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Revista Brasileira de Educação

Print version ISSN 1413-2478On-line version ISSN 1809-449X

Rev. Bras. Educ. vol.28  Rio de Janeiro  2023  Epub May 23, 2023

https://doi.org/10.1590/s1413-24782023280052 

Artigos

Juventude como mirante dos fenômenos sociais e a reforma do ensino médio — o que se vê quando se olha de um outro lugar?

LA JUVENTUD COMO PUNTO DE VISTA DE LOS FENÓMENOS SOCIALES Y LA REFORMA DE LA ENSEÑANZA MEDIA — ¿QUÉ VES CUANDO MIRAS DESDE OTRO LUGAR?

Mônica Peregrino, Conceituação, Curadoria de Dados, Investigação, Supervisão, Validação, Análise Formal, Metodologia, Administração do Projeto, Recursos, Software, Visualização, Escrita — Primeira Redação, Escrita — Revisão e EdiçãoI 
http://orcid.org/0000-0002-0330-4371

Juliana de Moraes Prata, Análise Formal, Metodologia, Administração do Projeto, Recursos, Software, Visualização, Escrita — Primeira Redação, Escrita — Revisão e EdiçãoII 
http://orcid.org/0000-0003-3216-3130

1Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

2Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.


RESUMO

Este artigo objetiva apresentar o desenho de uma abordagem para o campo da educação, a partir da perspectiva da juventude, construindo-a como um “lugar de observação” da reforma do ensino médio. Nela, trataremos a juventude como posição social, sujeita a uma variedade de condições de vida e de modos de expressão, e procuraremos demonstrar as possibilidades analíticas abertas para o campo da educação, a partir dos estudos de transição para a vida adulta, por meio de um exercício sobre o ensino médio e sua reforma. Os resultados apontam para uma definição de juventude em que espaço (lugar, na perspectiva de Bourdieu) e tempo (fluxo da história, na formulação de Mannheim) sintetizam a localização desse conjunto social (os jovens). E ainda, ao tomarmos o ensino médio como linha divisória entre modos distintos de transição escola-trabalho, demonstraremos o impacto da reforma sobre aqueles que ela joga nas sombras: jovens recentemente incluídos nesse patamar de ensino.

PALAVRAS-CHAVE juventude; transição escola-trabalho; reforma do ensino médio

RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo presentar un primer diseño de aproximación investigativa al campo de la educación, a partir de la juventud, construyéndola como un “lugar de observación” de la reforma de la enseñanza media. En él, nos ocuparemos, en un primer momento, de la juventud como posición social, sujeta a una variedad de condiciones de vida y modos de expresión. En un segundo movimiento, intentaremos demostrar las posibilidades analíticas que abre tal abordaje del campo de la educación, a partir de los estudios de transición ya través de un ejercicio de análisis sobre la escuela secundaria y su reforma. Los resultados apuntan, en primer lugar, a una definición de juventud en la que el espacio (lugar, en la perspectiva de Bourdieu) y el tiempo (flujo de la historia, en la formulación de Mannheim) sintetizan la ubicación de este grupo social (los jóvenes). En segundo lugar, al tomar la enseñanza media como línea divisoria entre las distintas modalidades de transición escuela-trabajo, mostraremos el impacto de la reforma en aquellos que ensombrece: los jóvenes recién incorporados a este nivel educativo.

PALABRAS CLAVE juventud; transición escuela-trabajo; reforma de la enseñanza media

ABSTRACT

This article seeks to design a new investigative approach in education field of studies, starting from the youth, building it as a “place of observation” of the high school reform. In it, we will, at first, deal with youth as a social position, subject to a variety of living conditions and modes of expression. In a second movement, we will try to demonstrate the analytical possibilities opened up by such an approach to the field of education, based on transition studies and through an analysis exercise on high school and its reform. The results point, firstly, to a definition of youth in which space (place, in Bourdieu’s perspective) and time (flow of history, in Mannheim’s formulation) synthesize the location of this social group (young people). Secondly, by taking high school as a dividing line between different modes of school-work transition, we will demonstrate the impact of the reform on those it casts in the shadows: young people recently included in this level of education.

KEYWORDS youth; school-work transition; high school reform

INTRODUÇÃO

A reforma do ensino médio (EM) (Lei n.º 13.415/17 — Brasil, 2017) tem sido abordada por muitos autores. Um levantamento das produções referentes aos anos posteriores à sua aprovação mostra-nos um quadro breve do debate. Ferreti e Silva (2017), Frigotto e Motta (2017), Leão (2018), Silva (2018), Ferreti (2018) e Corti (2019) são algumas das produções realizadas sobre o tema. Em seu conjunto, são, basicamente, dois os objetos tratados: os marcos legais que demarcam a construções da lei e os efeitos dela sobre o currículo do EM. Por outro lado, o debate se diversifica quando se trata das finalidades da reforma e das abordagens que fundamentam as análises.

Nesse âmbito, a reforma pode se apresentar como expressão de disputa e construção de hegemonia; como expressão da contradição ético-política do pensamento e da moral capitalista; como campo de disputas entre projetos educacionais, programas políticos e concepções de juventude; como veículo de flexibilização curricular e de certa concepção de qualidade na educação; como veículo de conteúdos curriculares e de itinerários formativos; e como meio para o preenchimento de um significado vazio: a crise do EM.

Quanto às abordagens para a reforma, ela é tratada à luz do debate sobre hegemonia nos termos de Gramsci, a partir dos conceitos da teoria política de Laclau e Mouffe (Corti, 2019), no quadro da história do EM no Brasil e no quadro dos sentidos e das finalidades atribuídos ao EM, a partir das contradições internas e no interior dos debates sobre flexibilidade e qualidade contidos na lei que a institui.

É importante destacar que, em qualquer dessas produções, a centralidade do debate circunscreve-se ao redor da lei ou do conjunto de demarcações legais que desembocaram na reforma do EM, no impacto das transformações esperadas, a partir daí, para esse patamar de ensino, em especial nas mudanças curriculares. Mas o debate acerca dos efeitos sobre a instituição escolar (média) e seus atores é pouco pautado. Nossa contribuição busca atingir este objetivo: abordar a reforma do EM a partir do ponto de vista dos efeitos possivelmente desencadeados por ela sobre um conjunto importante de atores: os jovens que frequentam esse segmento da educação.

POSICIONANDO O PROBLEMA

O campo da Educação, e, mais especificamente, a Sociologia da Educação, costuma abordar os problemas que se circunscrevem na relação entre Educação e Sociedade tomando a instituição escolar como ponto de referência, como posição a partir da qual observamos. Nessa perspectiva, investigamos a escola a partir de seus agentes, de suas práticas e tradições, de seus rituais, abordando-a em sua história, em suas relações para com outras instituições. Investigamos inclusive os jovens e as crianças que a frequentam (como sujeitos, como atores institucionais), uma vez que estes são, a um só tempo, objeto e objetivo da ação educacional e escolar.

Em 2003, Marilia Spósito, em seu artigo “Uma perspectiva não escolar no estudo sociológico da escola”, reconhece o imenso esforço e as significativas conquistas que, desde a década de 1950, autores importantes do campo1 vêm conquistando no conhecimento da instituição escolar, seus impasses e seus atores, identificando emergências e rupturas. Porém, ela também nos mostra que esses estudos expõem brechas. E, nesse sentido, oferecem, ainda hoje, “[...] caminhos sugestivos, capazes de enriquecer a compreensão sobre a instituição escolar, sobretudo neste momento caracterizado por uma profunda crise de sua ação socializadora.” (Spósito, 2003, p. 210).

