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Revista Brasileira de Educação

Print version ISSN 1413-2478On-line version ISSN 1809-449X

Rev. Bras. Educ. vol.28  Rio de Janeiro  2023  Epub May 03, 2023

https://doi.org/10.1590/s1413-24782023280034 

Artigos

Reflexões sobre a inclusão de questões de gênero e diversidade sexual na formação de docentes indígenas na Universidade Federal de Rondônia

REFLEXIONES SOBRE LA INCLUSIÓN DE LA CUESTIÓN DE GÉNERO Y DIVERSIDAD SEXUAL EN LA FORMACIÓN DE PROFESORES INDÍGENAS EN LA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

Carma Maria Martini, Investigação, Metodologia, Escrita - Primeira Redação, Escrita - Revisão e EdiçãoI 
http://orcid.org/0000-0001-9068-4220

Eliane Rose Maio, Supervisão, Escrita - Revisão e EdiçãoII 
http://orcid.org/0000-0002-9280-9864

IUniversidade Federal de Rondônia, Ji-Paraná, RO, Brasil.

IIUniversidade Estadual de Maringá, Maringá, PR, Brasil.


RESUMO

O texto apresenta a análise das percepções de estudantes indígenas da licenciatura em Educação Básica Intercultural da Universidade Federal de Rondônia sobre a inclusão da discussão de questões de gênero e diversidade sexual no curso. A pesquisa se fundamenta em autores(as) da área dos Estudos de Gênero e a abordagem metodológica adotada foi a pesquisa qualitativa. Compreendeu os(as) discentes matriculados(as) no segundo semestre de 2018, dos quais selecionamos uma amostra de 19 participantes. Para produzir os dados, utilizamos o questionário e a entrevista semiestruturada e, na análise, recorremos a estratégias da Análise de Conteúdo. Os resultados revelaram que a maioria dos(as) participantes considera que o curso pouco tem contribuído para capacitá-los(as) para lidar com questões de gênero e diversidade sexual na prática docente, tendo em vista que tais assuntos praticamente não são discutidos, e considera relevante incluí-los no currículo, com prévia consulta às comunidades indígenas.

PALAVRAS-CHAVE licenciatura intercultural; formação de docentes indígenas; questões de gênero; diversidade sexual

RESUMEN

El texto presenta un análisis de las percepciones de estudiantes indígenas de la Licenciatura en Educación Básica Intercultural de la Universidade Federal de Rondônia, a respecto de la inclusión de la discusión sobre cuestiones de género y diversidad sexual en el curso. Es una investigación cualitativa basada en Estudios de Género. Incluye los estudiantes suscritos en el curso en el segundo semestre de 2018, siendo seleccionado una muestra de diecinueve participantes. Los medios de recolección de datos utilizados fueron el cuestionario y la entrevista semiestructurada. Para el análisis, adoptamos las estrategias de Análisis de Contenido. Los resultados revelan que la mayoría de las participantes considera que el curso poco ha contribuido en capacitarlos para manejar cuestiones de género y diversidad sexual en la práctica docente y señalaron que para ellos es importante la inclusión de esas cuestiones en la estructura curricular del curso, con previa consulta a las comunidades indígenas.

PALABRAS CLAVE licenciatura intercultural; formación de docentes indígenas; cuestiones de género; diversidad sexual

ABSTRACT

The text presents an analysis of the perceptions of indigenous students of the Intercultural Basic Education undergraduate degree at the Universidade Federal de Rondônia about the inclusion of the discussions about gender and sexual diversity issues in the course. The research is based on authors from Gender Studies area and qualitative research was the methodological approach adopted. Students enrolled in the second semester of 2018 were included, from which a sample of 19 participants was selected. A questionnaire and a semi-structured interview were used to produce data and, for analysis, strategies from Content Analysis were employed. The results revealed that most participants consider that the course has contributed little to train them to deal with issues of gender and sexual diversity in teaching practice, considering that these issues are hardly discussed, and they consider relevant to include these topics in the course program, after consulting the indigenous communities.

KEYWORDS intercultural undergraduate degree; indigenous teacher training; gender issues; sexual diversity

INTRODUÇÃO

Com a chegada dos(as) colonizadores(as) estrangeiros(as) no início do século XVI ao território brasileiro, os povos indígenas foram expropriados de suas terras e submetidos a processos de exploração, marginalização e assimilação que perdurou por séculos. A educação escolar para os(as) indígenas, nesse contexto, serviu como instrumento para impor os valores da sociedade ocidental e negar a história desses povos, suas identidades, línguas e culturas. Portanto, o país tem uma dívida histórica com os povos originários, que sempre resistiram e lutaram para garantir o direito à posse das terras tradicionais, manter seus modos de vida e preservar a diversidade cultural.

Embora ainda exista muito a ser conquistado, a Constituição Federal de 1988 (Brasil, 1988) está entre os documentos legais que trouxeram avanços ao que se refere à garantia dos direitos aos povos indígenas. Em conformidade com João Pacheco de Oliveira e Carlos Augusto da Rocha Freire1 (2006), a nova Carta Magna rompeu com a perspectiva integracionista e com a herança tutelar do Código Civil de 1916 (Brasil, 1916), além de garantir o acesso às terras tradicionais e a uma educação escolar diferenciada, específica, bilíngue/multilíngue e intercultural, entre outras coisas.

Desde então, ocorreram, de forma gradativa, diversas mudanças na legislação para a educação escolar indígena, bem como a forma de concebê-la e o entendimento de quem deve ser o(a) docente nesse espaço e como deve ser sua formação. Se em um passado não muito distante os(as) não indígenas ocupavam as funções de gestão e docência nas escolas indígenas, atualmente há um consenso de que, para se consolidar uma educação escolar indígena diferenciada, específica, bilíngue/multilíngue e intercultural, os próprios membros das comunidades (os(as) indígenas) devem ocupar esses papéis.

Helena Alessandra Scavazza Leme (2010) explica que as políticas públicas voltadas à formação de docentes indígenas no Brasil, bem como a legislação que as sustentam na atualidade, inspiram-se em experiências pioneiras e inovadoras de movimentos da sociedade civil, postas em prática em diferentes regiões do país a partir da década de 1970, quando foram planejados e implementados os primeiros cursos voltados à formação de docentes indígenas no país em nível médio. Aly David Arturo Yamall Orellana (2011) informa que esses cursos geralmente eram chamados de Magistério Indígena e habilitavam para atuar na educação infantil e no ensino fundamental I. Essa modalidade ainda é utilizada e a formação geralmente se dá em serviço, tendo em vista que uma parcela significativa dos(as) indígenas que frequenta esses cursos já é docente nas escolas das aldeias (Leme, 2010; Orellana, 2011).

Em Rondônia, a exemplo do que ocorreu em outros estados brasileiros, os primeiros cursos de formação de docentes indígenas foram oferecidos por organizações da sociedade civil a partir da década de 1970. Mario Roberto Venere (2018) apurou, em suas pesquisas, que a primeira iniciativa governamental se deu em 1998, com a criação do Projeto Açaí – Curso de Formação de Professores para o Magistério Indígena Nível Médio, por meio da Secretaria de Estado da Educação (SEDUC/RO), com o objetivo de habilitar professores(as) indígenas a atuar nos anos iniciais do ensino fundamental.

