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Revista Brasileira de Educação

versão impressa ISSN 1413-2478versão On-line ISSN 1809-449X

Rev. Bras. Educ. vol.28  Rio de Janeiro  2023  Epub 09-Out-2023

https://doi.org/10.1590/s1413-24782023280101 

Artigos

Escrevivências: possibilidades para uma educação antirracista

ESCREVIVÊCIAS: POSIBILIDADES DE UNA EDUCACIÓN ANTIRRACISTA

Nathália Pereira de OliveiraI  , Conceituação, Curadoria de Dados, Análise Formal, Metodologia, Administração do Projeto, Recursos, Visualização, Escrita – Revisão e Edição, Obtenção de Financiamento, Escrita – Primeira Redação
http://orcid.org/0000-0001-6546-8681

Regina Lúcia Sucupira PedrozaI  , Conceituação, Curadoria de Dados, Análise Formal, Metodologia, Administração do Projeto, Recursos, Visualização, Escrita – Revisão e Edição, Supervisão
http://orcid.org/0000-0003-2251-5040

Lúcia Helena Cavasin Zabotto PulinoI  , Conceituação, Curadoria de Dados, Análise Formal, Metodologia, Administração do Projeto, Recursos, Visualização, Escrita – Revisão e Edição, Obtenção de Financiamento, Supervisão
http://orcid.org/0000-0002-4701-2872

IUniversidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil.


RESUMO

Neste estudo discutimos o conceito de escrevivência, cunhado por Conceição Evaristo, como possibilidade de prática pedagógica alinhada com as prerrogativas da Lei n.° 10.639/2003. Partimos da noção de assunção de si de Paulo Freire, da defesa de uma educação como prática da liberdade, de bell hooks e da escrevivência de Evaristo para pensarmos práticas educativas que considerem, de modo plural, as perspectivas de sujeitos historicamente marginalizados, com base em suas vivências múltiplas. Dessa forma, ouvimos como estudantes do Ensino Médio de uma escola pública do Distrito Federal percebem a dinâmica das relações raciais no ambiente escolar. Apoiados em suas vivências, os/as adolescentes sinalizaram modificações nas atividades e nas dinâmicas relacionais da escola quando se trata da temática racial, fomentando assim a potência da escrevivência como prática pedagógica que possibilita uma educação antirracista.

PALAVRAS-CHAVE relações raciais; negritude; ensino médio; escrevivência

RESUMEN

En este estudio discutimos el concepto de escrevivência, acuñado por Conceição Evaristo, como una posibilidad de práctica pedagógica alineada con las prerrogativas de la Ley no. 10.639/2003. Partimos de la noción de assunção de si, de Paulo Freire, de la defensa de la educación como práctica de libertad, de bell hooks, y de la escrevivência de Evaristo para pensar en prácticas educativas que consideren de manera plural las perspectivas de sujetos históricamente marginados, a partir de sus experiencias múltiples. Así, escuchamos cómo los estudiantes de secundaria de una escuela pública del Distrito Federal perciben la dinámica de las relaciones raciales en el entorno escolar. A partir de sus vivencias, los adolescentes señalaron cambios en las actividades y en las dinámicas relacionales de la escuela en temas raciales, promoviendo así el poder de la escrevivência como práctica pedagógica que posibilita una educación antirracista.

PALABRAS CLAVE relaciones raciales; negrura; escuela secundaria; escrevivência

ABSTRACT

In this study we discuss the concept of escrevivência [writing-living], created by Conceição Evaristo, as a possibility of pedagogical practice aligned with the prerogatives of Law No. 10.639/2003. We use Paulo Freire's notion of assunção de si, bell hooks's defense of education as a practice of freedom, and Evaristo's escrevivência concept to think about educational practices that consider the plural perspectives of historically marginalized subjects, based on their multiple experiences. Thus, we heard how high school students from a public school in the Federal District perceive the dynamics of racial relations in the school. From their experiences, the adolescents signaled changes in the activities and in the relational dynamics of the school when it comes to racial issues, thus promoting the power of escrevivência as a pedagogical practice that enables an anti-racist education.

KEYWORDS racial relations; blackness; high school; escrevivência

INTRODUÇÃO

Como local de múltiplos encontros, a escola configura-se como um contexto de interação e sociabilidade e também de propagação e questionamento de ideologias. Para além de um compartilhamento de informações, tidas como neutras, a escola difunde e fortalece valores, crenças, hábitos, preconceitos raciais, de classe e de gênero (Gomes, 2003a), assim como pode permitir o acesso aos objetos de cultura (Pedroza, Oliveira e Pulino, 2020). Dessa forma, o contexto escolar pode tanto se configurar como um espaço que funciona a favor de um aparelho ideológico hegemônico como assumir uma posição que permite o desenvolvimento de formas autônomas de subjetividade.

Se é por meio da educação que a cultura introjeta os sistemas de representação utilizados na vida cotidiana, e sendo a escola uma das instituições responsáveis por processos educativos, pensamos que a instituição de ensino reflete e (re)constrói aspectos culturais. Nas atividades referentes às relações raciais, essas representações influenciam a maneira como são formadas algumas concepções a respeito da negritude e o modo como a identidade negra se constrói nesse processo. Ressaltamos que essas atividades não se dão apenas de forma programada, por meio de conteúdos, mas também na construção das relações que acontecem no âmbito escolar, nos eventos promovidos pela instituição e nas articulações e comunicações que a escola faz com outros espaços culturais e comunitários (Souza, 2016).

Legalmente, o estudo da história da África e dos africanos, da luta, da cultura e da contribuição da população negra para a formação da sociedade nacional está previsto na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB — Lei n.° 9.394 — Brasil, 1996) de 1996. Os artigos 26A e 79B foram incluídos e modificados pela Lei n.° 10.639/2003 (Brasil, 2003), que determina a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”. Além disso, tais artigos têm desdobramentos na Resolução do Conselho Nacional de Educação/Conselho Pleno 01/04 (CNE/CP 01/04 — Ministério da Educação, 2004b) e no Parecer 003/04 (Ministério da Educação, 2004a), que objetivam reconhecer, divulgar, promover e produzir conhecimentos e atitudes que valorizem a pluralidade étnico-racial bem como a educação. De modo amplo, o aparato legal mencionado visa formar cidadãos que negociem modificações sociais, levando em consideração o respeito aos direitos e a valorização da identidade, com o intuito de buscar a consolidação da democracia brasileira.

