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Revista Brasileira de Educação

Print version ISSN 1413-2478On-line version ISSN 1809-449X

Rev. Bras. Educ. vol.28  Rio de Janeiro  2023  Epub July 12, 2023

https://doi.org/10.1590/s1413-24782023280063 

Artigos

Desenho teórico-metodológico da escrita comparada: produção intelectual de crítica sobre a Base Nacional Comum Curricular (2017 a 2019)

DISEÑO TEÓRICO-METODOLÓGICO DE LA ESCRITURA COMPARATIVA: PRODUCCIÓN INTELECTUAL CRÍTICA EN LA BASE CURRICULAR NACIONAL COMÚN (2017 A 2019)

Fabiany de Cássia Tavares SilvaI 
http://orcid.org/0000-0002-7106-690X

IUniversidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, MS, Brasil.


RESUMO

Este texto expõe os percursos de construção metodológica e fundamentação teórica da escrita comparada, de um lado, aproximada do sentido mais amplo da linguagem, isto é, o autor e o leitor crítico no sentido dos discursos; de outro, orientada pela comparação, no sentido metodológico. Para tanto, trabalha com parte da produção intelectual de crítica eleita sobre a Base Nacional Comum Curricular, de 2017, para inventariar a diversidade temática, teórica, metodológica e política pelas quais os autores registram suas indagações, apontam discussões e fixam metas de análise, o que per se constitui empreendimento complexo. Diante disso, escreve críticas capazes de decodificar a produção de sentido para/no campo curricular, vinculada a uma economia das trocas simbólicas, caracterizada por uma lógica regida pelas condições sociais de produção, que respondem à eficácia simbólica da comunicação escolar.

PALAVRAS-CHAVE comparação; escrita; Base Nacional Comum Curricular; dialogismo

RESUMEN

Este texto expone los caminos de construcción metodológica y fundamentación teórica de la escritura comparada, por un lado, más cercanos al sentido más amplio del lenguaje, es decir, el autor y el lector crítico en el sentido de los discursos; por otro, orientado por la comparación, en el sentido metodológico. Por ello, se trabaja con parte de la producción intelectual de críticos electos sobre la Base Curricular Nacional Común, de 2017, para inventariar la diversidad temática, teórica, metodológica y política a través de la cual los autores registran sus indagaciones, señalan discusiones y análisis de conjuntos. objetivos, lo que constituye per se una empresa compleja. Por tanto, escribe críticas capaces de decodificar la producción de sentido para / en el campo curricular, ligada a una economía de intercambios simbólicos, caracterizada por una lógica regida por las condiciones sociales de producción, que responden a la efectividad simbólica de la comunicación escolar.

PALABRAS CLAVE comparación; escritura; Base Nacional Común Curricular; dialogismo

ABSTRACT

This text exposes the paths of methodological construction and theoretical foundation of comparative writing, on the one hand, closer to the broader sense of language, that is, the author and the critical reader in the sense of the discourses; on the other, oriented by comparison, in the methodological sense. To this end, it works with part of the intellectual production of critics elected on the Common National Curriculum Base, of 2017, to inventory the thematic, theoretical, methodological, and political diversity through which the authors register their inquiries, point out discussions and set analysis goals, which per se constitutes a complex undertaking. In view of this, he writes critiques capable of decoding the production of meaning for/in the curricular field, linked to an economy of symbolic exchanges, characterized by a logic governed by the social conditions of production, which respond to the symbolic effectiveness of school communication.

KEYWORDS comparison; writing; Common National Base; dialogism

NOTAS INTRODUTÓRIAS

[…] o ato de fala impresso, constitui igualmente um elemento da comunicação verbal. Ele é objeto de discussões ativas sob a forma do diálogo e, além disso, é feito para ser aprendido de maneira ativa, para ser estudado a fundo, comentado, criticado no quadro do discurso interior, sem contar as reações impressas, institucionalizadas, que se encontram nas diferentes esferas da comunicação verbal (críticas, resenhas, que exercem influência sobre trabalhos posteriores, etc.). (Bakhtin, 1986, p. 123)

Este texto tem como foco a exposição dos percursos de construção metodológica e fundamentação teórica da chamada escrita comparada, de um lado, aproximada do sentido mais amplo da linguagem, isto é, o autor e o leitor crítico no sentido dos discursos; e, de outro, orientada pela comparação, no sentido metodológico.

Esse último sentido resulta do uso de uma versão do método comparado intitulada “estudos comparados”,1 que suporta outra representação ou outro design qualitativo da comparação, cruzando as áreas de educação, história da educação e sociologia comparadas. Tal cruzamento tem a pretensão de procurar “[…] reunir o que vulgarmente se separa ou distinguir o que vulgarmente se confunde […]” (Bourdieu, 1975, p. 29) e que “[…] não é suscetível de ser estudado separadamente das investigações em que é empregado.” (ibidem, p. 11).

