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Revista Brasileira de Educação

versión impresa ISSN 1413-2478versión On-line ISSN 1809-449X

Rev. Bras. Educ. vol.28  Rio de Janeiro  2023  Epub 03-Mayo-2023

https://doi.org/10.1590/s1413-24782023280038 

Artigos

Ciência, Literatura e Educação: a utopia morena no pensamento social de Darcy Ribeiro

SCIENCE, LITERATURE AND EDUCATION: THE UTOPIA MORENA IN DARCY RIBEIRO’S SOCIAL THOUGHT

CIENCIA, LITERATURA Y EDUCACIÓN: LA UTOPIA MORENA EN EL PENSAMIENTO SOCIAL DE DARCY RIBEIRO

Lincoln de Araújo SantosI 
http://orcid.org/0000-0001-8536-7087

IUniversidade do Estado do Rio de Janeiro, Duque de Caxias, RJ, Brasil.


RESUMO

Este artigo discute a atuação de Darcy Ribeiro, debatendo esferas de sua produção como antropólogo-cientista social, escritor-ensaísta e operador do Estado e como um dos idealizadores dos Centros Integrados de Educação Pública. Analisando O Mulo e O Povo Brasileiro, a intenção é refletir sobre seu projeto político-civilizatório, suas concepções sobre o Brasil e a pluralidade de suas matrizes étnicas — esses “povos germinais”. O enredo das sociabilidades a partir do domínio dos donos de terras e suas relações cotidianas com negros, caboclos e caipiras demonstra as formas que retratam as identidades que concebem uma compreensão sobre o Brasil. Teorias sobre a formação dos povos latino-americanos e, em especial, os brasileiros encontram ressonância no projeto dos Centros Integrados de Educação Pública, em que os ninguéns são os protagonistas mediante a educação formal e cultural. Seu centenário em 2022 impõe debater um projeto nacional de desenvolvimento social e os fundamentos da escola pública universalizada, democrática de qualidade.

PALAVRAS-CHAVE pensamento social brasileiro; gestão e planejamento educacional; literatura e educação; CIEP; Darcy Ribeiro

ABSTRACT

This paper discusses the work of Darcy Ribeiro, debating the spheres of his production as an anthropologist-social scientist, writer-essayist and his experience as an operator of the State, as well as his experience as one of the idealizers of Integrated Public Education Centers (Centros Integrados de Educação Pública). By analyzing O Mulo and O Povo Brasileiro, the intention of this article is to promote a reflection on his political-civilizing project, his perceptions of Brazil and the plurality of its ethnic matrices, called by Darcy Ribeiro as germinal peoples. The plot of rural sociabilities from the domains of landowners and their daily relationships with blacks, caboclos and caipiras demonstrates the ways in which the portrayed identities conceive an understanding of Brazil. Theories on the formation of the Latin-American peoples, and in particular Brazilians, find resonance in the project of the Integrated Public Education Centers, where the nobodies are the protagonists, through the access to a formal and cultural education. The centenary of his birth in 2022 demands a debate on a national project for social development and the foundations for a universalized and democratic public school of good quality.

KEYWORDS Brazilian social thought; educational management and planning; literature and education; CIEP; Darcy Ribeiro

RESUMEN

Este artículo discute la actuación de Darcy Ribeiro, debatiendo los ámbitos de su producción como antropólogo-científico social, escritor-ensayista y operador del Estado, y como uno de los idealizadores de los Centros Integrados de Educación Pública (Centros Integrados de Educação Pública). Al analizar O Mulo y O Povo Brasileiro, la intención de reflejar sobre su proyecto político-civilizador, sus concepciones de Brasil y la pluralidad de sus matrices étnicas – estos “pueblos germinales”. La trama de las sociabilidades rurales del dominio de los terratenientes y sus relaciones cotidianas con negros, caboclos y campesinos muestra las formas culturales y políticas que retrataron las identidades que conciben una comprensión de Brasil. Teorías sobre la formación de los pueblos latinoamericanos, y en particular los brasileños, encuentran resonancia en el proyecto de los Centros Integrados de Educación Pública, en el que los nadie son los protagonistas, mediante la educación formal y cultural. El centenario de su nacimiento en 2022 nos impone debatir un proyecto nacional de desarrollo social y las bases de una escuela pública universalizada, democrática y de calidad.

PALABRAS CLAVE pensamiento social brasileño; gestión y planificación educativa; literatura y educación; CIEP; Darcy Ribeiro

INTRODUÇÃO

No ano de 2022, celebra-se o centenário de nascimento de Darcy Ribeiro, um dos principais intelectuais e políticos do Brasil no século XX. Em sua trajetória de vida, observamos vários Darcys, que se multiplicaram e foram intensos nos ofícios e lugares em que a sua mente inquietante e polêmica se manifestou como um projeto nacional de desenvolvimento para o país, incluindo os povos germinais da formação do Brasil e dos brasileiros.

Como personagem desta república titubeante, frágil em sua existência democrática, Darcy transitou por três esferas em que desenvolveu sua capacidade criadora e expressou, em cada uma delas, uma ideia de país e suas pluralidades. Em seus universos, singulares e integrados dialeticamente, na antropologia indígena e na convivência com essas comunidades, no texto literário de romances e ensaios em que retratou gentes que formariam este país diverso e na educação, quando projetou uma utopia multirracial, o encontro de todos os Brasis na escola pública de tempo integral.

Nascido na década de 1920, Ribeiro faz parte de uma geração de intelectuais que foram efetivamente inspirados pelos fatos e seus desdobramentos políticos, culturais e sociais ocorridos nesse período. A fundação do Partido Comunista Brasileiro (PCB), em 1922, no qual Darcy iniciou sua militância partidária, a Semana de Arte Moderna e a convergência, nesse evento, de uma renovação cultural no campo das artes plásticas, na literatura e em outras linguagens certamente motivaram a sua formação. A criação da Associação Brasileira de Educação (ABE), entidade que concentrou um elenco de intelectuais que viriam a persuadir o pensamento educacional brasileiro nas perspectivas do liberalismo escolanovista, certamente influenciou, via Anísio Teixeira, o ideário educacional de Darcy Ribeiro.1

Na caminhada desse mineiro de Montes Claros e nessas três esferas de atuação de sua existência criadora, identifica-se uma coerência concebida da experiência e visão de mundo e de seu engajamento como homem de seu tempo, idealizando um país, na análise acurada da formação desse povo. O escritor, político e cientista social sempre teve um lado: “Além de antropólogo, sou homem de fé e de partido. Faço política e faço ciência movido por razões éticas e por um fundo de patriotismo.” (Ribeiro, 2009, p. 16).

Um dos propósitos deste artigo é discutir o pensamento social de Darcy Ribeiro, percebendo as interseções de suas ideias e suas experiências nas pesquisas que realizou em meio às convivências com os índios, considerando sua produção científica nos livros e ensaios, a leitura do seu texto literário e como essas ideias permearam as concepções educacionais, propondo um projeto de escola pública em tempo integral.