Se por um lado temos as possibilidades abertas pela lei, por outro temos as dificuldades que se colocam quando se fala sobre as atividades a respeito das relações raciais realizadas no cotidiano escolar (Coelho e Dias, 2020). De certo modo, os materiais utilizados, a crença de que a raça só pode ser trabalhada em disciplinas de humanidades, a estereotipação da negritude, a formação dos/as educadores, além da falta de articulação com as experiências raciais concretas dos/as estudantes, colocam-se como empecilhos para a construção de uma educação libertária, democrática e diversa.

Dentre as várias mudanças possíveis e necessárias para a ampliação do debate racial na escola, destacamos a importância da ancoragem das atividades realizadas nas experiências vividas pelos/as estudantes. Desse modo, podemos pensar em uma educação que valorize aquilo que é experienciado pelos sujeitos que a compõem como pedagógico e político, de modo a abrir espaço para a diversidade, visando à construção de uma sociedade democrática e plural. Dessa forma, o presente artigo tem por objetivo discutir o conceito de escrevivência, cunhado por Conceição Evaristo (2020a), como possibilidade de prática pedagógica que se alinha com as prerrogativas da Lei n.° 10.639/2003 (Brasil, 2003). Para tanto, com base nas vivências de estudantes negros/as no contexto escolar, escutamos como eles/as percebem a dinâmica das relações raciais na escola.

AS RELAÇÕES RACIAIS NO DISCURSO ESCOLAR

Diante de uma sociedade racista, é possível pensar na escola como uma instituição que pode favorecer, em alguma medida, formas de transmissão sutis e consolidadas de diversos tipos de discriminação, dentre as quais a difusão de representações pejorativas sobre a negritude. A formação de um discurso discriminatório e racista revela-se, dentre outros fatores, em materiais didáticos que omitem a existência e o posicionamento de grupos étnicos em diversos momentos da história e/ou no despreparo de educadores/as para tratar de temas como as relações étnico-raciais (Coelho e Coelho, 2018).

A forma como o negro é nomeado e definido no ambiente escolar pode ser compreendida pelo modo como sua história é contada. A história da África e dos africanos restringe-se ao período escravocrata. Falar sobre o negro no Brasil reduz-se a mencionar o colonialismo, o tráfico de pessoas e a escravidão, que foi finalizada supostamente sem resistência, luta e pressão política ou econômica em 1888. O corpo negro, representado apenas no período da escravidão, aponta para como ele é visto socialmente: “corpo escravo, servil, doente e acorrentado” (Gomes, 2003b, p. 81). A restrição na forma como a história do negro é trabalhada no Brasil dá-se em parte por uma necessidade de reformulação do material didático, que não promove reflexões ou embasa debates, e pela postura dos/as educadores/as em sala de aula, que muitas vezes não se encontram preparados/as ou amparados/as institucional e socialmente para iniciar algumas discussões (Ramos e Santoro, 2017).

Além da forma como a negritude é descrita e assimilada nos livros didáticos, destacam-se também os trabalhos normalmente realizados no Dia da Consciência Negra em 20 de novembro, instituído pela Lei n° 12.519/2011 (Brasil, 2011) e escolhido por se referir à morte de Zumbi dos Palmares, símbolo da resistência negra no Brasil. Ainda que a data sirva como modo de ressaltar a luta da população negra, bem como contribuir para a ressignificação do que é ser negro/a no Brasil, muitas vezes é tratada como momento único em que a questão racial é mencionada, contribuindo para a exotização da negritude e a construção do “diferente” como outro e distante (Coelho e Coelho, 2018).

Ao enxergar a escola como espaço de socialização, encontros e trocas, torna-se importante incluir nas atividades sobre questões raciais as relações que se estabelecem no âmbito escolar, com o intuito de reduzir, também, o preconceito e as práticas racistas. Isso porque a cultura na escola se materializa por meio de gestos e ações, muitas vezes intencionais, desde o silenciamento de grupos minoritários nas propostas curriculares e nos livros didáticos até as brincadeiras que refletem o racismo à brasileira. Apesar da violência que caracteriza esse racismo, ela fornece ao seu praticante as defesas necessárias, a ponto de dificultar a sua nomeação como racismo, já que possui muitas interpretações possíveis e é lido socialmente como inocente e trivial (Moreira, 2020).

Por outro lado, é importante destacar que a escola também tem sido um espaço no qual se constroem representações positivas da negritude, em parte por movimentações da comunidade negra, do Movimento Negro e das famílias (Gomes, 2003b). Ainda que se configure como um dos cenários no qual a cultura hegemônica se manifesta e se estabelece, a escola pode ser entendida também como um contexto no qual pensamentos e reflexões, ainda marginalizados, ganham espaço. Novas posturas diante do tema das relações raciais constituem formas de promoção de igualdade e justiça social, e, em outros aspectos, de criação de uma sociedade mais democrática e igualitária no que se refere ao respeito às diferentes raças e não à mera tolerância delas.

PERSPECTIVAS PARA UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA

As atividades relacionadas à temática racial requerem aprimoramento para estar de acordo tanto com aquilo que é estabelecido legalmente quanto com o discurso que promove a diversidade. Assim, uma mudança efetiva precisa de iniciativas que se apliquem no cotidiano escolar e de um posicionamento questionador e crítico diante daquilo que é posto como verdade. Nesse sentido, torna-se necessária a defesa de uma educação politizada (hooks,1 2013), diferentemente de uma educação bancária (Freire, 2011), que questione e se posicione diante das hierarquias sociais e dos sistemas de dominação existentes.

No âmbito curricular, mostram-se necessárias a revisão daquilo que é colocado como central em termos de conteúdo e uma crítica à marginalização que se faz dos povos racializados de modo geral e, mais especificamente, do povo negro. Um posicionamento crítico e reflexivo em torno dos conteúdos coloca em pauta que a história que se conta, bem como os autores e teorias que são trabalhados em diversas disciplinas revelam um saber construído na parte norte do mundo. Uma educação politizada e antirracista pressupõe que os saberes ditos universais não são neutros e que há uma lógica hierárquica e de dominação que os naturaliza como verdades (hooks, 2013).