Utilizamos, como fontes, parte da produção intelectual de crítica sobre a Base Nacional Comum Curricular (BNCC — Brasil, 2017), selecionada e analisada em pesquisa finalizada,2 ancorada nas técnicas do estudo comparado, particularmente direcionado para a apreensão da descoberta, ou não, de regularidades, a percepção de deslocamentos e transformações, a construção de modelos e tipologias, a identificação de continuidades e descontinuidades, semelhanças e diferenças, explicitando as determinações mais gerais que regem os debates curriculares. A produção intelectual de crítica, nesta proposição, torna-se imprescindível para inventariarmos a diversidade temática, teórica, metodológica e política pelas quais os autores registram suas indagações, apontam discussões e fixam metas de análise, o que per se constitui empreendimento complexo. Contudo, nos limites deste texto, esse exercício recaí sobre uma amostra — diferentemente do executado na pesquisa informada, que analisou 50 artigos selecionados nos periódicos da área do Currículo (Teias, e-Curriculum, Currículo sem Fronteiras, Espaço do Currículo), particularmente nos dossiês produzidos pela Associação Brasileira de Currículo (ABdC) — da pesquisa em Ciências Humanas e Sociais (Investigación Cualitativa e Pesquisa Qualitativa).

Ainda que na condição de amostra, os textos eleitos possuem críticas capazes de oferecer leituras que levam em consideração as tensões e as disputas no campo de produção do conhecimento sobre currículo, ao mesmo tempo que, no estabelecimento dessa crítica, balizam o aspecto ideológico do signo “currículo oficial” assumido pela BNCC (Brasil, 2017). As críticas decodificam a produção de sentido para/no campo curricular, vinculada a uma economia das trocas simbólicas, caracterizada por uma lógica regida pelas condições sociais de produção, que respondem à eficácia simbólica da comunicação escolar.

LINGUAGEM, ESCRITA E COMPARAÇÃO DA/NA ESCRITA COMPARADA

Vivo no universo das palavras do outro. E toda a minha vida consiste em conduzir-me nesse universo, em reagir às palavras do outro (as reações podem variar infinitamente), a começar pela minha assimilação delas (durante o andamento do processo do domínio original da língua), para terminar pela assimilação das riquezas da cultura humana (verbal). (Bakhtin, 1997, p. 383)

Na condição de autores de uma escrita crítica e de leitores críticos, assumimos a autoria e a discursividade na relação alteritária com os outros críticos, na escuta, no diálogo, no dissenso e no consenso. Fundamentamos, nessa relação, a perspectiva que permite que o outro se encontre determinado pela reflexão conjunta e, talvez, pelo exercício de vigilância constante.

A leitura que fazemos da produção intelectual de crítica — ou dos textos dos outros, ou dos outros nos textos — emerge, neste texto, a partir da interpretação e da análise que consideramos as únicas possíveis e certas, na perspectiva da comparação dos textos e dos outros, tornada estranha a escrita.

A centralidade da palavra na escrita pretendida circunscreve-se a uma questão ética, ou até meta-ética, pois as palavras tomam sentido no embate curricular assumidamente centrado em posições ideológicas. Dessa forma, torna-se possível o consenso sobre o papel regulador das palavras nesse embate, caracterizado pelo jogo de linguagem, que confere à palavra a orientação específica chamada por Bakhtin (2003) de mobilidade, uma vez que o meio social organiza a enunciação ou a manifestação da linguagem.

Para haver tal manifestação, é necessário que qualquer material linguístico entre no plano do discurso, por meio de enunciados escolhidos na percepção do movimento, do processo, da luta das posições que, muitas vezes, levam ao dissenso e não ao consenso, mas auxiliam na produção escrita situada, isto é, “[…] condicionada pela singularidade e pela insubstitutibilidade do meu lugar no mundo: porque nesse momento e nesse lugar, em que sou o único a estar situado em dado conjunto de circunstâncias, todos os outros estão fora de mim.” (Bakhtin, 2003, p. 21).

O registro das múltiplas linguagens, expressões de distribuições espaciais e simbólicas, decorativas (indicando valorações diferenciais das atividades e dos subgrupos institucionais), ou linguagens acionadas pelos agentes estudados em diferentes contextos e situações, indica horizontalidades ou assimetrias nas estruturas de poder institucional.

Apreendemos, assim, o discurso do outro sobre o objeto, ao mesmo tempo que reconhecemos que tanto a escritura quanto a leitura de um dado texto são sempre interdiscursivas e intersubjetivas. Para ler, é preciso entrar na teia discursiva que o texto elege para ser construído; para escrever, também estamos diante do discurso do outro sobre o objeto.

Essa escrita, cujas relações de comunicação se alimentam das relações de força, que ocorrem sob uma forma transfigurada, não se livra do “[…] efeito ideológico de absolutização do relativo […]” (Bourdieu, 1988, p. 30). A transfiguração é operada por um conjunto de circunstâncias reveladas pela aquisição e pela acumulação de capitais específicos (econômico, linguístico, científico, esportivo, etc.), que implicam condições objetivas e, particularmente para nós, aquela que expressa a comparação.

A escrita comparada depende das posições e disposições dos habitus, que conferem um “sentido do jogo” mais ou menos adequado às condições de produção de sentidos e significados sobre as posições assumidas e aos processos de categorização produzidos no e pelo campo acadêmico, que necessariamente pressupõem a instauração de uma realidade tal como é discursivamente construída.

Nesse caso, a realidade é remetida ao campo curricular, determinado por discursos e textos que, de um lado, incursionam pela impossibilidade de desvinculação de seus falantes e de seus atos, das esferas políticas, econômicas, sociais, educativas e dos valores ideológicos que a norteiam; de outro, constituem-se em fenômenos sociodiscursivos, vinculados às condições concretas da sua produção (autor e destinatário mantêm relações dialógicas com outros textos, textos-enunciados).