Nessa perspectiva, duas obras selecionadas serão a referência para este debate, na articulação das matrizes de seu pensamento social e de como esse ideário sobre o Brasil transitou entre os escritos etnográficos da formação social do povo brasileiro e o seu texto literário, em que a ficção e a realidade se manifestam num romance. O povo brasileiro – a formação e o sentido do Brasil (Ribeiro, 2009 [1995]) e O Mulo (Ribeiro, 2014a [1981]) são as obras que identificam a construção de uma nação que nasce de cepas diversas, fragmentos de matrizes plurais e contraditórias, mas que enriqueceram o que entendemos de Brasil. A partir desse exercício de relacionar obras do mesmo autor com linguagens e estéticas diferenciadas, pode-se perceber e sublinhar, no projeto político-pedagógico (PPP) dos Centros Integrados de Educação Pública (CIEP), o retrato de um povo em seu vir a ser.2

ENTRE A CIÊNCIA E A LITERATURA — A FORMAÇÃO DOS POVOS GERMINAIS NO BRASIL

Em O Povo Brasileiro (Ribeiro, 2009 [1995]), a escrita de Darcy aproximou-se das obras de Oliveira Viana (2000)— Populações meridionais do Brasil— e de Euclides da Cunha (2000)Os sertões —, em que o ambiente geográfico influencia as sociabilidades — hábitos, costumes, línguas, mitologias e religiosidades. Matutos, vaqueiros, sertanejos e caboclos são os estereótipos encontrados nos estudos entre os três intelectuais brasileiros, descritos com ênfases singulares detalhadas de caracterização:

O sertanejo é, antes de tudo, um forte […] À medida que ascende, ofegante, estacionando nos passos, o observador depara perspectivas que seguem num crescendo de grandezas soberanas: primeiro os planos das chapadas e tabuleiros, esbatidos embaixo em planícies vastas; depois das serranas remotas, agrupadas, longe, em todos os quadrantes; e, atingindo o alto, o olhar a cavaleiro das serras — o espaço indefinido, a emoção estranha de altura imensa, realçada pelo aspecto da pequena vila, embaixo, mal percebida na confusão caótica dos telhados. (Cunha, 2000, p. 270; 292)

O Matuto, cujos centros de formação principais são as regiões montanhosas do Estado do Rio, o grande maciço continental de Minas e os platôs agrícolas de São Paulo, é uma outra diferenciação social, que resulta das reações mesológicas exercidas pelo habitat florestoso do centro-sul, pela preponderância do regime agrícola. O matuto meridional adquirirá as qualidades atributivas do sertanejo, se estiver sujeito à pressão relativamente demorada do ambiente sertanejo. (Viana, 2000, p. 926-927)

Em algumas manchas de terras úmidas salpicadas pelo mediterrâneo sertanejo — os brejos, as serras e as várzeas — desenvolveu-se, ao lado da criação, alguma lavoura comercial. É o caso da zona do agreste nordestino, mais fresca e mais próxima de centros urbanos consumidores, onde o pastoreio mesclou-se com uma lavoura de gêneros alimentícios sem, contudo, se associarem. […] Os sertões se fizeram, desse modo, um vasto reservatório de força de trabalho barata, passando a viver, em parte, das contribuições remetidas pelos sertanejos emigrados para sustento das famílias. (Ribeiro, 2009 [1995], p. 313)

Dois elementos se encontram nas obras de Darcy e nas influências que observamos na consolidação dos seus escritos. Em O povo brasileiro (Ribeiro, 2009 [1995]), há sinais próximos dos estilos de Euclides da Cunha3 e de Oliveira Viana, em sua tradição de descrever a geografia determinante na formação cultural desses povos que se misturam, se reconstroem a partir das planícies, dos platôs, dos climas, dos rios, dos gados e das economias.

Aproximar Euclides da Cunha e Oliveira Viana do texto de Darcy Ribeiro não significa percebermos O povo brasileiro (Ribeiro, 2009 [1995]) como simples repetição formal das obras citadas; ao contrário, sinaliza as especificidades e o ineditismo de criação de Darcy ao inserir capacidade crítica em conceber, por exemplo, a lógica perversa de dominação do latifúndio em relação ao campesinato, representando o governo João Goulart, como ministro do Gabinete Civil, a indústria da seca do Nordeste.

O segundo elemento é perceber o romance ficcional-realista a que se propõe no enredo proposto em O mulo (Ribeiro, 2014a [1981]). O Darcy antropólogo-sociólogo, que retratou a etnografia regional de determinado tipo de brasileiro, o sertanejo, vê a transformação desse perfil sertanejo em personagem, seus dramas, seus amores, suas visões de mundo e suas sociabilidades.

Anistiado em 1979, Darcy retornou às suas atividades acadêmicas, tornando-se professor titular da Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em sua carreira intelectual, alternou, ao longo da vida, a produção dos escritos no campo das ciências sociais e as reflexões sobre os processos evolutivos civilizatórios da América Latina, na busca incessante dos sentidos sobre a formação do Brasil e dos brasileiros. Na ficção, Ribeiro utilizou temáticas, cenários e gentes com quem conviveu em seus tempos de pesquisas no interior do país. A temática indígena, as vertentes africanas e suas culturas, enfim, as ilhas de povos formatados em personagens, seus dramas em recortes dos entornos ambientais.

Especialmente na obra O mulo (Ribeiro, 2014a [1981]), de cenário regional entrecortado entre Minas Gerais e Goiás, onde as tramas romanceadas acontecem, o centro da narrativa está no personagem que muda de nome conforme a fase da vida contada por ele próprio. Terezo-Terêncio-Philogônio são os seus eus que formam a personalidade de um sujeito que se forjou na procura incessante de se conhecer e se justificar. Philogônio, ao fim da vida, relatou a sua história como confissão e, por isso, existe a figura de um padre, a cumplicidade ao ouvir os seus atos da infância até os preparativos para a morte, cada vez mais próxima.

Darcy Ribeiro retratou o mundo rural alheio aos recentes hábitos republicanos, inaugurados ao fim do século XIX. O cenário desse realismo romanceado passa-se entre os anos 1920 até os anos 1960. No distanciamento entre o rural e o urbano, observa-se o esforço da sociabilidade interiorana em adaptar-se à (nova) ordem civil. Sem a visível e objetiva presença do Estado, os costumes, a linguagem vocabular, a moral, os mitos e o controle social acontecem mediados pela Igreja, instituição que permaneceu, oriunda da cultura monárquica.