Não pretendemos, aqui, enveredar no debate acerca da ação socializadora da escola e sua crise. Autores tais como Dubet e Martucelli (1997), Lahire (2004), Thin (2006) e, no Brasil, Setton (2009) já vêm realizando esse debate pelo menos desde a década de 1990 e Tomizaki, Silva e Carvalho-Silva (2016) também estão analisando a socialização política. Queremos, por outro lado, tirar, da formulação de Spósito (2003), outras consequências.

Se as relações entre as formas de socialização se estreitam, produzem nova sociabilidade, é preciso considerar que a pesquisa sobre a vida escolar em seus elementos não escolares exige um conhecimento mais denso dos sujeitos — nesse caso adolescentes e jovens — que ultrapasse os limites de sua vida na instituição. Esse conhecimento induz à absorção dos instrumentos analíticos e teóricos da sociologia das fases de vida — infância e juventude — e das relações entre as gerações. (Spósito, 2003, p. 222, grifo nosso)

Investigar o campo da Educação, construindo-o como ponto de observação da juventude, porém, constitui uma atividade específica. Porque, para isso, é necessário construir um ponto de vista a partir desses sujeitos.

O objetivo deste artigo é realizar uma primeira aproximação com uma nova abordagem investigativa para o campo da Educação a partir da construção de um ponto de vista (Bourdieu, 2012). Dessa forma, construiremos, numa primeira etapa, a juventude como uma posição social, sujeita, porém, a uma variedade importante de condições de vida e de modos de expressão. Numa segunda etapa, procuraremos demonstrar as possibilidades analíticas abertas por tal perspectiva para o campo da Educação por meio de um exercício de análise sobre a reforma do EM.

ELEMENTOS DO DEBATE PARA APRESENTARMOS JUVENTUDE COMO POSIÇÃO

JUVENTUDE COMO POSIÇÃO NA PERSPECTIVA DE PIERRE BOURDIEU

No artigo “Condição de classe e posição de classe”, Bourdieu (2009) mostra que uma posição social é uma localização social, que delimita um conjunto de propriedades (não apenas, mas também — e, talvez, principalmente — simbólicas). É desse lugar que se estabelecem conexões com o sistema mais amplo das relações sociais e, ao mesmo tempo, se constrói o sentido das relações sociais particulares. Ocupar uma mesma posição social “abstrata”, “no papel” (ainda que essas construções sejam necessárias para a análise), não significa estar imerso no mesmo conjunto de situações e/ou de condições sociais, segundo o autor.

Para avançar sobre a distinção entre posição de classe e condição de classe, Bourdieu (2009) buscará distinguir o que é mais ou menos permanente naquilo que toca as relações em análise e, para isso, traz à baila a noção de estrutura. Pergunta, então: o que pode a abordagem estrutural?; ao que responde: a abordagem estrutural permite captar, pelo estudo sistemático de um caso particular, traços transistóricos e transestruturais (diríamos mais permanentes) que aparecem com poucas variações em todos os grupos com posições equivalentes.

O autor nos leva, então, a concluir que, como já esperávamos, uma posição social acumula traços permanentes. Contudo, continua ainda o autor, para escaparmos do caráter abstrato da definição de uma posição, não é suficiente analisá-la apenas pelos elementos transistóricos e transistruturais que ela acumula, uma vez que (como também nos ensina Lefebvre (1991) em “A vida cotidiana no mundo moderno”) as sociedades são produtos particulares de formações históricas e sociais específicas, configurando, em sua originalidade, relações e contradições próprias. É necessário, portanto, confrontar, no desenho das posições sociais, tanto os elementos “permanentes” quanto os “contingentes”.2

Finalmente, para o autor francês, a cada posição social corresponde um conjunto significativo e dinâmico de situações. Podemos concluir, portanto, que às posições sociais, corresponde um conjunto de configurações. Nessa percepção, é necessário, dessa forma, distinguir posição social (localização social, que delimita um conjunto de propriedades), condição social (condições concretas que fazem variar as experiências contidas na posição) e situação3 (casos particulares que são expressão das relações entre posição e condições).

Em que, para nós, configura a noção de posição social a partir do texto de Bourdieu? Em primeiro lugar, é importante dizer que Bourdieu está, nesse texto clássico, buscando distinguir condição de classe e posição de classe. Está, exatamente, distinguindo, temporariamente, para fins de análise, a ideia abstrata de uma posição geral de classe, das condições efetivas de vida dos conjuntos sociais que ocupam essa posição, mostrando que elas variam. Demonstrando ainda que variam as condições de existência de grupos sociais que ocupam posições semelhantes em sociedades diferentes e que posições sociais diferentes podem encobrir condições semelhantes de vida em sociedades distintas.

Pensamos que o exercício é muito interessante, porque ele pode ser praticado quando pensamos na juventude. Temos trabalhado juventude como uma posição social, comum a todos aqueles que, no âmbito de uma faixa etária extensa (variável) e intermediária (entre fases da vida social), realizam, nas sociedades capitalistas, urbanas e ocidentais, o processo de emancipação das instituições de circunscrição à socialização primária, com concomitante ingresso na rede/conjunto/complexo de instituições que integram a socialização secundária, que conduzem à inserção social.

Nesse sentido, a juventude é uma posição social, ao mesmo tempo dinâmica, tensa, transicional, porque implica um desenraizamento (emancipação da rede de instituições que circunscrevem a socialização primária) para posterior processo de re-enraizamento social (na rede de instituições que delimitam a socialização secundária). Para nós, é isso que o unifica a juventude (esse estado, ao mesmo tempo, formativo, liminar, transicional, com vistas ao uso de uma condição presente que configura possível inserção futura). Nesse sentido, juventude é uma posição no espaço social.

Esse dado comum, porém, é vivido de muitas, variáveis e desiguais maneiras. No Brasil, não apenas as condições de exercício da juventude são desiguais, mas a posição comum vivida em circunstâncias absolutamente díspares submete os jovens a situações de transição também muito distintas. É, portanto, no desenho preciso e rigoroso dos casos que se consegue surpreender as desigualdades e as distâncias que marcam as muitas formas de experimentar essa posição comum.

A JUVENTUDE COMO POSIÇÃO NA PERSPECTIVA DE KARL MANNHEIM

Se em Bourdieu (2009) foi possível cunhar a ideia de a juventude ser uma posição no espaço social, em Mannheim (1968) percebemos uma relação da juventude com o tempo. O autor destaca que a posição comum daqueles nascidos em um mesmo tempo cronológico não está dada apenas pela possibilidade de presenciarem os mesmos acontecimentos ou vivenciarem experiências semelhantes, mas, sobretudo, de processarem esses acontecimentos ou experiências de forma semelhante.

Mannheim traz a ideia de posição comum de um mesmo tempo cronológico e chama de tempo interior um tempo interno, não mensurável e que só se pode compreender subjetivamente, pela perspectiva qualitativa, e não do ponto de vista objetivo (Weller, 2005; 2010).

Ele destaca duas perspectivas do pensamento de Dilthey e as toma como referência para pensar a sociologia das gerações e a questão do tempo:

  1. a contraposição entre a mensuração quantitativa e a compreensão exclusivamente qualitativa do tempo interior de vivência; e

  2. o fato de que não é somente a sucessão de uma geração que ancora um sentido mais profundo do que o meramente cronológico, mas também o fenômeno da “contemporaneidade” ou “simultaneidade”, isto é, o compartilhar um mesmo “tempo”.

Dessa forma, Mannheim (1968, p. 517) destaca o fato de que diferentes grupos etários vivenciam tempos interiores diferentes em um mesmo período cronológico:

Cada um vive com gente de sua idade e com gente de idades diferentes em uma plenitude de possibilidades contemporâneas. Para cada um o mesmo tempo é um tempo diferente; a saber: uma época distinta e própria dele, que só partilha com seus contemporâneos.