Essa produção aproxima-se da comparação, no limite da escrita comparada, não pelo processo de estabelecer a relação entre a palavra comparada e a palavra em comparação, mas por um processo de construção de enunciados capazes de estabelecer outras maneiras de ver, ler, perceber e representar, orientadas por mecanismos específicos de capitalização que apontam, fundamentalmente, para a construção de um subcampo linguístico com rituais enunciativos em instância enunciativa mais específica, a comparação.

À primeira vista, somos instados a negar a separação das condições sociais de produção e de realização da escrita comparada e, ao mesmo tempo, registrar os ganhos teóricos e metodológicos dessa escrita, que têm a ver, entre outras coisas, com uma melhor exposição de seus próprios objetos, organizada pelo princípio da mudança entre os modos de analisar os fatos. Tal mudança é operada pela complexidade de diversas ordens que envolvem a interação verbal social dos interlocutores, porque

[…] a forma e o conteúdo do que pode ser dito e do que é dito dependem da relação entre um habitus linguístico que se constitui na relação com um campo de um determinado nível de aceitabilidade (isto é, um sistema de chances objetivas de sanções positivas ou negativas para as performances linguísticas) e um mercado linguístico definido por um nível de aceitabilidade mais ou menos elevado. (Ortiz, 1983, p. 72)

A escrita resultante dessa forma e conteúdo não presume representar a consistência ou a homogeneidade, segundo a qual toda representação dá forma às leis de escritura. É, antes, presidida pela lógica da distinção (como prática) e funciona no mercado linguístico, delimitado pela comparação no campo educativo, que antecipa as condições em que os discursos são recebidos.

Historicamente, essas recepções ancoram-se na premissa de uma “operação mental”, cujo objetivo mais conhecido (mas não único) se define por controlar “variáveis”, na perspectiva de testar proposições causais. Esse contexto é permeado por técnicas específicas de controle dessas variáveis — da experimental, passando pela estatística, culminando na histórica —, com diferenças em tipo, efetividade e utilidade científica, mas percebidas como esforços para explicar semelhanças e diferenças de fenômenos sociais, políticos, econômicos e educativos, quase sempre entre países.

A par dessa explicação, introduzimos a defesa veiculada por Schriewer (1990, p. 39): “[…] disposição para redefinir categorias meramente descritivas e diferenciais como ‘similitudes/dissimilitudes’ em termos valorativos como ‘igualdade/desigualdade’ e de associar esta última com um esquema contrastivo de ‘identidade/diferença’.”.

Buscamos nos afastar de paralelismos nas análises do desenvolvimento interno de um dado objeto, em um tempo histórico e social e de um campo educativo em relação a outro campo, com a pretensão de exercitar sincronismos e diacronismos necessários para apreendermos a relação desse objeto com estruturas internas e/ou condições externas que definem seu interesse social para a pesquisa.

Desse modo, discorremos sobre a linguagem como ação discursiva. Para tanto, tomamos, como corpus investigativo, artigos que dão forma à produção intelectual de crítica no exercício de apresentação da escrita comparada.

ESCRITA COMPARADA DA CRÍTICA INTELECTUAL ÀS VERSÕES DA BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR

[…] um documento de caráter normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica, de modo a que tenham assegurados seus direitos de aprendizagem e desenvolvimento, em conformidade com o que preceitua o Plano Nacional de Educação (PNE). (Brasil, 2018, p. 7, grifo nosso)

A relação entre a política educacional e o currículo, permanente no campo educacional, emerge, no decorrer da primeira década do século XXI, com a perspectiva de reconfiguração da política de conhecimento oficial, solicitada desde a Constituição Federal de 1988, reapresentada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional n°. 9394, de 1996, bem como no Plano Nacional de Educação, de 2014, em seus princípios e em suas metas.

As tentativas de respostas a essa reconfiguração, de um lado, encontram-se alimentadas pela/na produção de textos/documentos curriculares, portadores da função de reconstrução do significado dos conteúdos escolares e, de outro, controladas pelo deslocamento dos sentidos e das fronteiras entre público, privado, filantrópico e não governamental, informados pelos princípios de mercado tornados capazes de ofertar instrumentos voltados para a gestão de qualidade, até agora não evidenciada pelo setor público.

Depreendemos, nesse contexto, forte presença de discursos normativos, envoltos nas premissas da generalização e do universalismo, endereçados e reproduzidos para/pelo Ministério de Educação que, desde 2015, enumera novas concessões e vontades para a/na formulação da BNCC (Brasil, 2017) para a Educação Básica.

Contudo, tais concessões e vontades parecem desprezar o conjunto de informações atualizadas e disponíveis para um debate qualitativo sobre a relevância do estabelecimento de mínimos curriculares e sua disponibilização em contexto democraticamente estabelecido, mas que sofre as reorientações do capital.

A produção da BNCC (Brasil, 2017) suporta e, ao mesmo tempo, promove um currículo por “competências” de cariz mais tecnicista, que evidencia a sua preferência pelos conteúdos como um “[…] instrumento de gestão do ensino […]” (Macedo, 2015, p. 899), com a intenção de projetar a performance do aluno, como, aliás, o próprio MEC descreve:

As competências e diretrizes são comuns, os currículos são diversos. O segundo se refere ao foco do currículo. Ao dizer que os conteúdos curriculares estão a serviço do desenvolvimento de competências, a LDB orienta a definição das aprendizagens essenciais, e não apenas dos conteúdos mínimos a ser ensinados. (Brasil, 2017, p. 11)

Diante disso, surgem e se consolidam políticas de avaliações em larga escala, independentes do contexto da escola, que sustentam a BNCC (Brasil, 2017) não só como política de conhecimento oficial, mas como instrumento de política educacional, que consubstancia um projeto de nação, estando em jogo disputas, referências e ideologias.