O catolicismo rural, a sacralização de um senso comum, estabeleceu uma ponte entre a confissão dos pecados de Philogônio no sentido de buscar a purificação da alma e da garantia da salvação de sua alma, e a ordem civil, o testamento. A religiosidade justifica as ações civis. Para Philogônio, a confissão seria o caminho do perdão divino; o testamento, a certeza que seus bens se eternizariam:

Peço ao senhor, seu padre, que tenha a paciência de ir lendo e perdoando este relato dos pecados meus, que irei desenrolando conforme a memória me ajude. Peço também que vá anotando à parte os pecados e legados que farei, à medida que me esquente no peito o sentimento dos meus malfeitos e das bondades alheias que devam, uns, ser perdoados na lei de Deus; os outros, recompensados por mim. Para legalizar estas dações, estou munido de papéis de cartório e dos formulários legais de testamento que me foram dados. (Ribeiro, 2014a [1981], p. 14)

Em O Povo Brasileiro, Ribeiro (2009 [1995]) retratou a mentalidade religiosa sertaneja identificando o calendário de festividades, os cultos aos santos padroeiros, os lugares sagrados, tais como as capelas e os cemitérios. A identidade religiosa, seus gestos, imagens e representações justificam e dão ordenamento às realidades, buscando trazer sentido às relações interpessoais. Os círculos do sagrado e da ordem civil caminham harmoniosamente.

O romance converge e centraliza o seu desenvolvimento na figura de Philogônio (Terezo-Terêncio), em quem Ribeiro (2014a [1981]) fez um esforço por traçar a forte personalidade do protagonista em suas conquistas, temores, fugas e assassinatos. O principal personagem é o orador, o que controla a narrativa (tanto que seu interlocutor, o padre, não dialoga nem tem um nome, apenas o ouve). Ao mesmo tempo que ampara seus atos e reconhece alguns pecados, expõe seu instinto predatório e de sobrevivência. O seu conflito interno, o drama psicológico entre os limites da vida-morte, dando-lhes sentido e ao mesmo tempo repelindo a morte, que não deseja, mas a espera. Morte e a imortalidade presentes numa dialética da existência: “vivo sou, vivo e mortal. Morto será, morto e imortal. Tenho em mim o anel do tempo. Sou princípio e o fim de mim. No fim me principio outra vez e sempre” (Ribeiro, 2014a [1981], p. 47).

As confusões de Philogônio tratam de expor os caminhos traçados ao longo da vida, a honra que se expressa em sua luta pessoal pela sobrevivência, na rude vida sertaneja, e as conquistas daquilo que tinha valor econômico e político na geografia mineira e goiana: a terra e o gado. O orgulho demarcado em suas falas confessadas ao padre demonstra as origens das elites rurais, suas oligarquias republicanas ainda presentes no cenário político-institucional.4

A cultura do domínio, consolidada no período do escravismo colonial, representa a permanência de relações sociais fundamentadas na hierarquia e na ordem estabelecida. Ribeiro (2009 [1995], p. 309) afirma, em O Povo Brasileiro, que: “O criador e os seus vaqueiros se relacionavam como um amo e seus servidores. Enquanto dono e senhor, o proprietário tinha autoridade indiscutida sobre os bens e, às vezes, pretendia tê-la também sobre as vidas e, frequentemente, sobre as mulheres que lhe apetecessem.”.

Philogônio, ao longo de suas confissões, não escondeu o desprezo principalmente pelos negros; esses, no olhar do dono de terras, eram coisificados, ajuizados depreciativamente, um fator que realçava a transição entre as relações de produção do modo escravista para uma prática do trabalho livre em que o domínio cultural, político e social e do trabalho permaneceu. Refere-se aos agregados, trabalhadores em suas fazendas e territórios, de forma que sinalizava crueldade, pertencimento e propriedade:

Meus negros […] fui e sou pai deles; mas negro não conta […]. Aos meus negros vivi dando ordens em tom de sargento […]. Gritando com voz de trovoada. Não à toa, mas no serviço da produção […]. Fui aprendendo aos poucos a trabalhar com eles […]. Negro não tem ambição, nem gosta de obrigação […]. Negro não tem ambição, nem gosta de obrigação […]. A utilidade principal daquela minha criação de pretos era me suprir dos muitos arrieiros, boiadeiros e cozinheiros. (Ribeiro, 2014a [1981], p. 97, 116, 157)5

A mentalidade do escravismo, a posse da terra e do trabalho mantiveram a lógica rural a qual o personagem Philogônio retratou. Mas qual Darcy melhor exprimiu as relações de fidelidade-reciprocidade nas tramas manifestadas entre o proprietário de terras e gados, responsável pelos tropeiros e mulos que rasgavam do interior de Minas e Goiás, comercializando produtos, fazendo negócios e aqueles agregados — herdeiros das matrizes negras, indígenas e europeias, agregados que se misturam culturalmente, sexualmente, amalgamando padrões de convivência e sobrevivência?

Ribeiro (2009 [1995], p. 316), em seu exercício ficcional, não abandonou o seu lado de cientista social e antropólogo, concebendo uma etnografia de uma das ilhas chamadas Brasil, Philogônio e os seus afilhados, mulheres utilizadas aos prazeres sexuais, vaqueiros e tropeiros são apresentados no texto: “As relações do sertanejo como seu patronato se revestem do maior respeito e deferência, esforçando-se cada vaqueiro e lavrador por demonstrar sua prestimosidade de servidor e sua lealdade pessoal e política.”.

Philogônio é O mulo (tropeiro), educado sem as referências paternas, mas na sobrevivência dos lugares que o forjaram: o ambiente militar, a troperia, os currais e o gado, as relações de escambo e dos negócios. Seu dilema está na solidão, na preocupação de deixar seu patrimônio para a Igreja. Em uma de suas confissões ao padre, relatou o traumático tratamento que recebeu para cuidar de doença sexualmente transmissível em seu tempo de militar: “Acham que lá me castraram, seu padre. Foram as injeções que o médico me deu.” (Ribeiro, 2014a [1981], p. 123).6

O cientista social encontra-se com o romancista-ensaísta, o que descreve os dramas humanos numa rede de relacionamentos. A organização de ideias e os estudos sobre a cultura e suas expressões, tais como a língua, os elementos que cuidam da sobrevivência, são, na verdade, elementos que estão presentes no romance. Há uma preocupação do ensaísta com a questão ecológica quando afirma, em O povo brasileiro (Ribeiro, 2009 [1995]), que um dos conflitos inerentes às formações étnicas é a disputa do território, das matas e suas riquezas para fins de exploração das terras. O relato sobre as queimadas no romance O mulo (Ribeiro, 2014a [1981], p. 205) expõe visceralmente esse ideário do escritor mineiro:

Aquele mundo verde, entroncado, poderoso, aberto em palmas, esgalhado, lá no alto, debaixo do meu fogo escureceu… De repente, o que vimos foi o ar grosso, recheado de fumaça, estremecer animado como se ganhasse vida. Era o turbilhão de abelhas, marimbondos, cigarras, besouros que rodopiavam enlouquecidos… Aí eu vi, me lembro como hoje, o chão do outro lado tremer e remexer fervendo de cobras rastejando em desespero no meio de tatus, tamanduás, caxinguelês desnorteados. Onças de todo pelame saltavam n’água, esturrando. A bicharada apavorada saía d’água, bem na nossa frente, sem nenhum temor, tanto era o medo do fogo saltando em labaredas por todo lado.