Leme (2010) relata que, com a formação de docentes indígenas em nível médio, abriu-se a demanda para a formação em nível superior, sendo que a Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT) foi pioneira ao criar, no ano de 2001, no campus de Barra do Bugres (MT), a primeira licenciatura para formação de docentes indígenas. Seguindo esse exemplo, outras universidades também abriram cursos semelhantes, entre elas a Universidade Federal de Rondônia (UNIR), que, com recursos do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI) do Ministério da Educação, instituiu o curso de licenciatura em Educação Básica Intercultural no ano de 2008, no campus de Ji-Paraná (RO), como apontam Josélia Gomes Neves, Heliton Tinhawambá Gavião e Cristóvão Teixeira Abrantes (2018).

De acordo com o projeto pedagógico do curso (PPC), o público-alvo da licenciatura em Educação Básica Intercultural da UNIR é formado por indígenas de Rondônia, sul do Amazonas e noroeste do Mato Grosso, preferencialmente que possuam vínculo com o magistério (UNIR, 2008). A área geográfica de abrangência é extensa e formar docentes indígenas nesse contexto é complexo, tendo em vista as diversidades sociolinguísticas, culturais e históricas dos povos da região. O curso tem duração de cinco anos, sendo que os três primeiros compreendem o ciclo de formação básica e os dois últimos, o de formação específica em que os(as) estudantes podem escolher uma entre as quatro diferentes áreas oferecidas: Educação Escolar Intercultural no Ensino Fundamental e Gestão Escolar; Ciências da Linguagem Intercultural; Ciências da Natureza e da Matemática Intercultural; e Ciências da Sociedade Intercultural (idem).

Passada mais de uma década da criação da licenciatura em Educação Básica Intercultural, ainda não houve a reformulação do seu PPC e novas demandas foram detectadas por meio da realização periódica de seminários de avaliação, tais como a redução do tempo do curso de cinco para quatro anos e a mudança da estrutura curricular para que os(as) estudantes já ingressassem na área específica de formação.

No momento, o processo de reformulação do PPC está paralisado por conta da pandemia de covid-19, mas consideramos relevante avançar também nas discussões relacionadas aos temas de urgência social, como é o caso das questões de gênero e de diversidade sexual, para atender as demandas das mulheres e dos(as) indígenas LGBTQIA+ (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais/travestis/transgêneros, queer, intersexo, assexual e mais), que argumentam que suas pautas não são englobadas pelo movimento indígena. Diante disso, surgiu o interesse em realizar a presente pesquisa com o objetivo de analisar as percepções de estudantes indígenas da Licenciatura em Educação Básica Intercultural da UNIR sobre a inclusão da discussão de questões de gênero e diversidade sexual no curso.

Durante a elaboração deste trabalho, realizamos buscas online na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD), no Catálogo de Teses e Dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e na Scientific Eletronic Library Online (SciELO) associando as palavras-chave: “formação de professores(as) indígenas”, “gênero” e “diversidade sexual”. O objetivo foi mapear as produções científicas sobre o assunto publicadas de 2009 a 2020 — o período de funcionamento da licenciatura em Educação Básica Intercultural da UNIR no momento em que o levantamento foi realizado. Não foi identificado, nas bases de dados consultadas, nenhum trabalho que entrecruzasse as três temáticas em foco. Isso evidencia a originalidade da presente pesquisa e, com sua realização, pretendemos preencher essa lacuna, com o propósito de obter dados que possam contribuir efetivamente para a discussão sobre a inclusão de questões de gênero e diversidade sexual nos cursos de formação de docentes indígenas.

A abordagem metodológica adotada para a execução da investigação foi a pesquisa qualitativa. A população da pesquisa compreendeu 168 discentes matriculados no segundo semestre de 2018 na licenciatura em Educação Básica Intercultural da UNIR, campus de Ji-Paraná. Desse grupo, com base em critérios pré-estabelecidos, foi selecionada uma amostra composta por 19 participantes. Como instrumentos para produzir os dados, utilizamos o questionário e a entrevista semiestruturada e, para interpretação e análise, recorremos a estratégias da Análise Categorial Temática, uma modalidade da Análise de Conteúdo. Esses aspectos serão detalhados na próxima seção.

A pesquisa tem como aporte teórico autores e autoras da área dos Estudos de Gênero, com ênfase na vertente pós-estruturalista, tais como Joan Scott (1995), Guacira Lopes Louro (2007; 2008; 2014) e Dagmar Elisabeth Estermann Meyer (2013). Nessa perspectiva, gênero é uma ferramenta analítica e, ao mesmo tempo, política. Por isso, permite mapear os diferentes significados atribuídos ao “ser mulher” e ao “ser homem” em sociedades e períodos históricos diversos (Scott, 1995). E, além disso, possibilita estabelecer os seus sentidos e as suas lógicas de funcionamento para manter ou mudar a ordem social (por isso a dimensão política). Sendo assim, gênero não pode ser compreendido pelo determinismo biológico, mas sim como uma construção sociocultural que estabelece padrões a serem seguidos, de forma que “ser mulher” ou “ser homem” não depende do sexo biológico, mas sim da corporificação dos papéis sociais e culturalmente construídos e delimitados para cada gênero (Louro, 2007; 2008; 2014).

Portanto, gênero vai além do que diz respeito ao masculino e ao feminino, inclui também as relações humanas, os produtos gerados a partir delas e as implicações resultantes de suas construções. Conforme afirma Márcio de Oliveira, Reginaldo Peixoto e Eliane Rose Maio (2018, p. 31), “[…] masculino e feminino são pontos de partida para uma discussão que vai muito além, perpassando pelo produto gerado por meio das relações humanas.”. Sendo assim, esse “produto” deve ser amplamente discutido, inclusive nas escolas, com o propósito de que haja relações harmoniosas, equilibradas e respeitosas, contribuindo para que as pessoas não sofram discriminações e preconceitos por conta de suas identidades de gênero e orientação sexual.

Com relação à sexualidade, Louro (2007, p. 209-210) explica que, ainda que haja diversos entendimentos e conceitos, a maioria dos(as) estudiosos(as) tende a considerar que “[…] a sexualidade supõe ou implica mais do que corpos, que nela estão envolvidas fantasias, valores, linguagens, rituais, comportamentos, representações mobilizadas ou postas em ação para expressar desejos e prazeres.”. Partindo dessa premissa, é possível concluir que há uma multiplicidade de formas de expressar a sexualidade, para além dos comportamentos que se convencionaram serem próprios para as mulheres e os homens. Dessa forma, não existe uma sexualidade, mas sim, sexualidades, justificando assim o uso do termo “diversidade sexual.”

As ideias de gênero e sexualidade mantêm uma relação entre si. No entanto, Dinah Quesada Beck e Bianca Salazar Guizzo (2013, p. 179) comentam que tal relação não é sustentada por um caráter de dependência e que

[…] as identidades sexuais (o que é da ordem dos desejos, dos prazeres e da vivência da sexualidade) não são fixas, terminais e dependentes por conta do sexo biológico dotados dos sujeitos. As identidades de gênero (o que é da origem das feminilidades e das masculinidades) são construções sociais e culturais, e não estão “presas” ao sexo biológico de homens e mulheres.

Posições radicais a esse respeito, que vinculam gênero e sexualidade às questões biológicas, fomentam o preconceito, a discriminação e a violência. Embora as questões relacionadas à defesa dos direitos humanos estejam presentes na legislação e nos currículos, a escola contribui com a propagação de ideias discriminatórias relacionadas ao gênero e à sexualidade (Oliveira, Peixoto e Maio, 2018). Isso nos permite concluir que o problema está nas pessoas que executam essas políticas, que insistem em reafirmar posicionamentos preconceituosos, racistas e homofóbicos.