A par disso, elegemos, como fonte para a exposição aqui pretendida, cinco artigos, selecionados a partir de critérios definidos previamente, a saber:

  1. disponíveis na literatura produzida por periódicos assumidos como da área do Currículo, ou dedicados à pesquisa na área das Ciências Humanas e Sociais;

  2. publicados na delimitação temporal de 2017 a 2019, balizada pelo ano em que se publicou e homologou a terceira versão e o período que inseriu, em uso e debate, a versão homologada;

  3. a presença nas palavras-chave dos termos “currículo”, “política curricular”, “teoria curricular” e “conhecimento”; e

  4. a presença de uma escrita portadora de autoridade, objetividade e precisão crítica.

Entendemos tal autoridade, na perspectiva da certificação da qualidade do conteúdo do material em relação às discussões sobre currículo; a objetividade, nas abordagens justas e atentas a todas as informações anunciadas para as análises; e a precisão crítica, na segurança e confiança, apresentada pelos autores, na exposição dos dados, bem como na utilização de fontes de informações, documental e literária, consagradas na área.

Nesse contexto, temos os seguintes textos:

  • Mas a escola não tem que ensinar? Conhecimento, reconhecimento e alteridade na teoria do currículo (Currículo sem Fronteiras, v. 17, n. 3, 2017);

  • Base Nacional Comum Curricular no brasil: regularidade na dispersão (Revista Investigación Cualitativa, v. 2, n. 2, 2018);

  • Currículo e conhecimento escolar como mediadores epistemológicos do projeto de nação e de cidadania (e-Curriculum, v. 16, n. 3, 2018);

  • A concepção de currículo nacional comum no PNE: problematizações a partir do paradigma neoliberal (Revista Espaço do Currículo, vol. 11, n. 1, 2018);

  • Possíveis explicações para a semelhança entre as reformas educacionais atuais e as propostas na época da ditadura civil-militar no brasil (Teias, v. 20, n. 58, 2019).

Considerando ainda que “[…] toda escolha deriva de arbitragens que privilegiam certos aspectos em detrimento de outros igualmente relevantes.” (Valle, 2014, p. 18), registramos que, em conjunto, esses textos transitam entre escritas especializadas em fixar sentidos (oriundos das teorias críticas e pós-críticas), competências literárias (pós-leituras) e, particularmente, abstraídas de situações particulares dirigidas a uma audiência universal.

Este registro se alimenta metodologicamente da eleição de áreas de comparação3 por critérios considerados de processo, relacionados aos elementos existentes para apoiar e manter a escrita comparada, isto é, os agentes, os discursos e a escola e o currículo.

Os agentes são identificados pela posição que ocupam no espaço social, nos diferentes campos (político, curricular e acadêmico) em que atuam, o que depende da relação das forças em cada um deles, de acordo com a lógica típica de cada campo; os discursos, sob a perspectiva das distintas enunciações que habitam muitas vozes sociais, que se completam, polemizam e/ou respondem umas às outras; a escola e o currículo delimitam modelos de interpretações do que pode ser significado como escola e, em certa medida, como escola e currículo, reiterando o enfrentamento da violência simbólica presente nos textos/documentos curriculares.

Vale dizer que, na condição de áreas de comparação, organizam a categorização, sendo essa o exame das informações disponíveis, a partir do exercício de rastreamento e da identificação das informações sobre as condições de sua produção, não limitadas a uma série de fatos observáveis, mas idealizadas de forma elaborada, segundo a qual, na ação da comparação, se expressam como modelos de explicação.

A BNCC (Brasil, 2017) tem sido analisada, desde sua proposição, como veículo que consolida o retrocesso da/na educação brasileira por não representar os diferentes aspectos da relação mantida entre o Estado e seus cidadãos e vice-versa. Tais aspectos transitam entre o exame da construção da democracia até a consolidação do sistema educacional brasileiro, por meio de diferentes enfoques, e não somente o institucional. Isso porque esse exame não consegue explicar a ambiguidade entre o surgimento de uma economia de mercado e uma sociedade passiva e desconfiada dos seus representantes eleitos e de suas instituições políticas como fundamento da democracia.

O documento curricular e normativo produz condições adversas para o fortalecimento democrático e a institucionalização de uma cultura política participativa, já despercebidos na maneira pela qual se manifesta, com destaque para a sua condição de “salvador” do processo de escolarização de uma nação, supostamente realizada sem currículo. Isso porque “[…] espera-se que a BNCC ajude a superar a fragmentação das políticas educacionais, enseje o fortalecimento do regime de colaboração entre as três esferas de governo e seja balizadora da qualidade da educação.” (Brasil, 2017, p. 6).