Como operador do Estado, as preocupações com o meio ambiente e a sua proteção sempre estiveram presentes e são extensão de suas obras. Sua convivência com os índios e o interior do país e as influências recebidas do marechal Cândido Rondon despertaram em Darcy sua consciência político-ecológica.

Sendo vice-governador do estado do Rio de Janeiro, estabeleceu um legado de proteção ao meio ambiente quando assinou cerca de 40 atos de tombamento, entre eles um patrimônio ecológico, na extensão de praias do litoral fluminense, a praia de Grumari, as dunas de Cabo Frio, o sítio de Burle Marx, a Pedra de Guaratiba. Na Eco-1992, evento ocorrido no Rio de Janeiro, implantou o Parque Floresta da Pedra Branca, protegendo uma área de 12.000 hectares.

Em seu livro América Latina, Pátria Grande, Ribeiro (2014b, p. 117) registrou sua indignação sobre a situação planetária e ecológica:

Bem sabemos que o homem é uma espécie de bolor feroz que deu no mundo. Acabou com milhões de plantas para só deixar nascer pastos de bois e comidas de gentes, liquidou quase todas as milhares de espécies de animais, trocando-as por galinhas e bodes. Sim, essa é a nossa tradição. O novo é que, agora, frente à visão do desastre iminente, começamos a suspirar por uns céus azuis de ares lavados. Queremos águas cristalinas, florestas virgens e bicharadas louçãs. O diabo é que por esses bens supremos apenas suspiramos no nível da poesia ou da prece. Enquanto isso, no mundo das coisas reais, onde nosso destino é decidido, a ordem é corromper a vida até a morte.

Também em uma das principais obras, O processo civilizatório, Ribeiro (1987 [1968], p. 201-202) registrou suas preocupações com a humanidade:

As ameaças que já hoje pesam sobre a humanidade levam a temer que estejamos alcançando esses limites, arriscando ultrapassar a linha fatal, se não forem desenvolvidas formas racionais de controle da vida social, econômica e política que habilitem os povos ao comando científico de todos os fatores capazes de afetar seu equilíbrio emocional e sua sobrevivência sobre a Terra.

A trajetória do personagem principal retrata os elementos que compuseram o cenário de um país em transição, a área rural e suas características próprias, as formas de perceber o mundo, numa sociabilidade que emerge de uma brasilidade silenciosa, em que negros, índios, caboclos, matutos e sertanejos se misturam em luta pela sobrevivência. A crueldade na disputa de terras, a concentração da posse-propriedade nas mãos de alguns poucos, estes alinhados à ordem política em que se manifestaram as permanências da mentalidade do exclusivo agrário e de um iberismo como cultura das elites fundiárias dominantes.7

Ribeiro (2014a [1995], p. 280) inseriu a disputa política do país já presente nos anos 1950-1960 quando, numa das confissões de Philogônio, consta o relato de duas visitas aos Laranjos:

No rastro dos pássaros apareceram, depois, viajando de jipe, uns homens vindos de outras bandas. O primeiro que chegou vinha, aparentemente, a negócios. Conversou comigo alvoroçado sobre posseiros amotinados. Falou mal do governo Jango, traidor dos fazendeiros… Um pouco me inquietou a ideia de guerra revolucionária dos trabalhadores contra os patrões. Quando estourasse, todos nós fazendeiros estávamos correndo risco de sermos assaltados por operários e camponeses alçados. Seriamos despossuídos, roubados e talvez até mortos. Certamente.

Fica evidente que chegava ao campo a construção de um ideário de reação, amplificando o temor comunista e da revolução bolchevique de 1917. Firma também a preocupação das elites fundiárias quanto à liberdade do sertanejo. Literatura, reflexão e história do país se completam no texto de Darcy Ribeiro. Em O Povo Brasileiro (Ribeiro, 2009 [1995], p. 327), ele traçou o perfil do sertanejo:

O sertanejo é sempre um agregado transitório, sujeito a ser desalojado a qualquer hora, sem explicações ou direitos. Sua casa é o rancho em que está apenas arranchado; sua lavoura é uma rocha precária, só capaz de assegurar-lhe um mínimo vital para não morrer de fome.

A guerra fria cabocla já sinalizava a antevéspera do golpe de Estado de 1964. As reformas de base, principalmente o fantasma da reforma agrária, e a organização das ligas camponesas, sob a liderança de Francisco Julião, nutriram no interior do país o pavor pelo protagonismo político do campesinato. Philogônio representava o estereótipo do ódio de classes e os princípios de um antiliberalismo subproduto do ideário latifundiário: a concentração de terras como princípio de liberdade.8

A segunda visita é assim descrita pelo principal personagem de O mulo (Ribeiro, 2014a [1981], p. 280-281):

Meses depois me aparece outro grupo, de paulistas, agora numa Combi. Acolhi bem porque vi logo, pelo tom de voz e pelo jeito do principal, que era oficial de exército ou alta patente da política […]. Mas o homem continuava empolgado, esbravejando contra o comunismo ateu, contra o governo corrupto, inepto e débil, dominado pelos comunistas que estavam por fazer a reforma agrária… O medo dele não me convenceu tanto como as quinze metralhadoras, com muita bala, que no outro dia me deu. Dadas! […] Contente com o homem que armaria um grupo na maior discrição e ficaria ali, à espera. Se a guerra começasse ia combater feio e duro.

A tensão no meio rural, demonstrada nas narrativas de Philogônio, sinalizava a disputa política em que o cenário da concentração de terras se apresentava como arena conflituosa. Ribeiro (2009 [1995], p. 327-328) considerou uma rápida expansão dos movimentos, sindicatos rurais, principalmente próximos às usinas açucareiras, onde estavam os assalariados agrícolas, onde lideranças urbanas — sacerdotes católicos e militantes comunistas — estavam presentes no processo: “Assentava-se, porém, na precária base de uma conjuntura política transitória. Quando esta foi derrubada pelo golpe militar, voltou o sertão a mergulhar no despotismo latifundiário.”.

Seja na literatura, seja no texto científico das Ciências Sociais, o pensamento social de Darcy Ribeiro tem um nexo, uma coerência entre as ideias que projetavam a ação política, no entendimento de que é a evolução do processo civilizatório latino-americano e sua libertação dos múltiplos povos que compõem o continente. Sua insistência, ao longo da vida, em conceber uma teoria geral de formação dos povos plurais — ameríndios — de variadas línguas e culturas demonstrava uma dialética entre a história das sociedades e as possibilidades políticas de soberania territorial, social e econômica frente aos centros desenvolvidos do capitalismo.