Discutir questões de gênero e diversidade sexual no contexto dos povos indígenas é uma tarefa complexa. O antropólogo indígena Gersem dos Santos Luciano Baniwa (2006) explica que as organizações sociais das sociedades indígenas estão balizadas em cosmologias ancestrais marcadas por funções de subgrupos sociais, que, articulados entre si, tornam possível a existência de cada grupo étnico. Para o autor, são as “[…] tradições que fundamentam a constituição das famílias extensas e as relações sociais e de parentesco […]” (Baniwa, 2006, p. 212). E, nesse contexto, as mulheres têm um papel socioeducativo fundamental, tendo em vista que elas participam intensamente na educação das crianças que representam as futuras gerações.

No entanto, o contato com a sociedade não indígena tem refletido nos modos de vida tradicionais dos povos indígenas, tendo em vista que as relações estabelecidas possibilitam a apropriação e ressignificação de elementos dessas outras culturas, o que gera mudanças no comportamento social dos grupos. Ângela Sacchi e Márcia Maria Gramkow (2012) relatam que as relações tradicionais de gênero ainda se mantêm em muitas dessas sociedades, porém, em maior ou menor grau, passam por transformações constantes como resultado desse contato intercultural.

Por conseguinte, uma série de fatores têm contribuído para a reconfiguração do masculino e do feminino no contexto indígena, em especial no que se refere à divisão sexual do trabalho, tais como: a promoção de direitos indígenas, a criação de políticas públicas específicas, o crescente acesso à educação formal, os casamentos interétnicos, a participação das mulheres no espaço público e nos movimentos indígenas, as novas práticas econômicas, a ocorrência de novos tipos de violências e a migração para os centros urbanos (Sacchi e Gramkow, 2012).

Nesse contexto, Danielly Coletti Duarte (2017), com base em leituras da antropologia feminista, aponta que as mulheres indígenas sofrem uma dupla condição de invisibilidade no campo político do mundo ocidental por serem indígenas e por serem mulheres, que ficam em uma escala de maior vulnerabilidade em relação às demais, pois, além da opressão vivenciada pela condição de “ser mulher”, enfrentam o preconceito contra a sua origem étnica.

Sônia Guajajara (2020), uma das mais importantes lideranças indígenas femininas do país, enfatiza os desafios enfrentados pelas mulheres indígenas, tendo em vista que elas historicamente foram excluídas dos espaços de poder, tanto dentro das comunidades quanto fora delas; e ressalta o desejo da categoria de participar ativamente e de forma qualificada dos processos de tomada de decisões, tanto a respeito das demandas de gênero, quanto dos interesses de suas comunidades e de seus povos.

A diversidade sexual no contexto dos povos indígenas é um assunto relativamente pouco explorado no âmbito acadêmico, talvez pela sua complexidade. Estevão Rafael Fernandes (2016; 2019) explica que existe uma falsa crença de que as sexualidades indígenas fora dos padrões heteronormativos surgiram com o processo de colonização e são consideradas, inclusive pelos(as) próprios(as) indígenas, como sinônimo de “perda cultural” ou consequências do contato com a sociedade envolvente. Pesquisas realizadas por Luís Mott (1998; 2006), Amilcar Torrão Filho (2000), João Silvério Trevisan (2018), entre outros(as), apresentam diversos registros realizados por cronistas, missionários(as), antropólogos(as), viajantes e historiadores(as) que fazem referência à homossexualidade indígena antes do início da colonização do território brasileiro. Inclusive evidenciam que não havia discriminação entre os(as) nativos(as) em relação a isso. Foi o(a) colonizador(a), com base na moral cristã, que trouxe o preconceito e a intolerância contra a diversidade sexual, tendo em vista que essas questões eram consideradas pela “[…] cristandade como o mais torpe, sujo e desonesto pecado, punida como crime hediondo […]” (Mott, 1998, p. 6, grifo do original).

Os(As) indígenas LGBTQIA+ denunciam que sofrem discriminação em suas comunidades por conta de sua orientação sexual e/ou identidade de gênero. Rogério Macena (2019), da etnia Guarani, residente na aldeia Paranapuã, em São Vicente, no litoral de São Paulo (SP), informa que atualmente as comunidades indígenas têm mais informações sobre o assunto, mas que ainda existe muita intolerância, por isso muitos(as) LGBTQIA+ optam por saírem das aldeias ou não se assumirem por sentirem medo, insegurança ou vergonha. Segundo ele, essa situação se agravou com a chegada das religiões evangélicas nas aldeias, porque elas “[…] têm ensinado aos indígenas como ter preconceito […]” (Macena, 2019, [n. p.]).

Diante dessa realidade, nos últimos anos, mulheres e LGBTQIA+ indígenas têm se mobilizando por meio de coletivos para debater os problemas enfrentados por eles(as) e desenvolver ações que gerem inclusão e representatividade. Esses movimentos não desvinculam suas lutas da pauta do movimento indígena, especialmente no que se refere aos direitos territoriais. Compreendem que garantir os direitos dos povos originários é fundamental para a sua sobrevivência material e imaterial. No entanto, esperam que as lideranças tradicionais reconheçam as suas reivindicações com o propósito de garantir uma vida digna, com respeito à identidade, ao gênero e à sexualidade de cada um(a).

Diante do exposto, fica evidente que atualmente há uma demanda dos povos indígenas relacionada às discussões sobre as questões de gênero e diversidade sexual. Os relatos apresentados mostram que aqueles(as) que não se enquadram nos padrões heteronormativos e de gênero vigentes, em muitos casos, sofrem diversas formas de violência e exclusão, o que se converte em um problema social que convém ser debatido nas diversas instâncias que compõem as sociedades indígenas para procurar maneiras para resolvê-lo ou minimizá-lo.

Infelizmente questões de gênero e diversidade sexual não constam no Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (Brasil, 1998), na Base Nacional Comum Curricular (Brasil, 2017; 2018) e tampouco nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores Indígenas (Brasil, 2015). No entanto, a escola indígena, como qualquer outra, é um reflexo da sociedade em que está inserida. Logo, questões relacionadas a gênero e diversidade sexual estão presentes em seu cotidiano, independentemente de estarem previstas em seu currículo. O(A) docente indígena, que atua nesses espaços, se depara com situações ligadas a essa temática diariamente e sua ação pode contribuir para reafirmar preconceitos e estereótipos já consolidados, como também pode desconstruí-los e colaborar para a construção de uma sociedade mais inclusiva. Nesse contexto, inserir essas discussões nos cursos de formação de professores(as) indígenas pode transformar as práticas escolares por meio da desestabilização de padrões pré-concebidos.

CAMINHOS DA PESQUISA

A presente pesquisa se encontra no campo dos Estudos de Gênero, com ênfase na vertente pós-estruturalista. Trata-se de um campo de estudos interdisciplinar, e as pesquisas desenvolvidas nessa área procuram compreender as identidades e as representações de gênero na esteira da cultura das sociedades humanas (Beck e Guizzo, 2013), como é o caso do presente trabalho.

A abordagem metodológica adotada foi a pesquisa qualitativa, em que levamos em conta o contexto social e histórico do objeto da pesquisa e dos(as) participantes, visando a mais aproximação dos mundos objetivo e subjetivo. Consideramos a pesquisa qualitativa uma abordagem metodológica adequada para alcançar os objetivos pretendidos no presente estudo, pois, de acordo com Antônio Chizzotti (2006), as pesquisas dessa natureza se preocupam em responder a questões muito particulares, ligadas aos fenômenos humanos, os quais possuem características específicas e sua interpretação independe de quantificações estatísticas.

