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Revista Brasileira de Educação

Print version ISSN 1413-2478On-line version ISSN 1809-449X

Rev. Bras. Educ. vol.28  Rio de Janeiro  2023  Epub May 03, 2023

https://doi.org/10.1590/s1413-24782023280032 

Artigos

Educação para a potência ou a arte dos bons encontros: três ou quatro ideias sobre Espinosa e educação1

EDUCACIÓN PARA LA POTENCIA O EL ARTE DE LOS BUENOS ENCUENTROS: TRES O CUATRO IDEAS SOBRE ESPINOSA Y LA EDUCACIÓN

André Valente de Barros Barreto, Metodologia, Escrita - Primeira RedaçãoI 
http://orcid.org/0000-0001-6613-4544

Peter Pal Pelbart, Metodologia, SupervisãoII 
http://orcid.org/0000-0003-1880-0113

1Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, Capivari, SP, Brasil.

2Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.


RESUMO

Partindo de algumas das ideias presentes na Ética, como o desejo enquanto essência humana, a teoria dos afetos e o paralelismo psicofísico, exploramos algumas possíveis relações entre a filosofia de Espinosa e a educação, com o objetivo de fazer do processo de ensino-aprendizagem uma experiência somato-afetiva emancipadora baseada nos bons encontros dos corpos-sujeitos com vistas à construção de um percurso ético tanto de discentes como de docentes.

PALAVRAS-CHAVE Espinosa; filosofia; educação; corpo

RESUMEN

Partiendo de algunas de las ideas presentes en la Ética, como el deseo como esencia humana, la teoría de los afectos y el paralelismo psicofísico, exploramos algunas posibles relaciones entre la filosofía y la educación de Espinosa, con el objetivo de hacer del proceso de enseñanza-aprendizaje una experiencia emancipadora somato-afectiva basada en buenos encuentros entre cuerpos-sujetos con el fin de construir un camino ético tanto para estudiantes como para profesores.

PALABRAS CLAVE Espinosa; filosofía; educación; cuerpo

ABSTRACT

Starting from some of the ideas present in Ethics, such as desire as a human essence, the theory of affections and the psychophysical parallelism, we explore some possible relationships between Espinosa’s philosophy and education, with the aim of making the teaching-learning process a emancipatory somato-affective experience based on good encounters between bodies-subjects with a view to building an ethical path for both students and teachers.

KEYWORDS Espinosa; philosophy; education; body

INTRODUÇÃO

A prática docente é desafiadora. Ainda mais desafiadora quando se ensinam adolescentes entre 15 e 17 anos. É certo que os desafios passam pelas condições de trabalho e salário, sempre aquém daquilo que se poderia esperar em um país onde a educação é uma unanimidade mais retórica do que prática. Retóricas à parte, o desafio maior, pelo menos com essa faixa etária, é o que se costuma chamar de… motivação. Acreditamos que todo professor do ensino básico entra em sala de aula preocupado com a motivação de seus alunos. É discurso corrente que a escola não motiva, seja pelo conteúdo, seja pela forma, ou ainda pelo objetivo a que se propõe. O fato é que os resultados que a escola alcança — e isso pode ser lido de diferentes maneiras — ficam muito aquém do que poderíamos esperar. Mesmo nas análises mais conservadoras, que, em geral, são as que prevalecem no debate público, a escola tem resultados fracos. Não são poucos os críticos que dizem que há uma inadequação entre a escola e o mundo do qual ela faz parte.

De fato, em uma leitura mais ampla, poucas instituições se moveram tão lentamente nos últimos 50 anos. A família mudou, a empresa mudou, a igreja mudou, a tecnologia mudou, mas a escola é basicamente a mesma há decênios. É verdade que temos escolas inovadoras, muitas com projetos ousados e bons resultados. Poucas delas, porém, são públicas. A escola em geral, e a pública em especial, ainda é demasiadamente tradicional: aulas expositivas com base na transmissão de informações a partir de um currículo pré-determinado, pouco significativo, que privilegia o “pensar” em detrimento do sentir. Podemos afirmar que, em pleno século XXI, do ponto de vista não somente metodológico como também epistemológico, nossa escola ainda é fortemente cartesiana. Com isso, queremos dizer que a escola ainda concebe o conhecimento como um processo essencialmente mental, entendido como puramente racional, não obstante tenhamos já teorias que postulem algo além disso (Illeris, 2013). Apenas nesse ponto, podemos levantar uma questão assombrosa: a de que do processo de ensino-aprendizagem, sob a ótica da escola cartesiana, não participam nem os afetos, nem os corpos, sejam dos discentes, sejam dos docentes. Corpo e afeto simplesmente não detêm nenhum papel epistemológico relevante no processo de ensino-aprendizagem tradicional. E, quando entram em cena, fazem isso, ou ocupando o papel de obstáculo ao “verdadeiro” aprendizado, como ocorre com os afetos, ou ocupando um papel secundário, como é o caso dos corpos, vistos como artefatos mecânicos que funcionam como “suporte da mente.” No mais, afetos e corpos devem ser silenciados/paralisados para que a mente racional “trabalhe.”

Podemos multiplicar os problemas e falar também dos aspectos didáticos, como currículo enciclopédico preestabelecido, método universalizante, avaliação reprodutora em busca de “nota,” individualização competitiva da experiência escolar, descontextualização do conteúdo em relação à vida dos alunos, entre tantas outras questões. Por trás de todas elas, está a grande dúvida em relação ao objetivo da educação: afinal — pergunta que parece um tanto démodé em um mundo regido pelo pragmatismo capitalista —, para que serve a escola?

Todas essas questões, e o inevitável questionamento pelas possíveis saídas, nos levaram ao filósofo holandês Bento de Espinosa (ou Baruch de Spinoza), autor para quem não há conhecimento sem afeto nem corpo. Para além dessa desconcertante obviedade, ignorada pela nossa escola tradicional, encontramos, na obra de Espinosa, uma potência que foi capaz de afetar autores como Nietzsche, Bergson, Reich, Deleuze, Damásio, Maturana e Varela, que deixaram em suas respectivas áreas, entre outras contribuições, importantes reflexões críticas ao racionalismo cartesiano. Potência essa que nos permitiu vislumbrar como promissora a tentativa de articular Espinosa com a educação, não em termos de teorias educacionais ou da aprendizagem, mas sim da experiência direta docente-discente.

Assim, o presente texto tem o propósito de encontrar, no pensamento do filósofo Bento de Espinosa, e em sintonia com ele, dispositivos que ajudem a problematizar o ato educativo na direção de uma experiência geradora de autonomia, seja de professores, seja de alunos, vale dizer, fazer do processo de ensino-aprendizagem um exercício de bons encontros capazes de aumentar a potência dos envolvidos e, assim, favorecer a produção de si — de corpos, afetos e pensamentos — na direção de uma ética afirmativa da vida enquanto processo permanente de criação.

Quem sabe a força da obra espinosista afete corpos e mentes de mais educadores (e alunos). Afinal, o que pode haver de mais adequado à educação do que uma filosofia que afirme o desejo, o corpo e o pensamento como imanentes à vida, capaz de ultrapassar a ideia de conhecimento como exercício estritamente racional, logo indissociável dos corpos e dos afetos, e que busque a emancipação ativa de cada um em direção a uma singularidade que faça da vida um exercício ético?