Na literatura, O mulo (Ribeiro, 2014a [1981]) concentrou as sociabilidades de gentes que se espalhavam entre as faixas geográficas entre Minas Gerais e Goiás, num recorte de tipo de pessoa da cultura rural, do pensamento dominante dos latifúndios tomado à força pelos aventureiros e das classes sociais exploradas nesse cenário: negros não mais reconhecidos como escravos, mas tratados como subgentes; caboclos plantadores numa terra que não lhes pertencia; sertanejos subjugados à lógica do trabalho forçado e pouco remunerado. Em O mulo (ibidem), para além dos conflitos pessoais-existenciais de Philogônio, Ribeiro retratou aqueles que sobreviveram à margem da produção rural por causa da concentração e do controle da propriedade nas mãos de alguns poucos.9

Em O povo brasileiroRibeiro (2009 [1995]), o esforço do autor esteve em caracterizar as ilhas chamadas Brasil, as peculiaridades dos povos germinais que compuseram as matrizes de sua formação. O espaço geográfico articula-se com o meio ambiente, o clima, os leitos de rios, riachos e ribeirões, amalgamando regionalmente, nas misturas de gentes, culturas localizadas, mitologias comuns, oriundas de um catolicismo à época hegemônico e de rituais afro-indígenas.

Literatura e Antropologia conjugam-se ao ideal de um socialismo dos trópicos, do que mais entendeu que a diversidade é a riqueza cultural e política de uma nação que se faz a partir de si, de seu autorreconhecimento identitário. Ribeiro (2009 [1995], p. 411) projetou a utopia socialista morena de justiça social, ressaltando as virtudes de um povo que se forja como civilização, sendo exemplo para outros povos do planeta:

O Brasil é já a maior das nações neolatinas, pela magnitude populacional, e começa a sê-lo também por sua criatividade artística e cultural […]. Estamos nos construindo na luta para florescer amanhã como uma nova civilização, mestiça e orgulhosa de si mesma. Mais alegre, porque mais sofrida.

OS CENTROS INTEGRADOS DE EDUCAÇÃO PÚBLICA E A UTOPIA MORENA

Escritor, ensaísta e estudioso das tribos indígenas brasileiras, Ribeiro viveu intensamente todos os papéis que exerceu, dando um sentido à sua existência, marcada pela história republicana do país. Atuou em momentos singulares na política, quando, na década de 1960, foi ministro da Educação no período parlamentarista e o primeiro reitor da Universidade de Brasília (UNB). Em 1963, exerceu a chefia da Casa Civil, logo após João Goulart recuperar, por meio de plebiscito, as chefias de Estado e de governo, atuando até o dia 31 de março, data de referência do golpe civil-militar no Brasil. Por intermédio de Anísio Teixeira, Darcy encontrou-se com a educação reconhecendo que nenhum projeto nacional de desenvolvimento deveria descartar a prioridade de investimentos na área.10

Em 1982, foi eleito vice-governador do estado do Rio de Janeiro, compondo, com Leonel Brizola, uma referência das oposições na transição do fim do regime civil-militar para a retomada do Estado democrático de direito no Brasil, consolidado em 1988 com a nova constituição. No governo, acumulou uma série de funções: secretário de Ciência, Tecnologia e Cultura; diretor do Teatro Municipal, da Fundação de Artes do Estado do Rio de Janeiro (FUNARJ) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ); coordenador do Programa Especial de Educação (PEE). Em 1985, com a organização da Fábrica de Escolas, deu início à construção dos Centros Integrados de Educação Pública (CIEP).

Ao retornar do exílio, teve a oportunidade de atuar no desenvolvimento de políticas públicas nos campos da proteção ambiental, cultura, ciência e tecnologia e, em especial, da educação. Quase 40 anos após a inauguração do primeiro CIEP, denominado Tancredo Neves, no bairro do Catete, no Rio de Janeiro, em 8 de maio de 1985, essa experiência inovadora na transição para o regime liberal democrático no país ainda suscita debates nas esferas da política e da educação.

Os CIEP surgiram em um contexto de profunda crise da escola pública no Brasil. O período da ditadura civil-militar impôs o enfraquecimento do sistema público de ensino, abrindo um amplo acesso à iniciativa privada no tratamento da educação como negócio comercial. A distribuição de bolsas de estudos pelas escolas particulares, financiada pelos governos militares, se, ao mesmo tempo, acelerou um tipo de privatização da educação básica, restringiu investimentos para a expansão dos sistemas públicos de ensino. Consequentemente, a desvalorização do magistério, fruto da política econômica do arrocho salarial dos anos 1970, traduziu, no início dos anos 1980, uma grave situação da educação nacional.

Em uma exposição feita no Senado Federal, em 4 de maio de 1983, na Comissão de Educação e Cultura, Ribeiro esboçou ali não só uma leitura da situação dramática da educação brasileira, de seu sistema e do esgotamento como política pública, consequência evidente dos anos do projeto da ditadura militar no país, como também propôs alternativas de superação daquele momento.

Essas reflexões resultaram numa análise detalhada da conjuntura da educação nacional publicada na obra Nossa escola é uma calamidade (Ribeiro, 1984). Nesse livro, percebemos os fundamentos do que viria a ser o PEE, com o diagnóstico sobre a escola pública no país, o cerceamento de acesso das crianças em idade escolar desprovidas do direito à educação, bem como o imperativo de universalização do ensino e o fortalecimento da escola pública.

Nosso desafio é criar no Brasil, aqui e agora, o que chamo de pequena utopia e que, para mim, é o grau de desenvolvimento social generalizado a toda a população que tem tantos países com o mesmo nível de desenvolvimento econômico que o nosso. Falo daqueles países em que todo mundo come todo dia; em que todo cidadão e toda cidadã de mais de 14 anos que pretenda trabalhar encontra um emprego; em que todas as crianças fazem curso primário. (Ribeiro, 1984, p. 8)

A análise da conjuntura educacional brasileira e de seus dados calamitosos abasteceu as teses e metas que consubstanciaram o PEE, concebendo o ideário dos CIEP e seu PPP. Os resquícios do regime civil-militar e de suas consequências para a educação pública sinalizaram, na crítica à legislação da época, a perversidade excludente e o abandono da população estudantil:

A Lei n° 5.692/71 foi demagógica ao instituir um ensino básico e obrigatório de oito séries a partir de um sistema precaríssimo, que era incapaz de levar à 4ᵃ série nada menos que a metade das crianças que atendia. A legislação foi também desastrosa ao cumular a escola de exigências novas, levando ao descuido da tarefa básica que é ensinar a ler, escrever e contar. Houve, adicionalmente, irresponsabilidade na junção, nas escolas de primeiro grau, de crianças de idades que exigem tratamento diferenciado. (Ribeiro, 1986, p. 33)11

Entre as principais metas governamentais propostas pelo PEE e o engajamento dos CIEP no cumprimento das superações das desigualdades socioeducacionais da época, identificadas nas avaliações sistêmicas sobre a educação no estado do Rio de Janeiro, estavam:

  1. Acabar com o terceiro turno e garantir um mínimo de cinco horas diárias de permanência na escola;

  2. Oferecer ao magistério uma formação continuada, chamada à época de “reciclagem”, como possibilidade para o pleno cumprimento das funções pedagógicas;

  3. Produzir o próprio material didático destinado à alfabetização;

  4. Definir uma política de alimentação escolar, promovendo a descentralização da merenda e oportunizando ao produtor local a venda direta de sua plantação aos CIEP;

  5. Dar assistência médica e odontológica às crianças; e

  6. Definir uma política de valorização dos profissionais da educação e do magistério, entre outros (Ribeiro, 1986, p. 35-36).