A presente investigação foi desenvolvida em Rondônia, mais especificamente no campus da UNIR de Ji-Paraná, local onde é oferecida a licenciatura em Educação Básica Intercultural. No segundo semestre de 2018, quando a pesquisa de campo foi realizada — com a devida autorização da instituição —, havia 168 alunos(as) matriculados(as) no curso, dos quais 118 estavam no ciclo básico e 50, no específico.2

Para compor a amostra da pesquisa, estabelecemos três critérios:

  1. estar matriculado(a) no ciclo específico do curso, por considerarmos que os(as) estudantes com um período maior de vivência no curso têm mais elementos para contribuir com a pesquisa;

  2. atuar em uma escola indígena como professor(a), tendo em vista que este é o público-alvo preferencial do curso;

  3. ter interesse e disponibilidade para participar da pesquisa, pois a participação foi de forma voluntária, mediante assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido, com a garantia de anonimato.

Após a aprovação do estudo pelo Comitê Permanente de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, iniciamos a pesquisa de campo no fim do segundo semestre do ano de 2018 e constatamos que, dos(as) 50 estudantes matriculados(as) no ciclo específico do curso, 28 já exerciam a profissão docente — destes, 19 aceitaram participar da pesquisa. Para garantir o anonimato dos(as) participantes, solicitamos que eles(as) nos indicassem um pseudônimo de sua preferência para serem identificados(as) no texto. Considerando a diversidade étnica, a representatividade por gênero e a idade dos(as) participantes da pesquisa, julgamos a amostra representativa dos(as) estudantes matriculados no curso (Quadro 1).

Quadro 1 Dados pessoais dos(as) participantes da pesquisa. 

n. Identificação Etnia Gênero Idade (em anos)
1 Ãramirã Tupari Tupari F 48
2 Arikayru Arikapú Arikapú M 45
3 Asikat Tupari Tupari M 27
4 Dukaria Aikanã Aikanã M 22
5 Nakira Wirin Arara Arara F 29
6 Nakot Oro Waran Xijein Oro Waran Xijein F 31
7 Nicolas Suruí Suruí M 31
8 Okio Tupari Tupari M 29
9 Oy Atoah Suruí Suruí M 29
10 Pako Medjutxi Jabuti Jabuti F 29
11 Taodereka Karitiana Karitiana M 26
12 Tocorom Wajuru Wajuru M 37
13 Txiu Jabuti Jabuti M 31
14 Urerh Suruí Suruí M 28
15 Uruã Kanoé Kanoé M 34
16 Wagoh Suruí Suruí M 28
17 Wará Kaxarari Kaxarari M 29
18 Xiener Suruí Suruí M 27
19 Yunua Sabanê Sabanê F 28

Fonte: elaborado pelas autoras.

n.: número; F: feminino; M: masculino.

Os(As) participantes são de 12 diferentes etnias e tal fato é um retrato da realidade do curso, tendo em vista que a região atendida faz parte da Amazônia Legal e, como explicam Egon Heck, Francisco Loebens e Priscila D. Carvalho (2005), é uma área reconhecidamente marcada por uma complexa sociodiversidade, ocupada por um número significativo de povos indígenas.

Dentre os(as) participantes, cinco são do gênero feminino e 14, do masculino. A amostra reflete a realidade das escolas indígenas do estado de Rondônia, onde a maioria dos(as) docentes é homem. Dados disponibilizados pela SEDUC/RO — via Sistema Eletrônico de Serviço de Informações ao Cidadão — mostram que atualmente há, no estado, 101 escolas indígenas em atividade e um quantitativo de 350 professores(as) indígenas, sendo 212 do gênero masculino (60,6%) e 138 do feminino (39,4%).

A média de idade dos(as) participantes é de aproximadamente 31 anos, o que se justifica pela dificuldade em concluir a educação básica, tendo em vista que, até pouco tempo, não era oferecido o ensino médio nas escolas das comunidades indígenas. Bem como existe grande dificuldade de acesso ao ensino superior, pois o sistema de quotas não é suficiente para atender à demanda dos povos indígenas.

Os dados apontam que as(as) participantes são de dez terras indígenas, localizadas em sete diferentes municípios de Rondônia (Quadro 2). Tal fato é um microrretrato da extensa área geográfica atendida pelo curso. Vale frisar que optamos por não informar o nome da aldeia em que cada participantes reside como um cuidado extra para garantir o anonimato.

Quadro 2 Distribuição dos(as) participantes da pesquisa por município e terra indígena. 

Município Terra indígena Identificação do(a) participante
Alta Floresta D’Oeste Rio Branco Ãramirã Tupari, Asikat Tupari, Okio Tupari e Uruã Kanoé
Cacoal Sete de Setembro Nicolas Suruí, Oy Atoah Suruí, Urerh Suruí, Wagoh Suruí e Xiener Suruí
Guajará Mirim Pacaas Novos Tocorom Wajuru
Rio Guaporé Arikayru Arikapú, Pako Medjutxi Jabuti e Txiu Jabuti
Sagarana Nakot Oro Waran Xijein
Ji-Paraná Igarapé Lourdes Nakira Wirin Arara
Parecis Kwazá do Rio São Pedro Dukaria Aikanã
Porto Velho Karitiana Taodereka Karitiana
Porto Velho/Extrema Kaxarari Wará Kaxarari
Vilhena Parque Indígena Apurinã Yunua Sabanê

Fonte: elaborado pelas autoras.

Seguindo a perspectiva da pesquisa qualitativa, elegemos o questionário e a entrevista semiestruturada como instrumentos para a produção dos dados para a investigação. No questionário, usamos uma mescla de perguntas abertas e fechadas com o objetivo de tornar o instrumento mais dinâmico e autoexplicativo, facilitando o seu preenchimento. Optamos pela entrevista semiestruturada por ser mais flexível. Segundo Maria Cecília de Souza Minayo (2010), esse tipo de entrevista dá mais liberdade ao(à) pesquisador(a), pois permite elaborar um roteiro preestabelecido de perguntas e acrescentar outras de forma espontânea, de acordo com as circunstâncias momentâneas. Ambos os instrumentos foram aplicados de acordo com a disponibilidade de tempo dos(as) participantes, com agendamento prévio de data e hora.

Optamos por organizar, tratar e analisar os dados da pesquisa por meio de elementos da Análise Categorial Temática, uma modalidade da Análise de Conteúdo, tendo como referência Laurence Bardin (2016). Segundo a autora, esse tipo de categorização é rápida e eficaz ao ser aplicada a discursos diretos e simples, como é o caso da presente pesquisa. Seguindo essa proposta, seguimos três etapas para a organização, tratamento e análise dos dados, a saber: pré-análise; exploração do material; e tratamento e interpretação dos resultados obtidos.

A pré-análise é a fase de organização em que há um contato intenso do(a) pesquisador(a) com os dados produzidos com o objetivo de torná-los operacionais e sintetizar as ideias iniciais (Bardin, 2016). A fase de exploração do material “[…] consiste essencialmente em operações de codificação, decomposição ou enumeração, em função de regras previamente formuladas.” (ibidem, p. 131), com o objetivo de alcançar o núcleo de compreensão dos dados. Foi nessa fase que estabelecemos três categorias temáticas, em torno das quais o conteúdo dos dados foi organizado — são elas:

  1. Contribuições da licenciatura em Educação Básica Intercultural da UNIR na capacitação de docentes indígenas para lidar com questões de gênero e diversidade sexual no exercício da docência;

  2. Inclusão de questões de gênero e diversidade sexual no currículo dos cursos de formação de docentes indígenas;

  3. Sugestões de atividades para discutir sobre questões de gênero e diversidade sexual nos cursos de formação de docentes indígenas.

