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Revista Brasileira de Educação

Print version ISSN 1413-2478On-line version ISSN 1809-449X

Rev. Bras. Educ. vol.28  Rio de Janeiro  2023  Epub July 12, 2023

https://doi.org/10.1590/s1413-24782023280071 

Artigos

A perspectiva Ciência, Tecnologia e Sociedade no contexto da educação tecnológica e politécnica: primeiras aproximações teóricas

LA PERSPECTIVA CIENCIA, TECNOLOGÍA Y SOCIEDAD EN EL CONTEXTO DE LA EDUCACIÓN TECNOLÓGICA Y POLITÉCNICA: PRIMERAS APROXIMACIONES TEÓRICAS

Lucas Barbosa PelissariI 
http://orcid.org/0000-0003-3659-5424

IUniversidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil.


RESUMO

O objetivo do presente ensaio é analisar possíveis relações entre a noção de educação tecnológica, tal como desenvolvida no contexto brasileiro, e a perspectiva Ciência, Tecnologia e Sociedade, apresentando aproximações preliminares a um problema de dimensões prática, teórica e conceitual. A partir da definição de dualidade estrutural da educação, o texto levanta a necessidade de que o tema seja situado na realidade social concreta dos contextos escolares. No caso específico, trata-se das formações sociais latino-americanas e sua condição de dependência econômica, científica e cultural. Como conclusão, apresenta-se a tese segundo a qual o conceito de educação politécnica é uma mediação possível entre o campo educacional e a epistemologia Ciência, Tecnologia e Sociedade. Tal mediação é capaz de ressaltar o compromisso ético-político da educação tecnológica, baseando-se em três elementos: crítica à neutralidade da ciência; vínculo com o conceito de trabalho; e auto-organização da comunidade escolar.

PALAVRAS-CHAVE educação tecnológica; educação CTS; educação politécnica; ciência, tecnologia e sociedade (CTS)

RESUMEN

El propósito de este ensayo es analizar posibles relaciones entre la noción de educación tecnológica, tal como se desarrolla en el contexto brasileño, y la perspectiva Ciencia, Tecnología y Sociedad, presentando acercamientos preliminares a un problema de dimensiones prácticas, teóricas y conceptuales. En base a la definición de la dualidad estructural de la educación, el texto plantea la necesidad de situar el tema en la realidad social concreta de los contextos escolares. En el caso específico, se trata de las formaciones sociales latinoamericanas y su condición de dependencia económica, científica y cultural. Como conclusión, presentamos la tesis de que el concepto de educación politécnica es una posible mediación entre el campo educativo y la epistemología Ciencia, Tecnología y Sociedad. Dicha mediación es capaz de resaltar el compromiso ético-político de la educación tecnológica, basado en tres elementos: crítica de la neutralidad de la ciencia; vinculación con el concepto de trabajo; y autoorganización de la comunidad escolar.

PALABRAS CLAVE educación tecnológica; educación CTS; educación politécnica; ciencia, tecnología y sociedad (CTS)

ABSTRACT

The objective of this essay is to analyze possible relationships between the notion of technological education, as developed in the Brazilian context, and the Science, Technology and Society perspective, presenting preliminary approaches to a problem whose dimensions are practical, theoretical, and conceptual. From the definition of structural duality of education, the text has a need for the theme to be situated in the concrete social reality of school contexts. In the specific case, this reality is the Latin American social formations and their condition of economic, scientific and cultural dependence. As conclusion, it is presented the thesis according to which the concept of polytechnic education is a possible mediation between the educational field and Science, Technology and Society epistemology. This mediation is capable to underscore the ethical-political commitment of technological education, based on three elements: criticism of the neutrality of science; connection with the concept of work; and self-organization of the school community.

KEYWORDS technological education; STS education; polytechnic education; science, technology and society (STS)

INTRODUÇÃO

A noção de educação tecnológica tem sido discutida no Brasil desde, pelo menos, o fim da década de 1980, após a aprovação da Constituição Federal de 1988 e o início dos debates sobre a nova Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da Educação. Seja nas instâncias parlamentares e institucionais, seja na produção acadêmica, seja em partidos políticos e movimentos sociais, o tema esteve presente, inclusive direcionando concepções subjacentes a políticas educacionais, em geral, e de ensino médio e técnico, em particular. Garcia e Lima Filho (2010) mostram que o próprio termo foi mobilizado para dar sentido à articulação entre educação geral e formação profissional, conforme as correlações de forças na sociedade em cada momento histórico da Nova República. É possível identificar, assim, na literatura e nas políticas públicas, interpretações diversas para a educação tecnológica. Os sentidos dados ao termo variam desde aproximações à ideia crítica de politecnia até leituras deterministas que imputam à educação estratégias de caráter econômico (Garcia e Lima Filho, 2010).

Em um nível de abstração mais específico, situa-se o conceito de educação científica, que aborda as relações entre ensino e aprendizagem das ciências naturais. As pesquisas na área vêm demonstrando possibilidades diversas de abordagem das práticas pedagógicas em educação científica, sendo uma delas a perspectiva1 que leva em conta as relações orgânicas entre Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS). Como discute Von Linsingen (2007), as contribuições que se filiam a essa perspectiva e, ao mesmo tempo, respondem a problemas regionais, sejam eles advindos de peculiaridades históricas, econômicas, políticas ou culturais, ainda intervêm pouco na pesquisa em educação na América Latina. Não há dúvidas de que o desenvolvimento de estudos e práticas em educação científica já nos permite falar em uma “perspectiva educacional CTS”, que inclusive extravasa o ensino-aprendizagem de ciências naturais. No entanto, as lacunas ainda existentes no debate latino-americano chamam a atenção e devem ser problematizadas.