Articulada por diferentes agentes civis, públicos e privados, a BNCC (Brasil, 2017) se caracteriza como um objeto inteligível de “conhecimento”, colocando os objetos educativos (direitos de aprendizagem/objetivos/expectativas/habilidades/conhecimentos/conteúdos) como capazes de reparar os problemas educacionais, sendo que os problemas da escola brasileira estão além do quesito “qualidade” (Macedo, 2014; Laclau apudCunha e Lopes, 2017). Dessa forma, conectar-se a

‘boa’ qualidade da educação à BNCC como promessa de que os educandos serão sujeitos criativos, autônomos, participativos, cooperativos não é somente ilusório como é perverso. Não apenas por ser uma promessa impossível de ser cumprida, mas também por ser uma promessa baseada no privilégio de interesses e projetos não vinculados diretamente aos múltiplos e diferentes contextos singulares dos estudantes como sujeitos da educação. (Cunha e Lopes, 2017, p. 31)

Para esses sujeitos, a BNCC passa a ser “[…] entendida como um direito de todos, como garantia de participação social pelos estudos escolares e como obrigação do Estado de garantir-lhe as condições de exequibilidade, para todo o povo brasileiro […]” (Almeida e Silva, 2018, p. 605), em atendimento às leis brasileiras “[…] que definem, de 1988 a 2014, a necessidade de Base Curricular para o País.” (ibidem, p. 605).

Tal necessidade alimentada por uma cronologia histórica que desconsidera o impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff, momento em que o Ministério da Educação (MEC), em relação à BNCC, dá continuidade a um processo marcado por rupturas em relação ao conteúdo e às concepções que ela representava. Nesse contexto, deslocam-se as negociações políticas e entra em cena o Movimento pela Base,4 formado por intelectuais orgânicos representantes de grupos educacionais privados, respondendo a uma demanda articulada qualidade/equidade.

Em Cunha e Lopes (2017, p. 31) apreendemos críticas a essa demanda, iniciadas pelo posicionamento contrário à ideia de que a BNCC “[…] não é um instrumento de prescrição ou hegemonização […]” seguida da operação com a premissa da “[…] elaboração de um texto, suposto como livre de ambiguidades, que denuncia a presunçosa fé no controle de sua leitura.”.

Interessa afirmar que o debate em torno dessa premissa reacende o atendimento aos “[…] interesses de grandes grupos internacionalizados […]” (Almeida e Silva, 2018, p. 604), entre outros, que representam

Entidades como a União de Dirigentes Municipais da Educação (UNDIME), o Fórum Nacional dos Diretores/as de Faculdades de Educação (FORUMDIR), a União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação (UNCME), a Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação (ANFOPE), a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação (CNTE), dentre outras, juntamente com organizações não-governamentais de grupos civis, como o Movimento pela Base Nacional Comum, ou ainda por ações sustentadas por grandes conglomerados financeiros, como a Fundação Lemann, o grupo Roberto Marinho (associado à Rede Globo de Telejornalismo) e o Banco Itaú […]. (Cunha e Lopes, 2017, p. 25)

Um projeto educativo, para constituir a educação formal de uma nação (Almeida e Silva, 2018, p. 605), precisa estar necessariamente “[…] marcado pela construção da coesão social e não apenas marcado por atender a requisições de alguns grupos econômicos hegemônicos.”. Desconsiderando essa necessidade, a BNCC situa-se na metade do caminho de um anúncio de diretrizes, sem explicitar o contexto e os diagnósticos a que pretende responder (ibidem).

Cunha e Lopes (2017) aprofundam esse território de não resposta, construindo críticas ancoradas no registro discursivo, gestado na perspectiva pós-fundacional, cuja ancoragem e orientação partem da “noção derridiana de nome, de texto, contexto interpretativo e disseminação como um operador teórico-estratégico para pensar o documento”. Vale ressaltar que defendem o que se constitui como um contexto interpretativo pelo qual se pode ler a BNCC como o que falta à educação de “boa” qualidade (Cunha e Lopes, 2017), isto é:

Sob o nome BNCC, vem sendo projetado um conjunto de práticas pelas quais se dá a vinculação entre educação-conhecimento-equidade, parecendo tornar equivalentes as noções de democracia (democratização), direito, e distribuição de conhecimentos como bens (objetos) a serem apropriados. Nos textos da política por nós investigados, tais termos são intercambiados, substituídos uns pelos outros de forma naturalizada. […] Na luta política curricular atual, o nome BNCC perfaz um suplemento do que falta à educação e do que (se supõe ser/) será garantido pela definição de expectativas de aprendizagem […] Inserindo a discussão do direito à aprendizagem, precipita a ideia de que assegurar macro direitos, […] compreende eleger “os conhecimentos que contribuem para a realização do direito de aprender e desenvolver-se nas etapas da Educação Básica” […] O nome BNCC interpõe-se como a busca do conforto que a promessa de uma educação plena (a produção de uma identidade nacional idealizada, consequente à garantia dos conhecimentos) diz poder realizar. […] faz supor haver “um selo oficial de verdade” (Lopes, 2015a) para “um conjunto de conteúdos que adquire o poder de conhecimento essencial a ser ensinado e aprendido” (ibidem, p. 26, 28-30, grifo nosso).