Para Mannheim (1968), os objetivos internos — ou as “metas íntimas” — compartilhados por contemporâneos de uma mesma geração são denominados enteléquias. O teórico se debruça no estudo das questões comuns relacionadas ao “espírito do tempo” (Zeitgeist) — essa enteléquia — de uma determinada época ou ainda à sua desconstrução. Esse “espírito do tempo”, por sua vez, é formado pelas várias gerações que trabalham e interagem simultaneamente no plano social (Weller, 2010, p. 4).

Em resumo, as categorias centrais no “problema das gerações” trazidas por Mannheim (1968) são a ideia de apreensão qualitativa do tempo — contemporaneidade dos contemporâneos — e a “enteléquia geracional”. Nesse sentido, essa “contemporaneidade dos contemporâneos”, ou essa partilha comum das experiências, se revela à medida que o processamento das experiências se dá quando o exercício da condição juvenil e da experiência juvenil acontecem na realidade objetiva.

O PROBLEMA SOCIOLÓGICO DAS GERAÇÕES E A QUESTÃO DO TEMPO

Para Mannheim (1968), a juventude se caracterizaria como posição em movimento no tempo. Para formular essa questão, o autor opera com três conceitos distintos, porém relacionados para pensarmos sobre o problema sociológico das gerações — o de unidade geracional, o de conexão geracional e, finalmente, o de posição geracional:

  1. os grupos conectados pela unidade geracional seriam os com menos coesão, de caráter temporário para um fim determinado;

  2. já a conexão geracional pode levar à formação de um grupo concreto; assim, Mannheim destaca ser ela uma mera conexão, ou seja, casualmente os indivíduos pertencem a ela, mas não se percebem como grupo concreto (Weller, 2010);

  3. por último, a posição geracional — ou situação geracional — é a compreensão de que existe um ritmo biológico, mas são as condições socioeconômicas que constituem a base comum dos sujeitos.

Mannheim grifa o fato de que o pertencimento a uma geração não pode ser deduzido imediatamente das estruturas biológicas. Do contrário, as situações de classe e geracional apresentariam, segundo Weller (2005), aspectos similares devido à posição específica ocupada pelos indivíduos no plano social. Mas essa posição gera uma modalidade específica do viver e do pensar, da forma como os membros interferem no processo histórico, ou seja: “[...] uma tendência inerente a cada posição e que só pode ser determinada a partir da própria posição” (Weller, 2010, p. 211).

Mannheim reforça, então, a ideia de que não basta ter nascido num mesmo tempo: o que caracterizaria uma posição comum daqueles nascidos em um mesmo tempo cronológico é a potencialidade ou possibilidade de presenciar os mesmos eventos e acontecimentos (Weller, 2010), de vivenciar experiências semelhantes — presenciar, no momento em que processam seu ingresso na sociedade, configurações históricas semelhantes no fluxo da história —, mas, sobretudo, de processar esses acontecimentos ou essas experiências de forma semelhante, experimentadas como experiência fundante.

A partir dessa formulação, já é possível perceber que esse processamento se dá a partir das categorias que configuram a experiência dos sujeitos. As experiências, porém, são matizadas por condições de vida e, portanto, de (condições de) elaboração e de expressão, diversas e desiguais. Logo, categorias como classe, gênero, raça, trabalho, território e faixa de idade — para citar algumas — atuariam como filtros de percepção das realidades. Esse processamento específico das experiências cria a possibilidade de identificação dos sujeitos e construção de suas subjetividades.

Com a finalidade de analisarmos as perspectivas dos dois autores aqui trabalhados, fizemos um quadro sintético (Quadro 1) que permite que verifiquemos ambas as proposições a partir de alguns parâmetros comuns. Para isso, trataremos da maneira como, nas elaborações aqui trabalhadas, extraímos, para cada um, uma definição de posição, uma noção de relações sociais e um conjunto de propriedades delimitadas pela posição social ocupada pela juventude.

Quadro 1 Comparativo Bourdieu-Mannheim. 

Bourdieu Mannheim
Definição de posição Localização no espaço social, que delimita um conjunto de propriedades materiais e simbólicas. Posição de geração – é efeito de condições históricas. Nesta perspectiva, jovens seriam aqueles que têm experiências fundantes, interpretando-as a partir de configurações presentes – a posição possui como atributo um tipo particular de experimentação do fluxo da história.
Relações sociais São relações entre condições e posições sociais. As relações se dão entre posições (no fluxo da história) e condições (históricas e sociais de elaboração de fatos comuns).
Uma posição delimita um conjunto de propriedades Na distinção entre posição de classe e condição de classe, o autor busca distinguir aquilo que é mais permanente daquilo que é menos permanente na análise das relações sociais. Conclui que, a partir da análise das propriedades de uma posição, é possível distinguir (nos estudos de caso, ou naqueles que nomeia como estudos sistemáticos de casos particulares) elementos mais permanentes daqueles menos permanentes. Portanto, às posições sociais comuns (mais estáveis) corresponderiam condições sociais variáveis (mais contingentes). Para este autor, portanto, a posição acumula um conjunto de traços (ou propriedades) estáveis (pouco variáveis ou invariáveis), que se apresentam para a investigação em interação com aquilo que é variável — as condições sociais, podendo ser apreendidos a partir de situações (efeito potencial e infinitamente variável das sínteses entre posição e condições sociais).
Aqui juventude é localização no espaço social.
Para Mannheim, geração é posição social (jovem é aquele que chega à sociedade partindo de suas margens) e histórica. Juventude é “lugar” no tempo. Para este autor, quais seriam as “propriedades” dessa posição? A partir dos pressupostos de uma compreensão qualitativa do tempo e de que diferentes grupos etários vivenciam diferentes “tempos interiores” num mesmo período cronológico, Mannheim constrói a tese de que a posição na história constituída pela juventude gera uma modalidade específica de viver e de pensar, uma “tendência inerente à posição e que só pode ser determinada a partir da posição” (Weller, 2010, p. 211). Nesta perspectiva, os jovens seriam aqueles que elaboram experiências fundantes a partir da configuração de condições presentes. Nesse sentido, a juventude é sujeito de uma forma de elaboração de acontecimentos que, sem ser unívoca, é sempre singular em relação aos demais membros da sociedade.
Aqui juventude é posição no tempo, experiência singular no fluxo da história.

DEFINIÇÃO DE JUVENTUDE A PARTIR DA SÍNTESE DE BOURDIEU E MANNHEIM

A juventude pode ser, portanto, caracterizada, nas sociedades ocidentais, urbanas e contemporâneas, por um estado de liminaridade social marcado, por um lado, pela emancipação da socialização primária, e ingresso e experimentação de processos de socialização secundária, com vistas à autonomia e à integração na sociedade.4 Nessa perspectiva, juventude é um lugar, uma posição no espaço social. Mas, como nos ensina Mannheim (1968), essa posição social é proprietária também de potencialidades interpretativas, uma vez que, ao viver um determinado tempo, os conjuntos de sujeitos de uma mesma geração partilham ainda uma configuração histórica que se constitui na base a partir da qual se constroem as suas experiências fundantes, elemento essencial de sua visão de mundo. Nessa perspectiva, a juventude é uma localização na experimentação do fluxo da história.

O QUE PODE A FERRAMENTA “POSIÇÃO DE JUVENTUDE”?

Se uma posição social é uma localização social, então ela é também um lugar de observação — um mirante. Continuemos “na cola” desse raciocínio: uma localização delimita um conjunto de propriedades, principalmente simbólicas (ou seja, propriedades pertencentes ao mundo real das relações sociais), a partir das quais se estabelecem relações com o sistema mais amplo das relações sociais. No nosso caso, adotar a juventude como uma posição de observação significa construir um lugar de observação de onde se enxergam as relações sociais. De onde se enxergam, por exemplo, as instituições.