O objetivo do presente trabalho está delimitado a partir desse pressuposto. Pretendemos analisar possíveis relações entre a noção de educação tecnológica, tal como desenvolvida no contexto brasileiro, e a perspectiva CTS, apresentando aproximações preliminares a um problema de dimensões prática, teórica e conceitual. Essa multidimensionalidade resulta do terreno em que se dá a discussão, o qual se convencionou denominar, no Brasil, Educação Profissional e Tecnológica (EPT) ou Educação Profissional, Científica e Tecnológica (EPCT), principalmente a partir de transformações significativas sofridas pela política de formação técnica nos anos 2000.

Tais mudanças acabaram por expressar as nuances e contradições da noção de educação tecnológica e da perspectiva CTS. Novos debates permearam as práticas escolares e os documentos oficiais orientadores das Redes Estaduais de Educação, da Rede Federal de EPCT e até de organismos não públicos, como as instituições do Sistema S e os centros privados de ensino técnico. De qualquer maneira, o contexto da educação profissional brasileira nas últimas décadas apresenta características específicas em relação ao de outros países, por ter feito emergir a possibilidade da articulação integrada entre as dimensões da ciência e da técnica nos currículos escolares. Tensionou, assim, o traço de dualidade estrutural que fundamenta o sistema educacional do país desde suas origens e que remete ao próprio desenvolvimento do capitalismo dependente brasileiro (Frigotto, 2018). Objetivamente, o Decreto Federal n° 5.154/2004 (Brasil, 2004) lançou as bases da concepção de formação humana integral de natureza politécnica, fornecendo sentido à noção de educação tecnológica e mobilizando perspectivas educacionais críticas à neutralidade da ciência. É no bojo desse cenário que se desenvolve a reflexão teórica aqui proposta.

Discutimos, na seção que segue a esta introdução, a noção de educação tecnológica, mostrando que seu próprio desenvolvimento no contexto brasileiro foi importante para as novas definições legais dos anos 2000. Em seguida, refletimos sobre uma leitura possível para a perspectiva educacional CTS, à luz das peculiaridades brasileiras e latino-americanas. Na terceira seção, apresentamos um caminho para a perspectiva CTS que considera o compromisso ético-político de análise e transformação da realidade, recorrendo ao potencial teórico do conceito de educação politécnica. Por fim, consideramos questões para a continuidade das pesquisas sobre o tema.

EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA, POLITECNIA E OS ENSINOS MÉDIO E TÉCNICO BRASILEIROS

A problemática das relações entre ciência e técnica sempre esteve, direta ou indiretamente, presente nas definições da política educacional da República brasileira. A partir da década de 1980, com o fim da ditadura militar, essa questão recebe novos aportes teóricos, principalmente nas discussões sobre o problema histórico da falta de identidade do ensino médio. Vários trabalhos se dedicaram a compreender o condicionante fundamental dessa ausência de identidade, isto é, a característica de dualidade do sistema de ensino capitalista, em geral, e brasileiro, em específico. Apenas para citar alguns, lembramos as análises de Frigotto (1984), Machado (1989), Nosella (1998), Kuenzer (2000) e Ramos (2005), todos componentes importantes de um campo de estudos que se consolidou em torno do tema.

A tese comum a essas elaborações identifica, basicamente, dois sistemas escolares distintos conforme sua função na produção e reprodução das relações sociais vigentes. De um lado, a escola de natureza propedêutica, cujo público é composto das classes médias, da pequena burguesia e dos setores das classes dominantes, que se preparam, no ensino médio, para continuar os estudos superiores e ocupar postos produtivos de controle, concepção e direção. De outro lado, a escola técnica, destinada aos filhos das classes trabalhadoras, que normalmente aprendem uma profissão de maneira descolada dos conhecimentos científicos gerais, preparando-se para a futura execução produtiva. Do ponto de vista teórico, a dualidade recebe o adjetivo “estrutural” justamente por ter suas bases na separação entre o produtor direto e os meios de produção e na consequente divisão do trabalho especificamente capitalista. Assim, não se trata de um atributo relativo apenas aos conteúdos escolares, mas referente ao campo das estruturas sociais.

Como se sabe desde Marx, essa característica resulta da contradição entre a produção cada vez mais social e a apropriação privada dos produtos do trabalho, que, no plano dos conhecimentos, se manifesta como cisão entre o trabalho manual e o intelectual. A clássica passagem resume a questão: “Por isso, desenvolve-se plenamente o trabalho de supervisão anteriormente mencionado, dividindo-se os trabalhadores em trabalhadores manuais e supervisores de trabalho, em soldados rasos e em suboficiais do exército da indústria.” (Marx, 2010, p. 484).

A breve discussão justifica o fato de o citado campo de estudos ter recebido o título Trabalho-Educação2 e se referenciar no leito teórico do materialismo histórico-dialético, apesar das diferenças internas. Retomando o início da seção, importa-nos mencionar que a própria relação entre trabalho e formação humana passa a orientar boa parte das disputas em torno da definição de um novo marco legal para a educação brasileira, posteriormente à aprovação da Constituição Federal de 1988 (Garcia e Lima Filho, 2010). Nesse cenário, abriram-se possibilidades de tensionamento da dualidade estrutural, mediante a valorização dos conteúdos gerais no ensino médio, sendo reveladas posições progressistas e conservadoras na interpretação da nova Constituição. Recolocou-se, assim, na ordem do dia, o debate sobre a relação entre conhecimentos científicos e saberes técnicos na formação escolar, fazendo emergir a noção de educação tecnológica.