Faz parte da educação um compromisso com a ética, e tal comprometimento passa por um respeito pelo que vem do outro e pelas influências que ele traz consigo, sem um julgamento prévio ou um equacionamento do que pode ser certo ou errado (Freire, 2011). Nessa perspectiva, reconhece-se a historicidade do conhecimento e a percepção de que não existe apenas uma forma de se conceber o mundo. Retira-se, portanto, a figura do/a educador/a como detentor/a do saber, ao mesmo tempo em que é possível o questionamento daquilo que é apresentado como verdade pela consideração do que vem dos contextos culturais e das vivências cotidianas tão particulares dos/as estudantes.

A assunção de si, nomeada por Paulo Freire (2011) como forma de assumir-se como sujeito histórico e transformador da realidade não pode ser dissociada da prática pedagógica, de modo que aquilo que vem da cultura e do posicionamento dos sujeitos na sociedade também faz parte da educação tanto quanto os conteúdos que são ensinados atualmente. Os gestos, a organização dos espaços, as emoções e as relações são então ressaltados e privilegiados no espaço escolar, como modos diversos de lidar com o conhecimento.

Desse modo, pode-se observar como o espaço escolar, os corpos, os encontros e os discursos presentes na escola traduzem as relações raciais nesse espaço. Onde estão as pessoas negras na instituição? Como elas estão vestidas? Como são tratadas? Quais são os momentos de entretenimento? O que faz rir? O que causa embaraço? Quais discursos são considerados exagero? Quais mídias são escolhidas para falar sobre raça? Em quais contextos? Quais toques, emoções, elogios e críticas são permitidas? A quem são dirigidas?

A própria reflexão sobre os corpos presentes em sala de aula — do/a professor/a e do/a estudante — também diz sobre como o poder é legitimado nesse ambiente, assim como traduz o modo neutralizado como o conhecimento é passado, como se este não surtisse efeitos naqueles/as que fazem parte dos processos de ensino-aprendizagem. No entanto, entendemos que o corpo carrega uma história e ser um educador branco é muito diferente de ser uma educadora negra, por exemplo. Dar-se conta do espaço de fala que possuem um homem branco e uma mulher negra é também romper com barreiras políticas dentro da própria sala de aula, em vez de neutralizar a presença do corpo no espaço escolar (hooks, 2013).

Da mesma forma que o corpo do/a educador/a diz de uma história, o corpo do/a estudante também se posiciona nesse mesmo sentido. É necessário, portanto, voltar-se para a presença dos corpos enquanto questionadores de ideologias e da forma como o poder se instaurou nas próprias instituições educativas (hooks, 2013). Trata-se de questionar, portanto, o modo como a questão racial é lida em sala de aula, ora como sem importância, ora como recorte/qualificador, e não como atravessadora de experiências que determinam oportunidades e locais de poder. Nesse contexto, raça é entendida como um fator desimportante, emocional, particular, tratando-se de episódios isolados que devem ser colocados em suspenso, já que o interesse é pela produção e transmissão de um saber científico, objetivo, higienizado (Sousa e Izaú, 2017; Kilomba, 2019).

Lidar com o corpo e com a assunção de si dentro de sala de aula é estar diante de diferentes histórias que influenciam as relações no espaço educativo e, portanto, a forma de lidar com o próprio saber. A inserção do tema das relações raciais ultrapassa, nesse sentido, a inclusão de conteúdos no currículo, exigindo uma nova postura no ambiente escolar que coloque a temática enquanto fator que atravessa também as relações.

O PESSOAL COMO POLÍTICO: AS VIVÊNCIAS NA PRÁTICA EDUCATIVA

A construção de uma pedagogia engajada pressupõe que a educação se dá a partir do momento em que se estimula a vontade de pensar, e que o aprendizado se desenvolve quando estudantes e educadores/as interagem. Para isso, é necessário que se conheça quem são os/as estudantes, de onde eles/as vêm, quais são as suas histórias. O envolvimento emocional estimulado por essas interações gera implicação, consciência e percepção daquilo que será estudado (hooks, 2020).

Dar importância para o diálogo e para o pensamento crítico pressupõe a escuta de todas as vozes envolvidas no processo de ensino-aprendizagem e a necessidade de os/as educadores/as manterem-se abertos para que as reflexões possam acontecer (hooks, 2020). Ainda que a história pessoal não seja vista como acadêmica, entendemos que a forma como falamos de nós mesmos constitui como nos vemos e, portanto, diz de nossa subjetividade, que só se constrói com a vivência (Evaristo, 2020a). É de posse daquilo que lhe é próprio que o/a estudante se engaja, reflete, critica e destitui o saber como neutro, já que as histórias, os atravessamentos e as significações das vivências são múltiplas.

A inserção de temáticas que dialoguem com a vida dos/as estudantes, assim como espaços que privilegiem as histórias de si, vem na contramão de uma educação que se coloca como neutra e não questiona os locais de poder, privilégio e naturalização de opressões. Dessa forma, abre-se espaço, no contexto escolar, para outras narrativas que contribuem para a problematização desse saber dado como universal e, consequentemente, para a possibilidade de questionar os estereótipos criados em torno do corpo e da existência do/a negro/a (Souza, Miranda e Silva, 2020).

Existem situações que atravessam o corpo de uma mulher negra que não serão vivenciadas pelo corpo de uma pessoa que não possua esses marcadores sociais (Evaristo, 2009). Não sendo também um corpo, uma vivência que ocupa os espaços de poder, não será a narrativa privilegiada quando se conta a história nem quando se determina qual será o conteúdo obrigatório ou a escrita que é considerada acadêmica e científica. Reside aqui a potencialidade de traçar as narrativas sobre si mesmo concomitantemente com a tessitura das histórias de uma coletividade marginalizada.

Nesse ponto, articulamos o conceito de assunção de si (Freire, 2011) enquanto modo de entendermos estudantes e educadores/as como sujeitos históricos, com a contribuição de hooks (2020) a respeito de como as histórias pessoais ganham importância no espaço pedagógico e desestruturam a construção de uma narrativa supostamente neutra. Desse modo, assumimos que a assunção de si e a proposta de uma educação como prática da liberdade se articulam com o conceito de escrevivência de Evaristo (2020a, p. 30), definido pela autora como “[…] uma ação que pretende barrar, desfazer uma imagem do passado, em que o corpo-voz das mulheres negras escravizadas tinha sua potência de emissão também sobre o controle dos escravocratas”.

