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Revista Brasileira de Educação

Print version ISSN 1413-2478On-line version ISSN 1809-449X

Rev. Bras. Educ. vol.28  Rio de Janeiro  2023  Epub Aug 02, 2023

https://doi.org/10.1590/s1413-24782023280077 

Artigos

O controle da fruição literária na escola

EL CONTROL DE LA FRUICIÓN LITERARIA EN LA ESCUELA

Ivanete Bernardino SoaresI 
http://orcid.org/0000-0002-3299-3540

IUniversidade Federal de Ouro Preto, Mariana, MG, Brasil.


RESUMO

O objetivo deste artigo é problematizar a ideia de que o gosto pela literatura seria uma mera habilidade a ser desenvolvida na escola, independentemente dos condicionamentos sociais dos alunos. Além de discutir o papel da leitura subjetiva da literatura, analisaremos sete habilidades inscritas na Base Nacional Comum Curricular que tratam especificamente da apreciação da literatura. Em termos metodológicos, valer-nos-emos das ferramentas da Análise do Discurso, por concebermos o documento como uma enunciação composta tanto de sua materialidade verbal, quanto da conjuntura ideológica que a tornou um acontecimento. Embora o documento apresente avanços em relação à educação literária praticada nas escolas, o estudo aponta para um tratamento tecnicista da fruição, informado como está por pressupostos neoliberais articulados às prescrições educacionais.

PALAVRAS-CHAVE fruição estética; formação de leitores; ensino de literatura; BNCC

RESUMEN

El objetivo del presente artículo es problematizar la idea del gusto por la literatura como mera habilidad a desarrollarse en la escuela, independientemente de los condicionamientos sociales de los estudiantes. Además de discutir el papel de la lectura subjetiva de la literatura, analizaremos siete competencias propuestas por la Base Nacional Curricular Comum relacionadas específicamente a la apreciación del texto literario. En términos metodológicos, utilizaremos las herramientas del Análisis del Discurso, ya que partimos de la comprensión del referido documento normativo brasileño como enunciado compuesto tanto por su materialidad verbal como por la coyuntura ideológica que lo convirtió en acontecimiento. Si bien presenta avances con relación a la educación literaria practicada en las escuelas, se puede identificar en el susodicho documento un tratamiento tecnicista de la fruición, informado como está por postulados neoliberales articulados a las prescripciones educacionales.

PALABRAS CLAVE fruición estética; formación de lectores; enseñanza de la literatura; BNCC

ABSTRACT

The objective of this study is to question the idea that the taste for literature would be merely an ability to be developed at school, independently of the students’ social conditioning. In addition to discussing the role of subjective readings of literature, we are going to analyze seven abilities registered in the Brazilian National Common Curricular Basis [Base Nacional Comum Curricular] that deal specifically with the appreciation of literature. In methodological terms, we draw on tools provided by Discourse Analysis due to the conception of this document as an utterance composed both of verbal materiality and an ideological conjecture behind. Although the document presents advancements regarding literary education at schools, the study points to a technicist treatment of fruition, aligned to the neoliberal postulates articulated with the educational prescriptions.

KEYWORDS aesthetic enjoyment; reader formation; teaching literature; BNCC

Desde o momento em que se tornasse geral, a riqueza perderia seu caráter distintivo. […] Porque se lazer e segurança fossem desfrutados por todos igualmente, a grande massa de seres humanos que costuma ser embrutecida pela pobreza se alfabetizaria e aprenderia a pensar por si; e depois que isso acontecesse, mais cedo ou mais tarde essa massa se daria conta de que a minoria privilegiada não tinha função nenhuma e acabaria com ela.

Orwell (1984, p. 225)

O PRESTÍGIO DA LEITURA LITERÁRIA NO MERCADO CULTURAL

Na sociedade brasileira, o hábito da leitura literária e o gosto por ler são percebidos, pela maioria das pessoas, como comportamentos valorizados, que atribuiriam certo refinamento e distinção àqueles que assim se mostram. De fato, a convivência com o universo literário pode ampliar a mecânica da percepção humana, permitindo um julgamento da realidade e das relações humanas a partir de uma variedade maior de ângulos e pontos de vista.

Apesar disso, não se pode perder de vista que a literatura é uma instituição social e, portanto, um produto da cultura e de certas rotinas historicamente situadas. As práticas que vão se estabelecendo dentro do campo literário assim constituído geram, em cadeia, modos de agir e sentir regulados por instâncias internas a ele. Assim, escritores, leitores comuns, críticos literários, mediadores de leitura, professores, livreiros, editores, membros de academias de Letras e outras agremiações literárias, por exemplo, vão cristalizando, numa memória coletiva, estilos de comportamento que indicam certa tipicidade de condutas que, na ausência de uma lente crítica, pode parecer uma característica orgânica e inata às pessoas que a praticam.

Neste artigo, pretendemos defender o argumento de que o gosto pela literatura não é uma “essência” natural de certos indivíduos, mas depende de uma combinação de elementos externos como, por exemplo, sua vinculação a uma classe social, sua experiência com outros artefatos culturais, sua aderência às investidas do marketing editorial ou de influenciadores digitais ou analógicos, seu acesso a livros, a gestão de seu tempo diário e a possibilidade do ócio necessário à leitura de fruição, entre outras condições materiais que a prática reclama. Evidentemente, não acreditamos em determinismos e sempre poderemos arrolar histórias de leitores que superaram limitações materiais. Mas, quando se trata de educação escolar, que integra as necessidades fundamentais da coletividade, precisamos considerar a regra e não a exceção.

Para o desenvolvimento do argumento central, investigaremos, na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) de 2018 (Brasil, 2018), documento que norteia os currículos da escola básica brasileira, as orientações que tratam da relação afetiva dos alunos diante da literatura. Analisaremos as habilidades prescritas com o objetivo de levar o aluno a apreciar esteticamente obras literárias, procurando entender a ideologia subjacente a essas prescrições e se o documento trata o gosto pela literatura como essência ou como um constructo social e histórico, dependente de condições materiais de existência.

De maneira geral, a escola tende a tratar a promoção de leitura literária como o desenvolvimento de certas habilidades técnicas de processamento e interpretação do texto, a partir de sua planificação linguística ou estilística, do levantamento contextual das produções literárias ou da localização de obras e autores na historiografia literária. A consideração por essas dimensões nem sempre é feita a partir de mediações dialéticas e, quase sempre, limita-se a uma acareação artificial entre texto e contexto. Nessa conduta, subentende-se a crença de que a combinação desses elementos, por si só, seria responsável por fazer irromper a fruição e a interiorização da literatura como aprimoramento da experiência vivida, ainda que as condições concretas dos que assim se fizerem leitores se mantenha intacta.

Porém, se concordamos que a aprendizagem de uma prática de letramento é situada, é porque ela depende muito mais da familiarização com elementos da cultura e com estruturas políticas e econômicas do grupo que transfere o letramento do que de treinamento de habilidades técnicas associadas à leitura e à escrita (Street, 2014). Por tudo isso, torna-se necessário um exercício de desnaturalização da tese da distinção social pela predileção estética como um “dom” natural, a partir da historicização dos processos que envolvem sua emergência na estrutura social.