Como mostram Garcia e Lima Filho (2010), o retorno das reflexões sobre o papel do trabalho no processo educativo encontrou eco nas reivindicações de setores organizados dos trabalhadores, como sindicatos, associações de classe e de pesquisa e entidades representativas. Nesse caldo de ideias surgidas e reformuladas no bojo de um processo de redemocratização, noções e conceitos clássicos foram também retomados, como, por exemplo, a ideia de politecnia. Em síntese, a educação politécnica apresentava-se como uma das formas de vínculo entre ciência e técnica nos currículos escolares, forma esta que trazia a própria crítica marxista ao capitalismo e à necessidade de apropriação, por todos os cidadãos, das múltiplas técnicas produtivas e laborais. Os referidos autores mencionam, nesse caso, o papel decisivo jogado por Dermeval Saviani.

Em seu discurso de 1987 na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, intitulado Sobre a concepção de politecnia (Saviani, 1989), o intelectual resgatava as elaborações de um dos expoentes da Revolução Russa de 1917 no campo da educação, Pistrak, para evidenciar os pilares do que seria a articulação entre o trabalho manual e o intelectual requerido à escola politécnica crítica ao capitalismo. A elaboração chegou a ser incorporada a uma das propostas preponderantes de Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da Educação, em 1991. Tratava-se da minuta de lei organizada pelo deputado Otávio Elísio, reunindo sugestões de diversos setores sociais (Garcia e Lima Filho, 2010).

Ocorre, no entanto, que o contexto de neoliberalização, reforma do Estado e influência de organismos multilaterais na educação brasileira apresentava, paralelamente, um conjunto importante de noções ideológicas, como “sociedade do conhecimento”, “competências profissionais” e “empregabilidade”. A incorporação de tais noções pelo novo marco legal era uma das contrapartidas para a aplicação do neoliberalismo no Brasil, o que levou o então Ministério da Educação (MEC) a criar, já em 1990, um órgão específico para administrar o ensino técnico e a educação profissional, a Secretaria Nacional de Educação Tecnológica (SENETE). A força política dessas novas proposições exigiu dos setores que defendiam a politecnia uma estratégia de atuação no debate pré-LDB, assim relatada por Garcia e Lima Filho (2010, p. 38, grifo nosso):

Assim como na fala do deputado Otávio Elísio não estava expressa a palavra educação politécnica, a mesma estratégia foi adotada para que o conceito de educação politécnica fosse preservado nas propostas de LDB que estavam em discussão, substituindo esse termo, considerado também não palatável pelos parlamentares, pelo termo educação tecnológica.

Criava-se uma situação híbrida: no conteúdo, o sentido dado era o da educação politécnica. Na forma, isto é, na letra da lei, a educação tecnológica exibia os possíveis contornos que os currículos do ensino médio e da formação profissional poderiam assumir. Em seu formato finalmente aprovado, a LDB n° 9.394/1996 (Brasil, 1996) sintetizava contradições sociais e acabava deixando para escolas, estados, municípios e, principalmente, para novos marcos legais, a continuidade das disputas. A expressão incluída no texto final foi articulação entre a educação profissional (saberes técnicos/manuais) e o ensino regular (conhecimentos científicos/intelectuais), cuja interpretação poderia ter os mais variados sentidos.

Assim como outras dimensões da política educacional do período pós-LDB, esse hibridismo oscilou manifestando interesses em disputa. Produziu, assim, documentos oficiais cujo conteúdo tendeu ora à cisão entre educação profissional e ensino médio, ora ao enfrentamento da dualidade estrutural. A segunda situação teve como marco uma série de debates, estudos e seminários organizados pelo MEC, no início do primeiro governo Lula (2003–2005), com intensa participação do campo Trabalho-Educação e da chamada sociedade civil organizada. A síntese foi a promulgação do decreto n° 5.154/2004 (Brasil, 2004), que considerava alguns significados possíveis para a terminologia genérica da LDB. Dentre as três possibilidades elencadas, previa-se a organização de um currículo único que integrasse educação profissional e ensino médio.3

O conteúdo do decreto foi incorporado à LDB quatro anos depois, inclusive alterando o título de um dos capítulos de “Da Educação Profissional” para “Da Educação Profissional e Tecnológica”. A mudança não foi simplesmente textual, mas expressava as transformações no conteúdo político do ensino técnico, permitindo que o sentido dado à educação tecnológica se acercasse do conceito de politecnia. Já em termos de oferta educativa, a inclusão da possibilidade do currículo unitário embasou uma sequência de políticas de estímulo ao Ensino Médio Integrado (EMI), que, por sua vez, induziu o aprofundamento nas elaborações e reflexões teóricas das próprias diretrizes curriculares. Exemplo evidente é um dos documentos orientadores formulado em 2007, que justificava a novidade recorrendo às características históricas da formação social brasileira:

Essa perspectiva, ao adotar a ciência, a tecnologia, a cultura e o trabalho como eixos estruturantes, contempla as bases em que se pode desenvolver uma educação tecnológica ou politécnica e, ao mesmo tempo, uma formação profissional stricto sensu exigida pela dura realidade socioeconômica do país. (Brasil, 2007, p. 24)

Desse ponto de partida, o documento continua as orientações definindo bases epistemológicas para a integração curricular, cuja síntese passa a ser a noção de formação humana integral:

A idéia [sic] de formação integrada sugere superar o ser humano dividido historicamente pela divisão social do trabalho entre a ação de executar e a ação de pensar, dirigir ou planejar. Trata-se de superar a redução da preparação para o trabalho ao seu aspecto operacional, simplificado, escoimado dos conhecimentos que estão na sua gênese científico-tecnológica e na sua apropriação histórico-social. Como formação humana, o que se busca é garantir ao adolescente, ao jovem e ao adulto trabalhador o direito a uma formação completa para a leitura do mundo e para a atuação como cidadão pertencente a um país, integrado dignamente à sua sociedade política. Formação que, nesse sentido, supõe a compreensão das relações sociais subjacentes a todos os fenômenos. (Ciavatta apudBrasil, 2007, p. 41)

Tais perspectivas balizaram, por exemplo, um programa de incentivo à oferta de EMI em todas as Redes Estaduais de Educação, entre 2007 e 2012, denominado Brasil Profissionalizado, com investimentos da ordem de R$ 2,4 bilhões. Além disso, a Rede Federal de EPCT passou a ter como principal modalidade de oferta o EMI, com política que previu corpo docente próprio e dedicado exclusivamente às instituições, infraestrutura de laboratórios e salas de aula e verticalização da EPT de acordo com os arranjos produtivos, territoriais e culturais locais. Esse processo foi responsável pela geração de 1.176.486 novas matrículas no ensino técnico, o que representou a ampliação da modalidade em quase três vezes entre 2003 e 2014, assumindo, como eixo de expansão, o currículo unitário e integrado (Pelissari, 2019).

Faz-se necessário enfatizar, como possível síntese, que o fio condutor da aproximação entre a noção de educação tecnológica e o conceito de politecnia tem duas dimensões: uma histórico-política e outra teórico-epistemológica. A primeira reside no enfrentamento da dualidade estrutural da educação brasileira e de suas especificidades históricas como um país capitalista de passado colonial, que ainda não universalizou o direito democrático à educação básica. A segunda enseja o diálogo com as perspectivas críticas às concepções de neutralidade da ciência e da tecnologia. Nesse âmbito, o currículo integrado passa a ser, ainda que técnico-profissional, dirigido ao conhecimento e, exatamente por isso, politécnico. Como discute Ramos (2005, p. 124): “Isto não se confunde com conferir preeminência às atividades práticas em detrimento da construção de conceitos. Mas os conceitos não existem independentemente da realidade objetiva.”. Segundo a autora, a base de um currículo pautado pela formação humana integral é a própria tensão entre as contradições do real e o movimento do pensamento, o que leva à superação do senso comum pelo conhecimento científico ao longo da formação escolar. Vejamos, a seguir, como a questão se coloca frente à perspectiva educacional CTS.

A PERSPECTIVA EDUCACIONAL CIÊNCIA, TECNOLOGIA E SOCIEDADE E A AMÉRICA LATINA

Inicialmente divulgada como “Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia” ou “Estudos em Ciência, Tecnologia e Sociedade” (ECTS), a perspectiva CTS tem sua raiz histórica no início da década de 1960. Motivadas por obras diferentes, mas com uma linha comum em termos de problematização teórico-prática, é possível identificar duas origens bastante definidas, uma norte-americana e outra europeia. O ponto de contato entre ambas foi o exame das concepções essencialistas e/ou lineares de ciência e tecnologia, submetendo à análise crítica o marco positivista da neutralidade, a partir de acontecimentos da geopolítica internacional. Esse eixo consolida, já no fim daquela década, uma rede importante de pesquisadores no mundo todo, com formação em campos científicos diversos (Bazzo, Von Linsigen e Pereira, 2003).

Mas qual é o estatuto teórico da perspectiva CTS? Trata-se de uma posição epistemológica possível de se aplicar a qualquer área do conhecimento? Ou é restrita às investigações sobre a filosofia da ciência, a história da ciência e áreas correlatas? Von Linsingen (2007) apresenta pistas para que nos debrucemos sobre essas questões, ao discutir a influência de elaborações teóricas anteriores à perspectiva CTS, que funcionaram como precursoras intelectuais. É o caso, por exemplo, de Charles P. Snow, em seu livro As duas culturas e uma segunda leitura, de 1959, no qual se inaugura o debate sobre o distanciamento progressivo entre duas culturas incomunicáveis: a científico-tecnológica e a humanista. “Seu crédito foi justamente o de ter tornado aparente a existência de duas culturas que supostamente se opõem.” (Von Linsigen, 2007, p. 6), mas que, do ponto de vista do papel que cumprem na interpretação da realidade, complementam-se, sobretudo no levantamento de problemas sobre as relações da ciência e da tecnologia com determinantes sociais. Na verdade, o fenômeno das duas culturas apenas revela características fundamentais da própria concepção de neutralidade da ciência moderna, acabando por produzir a “[…] polêmica cisão da vida intelectual e prática no ocidente em dois grupos diametralmente opostos, separados por um abismo de incompreensão mútua […]” (idem, p. 9).

A tese central defendida pelo autor é que a incorporação da perspectiva CTS aos estudos sobre educação pode contribuir para o preenchimento dessa fissura. O olhar crítico permite trazer à tona, por exemplo, implicações técnicas e tecnológicas do desenvolvimento das Ciências Sociais ou aspectos filosóficos e sociológicos das descobertas em Ciências Naturais e engenharias. Nesse sentido, é possível falar em perspectiva educacional CTS, evidenciando um lugar para o conhecimento científico no trabalho escolar e no processo de formação humana. A reflexão nos remete às questões anteriormente elencadas, permitindo afirmar que CTS é uma posição epistemológica que pode abarcar objetos de estudo das mais diferentes áreas, inclusive constituindo processos investigativos interdisciplinares e intercientíficos. Enfim, cumpre observar que a relação entre educação e CTS pode ser útil para a própria compreensão filosófica dessa perspectiva.