A agenda dos movimentos sociais dos anos 1980 vinculados à defesa e à democratização da escola pública e às iniciativas voltadas, em especial no Rio de Janeiro, a universalizar o ensino por meio dos CIEP impulsionou as reformas contidas na Lei n° 9.394 (Brasil, 1996), aprovada em 1996, que teve Darcy Ribeiro como relator, à época senador da República. Elementos tais como o direito à alimentação, a organização escolar em tempo integral, a gestão democrática da escola na participação comunitária como protagonista dos processos decisórios, a garantia de acesso ao livro didático como direito do aluno, a educação de jovens e adultos, a valorização do magistério e dos profissionais da Educação, enfim, foram consolidados na legislação educacional, além dos que vieram das lutas da organização nacional de professores e seus sindicatos, associações de docentes e do movimento estudantil.12

Darcy Ribeiro, à luz das experiências de Anísio Teixeira na configuração do que foi a Escola Parque de Salvador (Centro Educacional Carneiro Ribeiro, 1950), idealizou os CIEP, buscando filosoficamente conceber uma instituição de ensino em tempo integral. Esse projeto não foi um ato solitário desse intelectual orgânico da cultura brasileira, mas teve consigo, no plano da política, o ímpeto de Leonel Brizola em seu projeto de poder.

Brizola retornou ao Brasil no início dos anos 1980 com o desejo de protagonizar as disputas da política nacional, buscando unificar o trabalhismo, que se transformou, nos anos 1960, em um forte movimento social, que organizava os sentimentos de um nacionalismo desenvolvimentista com apelo popular, baseando-se na organização das classes trabalhadoras urbanas e rurais. Educado na cultura positivista-castilhista, em que o primado da educação representava, ao mesmo tempo, os ideais do progresso econômico, tecnológico e científico e o bem-estar social, sua experiência como prefeito de Porto Alegre (1956–1958) e governador (1959–1963) garantiu a sua convicção no investimento e na universalização do ensino básico, na ampliação do sistema educacional público do estado do Rio Grande Sul.13

Na proposta pedagógica dos CIEP, percebemos que, no campo da representação simbólica, Darcy imaginava uma escola como síntese cultural do país e do estado do Rio de Janeiro, no encontro das matrizes étnicas, expressões artísticas locais e regionais e o protagonismo das populações marginalizadas e oprimidas que viviam na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, na Baixada Fluminense e no interior do estado. O estreitamento de laços entre a escola e a comunidade na promoção de atividades culturais ressignificava o entendimento de ensino, acentuando o sentimento do prazer das crianças em aprender, vivenciando o entorno da escola e suas diversas linguagens e expressões, em que educação e cultura são acolhidas como elos integradores “[…] para compor uma verdadeira simbiose: a cultura irriga e alimenta a educação, que, por sua vez, é um excelente meio de transmissão da cultura.” (Ribeiro, 1986, p. 49, 133).

Pela animação cultural, desencadeava-se um processo de conscientização sobre a realidade brasileira e as desigualdades sociais e a importância da vida comunitária, transformando o espaço escolar num ambiente plural e de respeito às diversidades culturais. Num país onde a transição entre os regimes civil-militar e democrático ainda demonstrava sinais de incerteza, os CIEP acenavam, no contexto curricular, com os princípios da democracia, da convivência social e do respeito mútuo, sendo a cultura o fator de integração desse projeto de nação.

Tudo começa com a cultura local, suas manifestações, o fazer da comunidade, seus artistas e seu cotidiano (antes tão ausente dos currículos escolares), que são progressivamente incorporados ao dia a dia da escola […]. Através da ação cultural ininterrupta, crianças, jovens e adultos, pertencentes à escola ou à comunidade, podem fazer do CIEP um espaço de vida-educação, permeável à troca dos mais diferentes saberes. (Ribeiro, 1986, p. 133-134)

Os animadores culturais seriam os responsáveis por construir esses elos entre escola e comunidade, promovendo as expressões culturais da regionalidade, a valorização dos artistas locais e das atividades que tinham história nos municípios e em seus bairros. A promoção da Semana da Cultura Negra e de pagodes e rodas de samba e o estímulo aos grupos de capoeira demonstravam a opção política de resgatar o movimento negro organizado e sua cultura como ação afirmativa ativa nos anos 1980 e que tinha forte representação no Partido Democrático Trabalhista (PDT). A Figura 1 explicita o PPP dos CIEP e sua ênfase cultural nas tradições e expressões afro.

Fonte: Ribeiro (1986, p. 134).

Figura 1 – A síntese darcyana: nos Centros Integrados de Educação Pública, a expressão da cultura de matriz afro-brasileira. “Somos um povo em ser…” 

Com Darcy Ribeiro, os quadros intelectuais e de militância do PDT contribuíram com as reflexões sobre o protagonismo do negro na história do Brasil, propondo um debate importante sobre a causa negra na sociedade. O intelectual Abdias do Nascimento, além de escritor, ator, jornalista e ativista das causas antirracistas, foi senador da República pelo PDT (1997–1999), como suplente de Darcy Ribeiro. Foi um dos fundadores, em 1978, do Movimento Negro Unificado (MNU). Filiada ao PDT em meados dos anos 1980, a antropóloga e professora Lélia Gonzalez contribuiu para a organização do movimento negro no país, ajudando a fundar entidades como o MNU, o Instituto de Pesquisas das Culturas Negras (IPCN), o Coletivo de Mulheres Negras N’Zinga e o Olodum. Estudou a relação entre gênero, classe e raça. Foi professora do Colégio de Aplicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). O jornalista Carlos Alberto Oliveira, conhecido como Caó, foi deputado federal também pelo PDT, na Assembleia Nacional Constituinte, sendo o autor da Lei n° 7.716/89 (Brasil, 1989), que definiu os crimes de preconceito e discriminação de raça ou cor.

Há um termo utilizado em O povo brasileiro (Ribeiro, 2009 [1995]) que sinalizou a quem o PEE deveria atender, quais as classes sociais a serem acolhidas pela política pública de universalização do ensino fundamental na época: a compreensão dos ninguéns na base de construção das complexas e diversas matrizes étnicas que comporiam o corolário do país. “Essa massa de nativos oriundos da mestiçagem viveu por séculos sem consciência de si, afundada na ninguendade. Assim foi até se definir como uma nova identidade étnico-nacional, a de brasileiros.” (ibidem, p. 410).