Em um enquadramento mais amplo, é necessário considerar também a escala de valorização das práticas de letramento — os usos da leitura e da escrita na vida cotidiana — que promove representações concorrentes no interior de uma coletividade. Nas sociedades marcadas por grave desigualdade social, a variedade de usos da escrita e de modos de ler impõe uma competição entre formas dominantes e desprestigiadas de letramento. Evidentemente, os parâmetros para atribuição de valor aos modos de existência da escrita são construídos localmente a partir do sistema simbólico de cada grupo social, mas a régua de medição que determinará a porção de poder que cada prática de letramento alcançará nas trocas simbólicas é aquela pertencente aos grupos econômica e culturalmente hegemônicos. Por razões como esta é que podemos dizer que “[…] as lutas de representações têm tanta importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são os seus, e o seu domínio […]” (Chartier, 1988, p. 17).

No campo da leitura, a escolha por um domínio discursivo (leitura de jornais, de revistas científicas, da Bíblia, de biografia de santos, de best sellers ou dos clássicos literários, por exemplo), o alcance do esforço de compreensão (leitura panorâmica, leitura contemplativa, leitura analítica, leitura crítica, entre outros), o suporte (tela, livro, fotocópia, material didático, folheto, etc.) e demais variáveis que envolvem o ato de ler, situam — não necessariamente fixam — o sujeito em uma categoria de leitor mais ou menos valorizada socialmente. Também o tempo de exercício da leitura e as restrições impostas pelos espaços (família, igreja, trabalho, escola e outros) instauram modelos de processamento de textos, efeitos de sentido e humores variados a depender dos propósitos ou circunstâncias que movem e constrangem os sujeitos quando integram transitoriamente esses círculos de convivência. Aplicando um recorte vertical a essa gama de elementos situacionais, pode-se dizer que a literatura, especialmente aquela legitimada pelas instituições culturais, ocupa um lugar de destaque na hierarquia simbólica que compõe espaços economicamente favorecidos e, de fato, confere um grau de distinção social aos sujeitos que com ela travam relação, seja no âmbito da produção, seja no da recepção, contribuindo para validar a gestão de poder que sustenta tais espaços.

Por entender que as orientações governamentais que regem a composição dos currículos geram um efeito em cadeia sobre as práticas escolares — ainda que lentamente e de forma heterogênea nos variados contextos —, ilustramos a discussão a partir da análise das “habilidades do apreciar”1 que compõem o campo artístico-literário da BNCC. A escolha por esse documento como representativo do controle oficial das disposições coletivas diante da literatura se justifica pela sua importância para o estabelecimento de currículos e, no caso específico, para a materialização de práticas de ensino de literatura, já que pretende representar um eixo comum para a educação brasileira.

Para o componente de língua portuguesa, o documento referencia as práticas de linguagem representadas pela “leitura/escuta”, “oralidade”, “escrita”, “produção de textos” e “análise linguística ou semiótica”. Como nossa atenção está voltada para a formação de hábitos leitores, reservamos especial atenção ao eixo da “leitura/escuta” e, dentro dele, às práticas de linguagem mais diretamente relacionadas à formação do gosto e à apreciação estética da literatura, no âmbito do ensino fundamental. O objetivo é, portanto, verificar a persistência de uma “pedagogia da admiração passiva” diante da literatura e argumentar a favor da necessidade de um reenquadramento democrático dos termos que contornam esse componente curricular.

Nossa intenção não é a de nutrir uma crítica gratuita ao documento movida por diferenças ideológicas de fundo político-partidário e, por isso, buscaremos destacar também as aberturas que o documento oferece para uma educação do gosto pela literatura comprometida com a incorporação autêntica de habitus que ampliem as referências simbólicas e culturais dos alunos da educação básica.

GESTOS METODOLÓGICOS

Os procedimentos analíticos utilizados para o desenvolvimento desta pesquisa foram orientados pela Análise do Discurso de matriz francesa. Como o centro de nossas preocupações aqui é entender como a BNCC concebe a formação do gosto pela literatura na escola básica, recorremos à oportuna síntese de Eni Puccineli Orlandi a respeito das concepções de base e das etapas metodológicas de uma interpretação pautada pela abordagem discursiva. Em seu esforço de síntese da teoria e do método da Análise do Discurso, Orlandi apresenta o resultado da convergência de pressupostos fundadores do campo, articulando tanto a teorização de Michel Foucault e Michel Pêcheux (ainda que essa aproximação seja conflituosa) a Jacques Lacan, Jean Jacques Courtine, Claudine Haroche, Dominique Maingueneau e Jaqueline Authier-Revuz, por exemplo. Para não desviarmos a discussão para a vereda das minúcias terminológicas, optamos por nos valer de um estudo de Orlandi (2012) que apresenta um breviário denso das etapas analíticas praticadas pela área intitulado “Análise do Discurso: princípios e procedimentos”, no qual a pesquisadora deslinda conceitos fundamentais como “sujeito”, “discurso”, “condições de produção do enunciado”, “ideologia” e “formação discursiva”, oferecendo um dispositivo prático de análise ao discriminar tipologias e categorias metodológicas.

A Análise do Discurso busca a “[…] compreensão de como um objeto simbólico [aqui representado pela BNCC] produz sentidos, como ele está investido de significância para e por sujeitos.” (Orlandi, 2012, p. 26). Em termos metodológicos, atribuir à BNCC propriedades discursivas significa considerá-la, em sua historicidade, como uma enunciação constituída pela própria conjuntura política e ideológica de sua emergência. Por isso, para realizar a análise do documento, precisamos relacionar as proposições verbais que o constituem à sua exterioridade, ou seja, aos imperativos históricos, aos estatutos dos sujeitos envolvidos em sua produção e em sua recepção, às ideologias concorrentes e às formações discursivas que nele se entrechocam, sobrepondo interesses conflitantes de segmentos da sociedade.

Por isso, na próxima seção deste artigo, analisaremos as condições de enunciação da BNCC, buscando reconstruir o contexto de sua produção e os interesses ideológicos e econômicos que subjazem a ele. Nas seções seguintes, procuramos circunscrever o domínio discursivo mais restrito, neste caso, o campo artístico-literário tal como concebido pelo documento. Em seguida, apresentamos nosso posicionamento sobre o papel do “prazer” e da “fruição estética” na educação literária praticada nas escolas com o objetivo de emoldurar nossa análise das habilidades prescritas pela BNCC que tematizam essas noções.

A análise discursiva das habilidades selecionadas orientou-se pela saliência interpretativa de trechos, expressões e proposições axiológicas intimamente relacionadas ao debate sobre apreciação estética da arte literária e dos comportamentos e das reações afetivas convencionalmente esperados por parte do leitor proficiente de textos literários. O tratamento desse material orientou-se pela descrição, ordenação e seleção dos dados pertinentes aos nossos objetivos.

Com relação ao percurso metodológico de recorte e seleção das frações de discurso para a construção de nosso documento secundário, empreendemos um estudo prévio da integralidade do discurso da BNCC vinculado ao campo artístico-literário. Esse campo, por sua vez, contém 28 objetos de conhecimento — dos quais nos apropriaremos de quatro por serem estes os mais diretamente relacionados à fruição da literatura — e 50 habilidades, das quais circunscrevemos os sete itens discursivos que serão analisados aqui e que estamos chamando de “as sete habilidades do apreciar”.

Como se pode presumir, o documento está estruturado de modo bastante emaranhado, com categorias e subcategorias e, por isso, apresentamos um quadro sinóptico que representa o recorte aplicado ao corpus discursivo da pesquisa, na intenção de facilitar sua visualização. Estabelecemos, portanto, os recortes sucessivos do Quadro 1, partindo da dimensão mais ampla para a mais específica.

Quadro 1 Delimitação do objeto de análise: as sete habilidades do apreciar. 