Evaristo estabelece que a escrevivência como escrita de si, das próprias vivências, como ato de se ver, subverte o controle dos escravocratas sobre a voz de mulheres negras, visto que, de início, já se trata de uma escrita de autoria negra, diferente daquelas contadas na e para a casa-grande. Nesse sentido, a escrevivência constitui memória a partir do momento em que permite a construção de novos universos, outros sistemas simbólicos — diferentes do dito hegemônico —, permitindo novos olhares e novas formas de existência (Barossi, 2017).

A escrita é então a (re)tomada dessa voz pela apropriação dos signos linguísticos, sem que, para isso, a herança oral seja abandonada. A escrita como apropriação dos signos linguísticos, portanto, permite uma autoinscrição no mundo e torna-se central no conceito de escrevivência.

A escrevivência como escrita para além de uma descrição de si, mas como uma escrita que se faz pautada por uma vivência não se qualifica como uma narrativa meramente narcísica, visto que não se encerra em si, mas diz de uma coletividade. Desse modo, ao mesmo tempo que se configura como a escrita de uma vivência, ultrapassa a própria dicotomia biográfico-ficcional para registrar o pessoal e o coletivo em uma mesma literatura (Silva, 2020). Há de considerar que se trata de uma escrita também política, insubordinada, que revela uma memória e reescreve a história da população negra, antes colocada de uma perspectiva colonial; logo, não se faz de modo inocente (Leite e Nolasco, 2019; Evaristo, 2020b).

Nessa construção, a literatura e a escrita são ao mesmo tempo uma forma de suportar o mundo e um modo de se inserir nele (Evaristo, 2020b). Vemos, nesse sentindo, o ato de escreviver como possível na prática pedagógica ao permitir a autoinscrição em um contexto tão higienizado, lido como neutro e objetivo, mas que traduz uma série de relações de dominação e opressão. Dessa forma, o presente artigo tem por objetivo discutir o conceito de escrevivência, cunhado por Conceição Evaristo (2020a), como possibilidade de prática pedagógica que se alinha com as prerrogativas da Lei n.° 10.639/2003 (Brasil, 2003). Para tanto, com base nas vivências de estudantes negros/as no contexto escolar, escutamos como eles/as percebem a dinâmica das relações raciais na escola.

METODOLOGIA

Tendo em vista o objetivo proposto, tecemos discussões com estudantes de uma escola pública de Ensino Médio do Distrito Federal sobre como eles/as entendem a dinâmica das relações raciais no espaço escolar.2 O intuito dos encontros era criar, conjuntamente com os/as estudantes, um espaço em que eles/as pudessem falar livremente sobre suas percepções e experiências a respeito das dinâmicas raciais na escola, tanto em termos pedagógicos quanto relacionais. Apoiados nessas discussões, os/as estudantes teceram formas possíveis de debater a temática racial na escola. Tais construções emergiram, especialmente, quando os/as estudantes implicaram-se nas discussões com base em suas vivências.

A escola em questão foi escolhida por se localizar em uma cidade-satélite do Distrito Federal, além de atender adolescentes de diferentes regiões administrativas, possibilitando, em um mesmo lugar, o acesso a pessoas de diferentes contextos. Somando-se a isso, a escola já tinha demonstrado abertura para acolher projetos de pesquisa e extensão que trabalhavam com a temática racial, bem como desenvolve um projeto político pedagógico que se compromete explicitamente com o trabalho voltado para a diversidade étnico-racial.

Um dos objetivos em seu Projeto Político Pedagógico era o compromisso com a diversidade e com os direitos humanos, por meio da criação de práticas que possibilitassem o questionamento de valores, normas e direitos existentes, assim como a implementação de ações voltadas para o reconhecimento e a valorização de grupos marginalizados, como negros/as — apoiando-se nas determinações da Lei n.° 10.639/2003 (Brasil, 2003) —, mulheres, população LGBT, indígenas, moradores/as do campo, entre outros.

Participaram dos grupos apenas estudantes autodeclarados/as negros/as, que se disponibilizaram voluntariamente após a divulgação da realização dos encontros na escola em turno contrário às aulas. Por esse motivo, somente estudantes do 2° e 3° anos puderam participar, já que os grupos se reuniam no período da tarde e todas as turmas de 1° ano tinham suas aulas nesse mesmo turno.

Os encontros realizados com os/as estudantes foram abertos, permitindo a entrada e a saída dos/as participantes quando desejassem. O primeiro encontro contou com a presença de dez estudantes — seis meninas e quatro meninos. No entanto, três das meninas não retornaram para nenhum dos grupos subsequentes. O Quadro 1 abaixo mostra a caracterização de cada participante, com dados informados em questionário sociodemográfico oferecido no início do primeiro grupo, bem como os encontros em que cada participante esteve presente.

Quadro 1 Características dos/as participantes. 

Nome Idade Série Sexo Participação nos encontros
Alice 17 3° ano Feminino
Carolina 17 3° ano Feminino
Beatriz 17 2° ano Feminino
Luiz 16 2° ano Masculino 1° e 2°
Diogo 16 3° ano Masculino 1° e 2°
Manson 17 3° ano Masculino 1° e 4°
Joana 16 3° ano Feminino 1°, 2° e 4°
Lorena 16 2° ano Feminino 1°, 2°, 3° e 4°
Elisa 17 3° ano Feminino 1°, 2°, 3° e 4°
Ramon 18 3° ano Masculino 1°, 2°, 3° e 4°

Fonte: Elaboração das autoras.

Todos os nomes utilizados nessa pesquisa são fictícios, de modo a manter o sigilo e confidencialidade dos/as participantes.

Realizamos Espaços de Discussão, inspirados no “Projeto Espaço de Reflexão, Prática e Divulgação em Filosofia, Artes e Humanidades: Espaço Aion”, desenvolvido na Universidade de Brasília pela professora Lúcia Helena Cavasin Zabotto Pulino. O Aion configura-se como um local que preza o questionamento de conceitos que são apresentados como verdades desde a infância. Os encontros baseiam-se em perguntas elaboradas pelos/as participantes. O propósito do Aion é compreender as perguntas, contextualizá-las e pensar nas várias possibilidades de respondê-las sem, no entanto, elencar alguma das possíveis respostas como a melhor para todos/as, mas respeitando-se a fala de cada um/a, permitindo-se a escuta do outro e de si mesmo/a. Forma-se, então, um espaço aberto em que os/as participantes podem se colocar sem o receio de serem julgados/as. Para fomentar os diálogos, utilizam-se os chamados pretextos — filmes, contos, fotos, músicas (Pulino, 2007; 2010).