A primeira consequência que se tira a partir da construção da juventude como posição de observação da sociedade é que é desse lugar que se passará a enxergar as instituições, tais como a escola, o trabalho, a família, a religião e as igrejas, os grupos de pares, entre outras. Nesse registro, pensamos que é possível e fecundo seguir a proposta formulada por Spósito (2003) e Spósito, Souza e Silva (2018),5 no sentido de que conhecer a escola, ou mesmo o sistema escolar brasileiro, passa também por conhecer os sujeitos que a frequentam, para além dos muros escolares, ultrapassando os limites de sua vida na instituição. Completaríamos: para capturarmos os sentidos contidos naquilo que expressam acerca de instituições, tais como a escola, por exemplo, é necessário conhecermos o “lugar social” de onde falam. A sua posição.

Trata-se aqui de uma abordagem nova acerca da instituição. O que se está propondo é que, a partir da recriação da localização social dos jovens, se produza uma outra perspectiva capaz de iluminar o fenômeno educativo. Nesse sentido, o que se buscará compreender, posto que a condição juvenil envolve uma série de instituições, será a importância relativa (e, neste caso, específica) da escola em relação às demais instituições e aos demais agentes sociais envolvidos no exercício da vida juvenil.6

A segunda consequência que tiramos ao considerarmos juventude como uma localização social, na perspectiva desenhada, é a de que é a partir dessa posição social, dessa localização, que se constrói o sentido das relações sociais particulares. Em outras palavras, adotar o lugar de visão, a posição da juventude, significa reconfigurar a função, o uso e a percepção que se tem (e que o campo acadêmico tem) das instituições (inclusive a escola).

Finalmente, adotar como mirante a localização social da juventude significa compreender que é também desse lugar que a juventude constrói o sentido das relações sociais particulares nas quais se encontra envolvida. Compreendê-la, portanto, pressupõe a reconstrução desse lugar de onde se vê o mundo, de onde se interpretam os acontecimentos, de onde se constroem significados e funções para as instituições.

Há ainda uma consequência não apontada. Se a juventude é uma posição social; e se essa posição se refere a um estado de liminaridade, então ela não é uma posição fixa e menos ainda estável, uma vez que uma das características do conjunto social que encarna a posição é estar, ele mesmo, numa condição de trânsito.

Em síntese, tomarmos juventude como posição nos ajuda a criar uma perspectiva e uma forma de abordar os fenômenos a partir da definição da posição concreta a partir da qual os sujeitos que desejamos analisar experimentam a sociedade e seu tempo e constroem, a partir daí, seus pontos de vista. Tomarmos a juventude como posição (no espaço e no tempo) cria, para o pesquisador, um lugar a partir de onde construiremos nossos problemas de pesquisa, um lugar espaço-temporal no qual situaremos nossas análises.

De posse dessa perspectiva, apresentamos, a seguir, um caminho de aplicação, de uso dessa ferramenta no campo dos estudos da juventude. Na seção a seguir, trabalharemos com a pergunta: o que pode (em termos de análise) a perspectiva da “juventude como posição”? Para isso, usaremos elementos do debate acerca da transição entre escola e trabalho para situarmos uma forma de abordarmos a juventude, para, a partir dessa perspectiva, abordarmos o impacto da reforma do EM sobre aquele conjunto de jovens brasileiros que, recentemente incluídos no sistema público de educação brasileiro, foram invisibilizados pela reforma.

UMA ANÁLISE QUE DÊ “CARNE” À PERGUNTA: O QUE ENXERGAMOS QUANDO TOMAMOS JUVENTUDE COMO POSIÇÃO?

Como já defendemos anteriormente, quando tomamos a juventude como lugar, posição de observação e análise das relações sociais, alteramos a perspectiva como abordamos e, portanto, compreendemos os fenômenos. Os estudos sobre transição para a vida adulta, oriundos basicamente do campo da demografia, ajudam-nos a posicionar as problemáticas referentes aos jovens (de uma dada sociedade), por um lado, porque tratam do processo social por meio do qual as novas gerações promovem sua inserção na sociedade; e, por outro, esses estudos tomam essa “fatia” da sociedade (os jovens) como lugar, posição a partir da qual podem ser medidos os efeitos alcançados, por exemplo, pelas políticas sociais.

Segundo Pimenta (2007), o primeiro autor a enfrentar a discussão acerca das formas de transição para a vida adulta foi Chamborendon (1966). Num primeiro movimento, definindo e identificando o processo, esse autor aponta que a transição permite que os papéis sociais sejam transferidos e as responsabilidades sejam assumidas por outros membros da sociedade, que uma geração suceda a outra sem que isso implique ausência de conflitos na passagem. Indica ainda que a maneira como se vive esse período pode variar segundo sexo, classe social, família, etnia, religião e grupo etário, além de segundo o momento histórico vivido.

Por meio do uso da noção de transição, é possível ainda analisar os variados e complexos processos de inserção de indivíduos no interior de grupos sociais, delimitados por variáveis específicas. Aos estudos fundantes de Chamborendon seguiram-se as elaborações de Galland (1997), que, discípulo do primeiro, aprofundou seu modelo e, já na década de 1980, constatou que os modelos lineares de transição escola-trabalho se modificavam substancialmente. Para esse autor, a transição passava, a partir daí, a se estender no tempo. Por outro lado, a sincronia das etapas de transição para a vida adulta rompia-se,7 ao mesmo tempo, embaralhando e desconectando os eventos, antes organizados, dos processos de transição em um fenômeno conhecido como “dessincronização das etapas”.

O alargamento da passagem e a dessincronização das etapas foram formulações que acabaram permitindo o enfoque da transição para a vida adulta como “nova fase da vida” mais do que como uma “fase passageira”. Por outro lado, o enfoque permitiu o enfrentamento das diferenças (para não dizer, das desigualdades) que marcam as experiências dos jovens em relação a gêneros, raças e classes sociais diferentes, a variedade de possibilidades que tais inserções delimitam e as modalidades diversas e desiguais de transição que tais inserções determinam.

Finalmente a experiência do Grup de Recerca en Educació i Treball (GRET) do departamento de Sociologia da Universitat Autònoma de Barcelona, realizando pesquisas acerca dos itinerários de inserção social e profissional dos jovens catalães, buscou construir uma nova perspectiva teórica e metodológica, a partir da qual se lançaria ao estudo da situação social dos jovens e forneceria as bases para uma sociologia que estivesse efetivamente centrada na transição para a vida adulta. Uma de suas mais importantes contribuições está assentada na constatação de que os estudos de transição permitem que percebamos os efeitos duradouros (e, em alguns casos, permanentes) das desigualdades sociais sobre a reprodução das gerações.

A recuperação da noção de transição para a vida adulta permite elencar as mudanças por que passaram as maneiras de estudar os percursos juvenis em direção à vida adulta, permitindo ainda a focalização dos eventos e das instituições envolvidos nos processos de transição na atualidade. Permite, por exemplo, traduzir o problema social vivido pelos jovens brasileiros (em especial aqueles incluídos no amplo espectro das “classes populares”) numa relação: aquela que se estabelece entre a expansão da escola num momento de retração e de precarização dos processos de trabalho com os processos gerais vividos pelos sujeitos na atualidade de descronologização e dessincronização das etapas na transição para a vida adulta. Dessa forma, abrimos espaço para uma outra interrogação: que contornos particulares o cruzamento de tais processos abre para a análise da singularidade dos jovens no Brasil?

Se compreendermos que uma das características mais marcantes da nossa sociedade são as desigualdades econômicas, sociais, culturais e políticas às quais submetemos nossa população, e se levarmos em conta que, naquilo que toca à juventude, um dos elementos centrais dessas desigualdades radica exatamente nas imensas diferenças que marcam os processos de inserção social de seus membros, de suas gerações, perceberemos que uma das formas de captarmos essas disparidades encontra-se centrada na compreensão da forma como esses conjuntos conjugam (ou não) estas duas instituições: escola e trabalho.

