicas pautadas em padrões rígidos e orientados pelas políticas educacionais.

A escola, se pensarmos a concepção clássica que discute o conceito de instituição social,18 tende a ser considerada como componente estrutural, integrado a um complexo de relações com outras instituições sociais. Ela é uma unidade multidimensional baseada em um sistema de valores e práticas voltadas ao processo ensino e aprendizagem, sendo uma projeção parcial da cultura de que faz parte. É parte de um todo integrado. Se aceitarmos essa projeção parcial como se fosse o todo da complexidade da cultura, desconsideramos também o movimento e a transformação promovidos pelos agentes que a compõem. Agentes estes que vivem em ambientes sociais diversos, onde a escola é somente uma das instituições influenciadoras de sua formação cultural. Para Velho (1999), o indivíduo, na nossa sociedade contemporânea, vive uma tensão entre polos opostos na sua formação: ao mesmo tempo que é ensinado a ter um “projeto de vida”, identificando-o, valorizam-se mudanças permanentes. Os limites, entre as várias experiências que o sujeito social tem com o mundo, são fluidos, permitindo mutações. Não vivemos só na escola e, mesmo nela, convivemos com outros indivíduos que têm formas de inserção e criação de relações plurais, provocando tensões e mudanças na forma como aprendemos a viver no mundo, algumas vezes em caminhos contrários aos que são ensinados pelos professores. Esse movimento de metamorfose está na escola que tende a desresponsabilizar o aluno do protagonismo da agência de construção de sentido e práticas no mundo, portanto, da invenção da cultura que faz parte e do modelo de como podemos viver juntos em sociedade.

O que vivemos fora da escola vai para dentro dessa instituição social, assim como o que aprendemos dentro dela também levamos para o mundo que está do outro lado do muro, do nosso jeito. As relações familiares, a vida nas ruas e no trabalho, a prática religiosa, entre outras vivências promovem esse potencial de metamorfose nos alunos da escola. A separação entre aqueles que se dizem iluminados e classificam um “outro” como ignorante promove a desintegração do mundo, ao mesmo tempo que sua destruição, assim como justifica a violência, como já dito. As pessoas consideradas pelos iluminados como “não humanas” resistem, são fortes, não são os “coitadinhos indefesos”. Ao contrário, são vítimas do sistema, mas não são passivos “inocentes” e “pobres coitados” diante da opressão e exploração. Elas e eles, apesar da adversidade estrutural, da pobreza e da violência, reagem com os instrumentos que possuem. O FOME é um exemplo.

Como aplicar essa experiência como método de ensino? Entender as experiências nas ruas das periferias como método de ensino, aparentemente, é um erro, já que não é possível pensar em uma institucionalização ou formalização que gera uma patente ou tecnologia social educacional, com modelos definidos e procedimentos operacionais a serem aplicados. Exceto se pensarmos como um método sustentado em experimentos que não são fixos, ou práticas inerentes ao campo educacional. Com o experimento, pode-se pisar nos solos onde se faz e se aprende os processos educativos que fogem ao bojo da escola e da representação de poder hierárquico entre professor e aluno. É um aprendizado compartilhado. São práticas que misturam o plano metafísico, que buscam o entendimento da relação entre potencialidade e atualidade, o suprassensível que ultrapassa o controle das sensações, o choque cultural que mistura as diferenças, assim como é acompanhado de um forte componente emocional. Nesse caso, existe uma vulnerabilidade naquele que age, pois nem sempre consegue alcançar com eficácia uma realização dos efeitos esperados. Nas experiências com o FOME, assim como em qualquer experimento social, veem-se algumas “decepções” anunciadas por parte de seus componentes. Apesar disso, a rua favorece o improviso e a discussão simétrica entre os diferentes agentes. Isso porque, mesmo sendo diferentes, podem dialogar, debater, divergir em regime de coparticipação e corresponsabilidade. Não necessariamente promovendo o consenso, mas dando a oportunidade de divergir e/ou ser tolerante.

Entretanto, apesar de algumas “decepções”, é uma experiência na qual a simetria na relação entre os envolvidos, ou melhor dizendo, a democratização horizontal das decisões é essencial. Todos são iguais na decisão, mesmo sendo diferentes social, política ou culturalmente. Logicamente que alguns são vistos como “lideranças” em função do tempo que dedicam para pensar e implementar as atividades. As relações de poder estão postas, mas num contexto no qual não existe hierarquia institucionalizada. As atividades implementadas pelo FOME têm um caráter público. Lembrando Arendt (1997), o privado se refere ao campo das necessidades imediatas do ponto de vista da sobrevivência biológica, da técnica ou da dimensão material. No campo político formal, em várias sociedades contemporâneas, é visível uma compreensão do processo democrático, como se tivesse caráter privado, em detrimento do público. Em uma linha parecida com outra já discutida aqui, a autora critica para uma tentativa de uniformidade na atividade humana, entendendo-a como modelo certo e verdadeiro, promovendo um conformismo nas relações sociais e políticas, visando tornar a política pública uma atividade de administração de necessidades privadas. O prejuízo, nesse movimento, é do livre pensar da esfera pública, sempre combatido por uma burocratização geral de uma vontade privada entendida como certa.