Os Espaços de Discussão inspirados no Espaço Aion possibilitaram uma fala espontânea, na qual os/as estudantes eram incentivados/as a relatar o que estavam pensando no momento. No decorrer das discussões, os/as estudantes formulavam perguntas e respostas ancoradas nas suas experiências dentro e fora da escola. Desse modo, acreditamos que tais espaços possibilitaram as expressões e as falas das vivências dos/as estudantes, de modo que eles/as pudessem privilegiar suas histórias e percepções sobre a questão racial que os/as atravessa cotidianamente. Promovemos, portanto, quatro encontros, com duração média de 2 horas cada. As discussões foram fomentadas por desenhos realizados em pequenos grupos (primeiro encontro), fotos (segundo encontro), memes que circulam nos grupos na escola (terceiro encontro) e temas trazidos pelos/as estudantes sobre a dinâmica das relações raciais no âmbito escolar (quarto encontro).

Mais especificamente, o primeiro encontro teve como temas centrais a discussão do que era igualdade e preconceito e o questionamento sobre a existência de racismo na escola. O segundo encontro girou em torno de como os/as estudantes percebiam tanto as atividades voltadas para a diversidade racial na escola como episódios racistas que aconteciam dentro da instituição. O terceiro encontro teve como tema central o questionamento sobre se alguns memes e piadas que circulavam nos grupos de WhatsApp dos/as estudantes eram ou não racistas. Por fim, o último encontro trouxe, principalmente, indagações sobre quais fatores e experiências foram marcantes para que eles/as se identificassem enquanto pessoas negras.

Todas as discussões foram gravadas em áudio. Para a análise dos resultados, as gravações foram transcritas e seu conteúdo foi lido e organizado em temas, como será apresentado a seguir.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

DA POSSIBILIDADE DE ESCUTA À NOMEAÇÃO DO RACISMO

Inicialmente, a expectativa dos/as participantes era de que a pesquisadora que mediou os grupos fosse dar uma espécie de palestra ou curso sobre relações raciais, ainda que tenha sido reforçado que o objetivo do grupo era saber as visões deles/as a respeito das relações raciais em sua escola. No decorrer dos encontros, os/as estudantes modificaram suas percepções sobre a participação que teriam nas discussões.

Essa expectativa, que algumas vezes se traduziu em inquietação, revela o modelo de uma educação tradicional em que, muitas vezes, não se espera falar e sim ouvir e absorver os conteúdos ditos por aquele que detém o poder em sala de aula, nos moldes de uma educação bancária (Freire, 2011).

Esse fator fica evidente quando os/as estudantes dizem que não existe nenhum espaço na escola em que eles/as possam falar sobre suas vivências. Ainda que alguns/mas educadores/as promovam debates em sala de aula sobre as relações raciais, os/as estudantes entendem esses espaços como suscetíveis à formação de brigas e piadas sobre a negritude.

De certo modo, falar, especialmente daquilo que nos atravessa, como as questões raciais, exige certo tipo de exposição e implicação. No entanto, os/as estudantes ressaltaram que o que acontece na sala de aula, diferentemente de uma exposição que promova a visualização de outras formas de vida e descentre um saber hegemônico (hooks, 2013), leva a estereotipações e a mais casos de racismo. Nesse aspecto, os/as estudantes salientam que o contexto formado pelos Espaços de Discussão não se encontra em outros locais da escola, ainda que eles/as sintam a necessidade dessas trocas. Entendemos que, ao longo dos encontros, os/as estudantes sentiram-se à vontade para falar das atividades realizadas na escola sobre relações raciais mais atreladas às suas vivências, dores, alegrias, dúvidas e aos seus receios e posicionamentos, outrora tidos como meramente pessoais. Baseados nisso, destacaram o que consideravam que poderia ser implementado, aprimorado, reduzido e reformulado quando se trata do debate racial na escola.

Os silenciamentos dão-se a partir do momento em que o branco e o discurso colonial é que tecem comentários, categorizações e nomeações sobre o sujeito negro. A este, no entanto, não é dado o direito de se manifestar, criando outras possibilidades de ser/estar no mundo que não sejam aquelas atreladas à inferioridade (Fanon, 2008).

Ao pensarem em imagens que simbolizassem o trabalho das relações raciais na escola — tanto por meio de desenho quanto pelas fotografias —, os/as adolescentes levantaram alguns questionamentos e debates que se alteraram entre os grupos. Em um primeiro momento, eles ressaltaram que a escola era um espaço de promoção de igualdade, fosse porque reunia pessoas que tinham as mesmas necessidades, como, por exemplo, comer, quando se juntavam no refeitório, ou estudar, quando o espaço comum era a biblioteca, fosse porque a escola é um local que possibilita a democratização de conhecimento e oportunidades.

Em um segundo momento, quando a discussão girou em torno do racismo explícito na sociedade, os/as estudantes começaram a se questionar se a escola era, de fato, esse espaço igualitário. Isso porque, primeiramente, ela não se configura como uma instituição apartada da sociedade; e porque, de modo geral, deixar disponíveis materiais, como os livros na biblioteca, não significa que as oportunidades serão as mesmas. Os/as adolescentes destacaram que existe uma estrutura que gera uma série de impossibilidades em termos de acesso, disponibilidade de tempo e dedicação para que essas oportunidades possam ser as mesmas para todos/as.

Pensando no povo negro escravizado que não teve amparo do Estado após a abolição, Elisa, estudante do 3° ano, salienta que o fato de a escola quase não ter professores/as negros/as evidencia essa face do racismo, já que a falta de reparação histórica impede que pessoas negras ascendam socialmente:

Infelizmente, os negros são os que mais ocupam a favela, os negros são os que são mais são parados por policiais. A maioria dos médicos, como a gente tava falando, são brancos, e a gente quase não tem professor negro na escola, na sala de aula, entendeu? Eu não tenho. Elas também não. E quando eu tentei fazer um debate/um negócio de literatura que a gente teve que entrevistar, a gente só encontrou uma professora negra na escola, é a de PI ou de Sociologia. (Elisa, 3°ano)

Podemos perceber, nessa fala de Elisa, que ainda que a contratação de professores/as não seja decidida diretamente pela escola, já que se trata de uma instituição pública, a ausência de educadores/as negros/as reflete o modo como o racismo está presente no âmbito escolar. Dessa forma, a escola, como parte da sociedade e sujeita às dinâmicas do racismo estrutural, cria e mantém diferenças raciais.