Desses discursos, apreendemos que a sociedade e o conhecimento aparecem objetificados, visto que, além das apostas em um conhecimento suposto como essencial e na formação idealizada de sujeito educado, impossível de ser garantido como tal (Lopes apudCunha e Lopes, 2017),

[…] se assenta na crença da educação como totalidade, na leitura estrutural da sociedade como totalidade fechada. Frente a essa totalidade, a educação, via BNCC, desempenha a tarefa de salvação, de sutura da falta de qualidade. […] Esse maior detalhamento curricular, reafirma o currículo como guia, limitando o ato educativo ao trabalho de conformação das relações e dos sujeitos dos diferentes espaços-tempos educativos ao que está previamente determinado pelas epistemologias e pelas experiências avalizadas como ‘mais adequadas’. […] é projetado o apagamento das diferenças constitutivas dos contextos visando algo tratado, em uma concepção restritiva de currículo, como comum. […] “o nível de especificação dessa ‘base comum’, explicitado nas DCN [Diretrizes Curriculares Nacionais, 1998a], é muito baixo quando comparado com outros países (mesmo com aqueles que atribuem grande autonomia às suas escolas, como Finlândia e Nova Zelândia)”, […] Além dessa objetificação do que defendemos ser imponderável e intangível, tais objetos são julgados como capazes de poder reparar os problemas educacionais. (Cunha e Lopes, 2017, p. 26 e 27)

Dessa forma, “Conectar educação e BNCC como garantia de equidade é uma simplificação mitificadora desejosa de excluir da educação o que não se pode controlar ou enclausurar, não se pode sequer saber.” (Cunha e Lopes, 2017, p. 33). Ressignifica-se uma promessa falida, isto é, de assegurar conhecimento comum a todos.

Macedo (2017, p. 540), retornando à teoria curricular “[…] entendida como discurso normativo que delimita o que pode ser significado como currículo e, em certa medida, como educação e escola […]”, defende que “[…] a educação fala do outro como aquilo que ainda não foi inventado […]”. Sustenta ainda “[…] que a teoria do currículo tem sancionado um sentido para a educação que envolve a conformação da subjetividade a um projeto de re-conhecimento […]” (Macedo, 2017, p. 545), quando o necessário está em retornar ao papel de “[…] criação de ferramentas para distinguir, analiticamente, entre saber escolar e não escolar.” (ibidem, p. 544).

Assim, caberia à teoria um papel normativo de estabelecer critérios para decisões curriculares a partir da distinção estrutural entre conhecimento e saber-experiencial. Apenas o primeiro deveria fazer parte do currículo, na medida em que sua aquisição “requer estruturas curriculares localizadas nas escolas e o apoio de professores com conhecimentos especializados e ligações com as universidades que os torne capazes de selecionar, organizar e sequenciar os conteúdos” (Young, 2014a, p. 15). (Macedo, 2017, p. 544).

Na pergunta, “mas a escola não tem que ensinar?”, fundamenta-se a ideia de que o currículo precisa cumprir o papel de criar um re-conhecimento do sujeito na cultura. Inclusive “[…] há tradições da teoria curricular que sancionam o entendimento de que a boa educação deve se pautar num projeto de reconhecimento do sujeito em sua cultura, em sua sociedade, em comunidades racionais.” (Macedo, 2017, p. 540). Mas “[…] reconhecer-se em quê?” (ibidem, p. 540).

[…] a experiência de reconhecimento, transformada em projeto pela teoria curricular, é uma violência ético-política com efeitos perversos sobre a diferença. Isso não implica, no entanto, a insanidade de tomar a experiência de reconhecimento como algo que se pode ou se deve evitar, mas apenas que esta inevitabilidade não torna legítimos projetos de reconhecimento. (ibidem, p. 541)

Em meio a isso, Almeida e Silva (2018, p. 594) discutem sobre “[…] o caráter epistemológico do conhecimento trabalhado por todos no currículo escolar […]”, envolvendo o debate na premissa da “integralidade da educação escolar” (Almeida e Silva, 2018, p. 594) e o “[…] que cabe à finalidade da escola e à sua coerente competência, como agência social de formação do conhecimento de gerações […]” (ibidem, p. 597).

Nesse envolvimento, enumeram duas formas de compreensão da integralidade. A primeira pauta-se na junção das partes de um todo, partindo do pressuposto de que o senso comum, como necessário, supõe “[…] que a educação não sabe direito ainda o que são suas ações constituintes e essenciais. Ao perceber-se a dispersão dos componentes da educação, ajuntam-lhe pedaços que lhe faltam.” (Almeida e Silva, 2018, p. 601). Como segunda definição, “[…] a palavra integral tem a ver com a integralidade a partir de sua essência: coerência conceitual e prática com seus propósitos fundamentais […]” (ibidem, p. 602).

Vários agentes desejam que a escola atenda a seus interesses, mas “A função da escola é fazer a sua parte dentro da óptica da aprendizagem para formar o ser integral.” (Almeida e Silva, 2018, p. 600), ao mesmo tempo que “Educação íntegra, portanto, é aquela que faz sua parte bem-feita: a formação da inteligência sensível, cidadã, pacífica, tolerante, competente, leitora, científica, histórica, situada, artística, reflexiva, libertadora e laboral.” (ibidem, p. 601).

A escola não existe para atender às demandas sociais de grupos específicos, pois

[….] a escola não é instrumentadora do comércio, nem da indústria, nem de serviço de qualquer natureza. Ela é instituída para criar gerações que pensem, se comuniquem, se instruam para escrever, ler, criticar, propor, desenvolver o pensamento científico e tecnológico e serem motivadas e instrumentadas para sempre saberem estudar. Os seus conteúdos não são aqueles eleitos pelas indústrias ou empresas produtoras, mas os dos conhecimentos produzidos pela humanidade nas artes, nas ciências, na literatura, nas matemáticas, nas histórias, nas filosofias, na cultura em geral. […] O domínio do saber escolar é o seu espaço de apresentar, analisar, criticar, dominar linguagens dos instrumentos epistemológicos do mundo material, social e cultural. (Almeida e Silva, 2018, p. 606)

Os autores acrescem, a essa defesa, cinco tópicos para aproximar a construção dessa forma curricular do conhecimento social, cultural, linguístico, científico e histórico, visando a consolidar o trabalho escolar de formação de competências cognitivas dos estudantes. Para tanto, localizam a real função da escola acontecendo em um “[…] lugar de causar espanto, da indignação e da curiosidade epistemológica […] lugar das primeiras análises e diagnósticos sistemáticos […] da compreensão dos fenômenos, pela Cultura.” (Almeida e Silva, 2018, p. 612), bem como uma “[…] intervenção múltipla na sociedade […]” (ibidem, p. 612) e “[…] o lugar da participação criativa e crítica no mundo pela leitura e pela escrita.” (ibidem, p. 614).