Dessas afirmações decorrem dois pressupostos que julgamos fundamentais, ambos levantados por Von Linsingen (2007, p. 9). Em primeiro lugar, ele mostra que a própria tradição democrática que originou os estudos CTS reivindica uma “[…] reorientação e contínua análise das políticas pedagógicas das instituições de ensino tecnológico, a par da participação social mais ampla nas políticas públicas de ciência e tecnologia.”. De outro lado, assevera que, na América Latina, o campo da educação ainda recebe poucas contribuições da perspectiva CTS, em especial aportes que levem em conta os problemas da região. O que nos parece é que as duas afirmações estão imbricadas e o aprofundamento do entendimento de ambas ajuda a analisar nosso objeto.

Uma característica que constituiu a economia e a política latino-americanas de meados do século XX até o fim da década de 1980 foi a hegemonia da ideologia desenvolvimentista. Tanto no debate intelectual quanto na esfera da política institucional, visões diversas sobre o desenvolvimento industrial se apresentaram, desde a importação de modelos do centro do capitalismo até a reivindicação do socialismo pela Teoria Marxista da Dependência. Fato é que o pacto desenvolvimentista estabelecido entre frações das burguesias da região implicou na prevalência de políticas de ciência e tecnologia baseadas na relação quase orgânica entre universidade e mercado empresarial. Para Dagnino (2010), esse vínculo consubstanciou uma linha de atuação que se tornou praticamente inquestionável nas sociedades latino-americanas desde o fim dos anos 1960.

É nesse contexto que o autor situa o surgimento do Pensamento Latino-Americano em Ciência, Tecnologia e Sociedade (PLACTS). Num momento em que os esforços de investigação eram todos direcionados para encontrar saídas para a industrialização, intelectuais argentinos da área das “ciências duras” passaram a incidir politicamente no conjunto de pesquisadores que reivindicavam a autonomia do processo científico e tecnológico daquele país.

Seu argumento central nesse debate era de que o justo apoio que demandava a comunidade de pesquisa supunha um “Projeto Nacional” que radicalizasse o componente democrático-popular do nacional-desenvolvimentismo e contivesse, por isto, um desafio científico-tecnológico original. (Dagnino, 2010, p. 24)

Ocorre que a reivindicação sempre esbarrou na baixa intensidade democrática do capitalismo latino-americano, fator preponderante de composição daquilo que Florestan Fernandes (2014) classificou como Estados capitalistas autocráticos. O modelo de desenvolvimento adotado pelas ditaduras militares da região, por exemplo, aprofundou as desigualdades sociais e fundamentou-se num tipo de crescimento econômico que não gerou maior demanda por conhecimento. Ao contrário, o projeto do PLACTS previa uma matriz tecnológica autônoma diretamente vinculada com a ampliação do mercado interno de massas, produzindo, como consequência imediata, a exigência da elevação da escolaridade e novos conhecimentos. Para isso, um programa de solução dos problemas e dos atrasos sociais fundamentais das nações latino-americanas deveria direcionar os recursos das políticas públicas de ciência e tecnologia.

Rompendo-se o pacto desenvolvimentista, o condicionante autocrático permaneceu, já que constitutivo dos próprios aparelhos de Estado resultantes de revoluções burguesas incompletas (Fernandes, 2014). O processo de neoliberalização subsequente e sua abertura comercial apenas acentuaram o papel do capital internacional na geração de novos conhecimentos tecnológicos, dificultando a solução tanto das demandas básicas da população quanto do problema histórico da inserção competitiva no mercado mundial, “O que fez com que diminuísse a já frágil relação da capacidade instalada de pesquisa e de formação de recursos humanos em C&T [ciência e tecnologia] com a atividade econômico-produtiva.” (Dagnino, 2010, p. 28-29).

Auler e Bazzo (2001) dialogam com essas questões ao analisar o caso brasileiro e refletir sobre o lugar da perspectiva CTS nos estudos sobre educação. Escrevem no ano de 2001 — portanto cerca de 15 anos após o início da implantação do neoliberalismo no Brasil — e elencam três elementos essenciais: a ausência de um projeto de nação, preponderante nos desenhos de correlações de forças existentes em toda a história brasileira; a ausência de uma articulação dinâmica entre ciência, tecnologia e sociedade; e o domínio de um Estado autoritário sem histórico de participação social nas decisões mais gerais. Concluem, com isso, que esse contexto determina as práticas educativas brasileiras, dificultando a ruptura com um modelo tecnocrático de escola e de contato dos estudantes com as ciências e a tecnologia.

Um complemento à constatação de Auler e Bazzo (2001) emerge de nossa discussão. O modelo tecnocrático tem sua raiz, justamente, na dualidade da educação brasileira, aprofundada por uma democracia liberal permanentemente suspensa e artificialmente introduzida nas relações escolares. Com o neoliberalismo, os atores fundamentais chamados a resolver os problemas educacionais mudaram, mas a raiz estrutural se manteve. A entrada em cena dos organismos multilaterais apresentou, por exemplo, as exigências de avaliação e controle de qualidade, a subordinação do conhecimento escolar às necessidades do mercado tecnológico flexível (Gentili, 1996) e, mais recente, as propostas de privatização via vouchers escolares. Não à toa, Von Linsigen (2007) identifica a forte retomada da ideologia das duas culturas, movimento que acaba por ratificar a tecnocracia no ambiente escolar.

A perspectiva CTS, na acepção que aqui defendemos, afirma-se com o compromisso ético-político de analisar essa cisão e suas repercussões no campo da educação. Ganha, além disso, especificidade quando discutida à luz do capitalismo brasileiro e latino-americano. Já a dualidade e a educação politécnica têm, por sua vez, dimensão universal como conceito, num nível mais amplo de abstração. No entanto, é importante que as analisemos nas determinações e delimitações mais concretas de cada formação social. A seguir, discutiremos possíveis conexões entre esses elementos, evidenciando, como síntese, o conceito de politecnia.