Cardoso (2008) mostra que o processo de inserção social da imensa maioria dos jovens pobres no Brasil se deu tendo o trabalho como instituição de referência. Por meio da história desse país, imensos contingentes de jovens abandonaram prematuramente os bancos escolares, sem concluir patamares mínimos de escolarização, ingressando, também prematuramente, no mundo do trabalho, por meio de redes familiares ou próximas. Com isso, tendiam a manter uma vida laboral não apenas pouco generosa em termos de direitos (econômicos, sociais e, por consequência, políticos), mas também circunscreviam suas condições sociais e econômicas ao redor do tipo de ocupação característico de seu primeiro ingresso. Paralelamente, contávamos com uma fatia restrita de jovens das classes médias, com acesso a patamares mais altos do sistema escolar e que contavam com essas instituições como elementos centrais e norteadores dos processos de formação para o trabalho e de inserção social, podendo construir, a partir da formação escolar, uma carreira laboral.

A ampliação do direito à escola e a ampliação da permeabilidade dos sistemas escolares a fatias cada vez mais amplas dos setores populares, porém, trouxeram mudanças importantes para os processos de transição, fazendo com que a escola passasse a disputar com o trabalho a ancoragem dos processos de inserção social, mesmo entre os jovens das classes populares, permitindo a emergência de uma terceira forma de relação entre escola e trabalho no processo de transição.

Esse modo “intermediário” de transição escola-trabalho8 abarca os jovens que, incluídos (alguns precariamente) nos sistemas de ensino por meio das políticas de expansão da escolarização no país, mas ainda inseridos em famílias com acessos variáveis aos direitos sociais, buscam compor escola com trabalho. Um conjunto, portanto, que nem experimenta uma inserção no mundo do trabalho que os retira precocemente da escola, nem experimenta as garantias que lhes permitem usufruir do sistema educacional até seus patamares superiores para, então, buscar inserção no mundo do trabalho. É um grupo que compõe escola com trabalho.

O que se está dizendo aqui é que a expansão da escolarização teve efeito sobre os processos de transição juvenil, rompendo com os modos separados e distintos de inserção social dos jovens de classes média e baixa no Brasil.

A EXPANSÃO ESCOLAR E SEUS EFEITOS SOBRE A DISTRIBUIÇÃO DAS OPORTUNIDADES EDUCATIVAS

Em primeiro lugar, seria interessante situarmos, de maneira preliminar, aquilo que chamaremos de primeiro ciclo expansivo recente, demarcando-o a partir de meados da década de 1990 até meados dos anos 2000. Segundo Algebaile (2009), nesse período, a expansão escolar atingiu especialmente o ensino fundamental (EF) e, indiretamente, o EM, tendo como base as chamadas políticas de correção de fluxo escolar, cujo objetivo era o de adequar a infraestrutura disponível a um atendimento mais eficaz do conjunto da população escolar, buscando a diminuição dos índices de retenção. Nesse contexto, os programas de “aceleração da aprendizagem” foram a pedra-de-toque de um projeto que buscava criar vagas pela aceleração de processos, sem, contudo, criar infraestrutura.

É possível destacarmos alguns efeitos de tais políticas, vigentes no país, com esse desenho entre a segunda metade dos anos 1990 até 2002: em primeiro lugar, as políticas de correção de fluxo não alteraram o caráter seletivo da educação, como veremos mais adiante; a diminuição da frequência das reprovações, porém, melhorou o fluxo dos sistemas e diminuiu, secundariamente, o valor das reprovações — como se pode verificar em Pinheiro et al. (2018) —; em conjunto com as políticas de atenção às famílias e de combate ao trabalho infantil, a diminuição do valor das reprovações diminuiu também o abandono escolar e, por consequência, como também nos mostra Ferreira (2019), o abandono longo9 da escola.

Ao contrário daquele que denominamos de primeiro ciclo recente de expansão da escola, este, a que chamamos de segundo ciclo (e que durou da segunda metade da primeira década de 2000 até 2016), veio acompanhado da ampliação do montante dos recursos destinados aos diversos patamares de ensino, da ampliação dos patamares de ensino alcançados pelo financiamento dos fundos (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério — FUNDEF — e Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação — FUNDEB)10 e fortemente ancorado pelo debate com a sociedade. A ampliação dos investimentos em educação também alcançou os ensinos superior11 e técnico pela criação de uma rede de institutos federais destinados à formação de técnicos e tecnólogos. Manteve, porém, no nível do EF,12 o acento nas políticas de correção de fluxo escolar, acompanhadas, desta feita, por estratégias avaliativas que buscavam, por um lado, medir e, por outro, diminuir desigualdades escolares.

O fato é que a expansão escolar, desenhada a partir de meados da década de 1990 e reorientada a partir dos primeiros anos de 2000, tem tido efeitos importantes sobre os processos de escolarização no Brasil em todos os seus níveis e modalidades. A lógica da eliminação sumária de enormes contingentes de crianças e de adolescentes ainda na escolarização fundamental parecia ter sido substituída por uma outra, mais integrativa, mas que incorporava contingentes escolares a partir de um grau variado de condições, projetando, assim, variadas e desiguais trajetórias de escolarização futuras.

Por outro lado, se o sistema se expandiu, manteve, em seu interior, a mesma lógica seletiva com que operou ao longo dos anos. De tal maneira que os dados presentes no relatório da Conferência Internacional de Jovens e Adultos (CONFINTEA) já demonstravam, em 2008, que não conclusão e abandono eram e ainda são os elementos que geram demanda por educação de jovens e adultos (EJA) no país quando tratamos da população jovem (Brasil, 2009). Os dados do censo da educação de 2016 traziam indícios que atualizavam a tendência já detectada no relatório (Brasil, 2016). De acordo com os dados coletados, foi constatada uma elevação considerável na distorção idade série já no 5º ano do EF regular, mostrando que a trajetória dos alunos é irregular e descontínua ainda nos anos iniciais de escolarização. Na outra ponta, a observação da distribuição das idades dos alunos que frequentam a EJA mostrava que os anos iniciais eram (e são) constituídos por alunos bem mais velhos do que aqueles que frequentam os anos finais do EF e igualmente mais velhos do que aqueles que frequentam o EM na modalidade. Constata-se também uma tendência à entrada de uma população cada vez mais jovem nos patamares finais do ensino básico na modalidade.

Assim, se as políticas de expansão da escolarização no Brasil inegavelmente ampliaram oportunidades educativas, elas o fizeram sob a manutenção da seletividade dos sistemas, de maneira que à ampliação das oportunidades correspondeu a manutenção de margens educacionais, funcionais aos sistemas, sendo os programas de aceleração da aprendizagem (principalmente nos patamares fundamentais de escolarização), o ensino noturno (em especial no EM) e a EJA (em todos os seus patamares) suas expressões mais frequentes. Mas quais são os efeitos dessa expansão seletiva sobre os patamares de escolarização dos jovens? A expansão seletiva foi capaz de afetar a distribuição desigual de oportunidades educativas entre jovens no Brasil?

Para demonstrarmos o crescimento da importância da escola nas vidas dos jovens das classes populares no Brasil nos últimos 20 anos, tomamos os dados referentes à evolução da distribuição dos jovens brancos, pretos e pardos pelos patamares escolares (EF, EM e ensino superior) em 2001, 2011 e 2015.13 Tomamos como objeto a população entre 18 e 24 anos, porque essa faixa da juventude, no Brasil, nem está coberta pela educação obrigatória (que, abarcando o EM, inclui a população até os 17 anos), nem consolidou completamente sua entrada na População Economicamente Ativa (PEA).