Por fim, na fase de tratamento e interpretação dos resultados obtidos, organizamos os dados por meio de quadros e destacamos excertos de falas dos(as) participantes para condensar e pôr em destaque as informações relevantes que emergiram dos dados, o que possibilitou a análise qualitativa com base no quadro teórico que dá sustentação à presente pesquisa.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Organizamos os resultados e a discussão por categoria de análise, portanto o texto está subdividido em três subseções. Na primeira, analisamos as concepções dos(as) participantes sobre as contribuições da licenciatura em Educação Básica Intercultural na capacitação de professores(as) indígenas para lidar com questões de gênero e diversidade sexual no exercício da docência; na segunda, discorremos sobre a inclusão de temáticas envolvendo questões de gênero e diversidade sexual nos cursos de formação de docentes indígenas; e, na terceira, abordamos sugestões de atividades para discutir sobre questões de gênero e diversidade sexual nos cursos de formação de docentes indígenas.

Contribuições da licenciatura em Educação Básica Intercultural da Universidade Federal de Rondônia na capacitação de docentes indígenas para lidar com questões de gênero e diversidade sexual no exercício da docência

Apesar das especificidades, formar professores(as) indígenas é, antes de tudo, formar professores(as), como afirma Wilmar da Rocha D’Angelis (2003). Da mesma forma que as demais licenciaturas, é esperado que as chamadas licenciaturas interculturais formem e encorajem os(as) novos(as) professores(as) a assumirem a responsabilidade de combater as diversas formas de preconceito e discriminação que permeiam o espaço escolar, dentre elas as relacionadas às questões de gênero e à diversidade sexual. Diante disso, perguntamos aos(às) participantes se consideravam que a licenciatura em Educação Básica Intercultural da UNIR está contribuindo para capacitar os(as) professores(as) indígenas para lidar com questões de gênero e diversidade sexual no exercício da docência.

Os participantes Asikat Tupari, Okio Tupari e Wagoh Suruí responderam afirmativamente, justificando que, mesmo os temas não constando no currículo, são discutidos em alguns componentes curriculares e isso possibilita a todos(as) terem, pelo menos, uma noção de como lidar com questões de gênero e diversidade sexual na prática pedagógica. Isso pode ser observado nos trechos transcritos a seguir:

Não tem disciplina para trabalhar isso, mas têm alguns professores que explicam sobre como lidar com pessoas diferentes. Existe muito preconceito com indígenas, negros e até mesmo com os homossexuais […], mas, através das explicações, os professores mostram como viver no mundo, como respeitar os outros. (Asikat Tupari)

[…] mesmo que não tenha no currículo, mas é bastante frisado, […] a gente acaba trocando ideias, dando ponto de vista dentro das disciplinas. (Okio Tupari)

[…] isso já foi discutido. […] Aqui a gente aprende um pouco de cada coisa. […] dá pra gente […] ter noção pelo menos de como lidar. (Wagoh Suruí)

Sabemos que escola é um microcosmos da sociedade e, por isso, é atravessada por questões de gênero e sexualidade. Na perspectiva de Louro (2014, p. 93), “[…] é impossível pensar sobre a instituição sem que se lance mão das reflexões sobre as construções sociais e culturais de masculino e feminino.”. Se os(as) professores(as) não tiverem acesso a uma formação sólida sobre as questões em tela, poderão contribuir para reforçar estereótipos e preconceitos que geram violência e exclusão.

Portanto, não basta ter uma “noção” sobre o assunto. Nilson Fernandes Dinis (2011) salienta que a inclusão de questões de gênero e diversidade sexual no currículo dos cursos de formação docente possibilita que os(as) novos(as) professores(as) desenvolvam estratégias de resistência aos currículos escolares heteronormativos. No caso específico das Licenciaturas Interculturais, essa questão é mais complexa, tendo em vista que gênero e sexualidade têm representações próprias dentro de cada contexto social e cultural (Louro, 2007; 2008; 2014; Meyer, 2013).

Logo, existem várias compreensões a serem consideradas. A inclusão desses temas nas licenciaturas interculturais demanda a elaboração de estratégias, para que os(as) professores(as) em formação de cada grupo étnico se apropriem de conhecimentos que lhes possibilitem promover uma cultura de paz e de respeito aos direitos humanos nas escolas de suas comunidades, de acordo com as especificidades de suas culturas.

A participante Nakira Wirin Arara e o participante Tocorom Wajuru evidenciaram, em suas respostas, que não se recordam de terem discutido sobre questões de gênero e diversidade sexual durante suas trajetórias na licenciatura em Educação Básica Intercultural. Por isso entendem que os(as) cursistas não estão sendo capacitados(as) para lidar com isso no exercício da docência.

A participante e o participante citados anteriormente são favoráveis à discussão desses assuntos no âmbito do curso para que os(as) professores(as) indígenas possam se qualificar para trabalhá-los nas escolas de suas comunidades, como pode ser observado na transcrição da resposta de Nakira Wirin Arara: “Eu acho que contribuiu muito pouco, porque a gente não debateu sobre essa questão. Eu acho que poderia contribuir mais para nos preparar.”.

As participantes Ãramirã Tupari, Nakot Oro Waran Xijein, Pako Medjutxi Jabuti e Yunua Sabanê e os participantes Arikayru Arikapú, Dukaria Aikanã, Nicolas Suruí, Oy Atoah Suruí, Taodereka Karitiana, Txiu Jabuti, Urerh Suruí, Uruã Kanoé, Wará Kaxarari e Xiener Suruí entendem que o curso está falhando quanto à capacitação dos(as) professores(as) indígenas para lidar com questões de gênero e diversidade sexual, tendo em vista que esses temas não estão sendo contemplados. A transcrição de trechos das falas de Wará Kaxarari e Nakot Oro Waran Xijein, apresentada a seguir, sintetiza o pensamento de todos(as) os(as) participantes citados(as) anteriormente.

[…] em nenhum momento a gente teve uma palestra falando sobre isso ou uma discussão ampla. Vejo que o Intercultural, nessa parte, não tem colaborado. (Nakot Oro Waran Xijein)

O Intercultural não capacita ninguém para trabalhar essas questões. Eu mesmo, ao sair daqui no dia em que eu me formar, não estarei preparado para lidar com isso […], porque não está [sendo] discutindo, não estão trazendo esse assunto para dentro [da sala de aula]. (Wará Kaxarari)

Analisando as respostas, constatamos que a maioria dos(as) participantes considera que a licenciatura em Educação Básica Intercultural não oferece oportunidades para os(as) professores(as) indígenas realizarem estudos e discussões sobre questões de gênero e diversidade sexual no seu processo de formação. Consequentemente, não os(as) capacita para trabalhar essas temáticas no exercício da docência. Em consulta realizada no PPC (UNIR, 2008), não encontramos nenhum componente curricular voltado à discussão de gênero e sexualidade, tampouco encontramos, no ementário, um tópico relacionado a isso. Logo, a abordagem desses temas depende de iniciativas individuais dos(as) docentes do curso e, pelo que apontam os resultados da presente pesquisa, isso praticamente não está acontecendo.

Infelizmente a ausência de temas relacionados a gênero e sexualidade no currículo não é restrito à licenciatura em Educação Básica Intercultural da UNIR. Helena Altmann (2013) informa que essas questões são colocadas em discurso de forma mais frequente na educação básica do que nos cursos universitários, porque as universidades têm mais autonomia do que as escolas, inclusive com relação ao conhecimento, o que possibilita tanto a inclusão quanto a supressão desses temas nos currículos.