É por meio desse debate que os/as estudantes passam a discutir se, de algum modo, eles/as não foram treinados/as para não perceber algumas manifestações do racismo e, dessa forma, não reagir a ele, ou se, na verdade, os racismos ficaram mais velados, fator que também dificulta um posicionamento de denúncia. Como efeito do mito da democracia racial, o questionamento, o reconhecimento e o combate ao racismo são dificultados, já que a defesa sustentada pelo mito é de que racismo no Brasil não existe, localizando-o distante das interações e das problemáticas sociais. Em vários momentos, os/as estudantes afirmaram que o racismo que eles/as experienciaram dentro da escola estava bastante presente nas séries iniciais, momento em que ouviam muitos apelidos depreciativos e “piadas” que se referiam sempre às características do corpo negro. Quando chegaram ao Ensino Médio, perceberam um desaparecimento desses episódios, o que faz com que se perguntem se há de fato racismo hoje em dia e como a escola pode agir de modo a prezar a diversidade racial.

A questão colocada pelos/as estudantes, de que a educação pode ser no sentido de normatizar aquilo que é discriminatório para que não seja visto, ecoa as argumentações de hooks (2013) sobre a construção dos espaços de ensino como lugares neutros, onde se transmite um saber supostamente puro, isento de questionamentos, mas que, na verdade, assume uma ideologia dominante, seja por aquilo que é ministrado, seja pela configuração do espaço e das pessoas que nele circulam. Podemos pensar, nesse sentido, que as práticas racistas podem ser também naturalizadas, não problematizadas, aparentando um caráter de normalidade em uma sociedade que preza o branqueamento. Desse modo, possibilitar a escuta das vivências de pessoas negras de forma ampla e profunda é, em determinados momentos, revelar o racismo na sociedade e destituir o conhecimento reproduzido na escola como neutro, único e isento ideológica e politicamente.

ATIVIDADES A RESPEITO DAS RELAÇÕES RACIAIS NA ESCOLA

Após refletirem sobre as iniciativas da escola para debater as relações raciais, bem como o que é determinado pela Lei n.° 10.639/2003 (Brasil, 2003), os/as estudantes identificaram uma escassez de atividades. De modo geral, disseram que os espaços nos quais “questões sociais” eram levadas em consideração, entre elas os debates que envolvem uma perspectiva racial, só tinham cabimento nas aulas de Sociologia e na Semana da Consciência Negra, que aconteceu apenas uma vez quando os/as estudantes estavam na escola.

A semana, que comemorava o dia 20 de Novembro, deu-se com a realização de várias atividades das quais os/as estudantes podiam escolher participar. A presença em algumas oficinas garantia um ponto na média de todas as disciplinas. Entre as atividades, foram citadas oficinas de hip hop, Cine Debates, oficinas de capoeira e performances musicais.

Ramon e Joana, ambos estudantes do 3° ano, escolheram participar do Cine Debate, no qual foi apresentado o filme Doze anos de escravidão, que conta a história de um homem estadunidense, liberto da escravidão, que vivia como músico no norte dos Estados Unidos. No entanto, um dia, após aceitar um trabalho em outra cidade, ele foi sequestrado e vendido como escravo no sul do país. O filme retrata a vida de humilhações físicas e emocionais às quais ele foi submetido para sobreviver. Esse evento e seu impacto sobre Ramon e Joana são descritos no trecho seguinte:

Essa semana foi muito… foi tipo um choque, eu parei e pensei que ia ser um dia normal, só que aí, eu fui, vi o filme, eu saí, tinha um carinha dançando lá fora e foi um soco em todo mundo tipo “Presta atenção, existe a cultura negra. É uma coisa bonita”. Foi muito forte, todo mundo depois disso passou a ver a importância. (Ramon, 3° ano)

Para Joana, a importância de debater filmes como Doze anos de escravidão estava no fato de ver como pessoas negras sofreram durante o período escravocrata e endossar políticas afirmativas para essa população. Elisa, no entanto, salienta a humanização do/a negro/a pautada no destaque da cultura, das resistências e da ancestralidade para além da escravização em si, como se fosse esse acontecimento violento que definisse a negritude como um todo.

A prática de comemoração do Dia da Consciência Negra pode ser problematizada se for restringida como única atividade na promoção da diversidade no espaço escolar, tornando ainda mais distante o que deveria ser familiar, ao mesmo tempo em que se cria a impressão de que, falando-se em um dia ou semana do ano, o trabalho voltado para as questões raciais está feito (Coelho e Coelho, 2018).

De modo geral, o conjunto de atividades na Semana da Consciência Negra mostrou-se, para alguns/mas participantes do grupo, como um espaço potencializador de novas formas de enxergar a história e a cultura negra. Diogo, todavia, acreditava que a definição de um dia para tratar do assunto era colocar a população negra como inferior, ao mesmo tempo que se pontuava que não existia “um dia do branco”. A essa argumentação, os/as estudantes que se sentiram impactados pela Semana da Consciência Negra — Ramon, Luiz, Elisa — argumentaram que a população branca no Brasil não teve sua história marcada pela escravidão e pela restrição de direitos e, por se localizar em uma posição de privilégio social, não precisa de um dia que comemore seus atos de resistência e luta. Elisa reconhece que, muitas vezes, trata-se de falar de uma temática que nunca é abordada em outros momentos na escola e que esse trabalho apenas na data comemorativa é problemático, mas considera que seja um início para os debates.

A Semana da Consciência Negra é vista, ao mesmo tempo, como forma de quebrar com o padrão branco — histórico, estético, cultural —, tão naturalizado cotidianamente, e como forma de exotizar e marcar como distante uma população que é constantemente excluída nas relações e discursos. A comemoração de um dia específico pode ter ambas as características; no entanto, o que parece demarcar o limite entre a colocação do negro como um outro distante e o reconhecimento de sua história é o fato de se trazerem os debates sobre relações raciais para o cotidiano, para que a data comemorativa não esteja descolada de outros discursos e práticas que permeiam o contexto escolar.