O COMPROMISSO ÉTICO-POLÍTICO DA PERSPECTIVA CIÊNCIA, TECNOLOGIA E SOCIEDADE: O CONCEITO DE POLITECNIA

Como forma de concluir, o objetivo desta seção é defender a ideia de que o conceito de politecnia é uma das possibilidades de tradução da perspectiva CTS no campo educacional. Mais do que isso, a concepção que emerge da educação politécnica ressalta o compromisso ético-político dessa perspectiva, qualificando a expressão “educação tecnológica” presente nos marcos legais brasileiros. Apresentamos, assim, uma concepção que pode nortear a construção de currículos, escolhas metodológicas e a compreensão do papel do conhecimento escolar.

Com base nas seções anteriores, três pilares sustentam nossa afirmação. Em primeiro lugar, o ponto de partida da inserção da perspectiva CTS no campo da educação deve ser a crítica às concepções de neutralidade da ciência. Como vimos, tais concepções produziram uma artificial divisão entre humanismo e cientificismo, criticada por Von Linsigen (2007, p. 9), para quem “O propósito principal da educação CTS é tratar de fechar essa brecha entre duas culturas, posto que tal brecha constitui terreno fértil para o desenvolvimento de perigosas atitudes tecnófobas (ou tecnófilas) […]”.

Mas é também nas concepções de neutralidade que reside a visão de mundo incapaz de enxergar a ciência a partir de suas finalidades políticas, econômicas e sociais. Para Saviani (1989), o olhar da educação politécnica é direcionado a essas dimensões, que tornaram possível a generalização do conhecimento sistematizado pela ciência moderna. Vale destacar o trecho a seguir:

Na sociedade capitalista a Ciência é incorporada ao trabalho produtivo, convertendo-se em potência material. O conhecimento se converte em força produtiva e, portanto, em meio de produção. Mas a contradição do capitalismo atravessa também a questão relativa ao conhecimento: se essa sociedade é baseada na propriedade privada dos meios de produção, e se a Ciência, se o conhecimento é um meio de produção, uma força produtiva, ela deveria ser propriedade privada da classe dominante. No entanto, os trabalhadores não podem ser expropriados de forma absoluta dos conhecimentos, porque sem conhecimentos eles não podem também produzir e, por conseqüência [sic], se eles não trabalham, não acrescentam valor ao capital. Desse modo a sociedade capitalista desenvolveu mecanismos através dos quais ela procura expropriar o conhecimento dos trabalhadores e sistematizar, elaborar esses conhecimentos, e os devolver na forma parcelada. (Saviani, 1989, p. 13)

A fragmentação é, assim, constitutiva desse modelo e repercute no domínio escolar, parcelando também o processo de formação humana. O dinamismo das relações entre ciência, tecnologia e sociedade na perspectiva CTS, incorporado ao currículo e às metodologias de ensino, potencializa a compreensão crítica dessa parcelização. As forças materiais, a industrialização e as múltiplas técnicas que compõem o trabalho produtivo moderno são, dessa forma, incluídas na escola politécnica a partir, por exemplo, da contextualização histórica, geográfica, sociológica ou filosófica.

O segundo pilar que nos permite enxergar a politecnia como uma possível manifestação da perspectiva CTS no campo educacional está diretamente vinculado com o primeiro. Discutimos anteriormente a cisão entre o trabalho manual e o intelectual, conceituando a dualidade estrutural do sistema escolar. A questão não é nova no debate educacional, assim como as próprias formulações sobre a educação politécnica. Já no início do século passado, as experiências socialistas construídas no contexto da Revolução Russa lançaram mão da ideia de uma escola politécnica do trabalho, direcionada justamente a romper com aquela cisão.

Mais do que uma máxima pedagógica, o trabalho ganha papel dominante entre os princípios revolucionários russos. Isso se deve ao fato de desenvolver, na formação do trabalhador, a dialética entre força humana transformadora da natureza (trabalho abstrato) e habilidade específica empregada na criação de valores de uso (trabalho concreto). Dito de outro modo, a escola politécnica articula, em um mesmo percurso formativo, as relações sociais de produção e os aspectos técnicos das forças produtivas, conduzindo o processo pedagógico para a compreensão, cada vez mais rigorosa, da contradição entre esses dois elementos.

Uma das principais sínteses dessas ideias está no livro de Pistrak (2018)Fundamentos da escola do trabalho, organizado em 1924. Ao discutir o sentido pedagógico da proposta, o autor compara a experiência escolar russa com as do ocidente, evidenciando que ambas se chocam justamente na essência de seus objetivos. Para estas, o que está em jogo é o mero aprendizado de uma profissão, o posterior aprofundamento da lógica da exploração e a inculcação ideológica dos princípios de funcionamento do Estado liberal burguês. Para aquela, a visão materialista e dialética sobre o trabalho permite resolver a contradição entre o indivíduo e a sociedade; em Pistrak (2018), o trabalho na escola é atividade que provoca uma necessidade social e, por isso, é dirigido ao conhecimento científico sobre a realidade.4

Nesse sentido, é possível afirmar que a crítica da tecnologia já estava presente nas reflexões do educador russo, para quem as máquinas-instrumento e as máquinas-motrizes da grande indústria seriam sínteses dos mais variados processos científicos. O autor defende o papel ativo da juventude nos processos que envolvem a prática na aprendizagem: “Para que compreendam a essência da divisão do trabalho, é preciso tomar parte nela mesma. Para compreender o trabalho de uma máquina, é preciso sentir a essência dos problemas da produção mecanizada.” (Pistrak, 2018, p. 83).