Se, por um lado, ela [a autonomia universitária] garante que professores[as] sensíveis a essa temática abordem tais questões em suas disciplinas, ou mesmo ofereçam disciplinas específicas sobre ela nos cursos, por outro, também possibilita que um número não desprezível de professores[as] e outros[as] profissionais conclua a formação superior sem que esses temas tenham sido contemplados. (Altmann, 2013, p. 79)

Outra questão apontada pela autora é que os cursos de formação superior têm uma estrutura mais fixa e tradicional, o que dificulta a mudança de seus currículos, pois tratar de questões de gênero e sexualidade exige certa maleabilidade, tendo em vista que os aspectos mais ou menos importantes a serem abordados mudam de foco de acordo com o momento histórico (Altmann, 2013). No caso das licenciaturas interculturais, as demandas dos povos indígenas também vão se modificando com o passar do tempo, o que representa um desafio à formação de professores(as) indígenas e exige que o curso encontre maneiras de lidar com isso. Uma solução seria a constante reformulação do PPC, o que não ocorreu até hoje na licenciatura em Educação Básica Intercultural da UNIR, mesmo já transcorrida mais de uma década do início do seu funcionamento.

Inclusão de questões de gênero e diversidade sexual no currículo dos cursos de formação de docentes indígenas

A inclusão de questões de gênero e diversidade sexual nos currículos de formação de docentes, conforme Dinis (2011), contribui para que esses(as) profissionais futuramente venham a desenvolver estratégias de resistência ao currículo sexista e heteronormativo. Diante disso, perguntamos aos(às) participantes se eram favoráveis à inclusão desses temas nos cursos de formação de docentes indígenas e, consequentemente, na licenciatura em Educação Básica Intercultural da UNIR. As participantes Ãramirã Tupari, Nakira Wirin Arara, Pako Medjutxi Jabuti e Yunua Sabanê e os participantes Arikayru Arikapú, Asikat Tupari, Oy Atoah Suruí, Tocorom Wajuru, Urerh Suruí, Uruã Kanoé, Wagoh Suruí e Wará Kaxarari responderam afirmativamente, como podemos observar em alguns excertos apresentados a seguir:

Eu acho que poderia ser. Assim, para acabar com o preconceito, né? Os parentes têm muito preconceito ainda com essa diversidade. […] porque eu ia saber mais, teria uma aprendizagem melhor para trabalhar lá na comunidade… saber falar, explicar… dar até mesmo palestras para a comunidade sobre isso. (Ãramirã Tupari)

Acredito que sim, até porque a capacitação deve preparar os[as] professores[as] para tudo, […] o professor tem que adquirir um pouco de conhecimento para entender e levar isso à sala de aula. (Oy Atoah Suruí)

Seria importante, porque atualmente a gente tem que estar preparada. Algum dia a gente pode se deparar com uma situação dessa dentro da comunidade e a gente não vai saber lidar. (Wará Kaxarari)

Dukaria Aikanã, Xiener Suruí e Taodereka Karitiana, apesar de informarem que não têm uma opinião formada sobre a inclusão dos temas em foco nos cursos de formação de docentes indígenas de um modo geral, se mostraram favoráveis à inclusão no âmbito da licenciatura em Educação Básica Intercultural da UNIR. Dukaria Aikanã inclusive entende que isso poderia contribuir para a desconstrução de preconceitos dos(as) próprios(as) cursistas, como pode ser observado nesse fragmento de sua fala: “Tenho certeza de que hoje têm muitos[as] acadêmicos[as] aqui na universidade que têm preconceito. Então poderia tratar [sobre gênero e diversidade sexual], pelo menos para ver se a pessoa se toca e passa a ter respeito pelo[a] outro[a].”. Isso é relevante, pois a falta de conhecimento é um dos motivos do preconceito.

A maioria dos(as) participantes se mostrou receptivo(a) à inclusão de questões de gênero e diversidade sexual nos cursos de formação de professores(as) indígenas e, especificamente, na licenciatura em Educação Básica Intercultural da UNIR. Para eles(as), isso contribuiria não só para capacitar os(as) cursistas para trabalhar com esses assuntos nas escolas indígenas, como também para levar informações e conhecimentos às suas respectivas comunidades, atuando no combate ao preconceito e à discriminação. Como explica Urerh Suruí, “[…] a comunidade vê o[a] professor[a] como alguém que tem um papel muito importante. Ele[a] é respeitado[a] dentro da comunidade.”. Logo, o(a) docente pode ser um(a) agente de transformação.

Nessa perspectiva, Louro (2014, p. 124) defende que é importante desenvolver experiências formativas que busquem “subverter as situações desiguais” — quer sejam elas de classe, raça, gênero, etnia ou relacionadas à sexualidade — vividas pelos(as) sujeitos(as) e, nesse contexto, a informação e o conhecimento são elementos-chaves. Segundo a autora, as situações de desigualdade, exclusão e preconceito somente são percebidas, desestabilizadas e subvertidas à medida que os(as) sujeitos(as) estiverem atentos(as) à sua forma de produção e reprodução. Dessa forma, se os(as) professores(as) indígenas, no seu período de formação, tiverem oportunidade de aprofundar os estudos, discutir e refletir sobre as questões de gênero e diversidade sexual, estarão mais preparados(as) para uma prática educativa não sexista e não heteronormativa, tanto nas escolas quanto em suas comunidades.

Os participantes Txiu Jabuti e Okio Tupari mostraram-se favoráveis à inclusão de temáticas envolvendo questões de gênero e diversidade sexual nos cursos de formação de docentes indígenas, pois acreditam que, nos dias de hoje, os(as) professores(as) indígenas precisam estar preparados(as) para lidar com esses assuntos nas escolas e nas comunidades, especialmente no combate ao preconceito.

Eu acho que seria bom porque se as comunidades tiverem esse tipo de pessoas que sofrem preconceito, por exemplo, homossexuais… então seria bom se os professores tivessem como trabalhar isso na escola, para que isso não aconteça com essa pessoa. O professor formado que tiver passado pela universidade ou pelo Projeto Açaí, já teria essa habilidade. (Txiu Jabuti)

No entanto, de forma contraditória, fazem algumas ressalvas quanto à discussão desses assuntos no contexto da licenciatura em Educação Básica Intercultural da UNIR, curso ao qual estão vinculados. Txiu Jabuti se mostrou propenso a considerar a possibilidade desde que “não fosse uma carga horária grande”, apenas o suficiente para que “a pessoa tivesse uma noção.” Okio Tupari alegou que não vê necessidade de aprofundar essa temática, pois, para ele, já é discutido o “suficiente”.

Percebemos aqui certa resistência em discutir questões de gênero e diversidade sexual e o desconhecimento da complexidade dos temas, pois, para combater o sexismo e a LGBTQIA+fobia na prática educativa, é preciso ter um olhar mais aberto e fazer “[…] uma problematização que terá de lidar, necessariamente, com as múltiplas e complicadas combinações de gênero, sexualidade, classe, raça e etnia.” (Louro, 2014, p. 69), o que demanda um conhecimento sólido sobre o assunto.