Etapa do ensino fundamental
Área: Linguagens (seis competências gerais)
Componente curricular: Língua Portuguesa (dez competências e 390 habilidades)
Campo artístico-literário
(50 habilidades e 28 objetos de conhecimento)
Prática de linguagem:
leitura/escuta
Objetos do conhecimento:
apreciação estética/estilo; apreciação e réplica; estratégias de leitura/apreciação e réplica; adesão às práticas de leitura
Habilidades do apreciar:
EF15LP17; EF12LP18; EF35LP23; EF69LP46; EF67LP28; EF98LP33; EF69LP49

Fonte: Elaboração da autora.

Na última linha do Quadro 1, podemos identificar os chamados “descritores”, que são as notações usadas para nomear cada habilidade, cuja decodificação atende ao seguinte roteiro: nível de ensino, ano escolar, componente curricular e ordem que a habilidade aparece para esse mesmo segmento. A habilidade inscrita como “EF15LP17”, por exemplo, corresponde à 17ᵃ habilidade prevista para ser trabalhada em língua portuguesa no intervalo do 1º ao 5º do ensino fundamental.

Assim, considerando-se o recorte da prática de linguagem “leitura/escuta”, optamos pela análise das habilidades que tratam dos objetos de conhecimento (O.C.) nomeados no documento como “apreciação estética/estilo”, “apreciação e réplica”, “estratégias de leitura/apreciação e réplica” e “adesão às práticas de leitura”, distribuídos ao longo do ensino fundamental. Importante ressaltar que nem mesmo essas poucas habilidades tratam exclusivamente da arte literária. Neste documento, a literatura perdeu qualquer possibilidade de autonomia como objeto de conhecimento, situando-se, de modo diluído, no campo “artístico-literário” e convivendo num mesmo descritor com outras manifestações artísticas como teatro, música e cinema.

AS CONDIÇÕES DE ENUNCIAÇÃO DOS CURRÍCULOS: ATRAVESSAMENTOS NEOLIBERAIS

Sabemos que, no contexto do sistema capitalista, educação e economia reclamam planejamento articulado. O interesse por parte dos governos pelo alinhamento dos processos educativos às necessidades dos processos produtivos induz ao investimento sistemático em políticas públicas que promovam os conteúdos privilegiados pela escola. Evidentemente, tais políticas assumem feições de programas ideológicos, suplantando a aparente isenção do Estado e obedecendo à orientação de interesses do grupo político que estiver no poder.

A contar da primeira iniciativa pública de incentivo à leitura no Brasil (ainda não especificamente literária), responsável pela criação do Instituto Nacional do Livro, em 1937, acompanhamos um rol de gradações ideológicas que subjazem à legislação educacional voltada para a promoção da leitura, com suas campanhas, programas e projetos perfilando desde perspectivas assimilacionistas e monoculturais em relação ao cânone literário até abordagens emancipadoras da literatura, especialmente a partir da abertura política, com as demandas próprias da redemocratização. Nesse percurso, marcado por descontinuidades, podemos acompanhar a mão do Estado — ou as contingências dos governos — exercendo, acima de tudo, o controle do imaginário por meio do monitoramento dos temas e das abordagens dos livros que põe a circular, cerceando aqueles que pudessem estimular o questionamento do status quo da estratificação social e do sistema de valores e crenças que interessa ao exercício do poder e do livre mercado, com exceção do breve intervalo democrático que vai de meados da década de 1980 até o golpe de 2016 (Sampaio, 2016).

Definitivamente, as ações governamentais de promoção da leitura literária intervêm de modo bastante significativo na constituição das preferências literárias, seja a partir da oferta de determinadas obras em detrimento de outras, seja pela triagem temática (ideológica ou moral), seja pela determinação dos processos de gestão do acervo das bibliotecas públicas e escolares, seja ainda pela garantia — ou não — de acessibilidade do leitor final. Ainda no limite institucional de atuação do Estado, políticas públicas de orientação curricular como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e a BNCC norteiam, em boa medida, as decisões pedagógicas na escola e a elaboração dos livros didáticos, orientando as práticas concretizadas na rotina da sala de aula.

Em princípio, o discurso curricular oficial é um espaço de convergência que articula: os paradigmas científicos que sustentam os componentes escolares, as determinações teóricas do campo pedagógico, os direitos instituídos coletivamente e a dinâmica cultural que compõe a sociedade. Na prática, no entanto, autorias ideológicas muito diferentes costuram a trama de documentos reguladores dos currículos escolares. Em sentido mais sumário, Michael Apple 1982, p. 30) afirma que o currículo deve ser visto não como produto, mas “[…] como uma seleção e organização de todo o conhecimento social disponível em uma determinada época.”, acarretando “[…] opções sociais e ideológicas conscientes e inconscientes.”. Portanto, o discurso curricular é atravessado por posicionamentos enunciativos por vezes antagônicos e contraditórios que encenam a luta ideológica travada nas instâncias de poder.

Objetivamente, as diretrizes oficiais que determinam o desenho dos currículos, isto é, dos conteúdos (científicos e ideológicos) que vão circular nas escolas acabam por influenciar a formação das subjetividades sociais. Aliás, a engrenagem de poder que controla as formas de acesso ao saber e, para além, que controla as frações do saber autorizadas a circular têm na escola, portanto, a instituição legitimada para cumprir a função de domesticar essas subjetividades (Foucalt, 1984).

No caso específico da BNCC, a proeminência dada às metas de aprendizagem — a partir de um claro desfoque dos processos de ensino e, com ele, seus agentes (Carneiro, 2019) —, concebidas como faculdades universais e imunes às culturas locais, reflete as condições de produção do documento, pautado por premissas engendradas com órgãos internacionais, instituições financeiras, fundações e instâncias filantrópicas economicamente privilegiadas, como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Banco Mundial (Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento — BIRD), a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e, no Brasil, o Instituto Ayrton Senna e a Fundação Lemann, por exemplo, que “[…] encontram nos modelos educacionais um eixo para estruturar toda uma forma econômica.” (Carneiro, 2019, p. 43). Aliás, a simbiose de interesses que modelam o campo da educação justifica ainda a participação no arranjo do documento de entidades muito díspares, como instituições bancárias (Itaú, Bradesco, Unibanco) e de telefonia (Vivo), construtora (Instituto MRV), empresas aérea (Gol), de mineração (Vale), de cosméticos (Instituto Natura), de produção de aço (Gerdau), entre outros conglomerados empresariais que têm também interesse direto nas reformas e políticas educacionais. Essa interferência privada nas deliberações de políticas educacionais garante que a lógica do mercado e as concepções empresariais se infiltrem pela malha estatal e pela formação de um cidadão ajustado aos seus princípios. Não é por outra razão que o texto da BNCC é saturado por um léxico que ressoa esses interesses ao defender a formação de um sujeito “resiliente”, “produtivo”, “responsável”, “proativo”, “empreendedor”, “competente” e “habilidoso”. Um sujeito capaz de assumir, sozinho, a responsabilidade pela sua condição e em estado de prontidão para se satisfazer com uma vida em que o auge da realização corresponde ao consumo vertiginoso de bens.