É ainda importante esclarecer que a população de 18 a 24 anos traduz um indicador interessante porque, ainda que apenas 30% dela estivesse estudando em 2015 e ainda que, no conjunto dessa população, 18% estivesse atuando no ensino superior,14 ela expressa os resultados acumulados pelas mudanças, pelos limites e pelas conquistas dos processos de escolarização na educação básica e na superior. Para esta análise, usamos os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2001, 2011 e 2015 (IBGE, 2002; 2012; 2016).

Quando tomamos o caso dos alunos brancos, observando o Gráfico 1, percebemos que o fenômeno a ser notado é que esse conjunto de estudantes, no passar dos anos, manteve, com algumas oscilações, um percentual de 10% das matrículas no EF, partiu de 34% de matrículas no EM, em 2001, para a estabilização de matrículas da ordem de 25% a partir de 2011 e aproveitou a ampliação do acesso às universidades estendendo a participação nesse patamar de ensino de 39,6% em 2001 para 65,7% em 2011 e 71% em 2015, quase que duplicando a importância da participação desse patamar de ensino entre os alunos brancos. Houve, portanto, uma mudança na quantidade do acesso de alunos brancos, de 18 a 24 anos, ao ensino superior, mas não uma mudança no padrão de acesso (nesse conjunto, a distribuição foi, desde 2001, proporcionalmente menor no ensino fundamental e maior no ensino superior).

Fonte: IBGE (2001; 2011; 2015).

Gráfico 1 Distribuição da população de 18 a 24 anos por nível de ensino frequentado de acordo com cor e raça. 

O caso dos alunos pretos e pardos mostra um cenário bastante diferente. É que o padrão de distribuição de estudantes entre os patamares escolares muda significativamente ao longo dos 14 anos que demarcam esta análise. Em 2001, a maior proporção de estudantes desse conjunto encontrava-se, primeiramente, no EM (43,9%) e, em segundo lugar, no EF (32,2%). Apenas 10% dos estudantes pretos e pardos estavam cursando o ensino superior em 2001. Dez anos depois, o cenário é muito diferente: o percentual de matrículas continua a se dar predominantemente no EM (45%), mas a proporção entre matriculados no EF e no ensino superior se inverte. Este passa a ser o segundo patamar no qual encontramos maior percentual de matrículas para alunos pretos e pardos (35,8%), e o EF passa a ser o menos frequente, com 11,8% das matrículas. O ano de 2015 mostra uma distribuição de matrículas para esse conjunto de alunos num padrão quantitativamente diferente, mas qualitativamente semelhante (em termos de distribuição de alunos pelos patamares) àquele encontrado para os alunos brancos. Nela encontramos 5,8% dos alunos pretos e pardos frequentando o EF, 35,9% no EM e a maior proporção de alunos (46,8%) frequentando o ensino superior.

Esses dados mostram que, se a expansão dos patamares mais altos de ensino afetou brancos, pretos e pardos ao mesmo tempo, o processo não se deu de maneira idêntica entre eles. Se entre alunos brancos a expansão da escolarização se deu pela ampliação da quantidade de alunos nos mais altos patamares educativos, entre pretos e pardos essa mudança foi não apenas quantitativa, mas também qualitativa. Entre esses últimos, houve mudança nos padrões de distribuição de jovens entre os diferentes patamares escolares: de uma distribuição predominantemente média-fundamental, chegamos, 14 anos depois, a uma distribuição predominantemente superior-média.

O ENSINO MÉDIO COMO “LINHA DIVISÓRIA”

A ampliação da escolarização se deu num quadro de manutenção da seletividade escolar. Temos um sistema escolar ainda muito desigual, apesar de termos feito avanços significativos nos últimos 25 anos (particularmente nos últimos 15 anos). A taxa líquida de frequência à escola no ano de 2016 (Brasil, 2016) foi de 91,4% para a faixa etária de 6 a 10 anos; 78% para a de 11 a 14 anos; de 59% para a de 15 a 17 anos; e de 18,4% para a de 18 a 24 anos. Isso mostra que restrições no acesso para os patamares médio e superior de educação e, principalmente, a seletividade que atravessa todo o sistema, do fundamental ao superior, passando pelo médio, ainda constituem problemas significativos.

É sempre bom lembrar que as faixas etárias demarcadas correspondem a patamares escolares correspondentes e que a taxa líquida de escolarização aponta o contingente de alunos matriculados no sistema educativo na faixa etária esperada. Assim, uma taxa líquida decrescente no correr das faixas de idade correspondentes ao avanço dos patamares escolares indica que o sistema escolar, na medida em que avança, deixa um contingente significativo de estudantes pelo caminho.

Já os dados do censo da educação de 2016 (Brasil, 2016) trazem indícios que atualizam a tendência já detectada no Documento Preparatório à VI CONFINTEA (Brasil, 2009), de 2008. De acordo com os dados coletados no censo, foi constatada uma elevação considerável na distorção idade série no 5º ano do EF, mostrando que a trajetória dos alunos é irregular ainda nos anos iniciais de escolarização. Na outra ponta, a observação da distribuição das idades dos alunos que frequentam a EJA mostra que os anos iniciais são constituídos por alunos bem mais velhos do que aqueles que frequentam os anos finais do EF e igualmente mais velhos do que aqueles que frequentam o EM. Constata-se também uma tendência à entrada de uma população cada vez mais jovem nos patamares finais do ensino básico nessa modalidade.

Em síntese, a expansão da escolarização (no período demarcado pelos 15 primeiros anos deste milênio) ampliou possibilidades, alterou tendências, rompeu com desigualdades importantes na sociedade brasileira, mas, realizando-se nos marcos de um sistema educativo ainda significativamente seletivo, se deu criando e incorporando, aos sistemas, margens.

Nessas margens são encontrados aqueles alunos que vinham sendo mantidos no interior dos sistemas de ensino exatamente porque o sistema se expandiu. Nelas encontram-se homens e mulheres, jovens, pertencentes às minorias e/ou às diversidades étnicas do país, frequentemente moradores de suas “beiradas territoriais”, periferias, favelas, comunidades tradicionais, áreas rurais, com históricos que registram uma escolarização acidentada, marcadas por interrupções e pela composição, frequente ou ocasional, com o trabalho. Exatamente por esse motivo esses jovens frequentadores do EM são encontrados predominantemente no turno da noite e/ou na modalidade EJA.

Como viemos demonstrando até aqui, a expansão da escola em todos os seus patamares, inclusive naqueles considerados superiores, alterou desigualdades históricas, acelerando, nas duas últimas décadas, a emergência de um modo de inserção social, em especial para determinadas fatias das classes populares, que encontravam, não mais exclusivamente no trabalho, mas na combinação de modos variados de relação entre escola e trabalho, sua ancoragem.

Nossa hipótese é de que, com essa configuração emergente, anunciou-se um possível novo regime de transição entre escola e trabalho para os jovens de classes populares, em que o EM se situa como linha divisória. Por um lado, como nos ensina Madeira (2006), pela extensão do tempo de juventude. Por outro, como nos mostra, também há tempos, Guimarães (2005), pela possibilidade de projeção de uma carreira laboral a partir desse patamar.

Por que a mudança clara de patamar ocorre na passagem para o nível médio? Não há na literatura qualquer tentativa de explicação para isso, apenas sua recorrente constatação. A hipótese é que essa etapa do processo de progressão escolar costuma ser entendida como ponte necessária para chegar aos mais altos níveis educacionais, e, por isso, atua como um estímulo importante na ampliação do período de exploração das possibilidades, na área dos relacionamentos afetivos e de aperfeiçoamento pessoal. Somente após atravessar essa ponte, é viável desenhar planos e dar mais tempo na busca de um futuro melhor. (Madeira, 2006, p. 141)

Mas, como mostra Guimarães (2005), existem particularidades importantes quando se trata da entrada dos jovens no mundo do trabalho no Brasil. Aqui destacamos alguns deles:

  1. mudanças na esfera produtiva que afetaram a dinâmica do mercado de trabalho e, em especial, a base da pirâmide ocupacional, extinguindo os empregos de “entrada”;

  2. convivência com outra onda demográfica paralela à onda jovem, constituída por aqueles que se encontravam, nos anos 1990, no auge de sua capacidade produtiva; e

  3. mercado de trabalho de baixa qualidade, com empregos mal pagos, poucas garantias e longas jornadas de trabalho.