A ANTROPOLOGIA DESEJANTE DE ESPINOSA

A obra de Espinosa tem sido apropriada por muitos, de muitas maneiras, em diferentes campos do conhecimento, não raro, com resultados bastante fecundos. A exceção parece ser o campo da educação. Poucos são os autores que buscaram, no filósofo holandês, elementos para pensar esse importante campo. Uma das razões talvez seja o fato de Espinosa não tratar especificamente desse tema em sua obra, o que parece ser um consenso entre seus leitores educadores (Merçon, 2009; Abreu, 2013; Costa-Pinto e Rodrigues, 2013; Novikoff e Cavalcanti, 2015; Oliveira, 2019). Alguns defendem haver, mesmo que implicitamente, uma pedagogia em Espinosa. É o caso, por exemplo, de Abreu (2013, p. 10), para quem “[…] o sistema espinosano encerra princípios pedagógicos de primordial relevância para o processo educativo […]”, constituindo, no conjunto de sua obra, o que ele denomina de uma “pedagogia da liberdade.” Há quem veja na obra de Espinosa elementos para uma verdadeira pedagogia libertária (Oliveira, 2019).

De fato, há boas razões para trazermos Espinosa e sua filosofia para o campo da educação, mesmo que as ideias em questão não sejam específicas desse campo. A primeira reside na afirmação que faz do desejo inerente à vida. Mas, para entendermos a possível relação entre o desejo em Espinosa e a educação, precisamos penetrar pelos meandros de sua hermética filosofia, em especial pela sua principal obra, Ética (Espinosa, 2018), finalizada no ano de 1675, embora iniciada muito antes, em 1661.

Nela, Espinosa (2018) afirma haver uma só e única substância, aquilo que existe em si mesma e por si mesma, independentemente de qualquer outra coisa, sendo eterna, infinita e indivisível,2 e da qual deriva tudo o que existe. Essa substância única ele chama de Deus. “Tudo o que existe, existe em Deus, e sem Deus, nada pode existir nem ser concebido.” (Espinosa, 2018, p. 22). Deus, portanto, é causa eficiente ou imanente de todas as coisas. Não há nada além da natureza infinita de Deus ou fora dela, afirmando, assim, uma concepção monista de que há um único elemento originário.

Espinosa diz ainda que Deus é uma substância a cuja natureza pertence o existir, o que significa dizer que a essência envolve necessariamente a existência, dado que não se distingue na obra espinosista o ser do agir (Ramond, 2010). Em outras palavras, Deus existe necessariamente, pois sua existência e sua essência são uma única e mesma coisa, logo Deus é sempre em ato. Essa essência é igualmente potência, conceito central para Espinosa e que assume, em sua obra, um significado positivo, já que toda potência é potência em ato.3 A potência de Deus não é senão sua essência atuante, uma potência absoluta de acontecer, uma potência absoluta de criar, incessantemente. Essa potência de acontecer não tem uma origem nem uma finalidade. Ela não age por causa de um fim, mas por sua capacidade de acontecer, que é a sua natureza.

Ao longo da Ética, Espinosa (2018) identifica a substância Deus com a Natureza (Deus sive Natura), de modo que, para ele, Deus e Natureza são a mesma coisa, ou seja, a única substância existente, da qual advém tudo o que existe, ideia inovadora e considerada por alguns como a grande tese teórica de Espinosa (Deleuze, 2002). A substância infinita cuja essência é uma criação permanente e necessária de tudo o que existe é a própria Natureza. A verdadeira religião de Espinosa é, portanto, seguir as leis da Natureza, o mesmo que seguir as leis de Deus. Pura imanência.

Espinosa denomina esse Deus-Natureza de Natureza naturante, expressão que remete à terminologia escolástica e aparece em sua obra já no Breve tratado de Deus, do homem e do seu bem-estar (Espinosa, 2017). Enquanto versão laica da substância, a Natureza naturante de Espinosa é igualmente capaz de acontecer de infinitas maneiras a partir das variações de seus atributos, produzindo infinitas variações ou modos.4 Os modos não existem por si mesmos, necessitando de outra coisa para existir, nesse caso, os atributos de Deus. Constituem, assim, expressões determinadas e definidas desses atributos, que operam como elemento mediatizador, um “meio comum,” que é uma modificação, uma afirmação da diferença que leva aos modos singulares. Em outras palavras, os modos são afecções ou variações dos atributos que criam tudo o que existe tendo Deus ou a Natureza naturante por causa última e necessária.5 A Natureza naturante de Espinosa é, assim, uma potência absoluta de criar, verdadeira “fábrica” produtora de realidade, que produz sem cessar sua existência necessária por meio de seus infinitos atributos dos quais provêm todas as coisas existentes ou modos, que ele também chama de Natureza naturada. Para Espinosa, portanto, há apenas uma única substância, a Natureza naturante, que é Deus ou Natureza, a partir da qual se cria a Natureza naturada ou os infinitos modos.

Os modos são expressões da potência absoluta da substância ou Natureza naturante, sendo que, entre a potência da substância e a potência dos modos, há uma diferença de grau e perfeição, o que faz variar a potência dos modos, diferentemente da potência perfeita da substância. Os modos, portanto, têm igualmente a capacidade de criar, modificar e se modificar, pois, como a substância, são potências em ato, isto é, têm uma essência, que é sua potência, e uma existência, que é o seu ato. Essa essência, como vimos, é positiva, no sentido de que “cada coisa esforça-se, tanto quanto está em si, por perseverar em seu ser.” (Espinosa, 2018ª, p. 105), sendo que esse esforço nada mais é do que sua essência. A isso Espinosa chama de conatus.

Dado que substância é aquilo que existe em si mesmo e que o ser humano não existe em si mesmo mas em outro, deduz-se que ele não é uma substância. Logo, o ser humano é um dos modos existentes, uma modificação dos atributos extensão e pensamento da Natureza naturante, cuja essência exprime sua natureza de uma maneira certa e determinada e traz consigo o esforço de perseverar, ou conatus, que, no ser humano, Espinosa denomina desejo. “O desejo,” diz ele, “é a própria essência do homem, enquanto esta é concebida como determinada, em virtude de uma dada afecção qualquer de si própria, a agir de alguma maneira.” (ibidem, p. 140). Enquanto modo, isto é, enquanto grau da potência de criação da Natureza naturante, o humano é um ser desejante, força igualmente criadora, capaz de variar, modificar e se modificar e construir a si mesmo, desde que ligado à sua essência, isto é, à potência infinita de criar. Decorre daí uma antropologia vitalista, cuja natureza criadora pode fazer dos encontros com os demais uma experiência de modificação de si e do mundo, produzindo singularidade.

PRIMEIRA IDEIA: EDUCAÇÃO COMO EMANCIPAÇÃO

Assim, partindo-se do pressuposto geral (e genérico) de que a educação surge da necessidade de ensinar os jovens a se tornarem membros ativos de seu grupo social, a primeira ideia espinosista que podemos remeter à educação é a que permite concebê-la como um processo de emancipação com vistas ao exercício ético de produção de si. Haveria objetivo mais nobre para a educação?

Por emancipação aqui entendemos, porém, algo distinto daquilo que, em geral, entende nossa escola. Os projetos político-pedagógicos (PPP) e mesmo os projetos de curso falam muito em “emancipação” do aluno. Trata-se de uma daquelas palavras mágicas obrigatórias nos documentos oficiais. Contudo, quando olhamos a estrutura dos cursos, vemos que se trata de palavra vazia, na medida em que são majoritariamente organizados sob as bases da educação tradicional: currículo pré-definido pelo professor, aulas baseadas na transmissão de conteúdos desvinculados da vida do aluno, metodologia única e impositiva, trabalho massificado, avaliações pouco reflexivas e quantitativas. Ora, o que há de emancipador nisso? Que sujeito sai de uma estrutura de curso como essa que se possa considerar emancipado? Como lembra Costa-Pinto (apudNovikoff e Cavalcanti, 2015, p. 103),

[…] uma vez que, segundo Spinoza, cada um decide aquilo que é bom ou ruim segundo o seu afeto, uma educação prescritiva/normativa que decide o quê, como e quando algo deve se aprendido é despotencializadora, pois estimula a passividade do sujeito, é geradora de paixões tristes, na medida em que distancia o educando de sua própria potência de pensar.