Nesse aspecto, as aulas de Sociologia configuram-se como esse espaço em que se discutem gênero e raça, alinhando-se com casos que ganham repercussão midiática e envolvem discriminações e violências raciais e de gênero. A professora responsável por essa matéria foi caracterizada como alguém que se preocupa com as questões sociais e sempre leva debates dessa natureza para a sala de aula. Fica explícito, pelo debate que se dá entre os/as estudantes, que trazer esses temas de modo atual para as matérias e fazer correlações com o conteúdo fica a cargo dos/as educadores/as individualmente e a depender dos interesses de cada um/a deles/as.

Além disso, os/as estudantes entendem que essas temáticas só podem ser debatidas por algumas disciplinas, como História, Sociologia, Filosofia e Literatura, de modo que as Ciências Naturais não conseguem alcançar essas discussões. Esse tipo de argumentação não considera que o trabalho a favor da diversidade permite a multiplicidade de teorias e modos de entender o mundo, ao passo que os modelos teóricos que conhecemos atualmente são basicamente eurocêntricos e brancos tomados como universais e neutros (Veranga e Silva, 2010; hooks, 2013; Oliveira Júnior, 2021).

Outro argumento usado pelos/as estudantes para justificar a falta do debate das relações raciais na sala de aula é a falta de tempo, de modo que os/as educadores/as estão “mais preocupados com a matéria deles”. A falta de tempo para debater relações raciais mostra o nível de descolamento entre uma discussão que deveria acontecer transversalmente, permeando diferentes assuntos, e os conteúdos que compõem as matérias estabelecidas no currículo. Ainda outro aspecto relacionado a essa divisão entre o que é conteúdo a ser transmitido e o que é complementar à formação do/a estudante é o questionamento se o que acontece em sala de aula, no âmbito das relações, também é formador. Pensamos nisso de uma perspectiva que considera que, mais do que pelo conteúdo, a educação passa por práticas, posicionamentos, pelo que é dito e também pelo que não é dito em sala de aula (hooks, 2013).

De acordo com os/as adolescentes, um espaço viável para o debate dessas temáticas seriam as aulas de Projeto Interdisciplinar (PI), visto que é uma disciplina com menor exigência de conteúdo e que tem uma dinamicidade maior quando se trata da organização do que irá compor a matéria. Por outro lado, os/as estudantes não acham que esse espaço é bem aproveitado, tendo em vista que as aulas podem ser dadas por qualquer professor(a), que, às vezes, não consegue mobilizar certos temas ou acaba elencando debates desinteressantes para os/as estudantes.

Os/as adolescentes não conseguem reconhecer qual o objetivo dessa matéria, já que os temas são diversificados e não são escolhidos por eles/as. Além disso, trata-se de uma disciplina que, apesar de ter trabalhos e atividades, não reprova. Joana, ao se referir à Semana da Consciência Negra, mencionou que os/as estudantes só aderiram à atividade porque ganhavam pontos extras nas matérias. É possível pensar que a mesma lógica se aplique à questão das aulas de PI: sem a recompensa do “ponto”, as aulas não têm adesão dos/as adolescentes. Ainda assim, aqueles que compuseram o grupo mostraram-se interessados/as, sinalizaram a potencialidade da disciplina e mencionaram que os debates poderiam ser mais frutíferos nessa matéria, sem a necessidade de recorrer ao “ponto” dado pelo/a professor(a) para que as temáticas se tornassem interessantes.

De acordo com o Projeto Político Pedagógico da escola, PI é uma disciplina que tem vários objetivos, a depender do ano em que é ministrada (1°, 2° ou 3°). Além disso, existem dois PI: o primeiro, chamado de PI-Diferenças: o diferente é igual, trata de questões sociais, além de aspectos garantidos pela Lei n° 10.639/2003 (Brasil, 2003); enquanto o segundo aborda questões referentes à Geometria. Ambos são realizados em todos os anos do Ensino Médio, com objetivos diferentes para cada período, como descrito a seguir:

Na primeira série é abordada a temática grupos sociais, cuja intenção é propiciar ao estudante reflexões sobre o universo das mulheres, das crianças, dos indígenas, dos negros e dos portadores de necessidades especiais a partir de conceitos como gênero, exclusão social, identidade, diversidade e diferença. Na segunda série, a temática trabalhada é a inclusão social. O objetivo é propiciar ao estudante reflexões sobre a evolução das sociedades — do ponto de vista das concepções históricas, políticas, culturais e geográficas — e a construção de conceitos e de um posicionamento social de cidadania no universo da exclusão social. No terceiro ano, o enfoque é voltado para a temática das questões raciais, com o objetivo de propiciar ao estudante refletir sobre a evolução das sociedades mundiais, suas influências e os processos de aculturação, bem como o conhecimento e a construção de ações afirmativas em seu ambiente comunitário e social (trecho extraído do Projeto Político Pedagógico da escola pesquisada, p. 37-38).3

Ainda que os objetivos elencados pelo Projeto Político Pedagógico visem, entre outras, às atividades a respeito das relações raciais, isso não parece explícito para os/as estudantes, e a percepção que se tem é a de que o que será discutido será colocado apenas pelo viés do/a professor(a) responsável pela disciplina durante o ano. Embora PI seja um espaço potencializador dessas discussões, a ideia de transversalidade do tema das relações raciais em outras disciplinas não é observada, a não ser que sejam matérias que se enquadrem na área de conhecimento Ciências Humanas.

Além da Semana da Consciência Negra e das aulas de Sociologia, as relações raciais puderam ser debatidas em um seminário feito na aula de História, que não foi apresentado pelos/as estudantes porque estava no final do ano. Aos poucos, o grupo foi se dando conta, apesar do empenho de alguns/mas professores/as em se debruçarem sobre “temas da sociedade”, da escassez da temática racial dentro da sala de aula. Esse fator possibilitou a reflexão sobre como dinâmicas raciais se presentificam em outros contextos, como momentos de recreação e descontração.

PARA ALÉM DO CURRÍCULO

Entendemos que aquilo que é expresso na Lei n.° 10.639/2003 (Brasil, 2003) e orientado pela Resolução CNE/CP 01/04 (Ministério da Educação, 2004b) e pelo Parecer 003/04 (Ministério da Educação, 2004a) não se alcança apenas pela ministração de conteúdos. Ainda que os artigos 26A e 79B da Lei n.° 10.639/2003 (Brasil, 2003) estejam mais especificamente voltados para os conteúdos que se tornam obrigatórios e que o dia 20 de novembro esteja inserido no calendário escolar, tanto a resolução quanto o parecer ampliam a proposição de conteúdos e ressaltam a articulação com grupos do Movimento Negro, a construção de ações e relações respeitosas, o desenvolvimento da educação nas relações étnico-raciais não somente em atividades curriculares, mas em todos os ambientes da escola, inclusive espaços de recreação, além da sua inserção em todos os momentos do ano de modo transversal.