Ao oferecer uma categorização detalhada de descritores que correspondem à suposta formação de “competências” e “habilidades”, a BNCC desestimula a atuação política e crítica do professor, dispensando sua autonomia na elaboração de um projeto educativo orientado pelos contextos locais. Essa pedagogia das competências pode atomizar o trabalho docente e colaborar, ainda que não intencionalmente, com um projeto de esvaziamento do papel do professor e, no limite, contribuir para o descrédito da carreira. Por outro lado, o detalhamento de faculdades permite maior eficácia na aplicação da metodologia de comparação de desempenho entre países, o que, em tese, permitiria a identificação de crises educacionais e riscos para o desenvolvimento econômico. Apesar de tudo, se abordada criticamente pelo discurso pedagógico e pelo professor, a discriminação de “competências” e “habilidades” pode favorecer o encaminhamento prático do planejamento didático das atividades cotidianas de ensino e avaliação.

A noção de “competência” — que funciona como eixo estruturador da BNCC, ao redor do qual devem se organizar as decisões pedagógicas — é definida no documento como a mobilização de conhecimentos, habilidades, atitudes e valores apropriados para a resolução de problemas e para o exercício da cidadania. Portanto, subjaz a concepção de que a contemporaneidade exige a impregnação de novos habitus, isto é, novos dispositivos de percepção da realidade e, consequentemente, novos modos de interação social. No campo das preferências estéticas, se se entende que as ações típicas de um grupo social — formas de expressão, humores, crenças, valores, representações, imaginários e preferências artísticas, alimentares, de vestuário, etc. — refletem e refratam suas condições objetivas de existência, a BNCC se posiciona indiferente aos condicionantes de classe, admitindo a possibilidade de aquisição de novos habitus a partir dos processos de aprendizagem praticados nos limites da escola, como se pode notar neste trecho:

No novo cenário mundial, reconhecer-se em seu contexto histórico e cultural, comunicar-se, ser criativo, analítico-crítico, participativo, aberto ao novo, colaborativo, resiliente, produtivo e responsável requer muito mais do que o acúmulo de informações. Requer o desenvolvimento de competências para aprender a aprender, saber lidar com a informação cada vez mais disponível, atuar com discernimento e responsabilidade nos contextos das culturas digitais, aplicar conhecimentos para resolver problemas, ter autonomia para tomar decisões, ser proativo para identificar os dados de uma situação e buscar soluções, conviver e aprender com as diferenças e as diversidades. (Brasil, 2018, p. 14)

Trata-se de uma postura inteiramente alinhada aos ideais liberais, revelando igualmente a concepção autônoma e instrumental de letramento, visto que desconsidera as práticas e as vivências dos sujeitos, situadas em tempos e espaços particulares, e a influência de processos de socialização específicos. Do ponto de vista dos Novos Estudos do Letramento, a concepção autônoma permite localizar, no sujeito, capacidades cognitivas generalizáveis que, se bem desenvolvidas, o permitiria usar, com proficiência, as habilidades de leitura e escrita nas mais variadas demandas de comunicação, ou, nas palavras do documento, “aplicar conhecimentos para resolver problemas” (ibidem, p. 14). Na contramão desse entendimento, Brian Street (2014, p. 44) propõe o conceito de “letramento ideológico”, correspondendo a práticas concretas e situadas de leitura e escrita, resultantes, por sua vez, dos condicionamentos históricos permeados por ideologias concorrentes.

No excerto citado da BNCC, vale a pena ainda reiterar a ênfase nas condutas desejáveis para o cidadão do século XXI: “[…] comunicar-se, ser criativo, analítico-crítico, participativo, aberto ao novo, colaborativo, resiliente, produtivo e responsável […]” (Brasil, 2018, p. 14). Se não podemos negar a validade desses predicados, também fica evidente que, apartados de uma apreensão do valor de cidadania, eles se tornam instrumentos vantajosos para o empregador, gestor de produção da massa de trabalhadores formada, principalmente, pela escola básica pública. Não se descarta aqui a dimensão positiva da noção de competência, inclusive quando a relacionamos aos saberes que precisam ser mobilizados no campo da educação literária. Nesse caso, entendemos a noção de “competência literária” com António Branco (2005, p. 90) quando afirma que essa prática cultural implica “[…] certo grau de especialização do ato de ler textos considerados literários, incluindo tanto os instrumentos de leitura utilizados quanto a própria consciência dos parâmetros configuradores da decisão do sujeito-leitor relativamente à natureza (literária) desses textos.”. Trata-se, pois, de um saber multifacetado, cuja apropriação crítica depende do desenvolvimento dirigido de certas competências capazes de qualificar o acesso às especificidades do texto literário.

O CAMPO ARTÍSTICO-LITERÁRIO NA BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR

De acordo com o Ministério da Educação, a BNCC é um documento de caráter normativo, previsto pela Lei das Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 (LDB, Lei nº. 9.394 — Brasil, 1996), responsável por orientar a construção dos currículos das escolas públicas e privadas da educação básica. Nesse sentido, o documento tem a função de estabelecer as “aprendizagens essenciais” para todos os estudantes da federação, organizando-as em termos de “competências” (mais gerais) e “habilidades” (mais específicas). Encampando os propósitos extensivos da formação básica comum, o texto apresenta seis competências previstas para a grande área de Linguagens e dez competências para o componente curricular Língua Portuguesa, no âmbito do ensino fundamental — etapa sobre a qual incide o escopo deste artigo. Essas competências contemplam, no conjunto, o desenvolvimento de atributos cognitivos, comportamentais, emocionais e procedimentais que possam dar conta da ampliação do repertório cultural, da atuação no mundo do trabalho, das habilidades comunicativas, das interações sociais, da proficiência no uso das tecnologias digitais e das chamadas “competências socioemocionais”.

No que diz respeito, mais especificamente, aos comportamentos e às reações esperados diante do texto literário, o documento apresenta as competências específicas em Linguagens e em Língua Portuguesa, respectivamente:

Competência 5: Desenvolver o senso estético para reconhecer, fruir e respeitar as diversas manifestações artísticas e culturais, das locais às mundiais, inclusive aquelas pertencentes ao patrimônio cultural da humanidade, bem como participar de práticas diversificadas, individuais e coletivas, da produção artístico-cultural, com respeito à diversidade de saberes, identidades e culturas. (Brasil, 2018, p. 65)

Competência 9: Envolver-se em práticas de leitura literária que possibilitem o desenvolvimento do senso estético para fruição, valorizando a literatura e outras manifestações artístico-culturais como formas de acesso às dimensões lúdicas, de imaginário e encantamento, reconhecendo o potencial transformador e humanizador da experiência com a literatura. (ibidem, p. 87)

Nessas competências gerais, merece realce o avanço representado pela consideração de uma escala ampla de práticas artísticas e culturais, considerando-se a “diversidade de saberes, identidades e culturas” (Brasil, 2018, p. 65), locais e mundiais. Com efeito, os termos da quinta competência, prescrita para a área de Linguagens, desloca, ao menos na esfera do discurso, uma premissa tradicional na didática da literatura no Brasil, que historicamente vem privilegiando a produção artística de um grupo social bem demarcado e restrito. Ainda nessa instrução específica, vale destacar a centralidade da “fruição” como finalidade elementar e decisiva da leitura literária praticada na escola, expressa pela atenção dada ao “desenvolvimento do senso estético” (ibidem, p. 87).

Como o conceito de fruição estética é central neste trabalho, na próxima seção buscamos fundamentá-lo teoricamente situando-o no debate da área de didática da literatura e, além disso, apresentar nosso posicionamento a respeito da matéria.