O participante Nicolas Suruí se mostrou contrário à inclusão de questões de gênero e diversidade sexual nos cursos de formação de docentes indígenas, porque, para ele, isso é uma “responsabilidade das famílias”, acrescentando que não iria se “sentir à vontade” caso esses assuntos fossem abordados na licenciatura em Educação Básica Intercultural. A participante Nakot Oro Waran Xijein, embora tenha se mostrado favorável à inclusão de estudos relacionados às questões de gênero por acreditar que isso contribuiria para informar às mulheres indígenas sobre os seus direitos, também afirmou não concordar com a inclusão do tema diversidade sexual por também considerar que essa questão deve ser discutida no âmbito familiar, como pode ser constatado no fragmento apresentado a seguir: “Sim, sobre a questão de gênero, direito da mulher, essas coisas. […]. eu acho que isso é muito importante, porque muitas mulheres ficam lá dentro da aldeia, não têm conhecimento dos direitos delas […]. Agora sobre diversidade sexual, não, isso é melhor discutir na família.

De fato, as discussões propostas pela participante contribuiriam para informar os(as) cursistas sobre os direitos das mulheres indígenas e estes(as) poderiam repassar essas informações às mulheres de suas respectivas comunidades. Além das questões teóricas e históricas sobre o tema, poderiam ser abordadas questões como a Lei Maria da Penha — Lei nº. 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Brasil, 2006) —, que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, e, como Júlia Helena Rizzatti (2018) informa, muitas mulheres indígenas não têm informações sobre essa legislação.

No entanto, a resistência à inclusão de questões de gênero e diversidade sexual nos cursos de formação de professores ou na escola de um modo geral baseada no argumento de que a discussão dessas temáticas devem se restringir ao âmbito familiar — como declararam o participante Nicolas Suruí e a participante Nakot Oro Waran Xijein — revela uma visão equivocada. Márcio de Oliveira, Reginaldo Peixoto e Eliane Rose Maio (2013, p. 18647), argumentam que a educação para a sexualidade deve ser realizada em conjunto, tanto pela família quanto pela escola. Desde a mais tenra idade, as crianças têm dúvidas e curiosidades sobre os mais diversos assuntos, dentre eles a sexualidade. Em casa, costumam externar essas dúvidas e curiosidades em forma de perguntas às pessoas de seu círculo de convivência, como o pai e a mãe; na escola, aos(as) docentes e colegas. Sendo assim, a família e a escola precisam estar disponíveis ao diálogo. Na visão dos autores e da autora,

Dessa maneira, as crianças se sentirão mais seguras para tirarem dúvidas sobre determinados assuntos que as incomodam e estaremos diminuindo as chances de uma criança obter informações — e transformá-las em conhecimentos (muitas vezes errôneos) — por meio de pessoas (outras crianças, colegas, irmãos/ãs) sem embasamento algum. (Oliveira, Peixoto e Maio, 2013, p. 18647)

É rotineiro ouvir discursos contrários à educação para a sexualidade voltada para crianças e adolescentes, especialmente vindo de adultos(as) responsáveis por elas(es). Na visão de Mary Neide Damico Figueiró (2010), na educação para a sexualidade realizada de forma informal, como a que ocorre no seio familiar, o tema muitas vezes é associado a algo negativo, sujo, vergonhoso e sobre o qual não se deve falar. A escola pode contribuir para quebrar essas barreiras e desconstruir preconceitos, propiciando aos(às) estudantes o acesso a conhecimentos científicos sobre gênero e sexualidade, e isso só será possível se os(as) professores(as) estiverem preparados para oferecer uma educação para a sexualidade adequada, daí a importância de os cursos de formação de professores(as) incluírem essas questões em seus currículos. Eliane Rose Maio (2011, p. 200) explica que realizar esse trabalho implica que os(a) professores(as) tenham

[…] uma visão de conjunto e um quadro de referências alimentado pelo diálogo, por princípios de justiça, equidade e valores democráticos. Nesse sentido devem ser evitados posturas banalizadas por pressupostos assimilacionistas, essencializantes ou medicalizados, bem como os posicionamentos embalados por disposições diferencialistas, particularistas, regressivas ou separatistas.

O mito de que gênero e sexualidade devem ser discutidos no espaço privado, segundo Deborah P. Britzman (1996, p. 80), impede o entendimento de que essas questões são definidas em um “[…] espaço social mais amplo, através de categorias e fronteiras sociais.”, além de contribuir para a invisibilização e o silenciamento daqueles(as) que não se enquadram nas normas “padrões” de gênero e sexualidade. Em conformidade com a autora, esse discurso traz consequências para a formação de professores(as), pois os(as) impede de serem educados(as) sobre isso e, consequentemente, de compreender que esse posicionamento contribui para a negação de direitos.

Sugestões de atividades para discutir sobre questões de gênero e diversidade sexual nos cursos de formação de docentes indígenas

De acordo com Jimena Furlani (2011, p. 40), quando os temas relacionados a gênero e diversidade sexual são trabalhados na escola, perturbam as “[…] verdades que definem os campos de produção e reprodução de relações desiguais de poder e de legitimação das hierarquias sexuais e de gênero.”, portanto isso contribui para a diminuição da violência e da discriminação.

Acreditamos que o mesmo pode ser dito em relação aos cursos de formação de professores(as). Sendo assim, perguntamos aos(às) participantes se teriam alguma sugestão de atividades para estimular a discussão sobre questões de gênero e diversidade sexual nos cursos de formação de docentes indígenas e, consequentemente, na licenciatura em Educação Básica Intercultural da UNIR.

Com exceção de dois participantes (Asikat Tupari e Nicolas Suruí), os(as) demais apresentaram sugestões de atividades para discutir questões de gênero e diversidade sexual nos cursos de formação de professores(as) indígenas e, consequentemente, na licenciatura em Educação Básica Intercultural da UNIR, sendo a palestra a atividade mais citada, mas todas as sugestões são pertinentes (Quadro 3).

Quadro 3 Sugestões de atividades dadas pelos(as) participantes da pesquisa para discutir sobre questões de gênero e diversidade sexual nos cursos de formação de docentes indígenas. 

Sugestão de atividade Frequência Identificação dos(as) participantes
Palestras 9 Ãramirã Tupari, Arikayru Arikapú, Dukaria Aikanã, Okio Tupari, Pako Medjutxi Jabuti Tocorom Wajuru, Urerh Suruí, Xiener Suruí e Yunua Sabanê
Seminários 1 Okio Tupari
Oficinas 1 Taodereka Karitiana
Debates 1 Yunua Sabanê
De forma transversal nos componentes curriculares já existentes 3 Nakot Oro Waran Xijein e Oy Atoah Suruí Wagoh Suruí
Criar um componente curricular específico para esse fim 1 Txiu Jabuti
De forma diversificada 1 Wará Kaxarari
Sem sugestões 2 Asikat Tupari e Nicolas Suruí
Total 19 -

Fonte: elaborado pelas autoras.

Mary Neide Damico Figueiró (2001), Furlani (2011), Eliane Rose Maio Braga (2012) e Reginaldo Peixoto (2013) sugerem atividades para o contexto escolar, mas podem perfeitamente serem adequadas aos cursos de formação de docentes indígenas. Para as autoras e o autor, não há a necessidade de haver uma disciplina na matriz curricular específica para as discussões de gênero e sexualidade. Isso pode ocorrer de forma transversal, por meio de projetos ou momentos específicos, com a realização de ações como leituras, palestras, seminários, oficinas e debates, entre outras.

Altmann (2013) sugere que o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) pode ser um espaço a ser explorado na formação docente. Tal programa é ligado à CAPES e ao Ministério da Educação e oferece bolsas de iniciação à docência a estudantes de licenciatura, com o objetivo de antecipar o vínculo entre os(as) futuros(as) professores(as) e as escolas da rede pública. Têm recebido investimento das duas instituições, o que torna possível a “[…] criação de programas de intervenção sobre gênero e diversidade sexual, ou que tenham estes temas como um dos seus objetos de atenção, por conseguinte, de formação profissional.” (Altmann, 2013, p. 80).