Acrescentam-se aqui argumentos de Habermas (2003), que afirma que os princípios republicanos de gestão de vontades coletivas, com soberania e no interior de uma identificação com uma comunidade política, que gera dependências mútuas e exige solidariedade, cooperação e compartilhamento de responsabilidades, parece ser subvertida pela valorização da vontade privada. A autoridade política, nesse movimento, passa a ter função de vigilante da autonomia privada. É uma “liberdade” individualista que ele critica.

Esta parece ser uma dimensão da resistência das atividades de coletivos como o FOME, indo na contramão da sobrevalorização da esfera privada, defendendo o caráter público e republicano da vida comunitária. Renova-se aqui a observação: não queremos discutir aqui se o coletivo obtém sucesso nessas experiências, até porque, como já dito, todo experimento social provoca alegrias e decepções. O que pretendemos aqui é discutir a forma de fazê-lo, valorizando subjetividades e vontades plurais. A pedagogia contida nessa metodologia perpassa pelos processos culturais, políticos, econômicos e de diferenças sociais de nossa sociedade, como estamos percebendo nos argumentos aqui levantados.

Antes de continuar a discutir os processos educacionais não formais, é importante que entendamos que a escola representa um modelo de semear educação dentro de um contexto político, cultural e econômico também, incluindo exames avaliativos como fundamentalmente necessários para o processo educativo das pessoas. Por isso, não se deve questionar se ações como as que são executadas pelo FOME obtêm sucesso. Não é a avaliação de resultados que importa. O que importa é a responsabilidade pela construção de uma humanidade plena, no sentido mais amplo aqui já explicitado.

A educação não formal proposta pelo FOME que tomamos aqui como exemplo, assim como a formal vinculada à escola, no nosso entendimento, são sinergias e compartilhamentos de afetos, desejos, histórias, saberes, vivências e trajetórias das pessoas. Não ter um olhar plural sobre a realidade social em que se localiza o espaço educacional é correr o risco de reproduzir metodologias de ensino pautadas numa perspectiva reprodutivista de subjetividades, moldadas para uma finalidade homogeneizante do que é o humano, o que é muito ruim para a própria “humanidade plena”, como já dito aqui.

Podemos destacar que o esforço e o desejo por sempre recriar esses territórios de educação não formal tornam o fazer educação uma prática constante na formação do educador também. Aqueles que estão à frente do movimento e podem ser confundidos como tendo função de “professores” precisam ser entendidos como aprendizes também. A experiência de vida no mundo, dentro ou fora da escola, é a melhor escola.

Os processos educacionais não formais praticados pelo FOME não necessariamente são rupturas ao modelo institucionalizado de ensino, exatamente porque não possuem a mesma natureza e finalidade de adaptar formalmente alguma pedagogia à prática educacional, ou mesmo não se preocupam em inferir uma teoria pedagógica sobre a prática dessas ações. Os processos educativos não formais são constituídos por práticas criadas no ato, à sua maneira, construindo novas formas de aplicar um modo de fazer. Mesmo não sendo o objetivo dos processos educacionais não formais aqui discutidos criar determinados espaços educacionais formais e modelos consolidados de metodologias de ensino, a vivência no campo de atuação desses espaços não formais acaba recriando práticas educacionais. No caso do FOME, acrescenta-se a autogestão e falta de hierarquia, promovendo uma responsabilidade compartilhada da ação.

Dessa maneira, a educação não formal se apresenta de uma outra maneira, ou se apresenta como um outro processo educativo que também é importante, possível de ser colocado como deslocamento do discurso dominante de ensino. Por seu turno, é uma educação não vinculada à disciplina acadêmica, sem currículo organizado, sem sistema de avaliação formal e despossuída de hierarquia, na qual a disputa democrática é que deve prevalecer, ao menos aquela que é exercida pelo FOME.

A PEDAGOGIA COTIDIANA DA PERIFERIA COMO DISSOLUÇÃO DE HIERARQUIAS: CAMINHANDO PARA OUTRAS CONSIDERAÇÕES IMPORTANTES

Toda essa reflexão que passa por proposição teórica que pensa a educação não escolar como importante para pensar a escola tem outras implicações importantes. Como pensar a pedagogia da invenção da realidade cotidiana na periferia como deslocamento de hierarquias e disciplinas no sentido das divisões internas das ciências? Primeiro devemos entender que o cotidiano não é somente disciplina. Como nos ilumina Certeau (2007), o cotidiano é o tempo da criatividade, e não só, exclusivamente, uma organização estruturada de rotinas estáveis. É o tempo do movimento, das tensões e das transformações. Todo tipo de conhecimento serve de fundamento para a construção criativa dos agentes sociais individuais acionarem sua criatividade para construção do tempo e do espaço social em que agem.