Nesse cenário, os jovens alcançam transições, ao mesmo tempo, intensas e prospectivas “para o trabalho”, caracterizando um processo de constante entrada e saída do mercado de trabalho, busca por melhores condições e empregos mais qualificados. Isso é bastante comum entre os jovens, tanto para os pobres quanto para os da classe média.

Essa situação impõe alguns efeitos: o desemprego entre os jovens é três vezes maior do que entre os adultos. Mesmo em períodos de pleno emprego, há uma maior informalidade entre os jovens mais pobres, entre as mulheres e entre a população negra. De fato, o contexto em que a escolaridade se expande e o mundo do trabalho insiste em se apresentar como pouco permeável aos jovens cria o que Guimarães (2005) identificou há 15 anos como um paradoxo: um destino social esperado pelos jovens — uma transição com plena inserção social — em confronto com a falta de oportunidades para grande parte das novas gerações.

Assim sendo, os benefícios produzidos pelas políticas de expansão do EM não foram exclusivos dos jovens, público-alvo a princípio. O produto dessa expansão é notadamente social e se constitui por:

  1. aumento dos anos de escolaridade: que traz consigo, por si só, as benesses de maior acesso a informações de saúde, maior possibilidade de melhores empregos com melhores salários, o que, dentro do contexto brasileiro, significa acesso a água e esgoto, alimentação, saúde e infraestrutura de vida e de projeto de vida;

  2. projeção de carreira: configurando novas nuances para o mercado de trabalho brasileiro marcadamente estruturado pelos baixos salários e qualificação; e

  3. acesso ao ensino superior: reconfigurando a possibilidade de carreira para além do nível técnico, construindo uma mão de obra especializada com a ampliação dessa população para além da população branca, construindo, assim, o acesso de pretos e pardos, como apresentamos na seção anterior.

Retomando o argumento: nas redes de educação básica, as margens, que antes eram eliminadas dos bancos escolares, são compostas, exatamente, daqueles que, ao longo da vida escolar, em especial, em seus anos finais, compõem escola com trabalho, buscando superar a “barreira do EM”, com vistas a instrumentalizar uma possível construção de carreira laboral. Exatamente aqueles engajados nos modos emergentes de “transitar” para a vida adulta, sem a ancoragem exclusiva na escola (como ainda o fazem as fatias superiores das classes médias numa escolaridade longa e sem interrupções que termina na formação e na certificação universitárias com vistas ao ingresso no mundo do trabalho), tampouco contando exclusivamente com as redes familiares e próximas para ingresso num trabalho pouco seguro, mal remunerado e sem expectativa de carreira.

A REFORMA DO ENSINO MÉDIO

A reforma chega sem ter sido fruto de debate com a sociedade e na esteira de um golpe parlamentar que apeia do poder um governo democraticamente eleito, colocando, no seu lugar, um projeto de poder elitista e impopular, que põe fim a um processo paulatino de expansão das possibilidades educativas que se inicia com a Constituição de 1988 e que finca alguns de seus mais importantes marcos na criação dos fundos de manutenção da educação (FUNDEF e FUNDEB), na ampliação da obrigatoriedade educativa e nas políticas de ampliação e democratização do acesso às universidades.

Como anunciamos no início deste artigo, muito tem sido debatido acerca da reforma do EM. Ferreti e Silva (2017), Frigotto e Motta (2017), Leão (2018), Silva (2018), Ferreti (2018) e Corti (2019), entre outros, têm feito o trabalho de buscar traduzir a reforma interrogando suas bases, finalidades e intencionalidades.

Para além do debate situando o tema, há alguns consensos entre o conjunto de autores que tratam da reforma. Ela amplia progressivamente a carga horária diária no EM para 1.400 horas/ano (7 horas/dia), devendo passar a, no mínimo, 1.000 horas/ano (5 horas/dia) no prazo de cinco anos, silenciando sobre a origem dos recursos que darão suporte a tal ampliação e deixando sem resposta a pergunta sobre o que acontecerá com o EM noturno. Além disso, a reforma também não trata da EJA/EM, modalidade da educação básica pertencente a esse patamar de ensino.

O ponto mais tratado da reforma tem sido o da instituição dos cinco itinerários formativos (Linguagens e suas tecnologias, Matemática e suas tecnologias, Ciências da natureza e suas tecnologias, Ciências humanas e sociais aplicadas e Formação técnica e profissional), e as principais críticas envolvem o engodo embutido na propaganda governamental da época, que fazia crer que os itinerários seriam possibilidades abertas para a escolha dos alunos, quando, na verdade, o que se avizinha é a circunscrição e a limitação dos itinerários às escolhas e/ou às possibilidades das gestões estaduais. Ainda que a questão seja muito importante, o que interessa, neste artigo, é exatamente aquilo que a reforma invisibiliza: a situação do EM noturno e da EJA/EM, não contemplados no texto.

Uma consulta aos dados do Censo escolar de 2016 nos mostra o tamanho da população excluída dos debates e do texto da reforma: os estudantes do EM noturno e aqueles matriculados na modalidade EJA (Brasil, 2016). 30% dos alunos matriculados no EM regular o fazem no turno noturno. Quando acrescentamos a esses últimos aqueles matriculados na EJA/EM, chegamos a uma proporção que abarca 40% dos estudantes do EM em 2016.

Nessa perspectiva, portanto, a reforma do EM elimina (por invisibilidade, por silenciamento) exatamente os socialmente vulneráveis; aqueles que, provavelmente, concentram trajetórias escolares irregulares e descontínuas; aqueles que, apenas depois do ciclo virtuoso das expansões escolares, iniciadas ao fm da década de 1990 e renovadas e expandidas a partir dos primeiros anos dos anos 2000, conseguiram manter-se no interior do sistema educativo, buscando superar a “linha divisória do EM”; aqueles que buscam compor escola com trabalho; aqueles, enfim, que buscavam migrar para os modos emergentes de transição escola-trabalho, configurados com força crescente a partir da Constituição de 1988.

CONCLUSÃO

Nesse texto, pretendíamos construir uma preparação de terreno para o campo da juventude com esse conceito como posição e sua operação num caso particular: a reforma do EM. Para isso, dividimos o texto em duas partes: a construção da ferramenta e a operação. Na primeira parte, trouxemos Bourdieu e Mannheim para discutir aspectos importantes na análise da juventude e do estudo das posições, culminando na construção de um conceito de juventude apoiado na ideia de posição e da própria juventude como uma posição. Na segunda parte do texto, apresentamos questões práticas da realidade juvenil no contexto brasileiro a partir de PNAD com recortes etários específicos. E ainda utilizamos a ferramenta com reflexões sobre o que poderia — no sentido analítico do termo — a juventude como posição ao observarmos um caso particular: a reforma do EM.