Naquele caso, Pistrak tratava das chamadas oficinas escolares. Nas práticas pedagógicas atuais, podemos analisar as atividades de laboratório e sua não restrição à adaptação a modelos de mercado — ainda que essa seja uma dimensão da realidade do trabalho assalariado e da qual a escola não pode simplesmente se apartar. Ao contrário, essas atividades podem ser sínteses entre olhares diversos para um mesmo objeto: o fenômeno da dilatação térmica explica leis da Termologia, permite o aprendizado de propriedades químicas de ligas metálicas e oportuniza a discussão sobre o papel do Brasil na exportação de minério de ferro. Nesse exemplo, sendo o trabalho o elemento articulador, é possível teorizar sobre a atividade de transformação da natureza e entender a prática da produção de conhecimento como resultado da intervenção no real. O próprio método científico pode ser, assim, compreendido a partir de variadas aplicações investigativas, e a tecnologia ganha sentido social para além da reificação.

Também está em Pistrak (2018) o terceiro argumento de nossa tese. Nesse caso, a ênfase é dada na dimensão política do problema. Para o autor, a escola politécnica do trabalho deve estar voltada para a auto-organização da comunidade escolar, sendo uma resposta possível para a questão da participação democrática.

Lembremos as elaborações apresentadas pelo PLACTS e sua contribuição intelectual genuinamente latino-americana. Um apontamento fundamental é que o controle popular das políticas públicas dinamiza o Projeto Nacional capaz de romper com a lógica autoritária que estruturou as formações sociais da região e suas matrizes científicas e tecnológicas. A perspectiva que ressalta as imbricações entre a ciência, a tecnologia e a sociedade e entre estas e os conteúdos escolares insere a ambição democrática do PLACTS nas políticas educacionais. A questão, entretanto, já estava presente muitos anos antes nas reflexões de Pistrak (2018) sobre a escola politécnica.

O autor mostra que a função ideológica da escola ocidental se baseia em um tipo de auto-organização e em uma forma de democracia limitados à lógica do poder estatal que organiza as classes dominantes. Assim são, em sua leitura, as obrigações democráticas do cidadão divulgadas pela escola hegemônica da modernidade: “Em primeiro lugar, ele deve respeitar a lei; em segundo lugar, de tempos em tempos, em datas determinadas, deve ir a uma seção eleitoral e dar seu voto a este ou aquele candidato em um ou outro órgão municipal ou estadual, e isto é tudo.” (Pistrak, 2018, p. 223-224).

A escola politécnica, ao contrário, envolve a participação das massas na construção do Estado, nas políticas por ele assumidas e nos rumos do desenvolvimento nacional. Por isso, a própria definição dos currículos deve contar com a auto-organização dos estudantes, que não é restrita ao ambiente físico da escola, mas se vincula com a territorialidade na qual está imersa. Articuladas a uma percepção desconfiada da neutralidade da ciência e ao trabalho socialmente útil, as experiências auto-organizadas consolidam a capacidade de o estudante se situar criticamente no mundo, atingindo níveis gradativamente mais elevados de autonomia política e intelectual. Esse envolvimento na participação dos rumos da escola pode ocorrer, segundo propõe Pistrak (2018), das mais diversas formas: grupos auto-organizados, coletivos infantis, sistema de justiça exercitado e simulado entre os estudantes, modelos de organização do trabalho nas atividades prático-pedagógicas, etc. Em qualquer metodologia assumida, a auto-organização tem como base o envolvimento ativo das massas na edificação de um Estado efetivamente democrático.

Enfim, vale destacar que as indicações conclusivas deste ensaio não devem ser transpostas, sem mediações, da realidade russa da década de 1920 para o Brasil ou a América Latina atuais. Nossa escola, sua dualidade estrutural e a própria conformação das classes sociais na região têm especificidades diferentes da Rússia revolucionária. No entanto, os traços de dependência e desigualdade e a forma como impõem limites ao cumprimento do direito universal à escolarização são bastante semelhantes em ambas as realidades. Isso nos permite articular ideias contemporâneas, formuladas como demarcações contra os princípios conservadores do positivismo, a propostas surgidas num caldo político e cultural tão rico quanto a humanidade poucas vezes pôde assistir. A Revolução Russa, aliás, desenvolveu teoricamente o que aparecia já em estado prático na obra de Marx e Engels, abrindo passagem para todo um processo de elaboração conceitual das pedagogias críticas, do qual, como vimos, importantes autores brasileiros são tributários.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nossas reflexões são respostas preliminares ao problema apresentado por Von Linsigen (2007), Auler e Bazzo (2001) e, indiretamente, diversas outras pesquisas da área CTS: como enriquecer os estudos educacionais com a crítica às concepções reducionistas de ciência e tecnologia? Não se trata de um problema que será resolvido com o praticismo ativista ou com a teorização dogmática. A história da humanidade pós-Revolução Industrial foi capaz de produzir práticas intensamente humanas e filosoficamente potentes, a partir da organização de experiências educacionais questionadoras do paradigma da neutralidade. Por isso, apresentamos contribuições ainda inacabadas e que carecem de olhares mais profundos tanto para as pedagogias críticas quanto para a tríade ciência, tecnologia e sociedade.

Nessa complexidade, ressalta-se a importância de enxergar problemas educativos à luz das realidades concretas de cada formação social. Não à toa, destacamos as características da América Latina que produziram os traços de dependência econômica, cultural e tecnológica e os Estados burgueses autocráticos (Fernandes, 2014) que limitam a participação democrática. Produzir, sistematizar e transmitir o conhecimento científico nessa região do globo são tarefas que impõem exigências específicas. Mais do que isso, colocam, na ordem do dia, a urgência de conquistas já efetivadas há mais de 200 anos em países do centro do capitalismo e, até hoje, não superadas na América Latina.