Na verdade, o que se encontra subjacente às belas e vazias palavras oficiais é a ideia de que o(a) jovem aluno(a) é um sujeito incompleto, alguém que ainda precisa alcançar uma condição maior, uma condição dita “plena.” O que se busca “emancipar,” na verdade, é essa condição de incompletude do jovem com vistas à condição de adulto (Rocha apudMerçon, 2009). Em outras palavras, para a escola — e para a família —, o aluno é um não sujeito, de modo que a ele falta algo que caberia à escola proporcionar, tornando-o sujeito pleno, segundo a compreensão moralizante que escola e família têm disso. A escola não vê o aluno como um ser potente, cuja vida se apresenta ali, naquele momento, em ato, permeada de afetos, ideias, medos, dúvidas, desejos e inseguranças ou, quando o vê, avalia tudo isso como sintomas de sua imaturidade/incompletude, como se o adulto — pasmem — fosse alguém maduro e pleno.

Em sua obra, Merçon (2009) fala de três mitos da educação formal, que operam como elementos justificadores de sua atividade, quais sejam, as faltas de saber, de capacidade e de potência que a educação promete sanar, reduzir ou eliminar; o método, ou o conjunto de processos que regulam a transmissão de conhecimentos dos que sabem aos que não sabem; e a finalidade, que pode ir da mais venal utilidade até os ideais de emancipação. Eles correspondem, respectivamente, às questões sobre por que, como e para que educar e constituem, segundo a autora, “[…] um complexo sistema moral pelo qual são propagadas impotências e constituídas experiências passivizadas.” (Merçon, 2009, p. 145).

Pois bem, a questão anteriormente exposta se encaixa no primeiro e terceiro mitos de que fala Merçon (2009). No caso do primeiro mito, haveria aí uma suposta falta, uma condição idealizada que a(o) aluna(o) ainda não tem e que deverá adquirir por força da ação educativa. Há, portanto, uma perda da condição em curso em proveito de um ideal imaginário. Lembra, porém, Merçon (2009, p. 149) que “[…] a falta só existe com o nosso julgamento, com a atribuição de algo alheio que viria, supostamente, a acomodar o que é àquilo que deveria ser. Se consideramos, porém, as coisas como são e o fato de que sempre exprimem a potência que naquele momento lhes pertence, não há falta.” e complementa: “[…] operando conjuntamente com normas ou ideais, com os julgamentos e com as comparações das quais depende, a falta constitui um modo de vida moral e moralizante, um viver que acentua a impotência como a marca do ser e ensina-nos a desejar passivamente.” (Merçon, 2009, p. 149).

Ora, temos aqui duas posições: a posição transcendente e a posição imanente. A primeira, moralizante e sujeitadora, própria da nossa escola tradicional, acaba por deslocar o sentido da experiência educativa do acontecimento presente para o ideal futuro, por definição, inalcançável, não apenas tornando a escola uma experiência sem sentido no presente, como ainda gerando inevitável frustração, já que sempre estaremos aquém do ideal. Já dizia John Dewey (1933) que a educação é a própria vida, não uma preparação para ela. É aqui e agora, no acontecimento, que se colocam as questões para as quais os estudantes buscam respostas. É essa a vida que lhes importa e é essa vida que escola — e família —, em geral, ignoram. Já a segunda posição entende que aos alunos nada falta, uma vez que são “modos em variação de potência” em contato com suas próprias forças, prontas para serem intensificadas se a escola souber verdadeiramente emancipar, promovendo bons encontros, o que significa não haver um ideal a ser atingido, nem uma lacuna a ser preenchida. Não pensamos aqui em conteúdos. Pensamos em forças. É dessa emancipação que falamos: emancipação de nossas forças em direção de uma ética de si, algo que ultrapassa a vida escolar, mas que se encontra inteiramente nela. Dito de outra maneira, a educação para a potência pressupõe um pensamento não como mero exercício intelectual, onipotente e autossuficiente, e sim como expressão de um modo de vida, que, a partir da potência, se articula com os afetos e o corpo, fazendo da busca pelo conhecimento um processo ético. A escola não cultiva intelectos, cultiva pessoas em devir ético — e é esse cultivo que nominamos aqui de emancipação, logo a antítese da noção de emancipação empregada nos documentos oficiais, pura sujeição.

Já quanto ao mito da finalidade, ele faz da educação um processo estático e pré-determinado, abortando possíveis experimentações que surgem o tempo todo ao longo do caminho e que constituem a alma de uma educação para a potência. Tudo o que contraria a finalidade preestabelecida — tirar a nota X, finalizar o capítulo Y, cumprir o plano de aula, preparar-se para o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM)/vestibular — é ignorado ou sabotado. Na educação para a potência (ou, como prefere Merçon (2009), aprendizado afetivo,), o fim é sempre provisório e singular, “[…] efeito de nosso desejo ou conatus, de nossos esforços para atualizar e expandir nossas potências.” (ibidem, p. 162).

Muitos dirão que se trata de uma subversão do papel pragmático e central da escola, qual seja, preparar profissionalmente o discente. Pois têm toda a razão. Trata-se, de fato, de uma subversão de valores, mas engana-se quem pensa que isso diminui o papel formativo intelectual do aluno com vistas à sua vida profissional. Ao contrário. A menos que continuemos batendo na tecla de que a função maior da escola é transmitir conteúdos para que os alunos passem nos exames de acesso ao ensino superior. Se o objetivo fosse esse, terminaríamos aqui este texto. Mas se o objetivo é educarmos pessoas com vistas à sua emancipação ética, pessoas capazes de buscarem aquilo que aumenta sua potência de vida, então não nos parece haver dúvida de que não há contradição entre a educação para a potência e uma boa formação profissional, desde que saibamos viver não mais submetidos ao medo e à esperança moral. É fundamental que isso fique claro. À luz da obra de Espinosa, não há uma separação entre conhecimento e afetividade; há, isso sim, diferentes gêneros de conhecimento em função de diferentes regimes afetivos que, juntos, compõem um modo de vida. Daí porque o conhecimento pode se tornar um exercício ético.

Mas a construção ética de si ou, como chamamos aqui, o processo de emancipação não é uma garantia, dado que depende de uma certa dinâmica das relações. Isso porque, embora sejamos portadores de uma constituição vital e criadora, estamos sujeitos às armadilhas das relações com os demais, as quais podem nos afastar de nossa potência, levando-nos à escravidão das paixões, problema central para Espinosa. E aqui voltamos à obra do filósofo holandês, mais precisamente à sua teoria dos afetos, com o intuito de compreender essa dinâmica.

A LIBERDADE E AS PAIXÕES NA TEORIA ESPINOSISTA DOS AFETOS

Vimos que, enquanto modo, o humano é um ser desejante e criador, desde que ligado à sua essência/potência. Assim é se os seres humanos se encontram livres, se agem de acordo com sua natureza. Ocorre que, para Espinosa, os seres humanos não nascem livres, e sim cativos, embora creiam ser livres. Essa condição de cativo não decorre da ação de outrem, mas do desconhecimento e, consequentemente, mal uso dos próprios afetos que, assim, atuam sem freios e determinam nossos comportamentos. Com a palavra, o filósofo:

[…] chamo de servidão a impotência humana para regular e refrear os afetos. Pois o homem submetido aos afetos não está sob seu próprio comando, mas sob o do acaso, a cujo poder está a tal ponto sujeitado que é, muitas vezes, forçado, ainda que perceba o que é melhor para si, a fazer, entretanto, o pior. (Espinosa, 2018, p. 155)

Espinosa coloca a questão da liberdade e da servidão em um campo totalmente novo em relação à tradição filosófica de sua época (Ulpiano, [s.d.]). A liberdade, para ele, se explica pela ausência de constrangimento.6 Livre é o ser que não é constrangido por nada, que não está sujeito ao acaso das forças extrínsecas, de modo que, ao agir, efetua sua natureza. É o caso de Deus/Natureza, cuja existência realiza sua potência absoluta de criar. Já o ser humano, cuja potência é uma parte da potência infinita da Natureza, não está sujeito apenas aos movimentos de sua própria constituição, senão também ao de forças exteriores, vale dizer daquilo que o afeta de fora. Diz Espinosa (2018) que podemos ser movidos por forças intrínsecas ou extrínsecas. Todos os seres que necessitam de forças extrínsecas para se constituírem são seres apaixonados, isto é, constrangidos por forças do acaso e, portanto, cativos.