Dessa primeira aproximação, pudemos levantar como principais conclusões que: tomar os jovens como uma posição de observação nos leva a reposicionar a visão que temos acerca das políticas sociais e, principalmente, nos faz enxergar os limites de sua operacionalização em setores (Educação e Trabalho, por exemplo); que os estudos de transição para a vida adulta (que nos impelem a captar as interações entre setores ao invés de toma-los separadamente), entre os quais situamos a transição escola-trabalho, nos ajudam a tomar essa perspectiva em relação aos jovens, qual seja, aquela em que as instituições e as políticas que as dinamizam podem ser observadas de um lugar mais próximo (e também mais amplo) daquele onde se situa a experiência juvenil; também que, nesse sentido, constatar a emergência de novas configurações nos modelos de transição para a vida adulta no Brasil, a partir da expansão dos sistemas escolares, em especial em seus patamares médio e superior, nos ajuda a compreender alguns dos mais importantes impasses enfrentados pela juventude hoje:

  1. a fecundidade, mas também os limites da expansão das oportunidades escolares num quadro em que essa ampliação e obrigatoriedade educativas se dão num contexto de manutenção da seletividade escolar, levando a um processo em que a ampliação das oportunidades escolares não elimina a criação de margens escolares, internas aos sistemas;

  2. no quadro da expansão seletiva das oportunidades escolares, vemos emergir uma nova questão social juvenil, cujo paradoxo consiste na ampliação dos horizontes formativos, com a construção de uma expectativa de carreira em confronto com um mundo do trabalho difícil, desregulado e precário em direitos;

  3. vemos também emergir novas margens nos sistemas educativos. Incluídas nos sistemas educativos graças às políticas de correção de fluxo escolar e reconhecidas pelas políticas de ampliação da obrigatoriedade do direito à educação e pelas políticas de ampliação e de democratização do acesso ao ensino superior, essas margens, compostas dos alunos que, em situação de vulnerabilidade (econômica, social e educacional), habitam as periferias da sociedade, frequentam educação noturna e compõem escola com trabalho; e

  4. o ponto a partir do qual a nova tendência (de composição entre escola e trabalho, concomitantemente ou não, com vistas à construção de uma carreira laboral) se torna possível: a linha divisória do EM.

Em síntese, viemos, até aqui, defendendo as possibilidades abertas pela tomada da juventude como uma posição de observação da sociedade. No conjunto de nossa argumentação, defendemos que essa posição encontra suas propriedades, por um lado, no caráter liminar da inserção social dos jovens nas sociedades capitalistas ocidentais e, por outro, na experimentação singular das configurações históricas que marcam a sucessão das gerações. No âmbito desta argumentação, entendemos também que os processos de inserção social dos jovens estão sujeitos a “propriedades” advindas de posições estruturais mais permanentes e a processos de desenho mais contingentes e que é na relação entre posições mais sólidas e condições contingentes que radicam as situações sociais que investigamos. Nesse sentido, compreender as maneiras como as políticas públicas afetam conjuntos significativos dos jovens no Brasil pode ser uma maneira profícua de testar nossa hipótese de a juventude como posição configurar um lugar estratégico de observação social para além de apenas uma categoria de análise, mas como um mirante que visualiza e ressignifica fenômenos sociais vistos de outros pontos de observação.

Por fim, nossa proposta de trazer uma ferramenta — a juventude como posição — e trabalhar essa ferramenta a partir do acesso e da permanência no EM para jovens de 18 a 24 anos, bem como os possíveis efeitos da reforma do EM, demonstra que novos pontos de observação criam novas possibilidades de observar os fenômenos sociais e que destacarmos que o uso do instrumento “juventude como posição” nos aponta o quanto a reforma do EM não é apenas um “encurtamento de cobertor”, mas um atraso que tem mais expressão e destaque como retrocesso social — de toda a sociedade brasileira — do que uma política de inanição apenas no campo da Educação.

1No artigo, Spósito (2003) aborda especialmente os autores que compuseram a “escola da USP”, que, tratando a educação como parte importante das disputas por projetos de desenvolvimento para o país, realizaram investigações e análises do fenômeno educativo a partir desse enquadramento, configurando uma corrente de pensamento que, partindo de autores como Florestan Fernandes e Antonio Cândido, fizeram emergir pesquisadores centrais ao debate acerca das relações entre Educação e Sociedade, tais como Marialice Foracchi, Luiz Pereira e João Baptista Borges Pereira — mais tarde levados adiante por autores contemporâneos que, já na década de 1980, disseminaram essa abordagem, como a própria Spósito, Maria Malta Campos e Rogério Cunha Campos.

2O que quer dizer que as posições sociais devem ser estudadas a partir de casos particulares. É aí que, dependendo do recorte que façamos, poderemos identificar o grau, o alcance e a estabilidade dos elementos envolvidos na sua composição.

3Sobre situação: essa, de fato, seria aquela a ser estudada com mais materialidade do cotidiano.

4Esse estado de liminaridade social pode ser experimentado, pelos diferentes e desiguais grupos de jovens, de maneiras muito variáveis, dependendo do grau e da distribuição mais ou menos equânime dos investimentos sociais, resultando em processos muito diferentes de integração e de autonomia.

5Em texto de 2018 sobre uma abordagem quantitativa na pesquisa sobre jovens, Spósito, Souza e Silva (2018) apresentaram a retomada do argumento de se conhecer o jovem fora do ambiente escolar.

6A partir do lugar de observação dos jovens, a escola tem uma importância relativa ao lugar que ocupa em relação a outras instituições e agentes.

7Por etapas de transição tem-se a sucessão entre a condição de estudante e a de trabalhador, tomando o sistema escolar como forma ampliada de preparação para a carreira e a inserção produtiva. Já os eventos de transição são, basicamente, as demarcações de autonomia em relação ao núcleo familiar, com fundação de um novo núcleo. É exatamente o embaralhamento entre etapas e eventos, antes mais organizados e sucessivos, a constatação primordial de Galland, já na década de 1980.

8Que não é nem o modelo “clássico” entre os jovens de classes populares no Brasil, marcado pelo abandono precoce da escola com vistas ao ingresso num mundo do trabalho sem direitos, sem garantias e sem carreira e no qual, portanto, trabalho e escola funcionam como instituições excludentes, “ou” estuda “ou” trabalha; nem o modelo mais comum entre os jovens das classes médias, em que a escolarização aponta para os estudos universitários, sucedidos pela busca de ingresso numa carreira laboral e num emprego com direitos e garantias, do tipo estuda e depois trabalha.

9 Ferreira (2019) entende como abandono longo da escola o período prolongado e sustentado de afastamento escolar por parte do estudante. Suspensões de semanas ou poucos meses são vistas como um tipo de flutuação entre idas e vindas, o que não se configuraria ainda abandono escolar.

10O FUNDEB passou a financiar a educação infantil e o EM, além do EF e alcançou a educação de jovens e adultos (EJA).

11Com políticas de ampliação de vagas (Reestruturação e Expansão das Universidades Federais — REUNI — e Programa Universidade para Todos — PROUNI) e de democratização do acesso à universidade para grupos historicamente alijados dela, por meio das políticas de cotas.

12E em alguns casos, como no Rio de Janeiro, com o programa Autonomia, do governo do Estado, para aceleração de estudos no nível do EM.

13Tomamos 2015 como o ano limite de nossa exposição aqui, uma vez que este foi o último ano de vigência dos parâmetros estabelecidos pela constituição de 1988, rompida em 2016 com um golpe de Estado.

14E ainda assim é importante esclarecer que, mesmo nesse cenário aparentemente modesto, obtivemos significativos avanços se levarmos em conta que, para a população de 18 a 24 anos, tínhamos, em 2004, uma taxa bruta de escolarização de 18,6% e uma taxa líquida de 12,3%.

Financiamento: O estudo não recebeu financiamento.

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Recebido: 08 de Março de 2021; Aceito: 15 de Julho de 2022

Mônica Peregrino é doutora em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professora da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). E-mail: monicaperegrino55@gmail.com

Juliana de Moraes Prata é doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: julianaprata.prof@gmail.com

Conflitos de interesse: As autoras declaram que não possuem nenhum interesse comercial ou associativo que represente conflito de interesses em relação ao manuscrito.

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