Os ninguéns somos todos nós, no caldo de formação de gentes que se misturam, amalgamando, no termo muito utilizando pelo antropólogo-educador, o que entendemos por brasileiros. As geografias rurais e urbanas, seus meios ambientes contribuíram para as metamorfoses das línguas regionais, religiosidades, formas de trabalho, as relações de opressão determinadas pelos modelos de exploração econômica, como na representação do engenho, e, como afirma Ribeiro, o lugar de gastar gente. Com base no entendimento de que fazemos parte de uma ninguendade, reconhecemos nossas origens e buscamos compreender nosso país a partir dos dramas que marcaram a trajetória — entre eles a escravidão e suas consequências históricas, presentes até o tempo presente. Nisto, Ribeiro se destacou de Oliveira Vianna e Euclides da Cunha: seu texto inseriu o pensamento crítico que apontou a crueldade das elites no processo de formação civilizatória dos brasileiros:

Exacerba-se o distanciamento social entre as classes dominantes e as subordinadas e entre estas e as oprimidas, agravando as oposições para acumular, debaixo da uniformidade étnico-cultural e da unidade nacional, tensões dissociativas de caráter traumático. Em consequência, as elites dirigentes, primeiro lusitanas, depois luso-brasileiras e, afinal, brasileiras, viveram sempre e vivem ainda sob o pavor e o pânico; é a brutalidade repressiva contra qualquer insurgência e a predisposição autoritária do poder central, que não admite qualquer alteração da ordem vigente. (Ribeiro, 2009 [1995], p. 21)

Os CIEP são, na perspectiva darcyana, o encontro com a nova identidade dos ninguéns que se redescobrem, pela educação e cultura, em sua brasilidade, na diversidade de gentes, línguas e expressões artísticas, um povo em ser. No estado do Rio de Janeiro, no interior e em especial na Baixada Fluminense, a convergência dessa mistura que chega pelo êxodo dos anos 1940–1950 dos confins do país: goianos e mineiros, sertanejos e caipiras, nordestinos e as gentes do Sul e do Norte, as comunidades indígenas fluminenses e do empoderamento negro e de sua cultura de resistência tiveram naquele espaço educativo o esforço de se reconhecerem a partir de suas ninguendades como fator propositivo às suas origens. Os CIEP seriam a síntese da utopia socialista, diferentemente de outras experiências históricas, por isso, da cor morena, cabocla, preta, diversa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS OU DARCY RIBEIRO E A UTOPIA LIBERTÁRIA PARA OS NINGUÉNS

Segundo Edward W. Said (2005, p. 27-28), a missão do intelectual é trazer um incômodo em confronto com as ortodoxias e os dogmas, não podendo ser cooptado facilmente pelos setores dominantes da sociedade, quando o “[…] importante é causar embaraço, ser do contra e até mesmo desagradável.”.

O embate de Darcy com as elites brasileiras esteve em seu pensamento, no projeto de emancipação civilizatória do terceiro mundo e o Brasil. Nesta república de origem oligárquica e escravocrata, a cultura de dominação das elites brasileiras rejeitou a obra de Ribeiro porque sua concepção de libertação dos povos trouxe o incômodo na revelação de uma identidade nacional diversa num caldo de formação civilizatória, num vir a ser.

A implantação dos CIEP, nas décadas de 1980 e 1990, trouxe para a agenda política a discussão sobre a universalização da educação básica, dos investimentos na escola pública e da valorização dos profissionais do ensino. Consolidadas como políticas públicas educacionais no estado do Rio de Janeiro nos dois mandatos de Leonel Brizola como governador (1983–1987 e 1991–1994), os CIEP sofreram forte reação dos setores midiáticos, com a justificativa do alto custo de investimento na construção dos prédios, mas também foram criticados pelo campo progressista na área da Educação, seja na concepção, seja nas intenções eleitorais de Brizola. Interrompida por dois mandatos de oposição, nos governos de Moreira Franco (1987–1991) e Marcello Alencar (1995–1998), a escola de tempo integral idealizada por Darcy Ribeiro teve forte descontinuidade, sendo abandonada ao longo dos tempos e dos governos seguintes. Os CIEP continuam sendo a marca imaginada por Darcy; sua vitalidade se concentraria em reunir todos aqueles excluídos, percebendo o processo educativo como ação determinante para a soberania nacional.

Por suas obras e reflexões, Ribeiro rompeu a lógica explicativa das classes dominantes, que insistiam em interpretar o país com o falso mito de origem da harmonia das raças, da naturalização do poder dos senhores de engenho e da concentração fundiária, forçando a se desejar um país homogêneo, do discurso de que não existe racismo no país, descartando as diferenças estruturais e criminalizando as resistências dos movimentos sociais articulados com as formas de libertação social.

No centenário de nascimento de Darcy Ribeiro, em 2022, a reflexão sobre a sua obra deve ser um imperativo ético-político em tempos de luta pela democracia no país, pelas liberdades civis e pela garantia dos direitos sociais constitucionais, para os ninguéns de uma república incerta. A utopia morena de um país a vir a ser nos embala, na perspectiva darcyana, para o reencontro das gentes e de sua cultura diversa, ressignificando O povo brasileiro.

1Nasceram na década de 1920: Florestan Fernandes e Celso Furtado, em 1920; Paulo Freire, em 1921, Darcy Ribeiro e Leonel Brizola, em 1922; e Raimundo Faoro, em 1925, entre outros. As reformas educacionais nos estados de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco simbolizaram também um forte movimento político-intelectual com base na filosofia escolanovista e deweyana.

2Será utilizada a seguinte referência nos estudos propostos para este artigo: RIBEIRO, D. O povo brasileiro. São Paulo: Schwarcz Ltda., 2009; e RIBEIRO, D. O Mulo. São Paulo: Global, 2014a.

3Euclides da Cunha e sua obra, Os Sertões, são citados por Darcy Ribeiro (2009 [1995], p. 324). Também são citados Florestan Fernandes, Sergio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre (Ribeiro, 2009 [1995], p. 28; 32-33; 55).

4Florestan Fernandes (2005, p. 241), em A Revolução Burguesa no Brasil, analisou o caráter da modernização conservadora que ocorre no país, caracterizando o capitalismo que se desenvolve no Brasil com padrões próprios, principalmente nas singularidades das elites brasileiras, e a transição da economia rural-agrária e a industrialização urbana, identificando as permanências ideológicas dos princípios escravocratas, as elites amalgamando seus projetos políticos: “A própria burguesia como um todo (incluindo-se nelas as oligarquias) se ajustara à situação segundo uma linha de múltiplos interesses e de adaptações ambíguas, preferindo a mudança gradual e a composição a uma modernização impetuosa, intransigente e avassaladora… O mandonismo oligárquico reproduzia-se fora da oligarquia. O burguês que o repelia, por causa de interesses feridos, não deixava pô-lo em prática em suas relações sociais.”.

5Darcy Ribeiro tem como referência, nessa reflexão, a obra O escravismo colonial, de Jacob Gorender (1988).

6A narrativa do personagem Philogônio revela o impedimento de ter filhos, de deixar herdeiros natos, dá sinais de semelhança com a própria experiência de Darcy Ribeiro em sua vida pessoal, quando expôs os motivos de não ter tido filhos: “Fui socorrido pelo doutor Schoer, que depois de me examinar foi ao consultório procurar o instrumento de minha salvação. Voltou armado com uma seringa veterinária e meteu duas vezes a agulhona para injetar novocaína.” (Ribeiro, 1997, p. 134). Darcy reproduziu seu dilema pessoal em seu romance e na figura de Philogônio?