A pergunta que Espinosa se faz é se os homens são capazes de se constituírem a partir de suas próprias forças, em outras palavras, se os homens podem ser livres. E ele responde dizendo que, embora isso não seja fácil, é possível. E para compreender como podemos nos tornar livres, precisamos adentrar a teoria espinosista dos afetos e entender as leis que regem a dinâmica dos encontros, o que nos obriga a partir das definições que Espinosa faz do corpo e da mente.

Espinosa (2018, p. 51) entende por corpo “[…] um modo que exprime, de uma maneira definida e determinada, a essência de Deus, enquanto considerada como coisa extensa.” Tudo aquilo que pertence ao atributo extensão é um corpo, que pode ser simples ou composto, nesse caso, formado por múltiplos outros corpos, por vezes igualmente compostos, como é o caso do corpo humano. Os corpos são determinados e se distinguem entre si não por sua forma ou substancialidade, e sim pela sua capacidade de afetar e ser afetado, bem como pela relação de movimento-repouso, velocidade-lentidão de suas partes (Iafelice, 2013), determinação esta imposta pelos demais corpos, dos quais cada corpo necessita para se conservar, sendo continuamente por eles regenerado. Logo, um corpo pode afetar os demais corpos ou por eles ser afeto de múltiplas maneiras, afecções que deixam marcas tanto no corpo afetado como no(s) corpo(s) afetante(s).

Como a vida é uma sucessão infindável de encontros fortuitos entre nosso corpo e os demais corpos, estamos permanentemente sujeitos às afecções decorrentes desses encontros.7 Afecção (affectio), para Espinosa, é uma modificação qualquer do corpo,8 causada pelo encontro com outros corpos e que altera, para mais ou para menos, a sua potência.

Mas os encontros não produzem apenas uma afecção no corpo, senão também um afeto (affectus) na mente, que é não somente a afecção do corpo, como ainda a ideia a ela associada. “Por afeto, compreendo as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as ideias dessas afecções.” (Espinosa, 2018, p. 98, grifo nosso). Trata-se de uma variação do desejo ou da potência, para mais ou para menos, em função de uma afecção do corpo a qual é simultaneamente acompanhada por uma ideia enquanto experiência mental (Ramond, 2010). Essas flutuações são basicamente três: alegria, tristeza e desejo, que Espinosa considera serem afetos primários e dos quais derivam os demais.

Assim, a mente, que é um modo do atributo pensamento, forma ideias a partir das afecções do corpo, que é seu objeto: “[…] o objeto da ideia que constitui a mente humana é o corpo, ou seja, um modo definido da extensão, existente em ato, e nenhuma outra coisa.” (Espinosa, 2018, p. 61). A afecção que afeta o corpo é acompanhada pelo afeto que afeta a mente. Isso ocorre porque “[…] a ordem e a conexão das ideias é o mesmo que a ordem e a conexão das coisas.” (ibidem, p. 55).

Pois bem. Quando meu corpo encontra outro corpo, minha ideia, outra ideia, há duas possibilidades iniciais:

  1. pode haver composição de forças e, nesse caso, há um preenchimento da minha capacidade de existir, um aumento de realidade e eu vivencio uma paixão alegre. Trata-se de um bom encontro, e minha mente passa de uma perfeição menor para uma perfeição maior;

  2. pode haver decomposição (parcial ou total) de forças e, nesse caso, minha capacidade de existir é diminuída e eu vivencio uma paixão triste. Trata-se de um mau encontro e minha mente passa de uma perfeição maior para uma perfeição menor.9

Assim, aquilo que determina meu desejo de fora e aumenta minha capacidade de existir produz uma paixão alegre; já aquilo que determina meu desejo de fora e diminui minha capacidade de existir produz uma paixão triste. Notemos que, em ambos os casos, sou determinado de fora e, portanto, estou sob ação das paixões, o que me coloca numa posição de passividade, na medida em que me sujeito ao elemento exterior que pode variar independentemente de mim. Mesmo se tenho um bom encontro e minha potência de existir é aumentada, sou determinado de fora, portanto, passivo.

Mas há uma terceira possibilidade. O afeto pode ser paixão, alegre, se aumenta minha potência; triste, se a diminui; mas pode ser também ação. Somos preenchidos por paixões ou por ações. A ação, no entanto, depende da correta compreensão dos acontecimentos, isto é, de a mente ser capaz de ter uma ideia adequada, vale dizer, clara e distinta, da causa efetiva do que me acontece. Se a mente tem ideias inadequadas, como vimos, ficamos no campo da paixão, dado que “[…] a ideia de uma afecção qualquer do corpo humano não envolve o conhecimento adequado do próprio corpo humano.” (ibidem, p. 74). Portanto, “[…] as ações da mente provêm exclusivamente das ideias adequadas, enquanto as paixões dependem exclusivamente das ideias inadequadas.” (ibidem, p. 104).

A condição de passividade tem início na inadequada compreensão da natureza dos encontros, na incapacidade da mente de ter ideias claras acerca da dinâmica das forças aí presentes e que a mantém presa às paixões, mesmo às paixões alegres que aumentam a potência. Isso porque as paixões produzem na mente ideias confusas que levam a causas inadequadas: “O afeto, que se diz pathema [paixão] do ânimo, é uma ideia confusa, pela qual a mente afirma a força de existir, maior ou menor do que antes, de seu corpo ou de uma parte dele, ideia pela qual, se presente, a própria mente é determinada a pensar uma coisa em vez de outra.” (ibidem, p. 152).

Capturada pelas paixões e produzindo ideias inadequadas, a mente se mostra incapaz de compreender a verdadeira causa das afecções que afetam o corpo, atendo-se tão somente aos seus efeitos10 — as próprias paixões e as marcas que elas deixam —, não suas verdadeiras causas, tomando os efeitos por causa e confundindo o desejo com aquilo que lhe acontece. Eis o ponto. Espinosa diz que os homens têm consciência de suas ações e apetites, porém desconhecem as causas pelas quais são levados a tê-los. Por isso não são livres.

Esse erro Espinosa (ibidem, p. 14) aponta já no início da Ética, em um de seus axiomas, quando diz que “[…] o conhecimento do efeito depende do conhecimento da causa e envolve este último.”. Não se conhece a causa pelo efeito. Ao contrário, só se conhece o efeito pela causa. O conhecimento do efeito pressupõe e implica o da causa, que o produz e da qual deriva. É, portanto, um erro fixar-se ao efeito e tomá-lo pela causa, pois quanto mais ignorante das causas, mais o homem se imagina livre, embora se mostre cativo. É o que Espinosa chama de ilusão das decisões livres. Acredito que sou livre e tomo minhas próprias decisões quando, na verdade, sou determinado pelas paixões que me acometem. Essa ilusão se alia a outra, que ele denomina ilusão das causas finais, que coloca o outro na condição de agente intencional do que me afetou. Trata-se de uma projeção de intencionalidade que faz do outro uma função da minha vida, uma vida impotente. A vida impotente tem a necessidade de se organizar a partir de uma referência externa, que pode ser as muitas pessoas com quem me encontro, as leis, o Estado, o capital ou um deus transcendente. A consequência disso é que haverá sempre um outro a quem atribuir a responsabilidade por aquilo que me acontece e, não raro, acusá-lo por isso. Se se trata de aumento de potência e alegria, considero o outro causa disso e o amo; se se trata de diminuição de potência e tristeza, o que chamamos de mau encontro, considero-o causa disso e o odeio, posto que “[…] o amor nada mais é do que a alegria, acompanhada da ideia de uma causa exterior, e o ódio nada mais é do que a tristeza, acompanhada da ideia de uma causa exterior.” (ibidem, p. 108). Compreendemos, assim, como pode ocorrer que amemos ou odiemos certas coisas sem que saibamos qual seja sua causa eficiente. Basta imaginarmos que a coisa associada ao afeto é sua causa e atribuirmos a ela a intenção de nos causar o que sentimos, “[…] simplesmente por imaginarmos que uma coisa tem algo de semelhante com um objeto que habitualmente afeta a mente de alegria ou de tristeza, ainda que aquilo pelo qual a coisa se assemelha ao objeto não seja a causa eficiente desses afetos, amaremos, ainda assim, aquela coisa ou a odiaremos.” (ibidem, p. 110).