A TIRANIA DA FRUIÇÃO

A noção de “fruição” e mesmo “prazer estético” é extremamente fugidia e polissêmica a depender do sistema de pensamento em que é colocada à prova, seja do ponto de vista da estética, da teoria literária ou da psicanálise, por exemplo. Para os fins dessa argumentação, preferimos considerar uma definição do próprio documento que aqui analisamos, presente no componente “Arte”, que integra a área de Linguagens:

Fruição: refere-se ao deleite, ao prazer, ao estranhamento e à abertura para se sensibilizar durante a participação em práticas artísticas e culturais. Essa dimensão implica disponibilidade dos sujeitos para a relação continuada com produções artísticas e culturais oriundas das mais diversas épocas, lugares e grupos sociais. (Brasil, 2018, p. 195)

Nessa definição, temos quase a exclusividade da dimensão emocional do ato de fruir, tornando lateral o investimento racional e reflexivo da apreciação estética. Porém, a definição é flutuante ao longo do documento e, em alguns casos, até mesmo tautológica. A considerar as competências gerais, o ensino de literatura é também contornado pela regulação das emoções (“reconhecer”, “fruir” e “respeitar”: reações passivas e resignadas, portanto) provocadas pela experiência com o texto, tendo como meta o engendramento da sensibilidade estética.

Para além disso, no escopo dado às finalidades do ensino desse eixo, já se observa uma consideração instrumental da literatura, como se as práticas controladas de leitura previstas nos currículos fossem suficientes para fazer irromper o interesse pela literatura, independentemente das vivências particulares. A estruturação da prática discursiva de leitura literária como “reconhecimento”, “fruição” e “respeito” (5ᵃ competência geral), “envolvimento”, “valorização” e “reconhecimento” (9ᵃ competência específica) inscreve o leitor em formação, compulsoriamente, em uma disposição positiva diante da literatura a partir, exclusivamente, de seu contato com o objeto cultural. De acordo com essa lógica, basta que o aluno seja apresentado ao texto literário para que seja seduzido por ele, reconhecendo seu valor, envolvendo-se emocionalmente e instaurando o hábito de leitura como consequência da participação em práticas artístico-culturais.

Impõe-se, desde o preâmbulo, a ditadura da fruição, o imperativo da aptidão para o deleite diante do texto literário, o que pode resultar em resultados desastrosos frente à tarefa de formar leitores autênticos por parte da escola. Diante do risco de um enquadramento como esse do ensino de literatura, Colomer e Camps (2002, p. 94) já advertiam:

[…] é lamentável entender a educação leitora como a obrigação de um prazer que se pode muito bem não sentir, e que aumenta a sensação de fracasso dos alunos que se veem incapazes de converter-se em leitores entusiastas, respondendo, dessa forma, às expectativas transmitidas pela escola.

Evidentemente, para a maioria das pessoas, a prática social da leitura literária tem como finalidade elementar a experimentação do prazer e mesmo a vivência da identificação, sendo obrigação da escola, portanto, oferecer recursos para que se alcance esse fim. Ainda que esse modo de leitura, exclusivamente dedicado à evasão, pertença ao espectro estigmatizado da leitura literária, nada justifica sua fixação em um polo oposto à apropriação crítica do texto literário. Para Gérard Langlade (2013, p. 37), a leitura para evasão, de fato, acomoda-se em uma forma de absorção do universo ficcional ou poético, recebido a partir das “[…] coerências interpretativas mais próximas do leitor […]”, que se valeria de seu sistema pessoal de referências (morais, culturais, analíticas e metafísicas) para reconstruir os sentidos da obra.

Apesar de esse modo de ler literatura ser acusado de apagar a historicidade da obra e promover uma experiência alienada, a leitura implicada pelo vivido do leitor é condição, se não suficiente, ao menos necessária para o processo de apropriação da obra e para o desencadeamento dos processos imaginativos. Esse entendimento é, grosso modo, ponto pacífico também na teoria literária que, a despeito dos predicados depreciativos que venha a atribuir a essa dimensão da leitura literária, não recusa seu caráter constituinte. Para Wellek e Warren (1976, p. 14), por exemplo,

A apreciação, o gosto, o entusiasmo é o que se apresenta à complacência individual como uma evasão inevitável, embora deplorável, da austeridade de uma erudição sólida. Mas essa dicotomia entre “erudição” e “apreciação” não tem em conta o verdadeiro estudo da literatura, que é simultaneamente “literário” e “sistemático”.

“Erudição” e “apreciação” devem ser entendidas, portanto, pela chave dialética que circunscreve “compreensão crítica” e “sensibilidade” em um mesmo movimento de apropriação subjetiva e intelectiva da obra: esse é o sentido que preferimos, particularmente, atribuir ao conceito de fruição literária, inclusive por ser esse um direito irrevogável do leitor, especialmente daqueles que não aspiram à profissão de críticos literários. Para Daniel Pennac (2008, p. 141, grifos do autor), o direito ao “bovarismo”2 é, inclusive, a legitimação de um primeiro “estado” de leitor: a “satisfação imediata e exclusiva de nossas sensações”, que podem ser de ordem vária, numa série complexa de nuanças que podem perpassar desde o prazer até a indiferença ou a repulsa.

No entanto, a BNCC parece assumir a defesa da necessidade de uniformização das percepções de natureza estética, desconsiderando os sistemas de referência e de valoração próprios das vivências particulares e apagando, com isso, o direito de o aluno não gostar dessa ou daquela obra. Ainda na apresentação do eixo de conhecimento “leitura/escuta”, o documento (Brasil, 2018, p. 74) recomenda a postura de “adesão” a essa prática de linguagem, nos seguintes termos:

Adesão a práticas de leitura:

Mostrar-se interessado e envolvido pela leitura de livros de literatura, textos de divulgação científica e/ou textos jornalísticos que circulam em várias mídias.

Mostrar-se ou tornar-se receptivo a textos que rompam com seu universo de expectativa, que representem um desafio em relação às suas possibilidades atuais e suas experiências anteriores de leitura, apoiando-se nas marcas linguísticas, em seu conhecimento sobre os gêneros e a temática e nas orientações dadas pelo professor.

Nessas formulações, a escolha do termo “mostrar-se” é eloquente. Parece bastar a performance da admiração e do deslumbre diante do texto literário ao invés da verdadeira incorporação de uma disposição perene diante da experiência estética. Esse sentido é acentuado pela oferta de alternativas: “mostrar-se ou tornar-se”, ou seja, se a criança (o trecho refere-se, nesse caso, aos anos iniciais do ensino fundamental) não alcançar a habilidade de “tornar-se”, de fato, receptivo a textos desafiadores, já atende ao projeto de formação literária do discurso oficial se apenas “mostrar-se” interessado, envolvido e receptivo a esses textos.

A diretriz prescrita acima promove o que Houdart-Mérot (2013, p. 104) chama de “educação da admiração”, quando a liberdade do aluno-leitor se restringe a “[…] ‘admirar de maneira correta’, ou seja, compreender por que ele deve admirar, exercer a sua admiração, voluntária ou compulsoriamente.”. Ainda que esse treino de emulação seja orientado pelas marcas linguísticas do texto literário, pela configuração dos gêneros e pelo conhecimento do tema, permanece como um exercício afetado e inautêntico, sugerindo a submissão constante a convenções valorativas dadas.

Em um texto elucidativo sobre essas questões, Márcia Abreu (2000, p. 129) realiza um movimento de historicização do ato de ler, constatando que “[…] o gosto e a apreciação estética não são universais, mas dependem do universo cultural no qual se inserem os sujeitos. Uma mesma obra é lida, avaliada e investida de significações variadas por diferentes formações culturais.”. É preciso reconhecer, pois, que a obra literária pode gerar gestos de reflexão e de prazer não necessariamente sobrepostos: o ato de ler pode não ser guiado, imperativamente, pelo prazer ou mesmo pela experiência da fruição, se essa noção está sendo entendida com Barthes3 (2015) na relação intrínseca com a linguagem.