Como nos estimula a pensar Geertz (1997), o senso comum não é um conteúdo explicativo da realidade. É um efeito de explicação que remete à ideia do que seria “bom senso”. É um sistema cultural usado para interpretar e dar polimento às experiências cotidianas. Como os demais tipos de saber, é construído historicamente; portanto, os significados são os que queremos dar às experiências do mundo. O bom senso, portanto, tem marcas de atitudes gerais, mas não tem conteúdo universal.

Para Geertz (1997), pensamos a partir do senso comum que se alimenta de diferentes tipos de saber, como o estético ou artístico, o ideológico ou político, entre outros, inclusive o científico. O cientista, querendo crer que o educador também é cientista, dá ênfase ao pensamento metódico, mas fala a partir do sistema cultural de que faz parte. O pensamento do cientista e do educador também é influenciado pelos outros saberes no momento que comunica suas reflexões. Portanto, como influencia Geertz (1997), o senso comum não tem pudor e se alimenta de todos os diferentes tipos de saber. Nesse caso, podemos pensar que a oposição entre o que fala o cientista e o educador, que se situam em uma determinada disciplina, e o que fala o educando e o não cientista seja mais tênue do que se pensava quando se entendia que existia uma oposição entre ciência e senso comum.

Como podemos fazer uma relação entre essa discussão e a educação não formal discutida aqui? Simplesmente repensando algumas hierarquias e distinções. A primeira é aquela que entende a escola como indispensável. Afirmamos aqui e confirmamos que ela é indispensável. Talvez a questão correta seja: qual escola é indispensável? A ideia corrente é de que não se admite a educação das crianças pelos próprios pais ou fora da escola. As demais instituições sociais, especialmente o Estado, criam mecanismos de controle para impedir que a criança cresça fora da escola, apesar de nem sempre serem eficazes, pois todo modelo metódico e planejado de controle tem seus pontos de fuga, especialmente quando lidam com uma sociedade tão complexa e desigual como a nossa. A escola tenta, inclusive, ampliar seu foco. Como lembra Augusto (2011), deixa de ser uma fase na vida da criança, que está em transição para a fase adulta, e passa a ser entendida como indispensável por toda a vida, mesmo na velhice. Além disso, existe um movimento que visa incluir os pais e a comunidade ao redor nos seus processos de aprendizagem como mediadores do ensino, sendo uma espécie de “parceiros” e participando do que a escola lhes propõe como metas, apesar do processo participativo estar resumido ao que a instituição educacional impõe. Portanto, esses parceiros não pensam com a gestão e o corpo docente sobre o planejamento das ações pedagógicas e atividades.

No processo educacional não escolar do FOME, nas ruas das periferias, ao contrário, a comunidade que participa é que decide sobre a utilidade e metodologia a ser adotada, sem muros e sem se sentirem obrigados a “esconder” a moral e a política como mediadoras de suas escolhas. O compromisso com a proposta educacional nas ruas é de todos os envolvidos, sem hierarquia e sem precisar da escola.

Outra hierarquia existente em determinadas concepções de escola é a que estabelece uma cadeia de comando interno que parte da direção para o aluno, passando pelo coordenador pedagógico, coordenador de área, professor, entre outros, em direção ao aluno, que está no ponto mais baixo da escala e não decide praticamente nada, por ser entendido como “incapaz”. É comum a escola cobrar uma responsabilidade do aluno pelo seu aprendizado, mas o faz desresponsabilizando-o por sua construção e por seu planejamento. O aluno que transgredir o comando que vem dos cargos mais elevados é considerado “irresponsável”, “indisciplinado”. Portanto, deve ter seu corpo controlado ou castigado para ser mais obediente. Isso pode gerar um tipo de comportamento no aluno, que pode passar a entender a escola como espaço que não é dele, uma vez que não pode ter responsabilidade nenhuma pelas decisões sobre qualquer coisa que acontece na instituição. A rua, em muitos casos, mais do que a hora do recreio, passa a ser mais sedutora, sendo vista como espaço da liberdade. De fato, é uma liberdade sem orientação prévia e depende do contexto de relações nas quais o estudante se insere.