E assim instauramos uma existência em que, a cada momento, elegemos um amigo ou inimigo responsável por nossa tristeza, nosso ódio ou nosso amor, isentando-nos da responsabilidade pelos acontecimentos. Isso é impotência ou vida passiva para Espinosa. Ele mostra que a causa real do que me acontece não é o outro, mas uma determinada composição de relação de forças, um bom ou mal jeito nos encontros com os demais, o que depende inteiramente da minha potência, ou seja, é no plano intensivo e não intencional que devemos buscar a chave para a dinâmica dos acontecimentos.

Por não compreendermos as causas daquilo que nos afeta, não agimos, padecemos e re-agimos, movidos por paixões. Quanto mais preenchidos pela capacidade de padecer, menos agimos; quanto mais preenchidos pela capacidade de agir, menos padecemos.11 No primeiro caso, somos escravos; no segundo, livres.

Mas, uma vez que a mente seja capaz de ter ideias adequadas, torna-se possível converter uma paixão em ação: “[…] um afeto que é uma paixão deixa de ser uma paixão assim que formamos dele uma ideia clara e distinta.” (ibidem, p. 216). Quanto mais ideias inadequadas tem a mente, mais sujeita está às paixões e, “[…] contrariamente, quanto mais ideias adequadas tem, tanto mais ela age.” (ibidem, p. 100). E quanto mais ela age, mais aumenta a sua potência. Assim:

Digo que agimos quando, em nós ou fora de nós, sucede algo de que somos a causa adequada, isto é, quando de nossa natureza se segue, em nós ou fora de nós, algo que pode ser compreendido clara e distintamente por ela só. Digo, ao contrário, que padecemos quando, em nós, sucede algo, ou quando de nossa natureza sucede algo de que não somos causa senão parcial. (ibidem, p. 98)

A ação é uma modificação do desejo operada pela sua própria natureza, pela sua própria potência, que é aumentada na relação que se estabelece com outra coisa, modificando-a e modificando-se. Essa potência, no seu esforço por existir, produz, cria o modo de relação daquilo que está experimentando. Espinosa chama isso de ato imanente. Trata-se de um bom encontro, um encontro que produz alegria, jamais tristeza, mas diferente daquela que envolve uma paixão alegre, pois, enquanto naquele caso somos passivos, na ação, somos ativos, logo livres.

Espinosa faz, assim, uma distinção entre dois tipos de ato que atualizam a potência: um ato que é paixão e um ato que é ação. A paixão é algo que afeta meu desejo, faz minha potência variar, a partir do exterior e, com isso, modifica minha capacidade de sentir, pensar e agir. Sinto, penso e ajo por determinação extrínseca, não por força da minha natureza. No sentido espinosista, não há ação. Há ação quando há uma determinação intrínseca, um ato imanente, o que implica toda a minha potência e me coloca internamente disposto.

É pelas qualidades expressivas da minha potência, se uma paixão triste, alegre ou uma ação, que eu me torno mais ou menos capaz de existir. Isso porque, a cada potência, corresponde uma capacidade de afetar e ser afetado, modificar e ser modificado e se diferenciar, vale dizer, de existir, a partir dos incontáveis encontros com os demais corpos, capacidade essa que aumenta ou diminui em função da qualidade desses encontros.

Espinosa traça uma linha que perpassa a potência do corpo em ser afetado, a potência da mente em ter ideias claras e distintas e a potência de conhecer a natureza das coisas, condição para aquilo que ele entende por ação (condição também para o que entende por conhecimento).

SEGUNDA IDEIA: EDUCAÇÃO COMO EXERCÍCIO DE BONS ENCONTROS

A segunda ideia espinosista aqui aplicada à educação é a que articula os bons encontros com o processo de ensino-aprendizagem, mais precisamente, que faz do primeiro a dinâmica do segundo. Acreditamos estar claro que uma educação de inspiração espinosista somente pode ser concebida com base na ideia central de que ensinar-aprender é, antes de tudo, um encontro entre pessoas, e é por meio dos encontros que nos constituímos, isto é, que nos tornamos quem somos. Logo, não há nada mais central do que aprender a lidar com as próprias paixões e com a própria potência.

Assim, no lugar de toda uma gama de elementos pré-definidores da relação ensino-aprendizagem, tais como currículos prescritos, conteúdos enciclopédicos e didáticas universalizantes, bons encontros capazes de aumentar a potência dos envolvidos (todos eles), promovendo ação criativa na direção de novas experiências de si, gerando diversidade de percepções, intensidades e pensamentos.

E quando nos referimos a encontros e suas afecções, pensamos sobretudo na abertura em relação ao diferente, ao disruptivo, ao novo, aquilo que me tira do lugar de conforto, pois, quanto mais aberto à alteridade eu estiver, quanto mais meu corpo for afetado, tanto mais minha mente será capaz de pensar e produzir ideias.

Lembra Iafelice (2013), recorrendo a Deleuze, leitor de Espinosa, que o pensamento é produto de encontros com afetos e signos, de modo que é na passagem entre estados, gerada pelo encontro com outros corpos e ideias, que ele surge com toda a sua potência. Afinal, como poderia haver pensamento sem o encontro com o diferente? É justamente esse diferente, que atua como força impactante, violenta, capaz de nos levar além de nossas próprias opiniões e limites, que coloca o pensamento em movimento. Logo, é preciso algo que nos force a pensar, algo que violente o pensamento. No entanto, diz Iafelice (2013, p. 14):

Nossa educação escolar, de forma geral, parece desconhecer o valor do encontro, do involuntário, dos afectos e dos signos que nos impelem a pensar. Ao contrário, parece reconhecer apenas as verdades aprendidas pela representação ou pela recognição que têm como fundamento apenas imagens e semelhanças com algo já-conhecido, um já-pensado, com um saber já-pronto e acabado.

E aqui o autor pontua a diferença entre o conhecer e o saber. Enquanto o conhecer está relacionado à passagem entre estados, logo, a um movimento intensivo que produz transformação, o saber relaciona-se ao já determinado e aprendido, ligando-se aos conteúdos representativos do pensar. O saber é uma espécie de porto seguro que não se abre à incerteza, ao fluxo da experimentação que está na própria essência do aprender. Nossa escola, não raro, movida pela “pedagogia da resposta,” confunde saber com conhecer, fazendo do processo ensino-aprendizagem uma reprodução do já estabelecido.