Uma obra literária pode, em consequência, ser estudada e reconhecida pela capacidade de reter uma forma social ou pelas peculiaridades de expressão, sem ativar o gosto por sua leitura em particular. Por outro lado, a leitura pode ser orientada unicamente pelo desejo de distração, pelo prazer da identificação ou pela necessidade de fuga da realidade, suscitando pouca ou nenhuma reflexão objetiva que perdure na constituição daquela subjetividade. Dizendo de outra maneira, uma mesma obra pode ser um veículo para fugir da realidade ou para se embrenhar melhor nela, a depender de quais instrumentos (cognitivos e afetivos) forem mobilizados no ato da sua leitura.

Seguindo esse raciocínio, vinculamo-nos mais ao conceito de “prazer estético” sustentado em outro documento do discurso oficial, as Orientações Curriculares para o Ensino Médio (OCEM — Brasil, 2006), embora não estejamos tratando aqui desse nível de ensino. Na perspectiva desse documento, “[…] o prazer estético é, então, compreendido […] como conhecimento, participação, fruição. Desse modo, explica-se a razão do prazer estético mesmo diante de um texto que nos cause profunda tristeza ou horror […]” (ibidem, p. 55). Nessa definição, temos a articulação íntima entre sensação e reflexão, deleite e conhecimento e, acima de tudo, o eco da ideia de “implicação” do leitor na prática de leitura empreendida. Em outro trecho, a posição das OCEM é categórica: “Não podemos confundir prazer estético com palatabilidade.” (ibidem, p. 59), em um esforço para a colocação, em outros termos, dos rótulos que costumam classificar leitores a partir de seus modos de leitura preferenciais. Isto é, o prazer estético causado pela literatura, nesse caso, não deve ser confundido com a sensação provocada pela leitura fácil, nem pelas emoções puramente recreativas e lúdicas ativadas por essa leitura.

Embora seja comum o esforço teórico de se classificar as identidades literárias numa gradação que iria do leitor “crítico” (que mantém um distanciamento emocional maior em proveito do estudo da forma e de suas reverberações) ao leitor “escapista” (que busca a evasão no prazer da leitura) (Rouxel, 2013, p. 79-82), Rita Jover-Faleiros (2013) lembra que essa suposta clivagem da figuração do leitor pode anular a densidade da experiência da leitura. Para ela, esses são todos “gestos de leitura” que não se excluem: “[…] eles são diferentes momentos de um mesmo leitor, motivado a ler por diferentes razões em diferentes contextos, definindo, assim, diferentes projetos para cada leitura.” (Jover-Faleiros, 2013, p. 130).

Também do ponto de vista da recepção, os modos de leitura recebem ressonâncias das condições materiais dos sujeitos, mas não são, necessariamente, fixados por elas, visto que cada experiência de fruição é, como defende Umberto Eco (1981), situada e aberta a diversas possibilidades. Portanto, desde que ao termo “reconhecimento” — presente nas duas competências mencionadas na BNCC — não sejam atribuídos os sentidos de “legitimação cega” ou de “validação irrefletida” e que ele seja interpretado como “discernimento”, a formulação eleita pelo documento pode favorecer uma didática da formação do leitor na educação básica também como um “dar a ler” (Pennac, 2008, p. 91-126) e não como meio de consolidar apenas uma “pedagogia da admiração”, que prescreveria a vinculação afetiva com a literatura a partir de uma contemplação conformista e estéril, isolando a admiração como forma de apropriação puramente livre e emocional (Houdart-Mérot, 2013).

Em uma acepção que recusa o simplismo e a fórmula fácil, é evidente que a competência literária preza pela formação de um leitor literário que desenvolva estratégias de leitura específicas para esse gênero de textos, considerando tanto os gatilhos linguísticos, quanto a historicidade da obra, além de desenvolver condições materiais para, de fato, apreciar essa prática cultural (Paulino, 2010).

Como é esperado em um discurso oficial, atravessado como é por ideologias conflitantes e interesses diversos, a BNCC (Brasil, 2018) também promove dimensões importantes da educação literária. Ao tratar do escopo de objetivos para os anos finais do ensino fundamental no campo artístico-literário, o documento estabelece:

No âmbito do Campo artístico-literário, trata-se de possibilitar o contato com as manifestações artísticas em geral, e, de forma particular e especial, com a arte literária e de oferecer as condições para que se possa reconhecer, valorizar e fruir essas manifestações. Está em jogo a continuidade da formação do leitor literário, com especial destaque para o desenvolvimento da fruição, de modo a evidenciar a condição estética desse tipo de leitura e de escrita. Para que a função utilitária da literatura — e da arte em geral — possa dar lugar à sua dimensão humanizadora, transformadora e mobilizadora, é preciso supor — e, portanto, garantir a formação de — um leitor-fruidor, ou seja, de um sujeito que seja capaz de se implicar na leitura dos textos, de “desvendar” suas múltiplas camadas de sentido, de responder às suas demandas e de firmar pactos de leitura. (Brasil, 2018, p. 138, grifos nossos)

Embora a gradação de valores recomendados ainda seja “reconhecer”, “valorizar” e “fruir” a literatura, temos aqui uma orientação mais clara sobre o entendimento do conceito de “fruição”. Em primeiro lugar, situa a noção a partir da oposição entre função utilitária e função “humanizadora, transformadora e mobilizadora” da literatura, o que já atribui uma dimensão crítica ao ato de fruir. Ao anunciar novamente a superioridade desse modo de ler (“com especial destaque para o desenvolvimento da fruição”), o documento adjetiva o leitor que se quer formar na escola como o “leitor-fruidor” e o define. Embora não considere dimensões profundas de uma educação literária, ao menos assegura a importância da implicação do leitor no processo de leitura, ou seja, de seu envolvimento emocional desde que articulado ao esforço cognitivo de compreensão, isto é, ao estudo das “múltiplas camadas de sentido”. Para os mediadores de leitura — professores e agentes culturais —, o planejamento do ensino de literatura orientado centralmente para promover “pactos de leitura” (que podem ser prazerosos ou não: o aluno precisa ter ciência disso) pode ser extremamente produtivo para a formação de novos e perenes leitores de literatura.

AS HABILIDADES DO APRECIAR: “FRUIR” OU “PARECER FRUIR” NA BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR

Dentre as habilidades elencadas no documento como essenciais para a atuação no campo artístico-literário, sete estão mais diretamente relacionadas ao desenvolvimento de uma disposição favorável diante do texto de literatura, isto é, voltadas à promoção do gosto e da fruição estética, dimensão privilegiada neste artigo. Quanto à distribuição delas ao longo do ensino fundamental, temos que três são previstas para serem desenvolvidas do 1º ao 5º anos e as quatro seguintes para o intervalo do 6º ao 9º.

De acordo com as sete habilidades consideradas,4 as práticas de letramento literário prescritas (e, portanto, valorizadas) mais próximas das determinações de um juízo estético, isto é, de padrões subjetivos e intelectivos de percepção sobre o literário, são: os gestos de “apreciar”, “compartilhar”, “expressar avaliação”, “estabelecer preferências” e, novamente, “mostrar-se interessado, envolvido e receptivo”.