No caso do movimento social FOME, na rua, há um regime de amabilidade entre sujeitos que são socialmente iguais, mas, ao mesmo tempo, se diferenciam em outros aspectos, como é o caso dos sensos estético e artístico. Quando falamos em amabilidade, não queremos dar a entender que a relação é de plena harmonia e paz. Estamos falando de um modelo de acolhimento que não entende a pessoa como “irresponsável”. Concluindo, são exatamente os instrumentos pedagógicos da resistência nos diferentes sentidos explorados aqui — democracia direta, autogestão, corresponsabilidade, liberdade criativa, valorização dos lugares geográfico e de fala, defesa da humanidade plena — que mostram que a rua, especificamente a que é criada por movimentos sociais como o FOME, pode nos ensinar a pensar melhor a educação escolar, assim como pode influenciar na reflexão sobre pedagogias e conteúdos de disciplinas da área de humanidades que discutem a sociedade e a cultura.

1O referido movimento será apresentado mais à frente.

2Para que o leitor passe a conhecer o LABOME, deve acessar o seguinte link: https://linktr.ee/Labomevisualidades.

3Sobral teve uma parte central da cidade tombada como Patrimônio Histórico Nacional em 2000 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Cf. Freitas, Maria Júnior e Holanda (2010).

4O filme pode ser visto no link: https://vimeo.com/147530176.

6Esta atividade faz parte de um projeto guarda-chuva aprovado no Edital Universal do CNPq de 2018 ainda vigente que tem como título “Visualidades e virtualidades: paisagem, narrativas e imagens urbanas e rurais da Região Metropolitana de Sobral/CE”.

7Além do filme “Arte e cultura na Periferia - ACP”, outros filmes já foram feitos nessa parceria, várias entrevistas foram produzidas, além de exposições no evento anual Visualidades. O portfólio do Visualidades pode ser visto no link: https://labomevisualidades.wixsite.com/visualidades/inicio.

8O artigo, por ter um caráter ensaístico, não apresenta as fontes primárias com citações e descrições empíricas detalhadas, mas as ideias dos autores foram estimuladas pelo convívio com essas fontes.

9Em alguns outros artigos, já abordamos essa questão da agenda positiva e da resistência nos bairros da periferia. Cf. Freitas (2017) e Silva e Freitas (2019)

10Essa experiência de pesquisa gerou vários trabalhos acadêmicos e publicações de um dos articulistas e de seus orientandos.

11Adalberto Mendes é um líder comunitário do bairro Terrenos Novos, responsável pela guarda de acervo documental diversificado que pode servir como fonte para contar a história de muitos bairros periféricos de Sobral. A biblioteca que ganha seu nome é voltada para a constituição de acervo de livros infantis que alimentam, por sua vez, outro projeto de contação de histórias a partir da Biblioteca Ambulante. Os jovens do FOME saem com suas bicicletas cheias de livros infantis, param em determinados pontos dos bairros onde atuam e contam histórias para as crianças nas ruas. A atividade de contação de história também é feita na própria biblioteca.

12Essa atividade promove a exibição de filmes nas ruas do bairro Terrenos Novos, também conhecido como Mucambinho. Geralmente, são filmes infantis do circuito comercial.

13Disputa de rappers do bairro Terrenos Novos. O FOME promove eventos nas praças dos bairros onde atuam, estimulando a competição de improviso de rimas. Essa atividade tem páginas próprias no Facebook (https://www.facebook.com/BatalhadoT.N/) e no Youtube: (https://www.youtube.com/channel/UCbwZnIEGF_xVwlRpJb8iTPA). Boa parte das imagens foram feitas com apoio do LABOME.

15O evento de 2019 pode ser visto no site: https://www.facebook.com/events/386135881933752/.

16Boa parte dessas atividades são lembradas no filme “Arte e cultura na Periferia - ACP”, produzido pela equipe do LABOME e pelo FOME. Cf.: https://vimeo.com/147530176.

17O filme “Arte e cultura na Periferia – ACP”, já citado aqui, mostra outros exemplos, além do FOME, de grupos, instituições e coletivos que se organizam para promover a cultura artística na periferia da cidade, com diferentes enfoques sobre a relação entre a arte e a política. Cf. https://vimeo.com/147530176.

18Aqui podemos pensar como Malinowski (1970).

Financiamento: O estudo faz parte do projeto “Visualidades e transmídias: Cartografia social, narrativas e imagens da periferia de Sobral/CE”, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo edital de Bolsa de Produtividade em Pesquisa (PQ2).

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Recebido: 11 de Novembro de 2021; Aceito: 01 de Junho de 2022

Nilson Almino de Freitas é doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professor da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA). E-mail:nilsonalmino@hotmail.com

Francisco Renan Dias Marques é mestrando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). E-mail:renan_marq@hotmail.com

Conflitos de interesse: Os autores declaram que não possuem nenhum interesse commercial ou associativo que represente conflito de interesses em relação ao manuscrito.

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