Dessa forma,

As propostas curriculares não definem com clareza o que é o conhecimento próprio da escola, o que faz que o debate se torne sem rumo conceitual – e o próprio documento se apresenta contraditório a uma visão coerente do que seja o conhecimento próprio da escola. Os modismos pedagógicos, as pressões econômicas e político-partidárias tornam-se os definidores – voláteis – da escolha de suas finalidades e metodologias. (Almeida e Silva, 2018, p. 605)

Campos e Gisi (2019) incursionam pelo registro das semelhanças nas proposições de currículo desde os anos 1960 até a BNCC, afirmando que a presença das iniciativas privadas e dos órgãos internacionais auxilia no desenvolvimento da educação brasileira como objeto de investimento.

O entendimento da educação como investimento começou a ganhar força a partir dos anos 1960, mas principalmente na ditadura militar. Apesar de estarmos em outro momento histórico, as heranças desse período estão presentes até os dias atuais. Entre as consequências acarretadas à educação, estão a “[…] vinculação da educação pública aos interesses e necessidades do mercado […]”, o “[…] favorecimento à privatização do ensino […]” e “[…] um modelo bem-sucedido de pós-graduação implantado a partir da estrutura organizacional americana e da experiência universitária europeia.” (Saviani, 2008b, p. 291 apudCampos e Gisi, 2019, p. 364).

O termo “qualificação” aparece ligado ao emprego e ao conjunto de direitos dos trabalhadores e “[…] passa a ser substituído por ‘competências’ no vocabulário social e pedagógico.” (Campos e Gisi, 2019, p. 362)

Essas competências são as exigidas pelo mercado de trabalho, o que faz com que o setor produtivo privado (nacional e internacional) seja o principal orientador dos currículos e dos conteúdos, dos métodos de ensino e de avaliação, das políticas públicas educacionais. […] Dentro da lógica capitalista, se sucateia e se critica o público para que o privado seja visto como a solução, estabelecendo um cenário educacional lucrativo. (ibidem, p. 353 e 362)

Impõe-se a necessidade de superação das discussões acerca das influências da nova configuração do neoliberalismo no currículo e na criação de novas políticas públicas e educacionais, para o encontro da compreensão de como ele “[…] é promovido com as novas interfaces da globalidade.” (ibidem, p. 4), que adentram “nos ‘micros espaços’ do Neoliberalismo, para assim compreendermos as estratégias utilizadas pelos neoliberais que defendem a disseminação de soluções ‘privadas’ para os ‘problemas’ da educação pública.” (Ball, 2014, p. 25 apudSousa e Aragão, 2018, p. 4, grifo nosso).

Essa nova configuração do neoliberalismo tem gerado transformações profundas no setor público, promovendo a sua desqualificação, criando novas formas de relação entre o público e o privado, inserindo novas formas de administração nos moldes do mercado. […] No âmbito das políticas educacionais, os efeitos do Neoliberalismo têm transformado o processo de formulação das políticas. Forma-se uma arena de disputa de interesses, abrindo espaço para representantes da sociedade civil, leia-se, pessoas com forte influência política que defendem os interesses dos grupos aos quais representam; organismos multilaterais que atuam em diversos países; instituições do setor privado; sindicatos; associações científicas, dentre outros grupos que disputam espaço e voz na formulação das políticas educacionais. (Sousa e Aragão, 2018, p. 5)

Sousa e Aragão (2018, p. 4) propõem “[…] reflexão sobre o significado das expressões ‘expectativas de aprendizagem’ e ‘direito de aprendizagem e desenvolvimento’ expressas na BNCC […]”, dado que “O mercado passa a se apoiar no Estado para criar as condições favoráveis ao seu desenvolvimento […]”, influenciando “[…] diretamente a formulação de políticas públicas que de forma estratégica tem atingido a subjetividade das pessoas […]”.

As “[…] ideias de homem empreendedor, liberdade individual, habilidade e competência […]” (Sousa e Aragão, 2018, p. 4, grifo nosso) passam a ser enfatizadas “[…] em uma perspectiva que reforça as noções de performatividade e de competências […]” (ibidem, p. 10). Dessa forma,

[…] torna-se improvável uma política curricular abranger toda pluralidade cultural existente no país. […] o sentimento de pertencimento a uma nação é utilizado como uma estratégia para homogeneizar a cultura, o pensamento e possivelmente o controle das ações dos sujeitos. (Sousa e Aragão, 2018, p. 9-10)

Talvez a maior contribuição de crítica à BNCC (Brasil, 2017) não esteja somente na denúncia das perspectivas de homogeneização ou de controle, por sua orientação no direcionamento daquilo que se pretende ensinar na escola, mas na edificação da perspectiva de apreendê-la na relativização. Não se trata de abandonar os preceitos legais para que cada escola os interprete e aplique segundo o seu entendimento. Trata-se de procurar, tanto quanto possível, a problematização da relação entre o sistema, suas tentativas de intervenções e o local com suas formas de encarar o controle.