Um aspecto positivo que merece destaque é o encorajamento da expressão de opinião, inclusive por meio de comentário escrito ou apresentação em áudio e vídeo, estimulando a participação em fanvídeos, fanclipes, trailer honesto e vídeo-minuto, por exemplo. Esse procedimento, se bem orientado, pode contribuir para a dessacralização do discurso crítico sobre a literatura no espaço escolar, além de funcionar como uma ferramenta importante para que o leitor em formação possa sistematizar, mais conscientemente, as impressões geradas pela obra literária, inclusive para concluir que não gosta deste ou daquele livro, autor ou gênero literário, quando for o caso. O importante é que favorece a construção autoral de critérios de apreensão da literatura.

Com relação aos conteúdos curriculares relacionados às práticas de “apreciação” literária, figura, com exclusividade, a forma poema — com destaque curioso para o poema visual e concreto — nos anos iniciais do ensino fundamental (1º ao 5º anos), reservando-se a diversidade de gêneros e suportes (físicos e virtuais) para os anos finais (6º ao 9º anos), como objetos de ensino para o desenvolvimento das habilidades de apreciação. Assim, das sete habilidades do apreciar, a totalidade das três reservadas aos anos iniciais referem-se a “apreciar poemas” (EF15LP17, EF12LP18 e EF35LP23).

Em relação aos anos finais (6º ao 9º anos), vale destacar a ênfase dada a características da cultura juvenil contemporânea como o interesse pelas agremiações de fãs (fanfics, fanzines, fanvídeos, fanclipes, posts em fanpages) e o incentivo à participação nas diversas plataformas virtuais, por meio do compartilhamento de impressões e julgamentos (blogs, vlogs, podcasts, playlists, posts, trailer honesto, vídeo-minuto). Essa prescrição fortalece, por um lado, a proposta de trabalho com os multiletramentos e as multissemioses na escola, diluindo o protagonismo dos gêneros e suportes tradicionais nesse espaço e incorporando novas manifestações da linguagem à lista de objetos escolarizáveis. Por outro lado, mais do que apurar o senso estético e legitimar novas formas de expressividade literária, é um movimento importante de conformação dos costumes às novas formas de sociabilidade mediadas pela tecnologia da comunicação, o que apresenta vantagens e inconvenientes. Inclusive, instrumentaliza (e não educa, no sentido profundo) o trabalhador formado ali para operar as forças produtivas, cada vez mais dependentes da dinâmica tecnológica.

Uma das habilidades de adesão e apreciação da literatura prevista para os anos finais (EF69LP46) busca promover a formação de comunidades de leitores, ao recomendar a participação dos alunos em rodas e clubes de leitura, eventos de contação de histórias e leituras dramáticas, ainda que o sistema escolar ou estatal não preveja nenhuma condição material para que isso se realize.

PERDAS E GANHOS DAS AMBIVALÊNCIAS IDEOLÓGICAS DA BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR

A despeito dos avanços incorporados pela BNCC no campo artístico-literário que dialogam com grande parte da discussão teórica sobre leitura literária na escola, é preciso atentar para o fato de que o enquadramento do debate em termos de competências e habilidades pode dar margem a uma concepção utilitarista de ensino de literatura. Nessa perspectiva, a literatura pode ser empregada como recurso para o desenvolvimento de “competências socioemocionais”, como “colaboração”, “comunicação”, “criatividade”, “pensamento crítico”, “resolução de problemas” e “abertura”, termos recorrentes na redação do documento, consideradas como promotoras de um melhor desempenho cognitivo dos alunos por organizações não governamentais interessadas pela educação. Importa saber a quem mais interessa a educação da sensibilidade dos cidadãos e em quais termos essa educação tem sido regulamentada: se pelo elogio da uniformização dos sentimentos ou se pela moldura democrática do pensamento livre e questionador.

Situando essas constatações no cenário político e econômico atual, percebe-se que o tratamento dos conteúdos escolares na direção de práticas comportamentais e emocionais compatíveis com a nova ordem liberal altera o próprio modelo de escola, que passaria a desempenhar o papel de assistência social e de segurança pública, mantendo crianças e jovens fora das ruas em permanente regulação ideológica (Catini, 2019) e simbólica. Esse movimento reflete também a preocupação da nova direita a respeito das ferramentas de manipulação dos afetos e da cognição, instaurando uma “pedagogia dos sentimentos populares” (Silva, 2015, p. 15), da qual são caudatários, igualmente, tanto os pedagogos da livre iniciativa e do livre mercado, quanto os educadores progressistas de verniz, bem-intencionados ou não.

De tudo que foi dito, é necessário que se faça agora a advertência mais importante: é, no mínimo, descabido exigir que uma criança ou adolescente pobre, pertencente a uma família de não leitores, que experimenta as mais adversas condições de sobrevivência e que tenha constituído poucos recursos simbólicos e emocionais para lidar com privações de toda ordem adquira o gosto pela leitura literária e “mostre-se” interessado e fruidor diante da experiência de leitura apenas a partir de sua frequência nas aulas de língua portuguesa. Evidentemente, haverá sempre exemplos contrários.

Como atesta os achados da sociologia da leitura (Escarpit, 1973; Lahire, 2004; Bourdieu, 2008; Horellou-Lafarge e Segré, 2010; Sapirò, 2019), o gosto é resultado de uma combinação de condicionantes nem sempre discrimináveis, composta de fatores internos à subjetividade do indivíduo e externos, como classe social de pertencimento, crenças religiosas e valores éticos e morais, redes de sociabilidades, cruzamento de práticas de linguagem, interpelações do sistema econômico e outros. Considerar apenas o vetor “escola” é, desde já, um reducionismo que não se sustenta.

No que diz respeito ao desenvolvimento da sensibilidade estética, embora a escola permita a testagem de uma gama de estratégias de ensino que giram entre o prazer-recreação e a fruição-estudo, não cabe a ela somente o desenvolvimento dessa disposição. É preciso oferecer condições materiais para a plena habilitação da fruição, condições que permitam a “[…] margem de lazer indispensável à leitura […]” (Candido, 1995, p. 257).

Para Antonio Candido (ibidem), também a faculdade de “fruir” depende da localização do sujeito na hierarquia das classes sociais, já que o pobre teria maiores impedimentos para conhecer e aproveitar a literatura. Aliás, mesmo para aqueles que podem dispensar tempo e energia à experiência puramente estética, o gosto autêntico pela literatura não é uma garantia dada.

[…] é revoltante o preconceito segundo o qual as minorias que podem participar das formas requintadas de cultura são sempre capazes de apreciá-las — o que não é verdade. As classes dominantes são frequentemente desprovidas da percepção e interesse real pela arte e a literatura ao seu dispor, e muitos dos seus segmentos as fruem por mero esnobismo, porque este ou aquele autor está na moda, porque dá prestígio gostar deste ou daquele pintor. Os exemplos que vimos há pouco sobre a sofreguidão comovente com que os pobres e mesmo analfabetos recebem os bens culturais mais altos mostram que o que há mesmo é espoliação, privação de bens espirituais que fazem falta e deveriam estar ao alcance como um direito. (ibidem, p. 262)

Se compete à escola se empenhar na oferta de oportunidades para que mais sujeitos experimentem a fruição e o prazer estético, também é dever do Estado assumir a responsabilidade de oferecer condições que sustentem essa experiência. Antes de o Estado — representado na voz do discurso oficial — recomendar que os leitores em formação se “mostrem” ou “estejam” interessados pela literatura, ele tem:

  1. o dever de promover hábitos de lazer concorrentes aos praticados pelo mercado cultural (que tanto magnetiza as novas gerações), centralizando, nessa posição, a prática da leitura literária;

  2. a obrigação de oferecer condições materiais para que esses sujeitos tenham tempo livre para a leitura de fruição;

  3. o encargo de tornar acessível o acesso a obras literárias de qualidade; e, por fim,

  4. o compromisso de investir na carreira docente e na formação de mediadores culturais realmente capazes de materializar uma educação literária qualificada por parte da instituição escolar.