Seguindo essa mesma linha de raciocínio, o Programa Residência Pedagógica também poderia ser utilizado com essa mesa finalidade. Criado em 2018, também ligado à CAPES e ao Ministério da Educação, tem por objetivo induzir o aperfeiçoamento da formação prática nos cursos de licenciatura, promovendo a imersão do licenciando na escola de educação básica a partir da segunda metade de seu curso.

A autora ainda sugere que outras possibilidades educativas ligadas a gênero e diversidade sexual nos cursos de formação de professores podem ser construídas a partir da arte — como artes plásticas, filmes, curtas-metragens e literaturas adulta e infantil —, pois esses temas têm sido abordados “[…] direta ou indiretamente nestes campos, o que permite o seu reaproveitamento na esfera educativa.” (ibidem, p. 80). Podemos incluir aqui os mitos indígenas, como sugerido por Betty Mindlin (2002), que podem ser utilizados para discutir gênero e sexualidade na perspectiva da cultura de cada povo.

Além disso, sugerimos a realização de pesquisas sobre as temáticas em foco nos diversos componentes curriculares, nos trabalhos de conclusão de curso (TCC) ou por meio do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) — financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) —, que tem como principais objetivos desenvolver o pensamento crítico e despertar a vocação científica entre os(as) estudantes de graduação nas diferentes áreas do conhecimento.

Por meio dessas pesquisas, os(as) docentes indígenas em formação poderiam investigar como as questões de gênero e diversidade sexual eram tratadas em tempos passados, como são atualmente e as necessidades de suas comunidades relacionadas a isso, o que poderia ser um ponto de partida para a construção de propostas de intervenções pedagógicas para as escolas indígenas.

No entanto, essas questões não podem ser impostas aos povos indígenas. O participante Dukaria Aikanã sugeriu que o colegiado do curso apresente aos(às) cursistas e lideranças indígenas uma proposta para a inclusão de questões de gênero e diversidade sexual no currículo da licenciatura em Educação Básica Intercultural da UNIR para ser discutida e aprovada coletivamente, o que implicaria na mudança do PPC. Uma justificativa para a não inclusão das temáticas em foco no documento atual seria o fato de elas não terem sido pleiteadas pelos povos indígenas no momento de sua elaboração.

Passada mais de uma década, acreditamos que surgiram novas demandas, dentre as quais a necessidade de se discutirem assuntos relacionados a gênero e sexualidade. Isso porque, segundo Maria Leonice Tupari (2017), com a criação da Associação das Guerreiras Indígenas de Rondônia (AGIR), em 2015, houve o fortalecimento do movimento de mulheres indígenas em Rondônia. A população indígena LGBTQIA+ também está ganhando visibilidade e apresentando suas pautas de reivindicações — uma prova disso foi a participação da mulher indígena trans Sandra Kanoé, residente em Ji-Paraná (RO), sede do curso, em live realizada na última edição do Acampamento Terra Livre (Kanoé, 2021).

Já foi dado início à elaboração do texto de um novo projeto pedagógico da licenciatura em Educação Básica Intercultural da UNIR com base nos resultados dos seminários de avaliação do curso com a participação dos(as) estudantes e das lideranças indígenas, mas isso foi paralisado devido à pandemia de covid-19. Acreditamos que o momento atual pode ser oportuno para fazer uma consulta às entidades representativas dos povos indígenas, incluindo-se às das mulheres e de LGBTQIA+, sobre a inclusão de questões de gênero e diversidade sexual no currículo do curso e consideramos que os resultados da presente pesquisa poderão servir de subsídios para a elaboração dessa proposta.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A realização da presente pesquisa foi motivada pelas nossas inquietações sobre a ausência de questões de gênero e diversidade sexual no currículo da licenciatura em Educação Básica Intercultural da UNIR. Não temos a pretensão de apresentar um estudo conclusivo sobre o tema, mas de fomentar a discussão sobre uma formação de docentes indígenas que contemple o respeito à diversidade e a promoção dos direitos humanos.

O objetivo foi analisar as percepções de estudantes indígenas da licenciatura em Educação Básica Intercultural da UNIR sobre a inclusão da discussão de questões de gênero e diversidade sexual no curso. Os dados evidenciaram que a maioria dos(as) participantes considera que o curso pouco tem contribuído para capacitá-los(as) nesse quesito, tendo em vista que esses temas praticamente não são abordados nas aulas. Diante disso, mostraram-se receptivos(as) à inclusão de questões de gênero e diversidade sexual nos cursos de formação de professores(as) indígenas e, especificamente, na licenciatura em Educação Básica Intercultural, porque consideram que isso contribuiria para capacitar os(as) cursistas a desenvolverem um trabalho pedagógico visando ao respeito aos direitos humanos, bem como a levar informações às comunidades indígenas, atuando no combate ao preconceito. Para tanto, sugeriram que sejam realizadas atividades como palestras, seminários, oficinas e debates, além da possibilidade de trabalhar esses temas de forma transversal ou por meio da criação de um componente curricular específico.

No entanto, também percebemos resistência e desconforto em abordar a temática por parte de alguns(mas) participantes da pesquisa, pois consideram que essas questões não fazem parte da cultura tradicional e deveriam ser discutidas no âmbito familiar. Mesmo aqueles(as) que se mostraram favoráveis geralmente enunciam um discurso voltado a “aceitação do(a) outro(a)” como um gesto de bondade, compaixão ou tolerância, sem, no entanto, questionar as hierarquias, as relações de poder e os padrões estabelecidos. Isso denota um certo grau de preconceito, pois é como se lhes concedessem o direito de existir, desde que à margem e sem perturbar a ordem posta. Provavelmente isso ocorre porque eles(as) têm poucas informações sobre o assunto e não tiveram oportunidade de ampliar seus conhecimentos no seu processo de formação, o que evidencia a urgência em dialogar com os povos indígenas sobre a inclusão dessas temáticas no currículo da licenciatura em Educação Básica Intercultural da UNIR, bem como nos demais cursos de formação de docentes indígenas.

Consideramos que o objetivo da pesquisa foi atingido e que a inclusão das temáticas em foco no currículo das licenciaturas interculturais, com consulta prévia aos povos indígenas, possibilitaria aos(às) cursistas realizar pesquisas para identificar os elementos culturais que contribuem para a produção de preconceito, discriminação e violência; e, a partir daí, promover discussões em suas comunidades e pensar práticas pedagógicas inclusivas e que combatam preconceitos em relação ao gênero e à sexualidade.

1No texto, para dar visibilidade ao gênero dos(as) autores(as) referenciados(as), optamos por transcrever seus nomes completos na primeira vez em que são citados(as).

2Dados obtidos por meio de relatórios emitidos via Sistema Integrado de Gestão Universitária da UNIR, no segundo semestre de 2018.

Financiamento: O estudo não recebeu financiamento.

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Recebido: 28 de Novembro de 2021; Aceito: 14 de Julho de 2022

Carma Maria Martini é doutora em Educação pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Professora da Universidade Federal de Rondônia (UNIR). E-mail: carmamartini@unir.br

Eliane Rose Maio é doutora em Educação Escolar pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Professora da Universidade Estadual de Maringá (UEM). E-mail: elianerosemaio@yahoo.com.br

Conflitos de interesse: As autoras declaram que não possuem nenhum interesse comercial ou associativo que represente conflito de interesses em relação ao manuscrito.

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