Interessante observar, por exemplo, retrocessos recentes sofridos pelas políticas de ensino médio e educação profissional no Brasil. Pesquisas (Ferretti e Silva, 2017; Silva, 2018; Araújo, 2019) têm demonstrado que a lei n.° 13.415/2017 impôs um modelo de formação que aprofunda a dualidade estrutural e retoma as visões “profissionalizantes” do período da ditadura militar. Araújo (2019) evidenciou que a fragmentação do currículo em parcelas socialmente diferentes passa a ser a regra, criando-se o que se denominou “itinerário curricular dos pobres”. Além de uma restrita base curricular comum a todos os estudantes, percursos poderão ser escolhidos pelos jovens a partir de arranjos definidos “[…] a critério dos sistemas de ensino […]” (Araújo, 2019, p. 67). A hipótese do autor é que os saberes preponderantemente técnicos e manuais estarão pré-direcionados aos jovens trabalhadores.

Trata-se de mais um capítulo de uma história constituída de rupturas, continuidades e contradições. Retomando a discussão que inicia este artigo, aí reside a falta de identidade do ensino médio brasileiro e latino-americano. Esperamos contribuir para uma visão sobre o problema que permita estabelecer vínculos entre a escola e as novas perspectivas de análise das relações entre ciência, tecnologia e sociedade. A busca da autonomia política, cultural e econômica de nossa região é a chave para pensarmos a questão, aprofundando o estudo de experiências já construídas em países com histórias semelhantes. Nesse sentido, assumir os princípios CTS em um prisma crítico exige fazê-los dialogar com correntes de pensamento que já os apontavam implicitamente décadas antes de seu surgimento.

Assim, a dimensão prática de nossa proposta busca, na concepção da escola politécnica, o conteúdo educacional da perspectiva CTS. A crítica à neutralidade da ciência e o tipo de participação política associados a essa concepção podem contribuir para a elaboração de currículos, opções didáticas e construções epistemológicas no âmbito da educação tecnológica.

O ponto de vista teórico da proposta reside na dialética do trabalho — força humana transformadora da natureza e habilidade específica que cria valores de uso. A partir daí, a compreensão da dinâmica do modo de produção capitalista e a projeção de modelos produtivos que subordinem o capital ao trabalho permitem interpretar a concepção como uma pedagogia crítica da ciência e da tecnologia.

Nesses termos, partindo do materialismo histórico-dialético, defendemos que o conceito de politecnia pode ser uma mediação para a articulação entre a perspectiva CTS e o campo da educação. A tese recebe contribuições do pensamento pedagógico soviético, mas não deve se limitar a ele. As experiências em ciência, tecnologia e educação construídas pela Revolução Russa do início do século passado são pontos de partida para reflexões, abertura de novas perspectivas e balanços críticos. Faz-se necessário ampliar esse olhar, consolidando o compromisso ético-político revelado pela perspectiva CTS.

1Utilizamos a expressão “perspectiva” conscientes da existência de terminologias diversas para tratar de CTS: abordagem, visão, estudos, enfoque, área, campo, movimento, etc. A questão é polêmica e enseja discussão aprofundada, de maneira que optamos apenas por situar previamente o leitor. Neste trabalho, as relações entre Ciência, Tecnologia e Sociedade constituem uma posição epistemológica que permite analisar cientificamente o processo educativo, o que nos leva a adotar a noção de perspectiva, ainda que deva ser submetida a um debate mais rigoroso se pensada de modo não restrito à educação.

2Um estado da arte atualizado do campo Trabalho-Educação pode ser encontrado em Bomfim (2016).

3As três possibilidades foram assim definidas pelo Decreto em seu Art. 4°: “§1° A articulação entre a educação profissional técnica de nível médio e o ensino médio dar-se-á de forma: I - integrada, oferecida somente a quem já tenha concluído o ensino fundamental, sendo o curso planejado de modo a conduzir o aluno à habilitação profissional técnica de nível médio, na mesma instituição de ensino, contando com matrícula única para cada aluno; II - concomitante, oferecida somente a quem já tenha concluído o ensino fundamental ou esteja cursando o ensino médio, na qual a complementaridade entre a educação profissional técnica de nível médio e o ensino médio pressupõe a existência de matrículas distintas para cada curso […] III – subseqüente, oferecida somente a quem já tenha concluído o ensino médio.” (Brasil, 2004, grifo nosso)

4 Pistrak (2018, p. 42-43, grifos do original) trabalha com o conceito de atualidade para tratar da questão: “A tarefa fundamental da escola é estudar a atualidade, dominá-la, penetrar nela. […] Mas não se deve apenas estudar a atualidade. Isto, dirá o leitor, quase toda escola faz. A escola deve educar nos ideais da atualidade, a atualidade deve ser um amplo rio que deságua na escola, mas deságua de forma organizada. A escola deve penetrar na atualidade e familiarizar-se com ela, transformando-a ativamente.”.

Financiamento: O estudo não recebeu financiamento.

REFERÊNCIAS

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Recebido: 17 de Março de 2021; Aceito: 03 de Agosto de 2022

Lucas Barbosa Pelissari é doutor em Políticas Públicas e Formação Humana pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). E-mail: lucasbp@unicamp.br

Conflitos de interesse: O autor declara que não possui nenhum interesse comercial ou associativo que represente conflito de interesses em relação ao manuscrito.

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