Caso não seja enquadrada numa abordagem crítica, a propaganda curricular pautada pela exaltação do hedonismo irrestrito diante de manifestações literárias muito díspares, por exemplo, pode patrocinar prioritariamente o mercado, estimulando o “consumo” acrítico dos produtos da indústria cultural, a partir de um adestramento da recepção. Seguindo essa diretriz ideológica, fica a cargo do Estado, como preposto do mercado, controlar também as emoções convenientes dos sujeitos e, nesse caso, a literatura se apresenta como um meio com potencial para alcançar esse fim.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir das orientações oficiais que controlam a circulação de conhecimentos na escola, como a BNCC, pode-se construir, como procuramos demonstrar, um currículo que promova a conformidade alienante ao status quo ou um currículo que estimule a emancipação: depende, no fim das contas, da atuação do professor, de suas crenças, seus valores, seu repertório teórico e ético e, claro, dos recursos físicos e emocionais que tem a dispor para a consecução de seu trabalho.

Neste artigo, buscamos evidenciar que o investimento na formação do leitor literário na escola não pode desconsiderar — ou considerar neutralizando — as privações materiais mais urgentes presentes na sociedade brasileira, em especial na escola básica pública, e que interferem diretamente (embora não determine) na formação do gosto pela literatura e no alcance da fruição estética. A fim de acentuar essa posição, nos servimos, palavra a palavra, da consideração de Graça Paulino (2011, p. 224-225) a respeito do caráter político da atuação nessa frente de estudos:

[…] antes de tomarmos posições sobre políticas públicas de democratização da leitura, ou sobre a primazia dos livros ou da banda larga nas escolas e nas casas pobres do país, pensemos de modo mais crítico e mais amplo: essa carência se soma a outras, ainda não resolvidas, como saneamento básico ou educação e saúde públicas de qualidade. A educação não existe fora da vida cotidiana das pessoas, isso nos ensinou Paulo Freire. Nem a arte.

Nesse caso, a condição de não leitor de literatura seria mais uma carência (das mais relevantes) somada a outras, mas que, se suprida convenientemente, poderia amainar a violência das demais e, principalmente, oferecer uma importante ferramenta de emancipação, no sentido gramsciano, de reação e resistência obstinada.

Da perspectiva do sujeito leitor, acreditamos que o prazer diante da literatura não decorre apenas de um conjunto de “habilidades” e “competências” que, se apreendidas instrumentalmente, poderiam atribuir-lhe o qualificativo de leitor proficiente. Como procuramos demonstrar por meio da análise discursiva das sete habilidades do apreciar presentes na BNCC, o ensino de literatura perde seu direito à “intransitividade” (Durão, 2017) e assume o caráter utilitarista e segue a lógica das aparências a que, de resto, são levados todos os componentes curriculares sob o respaldo da lógica neoliberal.

Como procuramos demonstrar, os rituais de percepção da matéria literária são objeto de aprendizagem gradativa, isto é, o gosto pela literatura é construído pela imersão em vivências culturais e, quase sempre, pela coação de instituições interessadas. Porém, se concebidas como instrumentos, as famigeradas “habilidades” e “competências” não passariam de técnicas mistificadas, abstratas e desprovidas de historicidade. Ao invés disso, consideramos que as circunstâncias materiais do sujeito conduzem, direta e indiretamente, seu comportamento diante dos produtos simbólicos valorizados pela cultura escrita e, mais especificamente, diante da narrativa literária. Portanto, como defende Rajagopalan (2019, p. 33) ao discutir a BNCC, é preciso “[…] começar pela realidade do aluno e não pela meta a ser atingida […]”, invertendo radicalmente a perspectiva política dessa meta educacional.

Embora o discurso oficial sobre o tema se limite a considerar apenas questões educacionais que interferem no estabelecimento de uma relação afetiva de conhecimento da literatura, não perdemos de vista o impacto de determinações outras, mais viscerais, que investem sobre a formação do interesse pela literatura na escola, pois “[…] o excluído de fato da leitura não é o sujeito que sabe ler e não gosta de romance, mas o mesmo sujeito que, no Brasil atual, não tem terra, não tem emprego, não tem habitação.” (Britto, 2015, p. 83). O leitor faminto, explorado e violentado física e culturalmente é um leitor improvável (mas, não impossível, felizmente).

Entendemos, por fim, que a tarefa de promover uma disposição favorável diante da obra literária é prioritária da instituição escolar, que a deve cumprir não como uma indulgência, mas como a consumação de um direito, sem coerções ideológicas incompatíveis com a liberdade expressiva da arte. O desafio ainda é promover metodologias e abordagens de ensino capazes de absorver as contradições objetivas materializadas na prática social de leitura, viabilizando um letramento literário real e não afetado ou aparente. Que caibam nele sensações opostas e até irreconciliáveis. Que nele caibam o prazer e o desgosto, a fruição e a indiferença, o discernimento e o devaneio, replicando, aliás, a aventura humana dentro e fora da ficção. A complexidade da leitura literária, materializada por uma acumulação dialógica de múltiplas dimensões, exige que se articule dialeticamente o movimento de implicação subjetiva ao de responsividade racionalizante por parte dos leitores em formação na escola básica.

Ademais, diante do cenário político-educacional contemporâneo, a única resposta alternativa possível ao discurso neoliberal infiltrado no tecido dos discursos curriculares consiste no reenquadramento do ensino de literatura em um modelo democrático de escola — ao menos por parte da mediação docente —, pautado pelos valores da igualdade de direitos, da justiça social e, por isso mesmo, organizado sob a premissa do direito a uma apreensão qualificada das obras literárias.

1Expressão empregada, neste trabalho, para nomear as habilidades que, de acordo com o documento, os alunos precisariam adquirir para se envolverem emocionalmente com a leitura literária, promovendo a célebre fruição estética.

2Foi o filósofo Achille Jules de Gaultier quem fixou o conceito, que tem sido empregado produtivamente no campo da psicologia, inspirado na personagem Emma Bovary, do romance Madame Bovary, de Gustave Flaubert. Segundo Glenadel (2009, grifos do autor), “[…] o bovarismo consiste […] numa insatisfação romanesca com a realidade, numa inversão do olhar, e demonstra a incapacidade de assumir uma posição crítica em relação à ficção.”.

3Não vamos nos valer, neste artigo, da distinção feita por Barthes (2015) entre os conceitos de prazer (plaisir) e de fruição (jouissance) e das consequências especulativas advindas dela. O mesmo Barthes assume a precariedade da terminologia e os deslizamentos de sentido a que está sempre sujeita.

4Orientamos o leitor a buscar, na íntegra, as sete habilidades estudadas aqui no documento tal como disponível no site do Ministério da Educação: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/. No arquivo em formato PDF, as habilidades referidas encontram-se, respectivamente nas páginas 97, 111, 133, 157, 159, 169, 187.

Financiamento: O estudo não recebeu financiamento.

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Recebido: 21 de Fevereiro de 2022; Aceito: 08 de Agosto de 2022

Ivanete Bernardino Soares é doutora em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professora da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). E-mail:iva.bsoares@ufop.edu.br

Conflitos de interesse: A autora declara que não possui nenhum interesse comercial ou associativo que represente conflito de interesses em relação ao manuscrito.

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