O intuito de colocar o foco do processo de ensino-aprendizagem nos bons encontros não é, evidentemente, o de fazer dele uma experiência meramente divertida, e sim ajudar o aluno a selecionar suas experiências, evitando os encontros tristes em proveito dos encontros alegres que aumentam a potência de agir, e assim transitar da condição passional imaginativa, própria da servidão, para o exercício da inteligência ativa, própria da liberdade, o que Espinosa entende por devir ético. Como lembra Yonezawa (2015), talvez isso seja o que de melhor uma escola pode ensinar aos seus alunos: buscar os bons encontros que aumentam suas potências de existir. Para isso, é preciso estar no encontro, percebê-lo em curso, na imanência, e abrir-se para as afetações que aí se produzirem. E isso se faz como? Fazendo, arriscando-se, isto é, buscando bons encontros que aumentam nossa potência de existir, de alunos, professores e demais envolvidos, o que nem sempre se consegue, mas cuja busca constitui a difícil e didática lição a ser aprendida, a arte da construção ética de si.

Vale ressaltar que encontros são, em primeiro lugar, encontros de corpos, uns afetando e sendo afetados pelos outros, de modo que, ao falarmos de educação, “[…] faz-se necessário entender as causas e os resultados dos encontros de corpos — do professor e do aluno —, bem como as composições e as decomposições que esses corpos podem gerar ao se encontrarem.” (Novikoff e Cavalcanti, 2015, p. 90). Isso nos lança à questão referente ao papel do corpo no processo educativo e mesmo além dele. Essa relação se faz mais clara a partir da ideia espinosista de paralelismo psicofísico.

O PARALELISMO PSICOFÍSICO

Vimos anteriormente que corpo e mente, para Espinosa, são modos ligados a atributos distintos, o primeiro ao atributo extensão, o segundo ao atributo pensamento, o que faz deles modos independentes um do outro. Isso significa que um corpo, enquanto matéria extensa, não é limitado por um pensamento, nem um pensamento por um corpo. Um corpo só pode ser afetado por outro corpo, como uma ideia por outra ideia. Portanto, Espinosa (2018, p. 56) afirma haver uma autonomia entre elas:

E se eu disse que Deus é causa de uma ideia — da ideia de círculo, por exemplo —, enquanto é apenas coisa pensante, e do próprio círculo enquanto é apenas coisa extensa, foi só porque o ser formal da ideia de círculo não pode ser percebido senão por meio de outro modo do pensar, que é como que sua causa próxima, e esse último modo, por sua vez, por meio de um outro, e assim até o infinito, de maneira tal que sempre que considerarmos as coisas como modos de pensar, deveremos explicar a ordem de toda a natureza, ou seja, a conexão das causas, exclusivamente pelo atributo do pensamento. E, da mesma maneira, enquanto essas coisas são consideradas como modos de extensão, a ordem de toda a natureza deve ser explicada exclusivamente pelo atributo da extensão. O mesmo vale para os outros atributos.

Nem o corpo pode determinar a mente a pensar, nem a mente pode determinar o corpo a mover ou ficar em repouso.

Entretanto, dizer que os atributos são autônomos não significa dizer que sejam substâncias distintas. Espinosa afirma que a ideia do corpo (pensamento) e o próprio corpo (extensão) são, na verdade, um único e mesmo indivíduo (uma única e mesma coisa), concebido sob dois atributos distintos. Voltando ao exemplo do círculo, a ideia de círculo e o círculo em si são a mesma coisa explicada segundo cada um dos diferentes atributos. E mais, um não existe sem o outro. Não há círculo sem sua ideia correspondente, nem a ideia sem um círculo. No escólio da proposição 10 do livro 1, Espinosa (ibidem, p. 18, grifo nosso) diz que:

Ainda que dois atributos sejam concebidos como realmente distintos, isto é, um sem a mediação do outro, disso não podemos, entretanto, concluir que eles constituam dois entes diferentes, ou seja, duas substâncias diferentes. Pois é da natureza da substância que cada um dos seus atributos seja concebido por si mesmo, já que todos os atributos que ela tem sempre existiram, simultaneamente, nela, e nenhum pôde ter sido produzido por outro, mas cada um deles exprime a realidade, ou seja, o ser da substância.

Trata-se aqui de uma clara alusão à concepção bissubstancialista de Descartes segundo a qual pensamento e extensão constituem substâncias distintas, ideia recusada por Espinosa. Rompendo com uma tradição filosófica racionalista que não apenas separa mente e corpo como duas substâncias, como ainda defende a superioridade da primeira em relação ao segundo, Espinosa afirma a unidade substancial com equivalência dos atributos, segundo a qual, se não há superioridade da mente sobre o corpo, tampouco há o inverso disso, a superioridade do corpo sobre a mente (Deleuze, 2002).

Portanto, pensamento e extensão são expressões distintas, autônomas e equivalentes de uma única e mesma substância. Esse é o fundamento do paralelismo psicofísico de Espinosa, segundo o qual a uma afecção no corpo corresponde uma ideia na mente, que não podem ser separadas senão conceitualmente, dado que não existe afecção sem sua ideia equivalente.12

A chave para compreender o paralelismo psicofísico espinosista reside na ideia de que a relação entre corpo e mente não é causal, pois ambos são modos de uma única substância, e sim intensiva, dada pela potência. Isso porque “[…] como toda ‘afecção’ de nosso corpo aumenta ou reduz sua potência de agir, também, paralelamente, o afeto correspondente aumentará ou diminuirá nossa potência de pensar.” (Ramond, 2010, p. 18-19). Mente e corpo estão em relação direta com a potência que funciona como o elemento comum entre ambos e por meio dela interagem. A alteração da potência provocada por um encontro qualquer corresponde a uma afecção no corpo ao mesmo tempo que a um afeto, que é a ideia da afecção na mente. Afeto (mente) e afecção (corpo) expressam a mesma experiência de maneiras distintas tendo por base a variação da potência, o que significa que o fazem de modo simultâneo: “[…] a ordem das ações e das paixões de nosso corpo é simultânea, em natureza, à ordem das ações e das paixões da mente.” (Espinosa, 2018, p. 100). Segundo o filósofo, não resta dúvida de que

[…] tanto a decisão da mente, quanto o apetite e a determinação do corpo são, por natureza, coisas simultâneas, ou melhor, são uma só e mesma coisa, que chamamos decisão quando considerada sob o atributo do pensamento e explicada por si mesma, e determinação, quando considerada sob o atributo da extensão e deduzida das leis do movimento e do repouso […]. (ibidem, p. 103, grifo nosso)

Logo, a potência de pensar da mente é, por natureza, igual e simultânea à potência de agir do corpo.

Mas Espinosa vai além. Vimos que o objeto da mente é o corpo. É por meio das ideias formadas a partir das afecções do corpo que a mente, cuja essência consiste precisamente em afirmar a existência atual do corpo, pode conhecê-lo: “[…] a mente humana não conhece o próprio corpo humano e não sabe que ele existe senão por meio das ideias das afecções pelas quais o corpo é afetado.” (ibidem, p. 70), diz Espinosa. E, ao mesmo tempo em que conhece o corpo por meio das ideias, a mente conhece a si mesma: “[…] a mente não conhece a si mesma senão enquanto percebe as ideias das afecções do corpo.” (ibidem, p. 72). Ora, disso decorre que “[…] o homem não se conhece a si próprio a não ser pelas afecções de seu corpo e pelas ideias dessas afecções.” (ibidem, p. 133), de modo que todo e qualquer conhecimento de si passa pelo próprio corpo e pelas ideias que a mente tem dele.

Mas a mente não percebe apenas a natureza de seu próprio corpo, senão os demais corpos. Ocorre que, mais uma vez, a percepção que a mente tem dos demais corpos passa antes pelo próprio corpo, por meio de suas afecções, mais precisamente por meio das ideias das afecções. “A mente humana não percebe nenhum corpo exterior como existente em ato senão por meio das ideias das afecções de seu próprio corpo.”, afirma Espinosa (ibidem, p. 73). Assim, para ele, não há conhecimento, seja de si, seja do mundo, que não passe pelo nosso corpo, bem como pelos afetos associados a suas afecções.