Alcançamos essa perspectiva, por meio das áreas de comparação, como modelos de explicação, mas também como parte da caracterização de um universo discursivo que, de um lado, representa a posição diferençada dos agentes segundo uma distribuição desigual de recursos materiais e simbólicos e, de outro, segundo um conjunto de esquemas simbólicos que tomam a forma de disposições ou modos potenciais socialmente adquiridos e tacitamente ativados de interpretar e classificar.

NOTAS FINAIS

Ao assumirmos, como objeto desta exposição, os percursos de construção, fundamentação e exercício da escrita comparada, elegemos excertos de artigos inseridos em/retirados de uma relação dialógica marcada pela complexidade dos enunciados, direcionando-nos à compreensão de um documento curricular normativo que, de um lado, se delimita pela relação entre os escritores e suas produções escritas e, de outro, corresponde à capacidade de funcionamento e circulação das críticas como signo ideológico.

Esse exercício sintetiza a ação que operamos sobre o Outro. Isto é, extrapolando a compreensão dos princípios dialógicos identificados por esta autora, no diálogo dos outros autores, mas orientada em função dos interlocutores, dos auditórios sociais. Esses auditórios tornam-se necessidade de interlocução com o movimento de produção de discursos e conhecimentos acerca da BNCC (Brasil, 2017), que transitam portando palavras de autoridade e internamente persuasivas (Bakhtin, 1992).

O primeiro grupo de palavras, no terreno da crítica, é delineado pelo reconhecimento do confronto religioso, político e moral que sustenta as palavras do Estado, em nome da educação, dos professores, entre outros, não necessitando de persuasão interior para a conscientização de sua intencionalidade; apenas exige de nós o reconhecimento e a assimilação. Chegamos a essa exigência, na escrita apresentada, respondendo ao requerimento de um mercado simbólico, cuja perspectiva centra-se não apenas na materialidade dos fatos educativos, mas também na descrição, interpretação e localização deles em um dado espaço-tempo curricular.

O segundo, nesse mesmo terreno, necessita de autoridade, comumente metade nossa, metade de outros, determinante para o processo de transformação ideológica da consciência individual. Isso porque se reorganizam as palavras de nossos (e dos outros) discursos no contexto que elegemos, isto é, a comparação, pelo ingresso em um inter-relacionamento qualificativo, provocativo e/ou conflituoso e, ao fazê-lo, instituído como “meu”. Tal instituição contribui para constituir a estrutura desse signo ideológico, o currículo oficial, de uma maneira tanto mais profunda quanto mais amplamente reconhecida (isto é, autorizada) como possuidora de um valor semiótico de representação.

Dito isso, os discursos dos outros perpassam pela construção do “meu” discurso, tornando-se o elo da comunicação discursiva pretendida pela escrita comparada, assumida pela/por articulações das palavras trazidas/traduzidas pelos sujeitos (falante, escritor ou leitor) com posição ativa na articulação no campo (curricular e educativo) do objeto, na forma de concretização da palavra e na produção de sentidos.

Nesse contexto, as críticas à BNCC (Brasil, 2017) denotam investimentos teóricos dos agentes, demarcados pelos narratários,5 nos seus discursos e nos discursos apropriados, para a produção escrita, por uma ideia ou uma enunciação, alinhados a uma intencionalidade que não se confunde com intenção, mas cujo dialogismo acerca da escola e do currículo se encontra nas formas de orientação intencional de interpretação, com direções definidas pelo narrador da escrita comparada, o “eu”.

Por fim, defendemos que a escrita comparada não é somente uma forma que pode ser compreendida e analisada somente pela comparação, isolada da interação verbal e social dos interlocutores pelos/nos textos. Isso porque passa, gradativamente, a fazer sentido como objeto sígnico no campo das análises curriculares e das interpretações das produções intelectuais de crítica, adquirindo o papel de agente causal autônomo.

1O uso das aspas incide na localização de autoria, em contraposição ao uso do vocábulo como próprio das estratégias do método comparado, configurando traços semântico-conotativos.

2Pesquisa financiada pelo CNPq, modalidade Bolsa Produtividade, no período de 2018 a 2020.

3Formam uma totalidade integrada que, muitas vezes, ocorre simultaneamente ou, então, seguem um ordenamento diferente — ou, então, ainda, se evidenciam explícitas. A par disso, são compreendidas na inter-relação entre os campos educativo, social, simbólico e cultural (Silva, 2019).

4Institutos Ayrton Senna, Inspirare, Natura, Insper, Unibanco e Itaú; Fundações Lemann e Roberto Marinho; Movimento Todos Pela Educação; Serviço Social do Comércio (Sesc); Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed); e União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime).

5Personagem da narrativa, ainda que algumas vezes apenas esteja presente no texto de forma implícita.

Financiamento: O estudo recebeu financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), processo n.º 305205/2020-0.

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Recebido: 21 de Agosto de 2021; Aceito: 26 de Julho de 2022

Fabiany de Cássia Tavares Silva é doutora em Educação: História, Política, Sociedade pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professora da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Bolsista Produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). E-mail: fabiany.tavares@ufms.br

Conflitos de interesse: A autora declara que não possui nenhum interesse comercial ou associativo que represente conflito de interesses em relação ao manuscrito.

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