7Luiz Werneck Vianna (2004, p. 175), em A revolução passiva: Iberismo e americanismo no Brasil, propõe o estudo sobre uma mentalidade política desenvolvida no pensamento de Oliveira Vianna, movimento ideológico que permeará as elites brasileiras e seu modelo de modernização, no iberismo: “A forma ibérica do Estado estaria justificada, desde a Independência, pela ampla necessidade de se manterem a autoridade, a disciplina e a unidade entre núcleos provinciais inteiramente isolados entre si material e moralmente […] Ibéria, agora, plena e que não se nega ao moderno, à condição de submetê-lo à tradição. Moderno, dessa forma, repassando e refeito sob a inspiração telúrica do clã dos latifúndios, guardião dos valores excelsos do brasileiro.”.

8Para a redação do Capítulo VII, “A ação de classe da elite orgânica: a campanha política da burguesia – a contenção dos camponeses”, Dreifuss (1981, p. 281–299) realizou pesquisa em fontes documentais primárias que apontaram as estratégias das classes dominantes que determinaram o golpe civil-militar no Brasil. O texto discutiu a longa história de inquietação rural e como a repressão buscou desmontar as forças articuladas frente às lutas pela reforma agrária, suas lideranças e instituições.

9O desfecho do romance acontece na descoberta de Philogônio, ao se olhar no espelho e perceber suas feições envelhecidas, de que seu pai tinha sido Lopinho: “Aí, compreendi de estalo, assombrado: a mesma cara, o mesmo turvo olhar, a mesma boca chupada, retorcida, o mesmo nariz grosso, a mesma testa estreita, a mesma barba redemoinhada […]. O que eu via no espelho não era eu, era ele. Era o finado Lopinho.” (Ribeiro, 2014a, p. 312-313). O drama edipiano foi a constatação de que Philogônio, em sua juventude, havia assassinado Lopinho.

10Em 1964, Darcy Ribeiro rumou para o exílio no Uruguai, onde trabalhou na Universidade da República Oriental do Uruguai, em Montevidéu, como professor de Antropologia. Em 1969, exilou-se na Venezuela, sendo contratado pela Universidade Central da Venezuela. Em 1971, assessorou o presidente Salvador Allende, no Chile. Em 1972, assessorou o presidente do Peru, Velasco Alvarado, preparando um plano de reestruturação do sistema universitário peruano. No período do desterro, participou de ações com o Conselho Mundial de Igrejas e a United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (UNESCO), todas voltadas à condição indígena [Apêndice, O Mulo. Vida e Obra de Darcy Ribeiro (Ribeiro, 2014a); Encontros: Darcy Ribeiro (Campos, Cohn e Reis, 2007, p. 234-237)].

11Em O livro dos CIEPs (Ribeiro, 1986), publicação de 1986, Darcy Ribeiro apresentou o PPP dos CIEP discutindo uma proposta de educação de tempo integral, de atendimento às crianças no ensino fundamental, em que se contemplariam o atendimento ao ensino, o fortalecimento da alfabetização e o reforço à leitura, somando-se às atividades culturais e esportivas, além do acompanhamento nutricional e de saúde das crianças.

12Quatro conferências ocorridas na década de 1980 reuniram os coletivos de educadores e docentes da educação básica ao ensino superior, suas representações sindicais e associações, nas quais se debateu uma agenda educacional para o país: a I Conferência Brasileira de Educação, realizada em São Paulo, em 1980; a II Conferência, ocorrida em 1982, em Belo Horizonte; a III Conferência, ocorrida em Niterói, em 1984. A IV Conferência ocorreu em Goiânia, em 1986. Nos debates políticos e educacionais desse período, o projeto dos CIEP sempre enfrentou críticas de caráter político e de concepção, não trazendo consenso entre os setores progressistas do campo educacional, divididos principalmente entre o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido Democrático Trabalhista (PDT), entre outras agremiações de esquerda (Santos, 2011).

13A confluência de Darcy Ribeiro e o ímpeto político de Brizola na projeção dos CIEP somaram-se ao traço modernista de Oscar Niemeyer, o arquiteto-comunista que buscou conciliar, no espaço físico, “beleza, baixo custo e rapidez de execução” (Ribeiro, 1986, p. 103).

Financiamento: O estudo não recebeu financiamento.

REFERÊNCIAS

1 BRASIL. Lei n° 7.716/89. Define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. sancionada Brasília, 5 de janeiro de 1989; 168° da Independência e 101° da República. Brasília, DF: Presidência da República, 1989. [ Links ]

2 BRASIL. Lei n° 9394/1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília, DF: Presidência da República, 1996. [ Links ]

3 CAMPOS, S.; COHN, S.; REIS, R. (org.). Darcy Ribeiro. Rio de Janeiro: Azougue Editora, 2007. [ Links ]

4 CUNHA, E. Os sertões. Rio de Janeiro: Record, 2000. [ Links ]

5 DREIFUSS, R. A. 1964, a conquista do Estado: Ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis: Vozes, 1981. [ Links ]

6 FERNANDES, F. A revolução burguesa no Brasil: Ensaio de interpretação sociológica. São Paulo: Globo, 2005. [ Links ]

7 GORENDER, J. O escravismo colonial. São Paulo: Ática, 1988. [ Links ]

8 RIBEIRO, D. Nossa escola é uma calamidade. Rio de Janeiro: Salamandra, 1984. [ Links ]

9 RIBEIRO, D. O Livro dos CIEPs. Rio de Janeiro: Bloch, 1986. [ Links ]

10 RIBEIRO, D. O processo civilizatório. Petrópolis: Vozes, 1987. [ Links ]

11 RIBEIRO, D. Confissões. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. [ Links ]

12 RIBEIRO, D. O Povo Brasileiro. São Paulo: Editora SCHWARCZ Ltda., 2009 [1995]. [ Links ]

13 RIBEIRO, D. O Mulo. São Paulo: Global Editora, 2014a [1981]. [ Links ]

14 RIBEIRO, D. América Latina: A pátria grande. Brasília: Editora UnB, 2014b. [ Links ]

15 SAID, E. W. Representações do intelectual. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. [ Links ]

16 SANTOS, L. A. Entre a Utopia e o Labirinto: Democracia e autoritarismo no pensamento educacional brasileiro dos anos 1980. Rio de Janeiro: FAPERJ/Quartet Editora, 2011. [ Links ]

17 VIANA, F. J. O. Populações meridionais do Brasil. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. [ Links ]

18 VIANNA, L. W. A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2004. [ Links ]

Recebido: 25 de Novembro de 2021; Aceito: 29 de Junho de 2022

Lincoln De Araújo Santos é doutor em Políticas Públicas pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor adjunto do Programa de Pós-Graduação em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas (PPGECC) da mesma instituição e da Faculdade de Educação da Baixada Fluminense (FEBF). E-mail: liarsan@gmail.com

Conflitos de interesse: O autor declara que não possui nenhum interesse comercial ou associativo que represente conflito de interesses em relação ao manuscrito.

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