Há, portanto, uma relação indissociável entre a dinâmica das afecções do corpo e dos afetos da mente e nossa capacidade de conhecer a nós mesmos e todas as coisas. Ora, ao colocarmos esses dois modos, a mente (modo do atributo pensamento) e o corpo (modo do atributo extensão) sob uma relação de equivalência, tendo por base a noção de potência, abrimos a possibilidade de pensar a educação sob bases inteiramente novas, mais precisamente, podemos conferir ao corpo, elemento há muito negligenciado pelas teorias educacionais cartesianas, um papel de centralidade no processo de ensino-aprendizagem, passando a assumir um novo estatuto epistemológico no que se refere à produção de conhecimento, o que nos leva à terceira ideia espinosista aplicada à educação.

TERCEIRA IDEIA: O CORPO PRODUTOR DE CONHECIMENTO

A terceira ideia diz respeito exatamente ao papel do corpo no processo de ensino-aprendizagem. Segundo Deleuze (2002), Espinosa propõe aos filósofos o corpo como novo paradigma. Nesse sentido, o autor francês interpreta a posição de Espinosa acerca da indeterminação do que pode o corpo como uma provocação à extrema valorização que os filósofos fazem da consciência. Estes falam muito de consciência, diz ele, mas mal sabem do que o corpo é capaz. E porque não sabem, tagarelam, diz Deleuze, evocando uma citação de Nietzsche (apudDeleuze, 2002, p. 24), outro grande aliado nessa crítica, segundo a qual “[…] o que surpreende é, acima de tudo, o corpo […]”. Trata-se aqui de uma crítica às filosofias da consciência para as quais o corpo seria uma matéria menor, obstáculo para a razão e o conhecimento.

Ao fazer tal declaração, Espinosa evoca um corpo cujas possibilidades são ainda desconhecidas e que podem nos surpreender, dado que desconhecemos sua estrutura, apresentando-nos uma outra perspectiva segundo a qual, longe de representar a dimensão humana mais precária ou menor, o corpo se mostra como aquilo que temos de mais elaborado. Assim, ele enaltece as capacidades corporais que superam a mente, inclusive em animais, e lembra que a engenhosidade estrutural do corpo humano ultrapassa em muito todas as coisas que o homem é capaz de construir13 (Espinosa, 2018).

Para Deleuze (2002), a significação prática do paralelismo psicofísico espinosista aparece precisamente na inversão desse princípio caro às filosofias da consciência, que condicionam a ação da alma ao padecimento do corpo e vice-versa, apresentando-os como elementos antitéticos, enquanto a Ética de Espinosa (2018) afirma que a ação ou paixão na alma é igualmente ação ou paixão no corpo, operando como elementos de uma mesma potência. Com isso, Espinosa restabelece ao corpo um papel central em nossas vidas, em geral, e no processo de conhecimento, em particular. Quanto maior a capacidade de afecção do corpo, melhor conhecemos, porque maior sua potência. E quanto mais potente é o corpo, tanto mais potente será o pensamento. “Se uma coisa aumenta ou diminui, estimula ou refreia a potência de agir do nosso corpo, a ideia dessa coisa aumenta ou diminui, estimula ou refreia a potência de pensar de nossa mente.” (Espinosa, 2018, p. 106). Assim, quanto mais um corpo é capaz de agir simultaneamente sobre um número maior de coisas, tanto mais sua mente é capaz, comparativamente às outras mentes, de perceber simultaneamente um número maior de coisas. Quanto maior for a complexidade do corpo e, consequentemente, sua capacidade de sofrer afecções, isto é, de afetar ser afetado, tanto mais potente será o pensamento. Não porque um afete o outro, como vimos anteriormente, e sim porque o aumento de potência produz efeitos no corpo e na mente. A produção de conhecimento não apenas não elimina o corpo e as afecções corporais como ainda as exige como necessárias para sua mediação. Em outras palavras, o corpo é condição para o conhecimento.

Parafraseando Novikoff e Cavalcanti (2015), o conhecimento não começa na mente, começa na excitação do corpo, na pele, nas vísceras, nos músculos, no peito. Estudar é enamorar-se, apaixonar-se por algo, uma ideia, um tema, um livro, uma disciplina, um(a) professor(a), tudo aquilo que nos afeta, a partir do corpo, não um ato de razão prática ou de cálculo futuro; é feita de encontros com coisas que nos atravessam e mexem com as intensidades do corpo, algo capaz de nos incitar a pensar, algo que precise ser produzido, conquistado, desejado. Uma sala de aula — ou qualquer outro espaço educativo — é um campo de encontro de forças (pessoas, corpos humanos, ideias, matérias, objetos, conteúdos), puro circuito de intensidades afetivas. Nessa direção, lembra Larrosa (2003), um livro é uma força que atua sobre outras forças produzindo nelas efeitos variáveis. A leitura, aqui, se revela não como um exercício que se realiza apenas com os olhos e a mente, mas que se faz com todo o corpo. É uma experiência plena de sentidos. É todo esse campo de forças, esse circuito de afetos, que Espinosa nos mostra com clareza e que coloca o corpo em posição de centralidade na vida e nos espaços educativos.

Ora, isso é a antítese de nossa escola cartesiana na qual os corpos devem ser paralisados e contidos para que a “mente funcione.” Ressalta Gaya (2006) que o corpo, reduzido à condição de res extensa menor, passivizado, disciplinado e ignorado epistemologicamente, é um ausente na pedagogia escolar intelectualista, de modo que é chegada a hora de reinventar os corpos. Para tanto, é preciso superar as concepções instrumentalizadoras do corpo na educação, colocando-o como um princípio epistemológico “[…] capaz de ressignificar nossas paisagens cognitivas e alterar metas sociais e educativas.” (Nóbrega, 2005, p. 610). Mas é preciso começar pelo começo, pelo óbvio. Pensar o lugar do corpo na educação significa, em primeiro lugar, evidenciar o desafio de nos percebermos como seres corporais, não mais no sentido meramente ordinário ou fenomênico, e sim no sentido epistêmico. Logo, é preciso um rearranjo dos elementos para que os corpos e os afetos, dois grandes ausentes da escola cartesiana, ocupem o lugar que lhes cabe em uma instituição promotora de conhecimento. Há muito o que se considerar aqui, mas essa questão passa certamente por uma outra disposição física dos espaços de aprendizagem, bem como por uma maior liberdade de movimento por parte dos envolvidos. Em direção semelhante, diz Nóbrega (ibidem, p. 613):

A agenda do corpo na educação e no currículo deverá necessariamente alterar espaços e temporalidades, considerando o ato educativo um acontecimento que se processa nos corpos existencializados e é atravessado pelos desejos e pelas necessidades do corpo e que, seguramente, não é propriedade de nenhuma disciplina curricular, mas que pode oferecer-se, não sem resistência, como projeto de inusitadas colaborações nesse espaço e tempo da educação que compreendemos como currículo.

Por fim, queremos fazer uma breve reflexão acerca do segundo mito de que fala Merçon (2009), a saber, o mito do método. Ele supõe haver não apenas determinados conteúdos, materiais, procedimentos e avaliações, como ainda disposições dos corpos e controle dos gestos, capazes de estabelecer o caminho certo de se ensinar alguém. O problema aqui, como se sabe, é a ideia de que há uma forma única e melhor de se ensinar alunos e que, uma vez identificada, ela fundamente, de antemão, o processo de ensino-aprendizagem. O método, assim, se impõe como meio supostamente melhor de aprendizagem, definido previamente e imposto aos discentes, formando um regime de comandos e obediências. Em outras palavras, o problema do método é que ele é universalizante e prescritivo.

Ora, quem ensina sabe que não há um método melhor capaz de abranger um coletivo de alunos, dado que os alunos têm diferentes habilidades e aprendem de diferentes maneiras e em tempos diferentes. Lembra Espinosa que cada corpo é afetado de múltiplas maneiras e nenhum corpo é afetado da mesma forma que outro corpo, pois o que afeta o indivíduo e o faz pensar é sempre algo singular e não genérico, embora as ideias possam ser compreendidas e compartilhadas entre muitos corpos-mentes.

O fato é que a aprendizagem acontece sob condições muito pouco controláveis e nenhum professor sabe, ao certo, como ou quando seus alunos aprendem — não raro nos interstícios das aulas formais, momentos em que o método “não está sendo aplicado.” Pode saber em relação a um ou outro, mas dificilmente em relação a todos eles. A adoção de um método único é, de fato, uma violência institucional na medida em que cria uma linha de corte acima da qual aqueles que, por inúmeras e diferentes razões, conseguem superar, tornam-se os “bons alunos,” enquanto os que não conseguem tornam-se os “maus alunos,” estabelecendo toda a hierarquização do sistema escolar que conhecemos, sistema esse que se retroalimenta, via de regra, reforçando os “bons” e “maus” alunos de sempre, fazendo da escola uma instituição produtora de desigualdade, embora se proponha ao oposto (Illich, 1985; Rancière, 2020). Não há maus alunos. Há alunos com diferentes capacidades e ritmos, há alunos desinteressados e há, sobretudo, a incapacidade da escola de lidar com suas singularidades. Qualquer um é capaz de aprender se quem ensina se envolve com o processo e estabelece com o aluno uma relação em que ambos se deixam afetar para que encontrem o que há em comum entre eles, ponto de partida para um bom encontro, no sentido espinosista.

Assim, no lugar do método, pensamos em microestratégias flutuantes adequadas a cada experiência significativa com o aluno ou grupo deles em sistema de autoaprendizagem ou ensino mútuo,14 e, nesse sentido, é importante que sigamos nos perguntando a todo momento o que significa, em cada ocasião, um ensinar que deseja ativar pensamentos. Na mesma direção de Merçon (2009), entendemos que o caminho (método) é aquele que se traça com outros e não aquele que é traçado por outros, próprio de uma educação moralizadora. A ideia aqui é fazer junto, dado que o outro é condição necessária para a existência da nossa própria potência, mesmo que o outro também possa representar nossa aniquilação, dependendo do modo como lidamos com ele, já que as forças externas podem em muito superar as nossas próprias forças. A questão central, lembremos, é a criação de condições que favoreçam relações que aumentam nossa potência contra aquelas que visam diminuí-las.

Dito tudo isso, cabe-nos perguntar, brincando com a provocação de Espinosa aos filósofos da consciência, afinal, o que podem um aluno e um professor em processo de ensino-aprendizagem? Na verdade, ninguém sabe, de modo que nos resta o risco de explorar bons encontros, dispostos a afetar e nos deixar afetar, na direção da alegria que aumenta nossa potência de existir e fazer disso um modo de vida, isto é, um percurso ético. Nada nos parece mais transformador e necessário em um mundo onde as forças contrárias à vida têm insistido em se manifestar, tornando-se tão corriqueiras e banais.

1Este artigo foi elaborado com base em texto de estágio de pós-doutorado realizado no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

2Lembrando que, para Espinosa: a) nenhuma substância pode ter começo; b) uma substância não pode produzir outra; e c) não pode haver duas substâncias iguais.

3Diferentemente de Aristóteles, Espinosa considera que toda potência é atual, ou seja, potência em ato, que se efetiva não como possibilidade, mas como necessidade, de modo que não há potência que não se efetue.

4Na tradição ocidental, substância é aquilo que existe em si. Já o acidente é aquilo que existe em outro, na própria substância. Em lugar de acidente, Espinosa utiliza o termo modo.

5 Espinosa (2018, p. 37) afirma que tudo o que existe é determinado, pela natureza divina, não apenas a existir, mas a existir e operar de uma maneira definida, o que significa dizer que não há nada contingente, de modo que “[…]nas coisas não poderiam ter sido produzidas por Deus de nenhuma outra maneira nem em qualquer outra ordem que não naquelas em que foram produzidas.”. Tudo o que existe, existe necessariamente e da maneira que deve ser.

6Há quem discorde de Ulpiano, não quanto a Espinosa ter colocado o problema da liberdade em campo inteiramente novo, e sim sobre onde reside a novidade. É o caso de Marilena Chauí (2016, p. 507), para quem “[…] diversamente do que pensava Descartes (e Hobbes), o que diferencia o constrangimento e a liberdade não é a ausência (nela) ou a presença (nele) da necessidade, mas a interioridade ou a exterioridade da causa que incita a existir e agir.”.

7É impossível vivermos sem encontrar os demais corpos e sem deles dependermos. E isso não é ruim. Espinosa chega a dizer que uma (boa) composição de corpos pode nos tornar duas vezes mais potente. Assim, os demais corpos e os encontros que temos com eles são não apenas inevitáveis, como ainda necessários e potencializadores.

8A rigor, afecção é uma modificação de uma coisa particular qualquer, mas Espinosa utiliza o termo geralmente em relação ao corpo humano.

9Essa variação se refere sempre à condição anterior, de modo que Espinosa ressalta o termo passagem, pois não é a condição de perfeição em si que é alegre ou triste, e sim a passagem para mais ou para menos, isto é, a variação. No caso da tristeza, a potência diminui porque parte dela é direcionada à contenção do próprio afeto de tristeza.

10Para Espinosa, abrindo uma linha que posteriormente será seguida por autores como Nietzsche e Deleuze, a consciência é um dos efeitos das marcas decorrentes dos encontros fortuitos dos corpos, o que significa dizer que ela é muito mais reativa do que ativa. O homem da consciência está preso às marcas e com base nelas cria toda uma gramática fantasmática que o mantêm ligado a paixões tristes e geram muito sofrimento. Portanto, o homem da consciência é um ser apaixonado, um homem da servidão.

11Mas meu desejo será sempre preenchido, necessariamente. Por isso Espinosa diz que ao desejo, nada falta, pois ele não carece de objeto. O objeto do desejo é o próprio acontecimento.

12É interessante notar que o paralelismo psicofísico de Espinosa, elaborado no século XVII, tem influenciado, para além da Filosofia, importantes cientistas em pleno fim do século XX, início do XXI, no que concerne às discussões acerca da relação entre mente e corpo, sendo respaldado pelas mais atuais pesquisas em neurociências. Um exemplo é o neurocientista português António Damásio (1996; 2004).

13Vale lembrar que a defesa do corpo apresentada por Espinosa é compartilhada por muitos autores contemporâneos, como Atlan, Damásio, Deleuze, Merleau-Ponty, Morin, Maturana, Reich e Serres, alguns dos quais diretamente inspirados pelo filósofo holandês. Ela diz respeito às inúmeras capacidades e habilidades vitais do corpo humano que possibilitam a ação eficiente e que são irredutíveis às instâncias conscientes — portanto racionais e reflexivas — de controle, compondo-se com elas de diferentes maneiras e em diferentes graus. Cf. Barreto (2021).

14Trata-se de um recurso muito utilizado pelos pedagogos libertários que apostam na coeducação entre os alunos, ou seja, na interação aluno-aluno como modo horizontal de aprender (Oliveira, 2019).

Financiamento: O estudo não recebeu financiamento.

REFERÊNCIAS

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Recebido: 26 de Setembro de 2021; Aceito: 14 de Julho de 2022

André Valente de Barros Barreto é doutor em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP). E-mail: andre.barreto@ifsp.edu.br

Peter Pal Pelbart é doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). E-mail: pelbart56@gmail.com

Conflitos de interesse: Os autores declaram que não possuem nenhum interesse comercial ou associativo que represente conflito de interesses em relação ao manuscrito.

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