Os/as adolescentes que participaram dos grupos da pesquisa relataram desde “piadas” racistas até considerações críticas sobre um padrão de beleza eurocêntrico e branco. Foi mencionado que as “piadas” racistas destacavam principalmente a sexualização do corpo negro, realizada tanto por estudantes quanto por educadores/as, de modo a tratar o corpo de pessoas negras como objeto. Elisa sintetiza essas falas do seguinte modo: “acontece muito aqui, a sexualização em cima do corpo negro, tipo, ‘Ah, um negão vai lá, aí um negão, eu pego um negão’. Como se o negão fosse objeto sexual”.

Sem consentimento, o corpo negro é utilizado a serviço do desejo branco, estereotipado e objetificado sexualmente. Ainda que dito de uma forma geral, colocar o corpo negro desse modo nos discursos diz sobre a forma como ele é visto socialmente e como é construído historicamente, além de como e por quem pode ser utilizado, tal como mercadoria. O corpo da mulher negra, por exemplo, é tido como objeto sexual utilizado fora do matrimônio, sem compromisso e ao bel-prazer do homem branco (Cândido e Júnior, 2019; Gonzalez, 2020). No mesmo sentido, a virilidade e o alto desempenho sexual do homem negro são recorrentes no imaginário social (Conrado e Ribeiro, 2017).

Ao mesmo tempo que as “piadas” constrangem, muitas vezes também impedem uma reação ou a manifestação de um incômodo, por serem justificadas como engraçadas e inocentes. A violência vinda na forma de piada pode ser experienciada como ódio e vergonha de si. Psiquicamente, a partir do momento em que a pessoa ofendida não consegue manifestar a raiva, a revolta, a tristeza e tudo aquilo que é desencadeado pela situação para o ofensor, toda a agressividade gerada retorna para o próprio sujeito (Zygourius, 1995).

O mesmo racismo que se mostra implícito nas “piadas” se manifesta em ideias de beleza que rondam o ambiente escolar, seja por concursos de beleza feitos nas salas de aula, seja por comentários sobre padrões estéticos ou até mesmo a escolha de representantes de turma. A discussão entre os/as estudantes gera discordâncias a partir do momento em que se debate quanto a beleza é uma questão meramente de gosto ou é construída socialmente, além dos questionamentos sobre até que ponto esse padrão estético é determinante ou não em algumas situações.

Especialmente as meninas do grupo destacam que existe um padrão estético e que ele é bem definido: pele clara, olhos claros, cabelo liso, “traços finos”. Com base nisso, questiona-se se a escolha estética também não influencia eleições que, a princípio, não teriam nada a ver com padrões de beleza, como a escolha de representantes de turma. Joana, Lorena e Elisa destacam que somente pessoas que se encaixam no padrão de beleza se candidatam e que, caso pessoas fora desse padrão se candidatassem, elas não seriam eleitas. Diogo, por outro lado, defende que a beleza não é relevante nesses casos, porque não é uma característica a ser julgada nesses tipos de eleições, mas especialmente o carisma e a competência. Para endossar seu argumento, utiliza a si mesmo como exemplo, já que é representante de turma há vários anos seguidos.

Se pensarmos que, além da dicotomia entre o que é belo e feio, existem também os discursos que se formam a respeito dos corpos, é possível ampliar a análise sobre a questão da beleza. Um corpo negro, por exemplo, não é apenas considerado feio de acordo com os padrões estéticos, mas também sujo, animalesco, sexualizado, ameaçador, raivoso, incompetente, emocional (Kilomba, 2019; Matos, 2021). Se olharmos por todas essas significações atreladas à negritude, podemos endossar a articulação feita por alguns/mas estudantes de que a representação da turma dificilmente seria feita por uma pessoa negra. Será que diante de certas representações que cotidianamente recebemos durante a vida, por meio especialmente das diferentes mídias, uma pessoa negra seria naturalmente considerada carismática e competente?

Os padrões estéticos também ficam evidentes em outras situações, como conversas entre os/as estudantes e comentários de professores/as. Em uma das situações, Elisa conta que, quando chegou à escola, recebeu o comentário de uma colega de que ela era uma negra bonita, ao passo que um outro colega comentou: “Ela não é negra, ela é bonita”. Elisa entendeu que o comentário do colega expôs que não se podia ser negra e bonita ao mesmo tempo, ou se era uma coisa ou outra. A interpretação de Elisa sobre o comentário vem por ela saber que é uma mulher negra de pele clara e que, muitas vezes, é embranquecida aos olhos de outras pessoas, quando isso é conveniente.

A mesma estudante relata comentários de um professor sobre a estética negra em dois momentos diferentes. Nos dois contextos, a estudante ressalta que o comentário do professor sexualiza o corpo da mulher negra. No primeiro momento, ela conta que o professor, ao falar sobre momentos em que ele acredita que a “mulher vira cardápio quando o homem tem dinheiro”, comenta que não entende o que os “gringos” veem nas mulheres negras e que “isso ia da percepção de cada um, porque aqui elas eram horríveis, sendo que lá, no país de origem deles, tem um monte de branca de olho azul”.

Ramon, ao argumentar que a fala do professor não foi racista, comenta que em outra ocasião o mesmo professor havia elogiado a beleza de Elisa. A estudante pontua o quanto considerou invasivo até mesmo esse elogio, ao mesmo tempo que só considera que o recebeu porque é uma mulher de pele clara e que não é tão exotizada quanto mulheres de pele escura, sendo considerada “morena” e recebendo olhares de estranhamento quando se autodeclara negra.

Os episódios narrados por Elisa lembram Luiz de outro momento em que um professor diferente, ao ver algumas estudantes que tinham acabado de sair de uma Oficina de Crespas e Cacheadas — não sabemos ao certo se a oficina foi promovida pela escola —, comentou que “agora virou moda andar de cabelo ruim”. A fala do professor marca a existência de um padrão de beleza que não deve ser questionado, modificado, caso contrário será alvo de piadas e ridicularizações. No entanto, entendemos o cabelo como um embate também político contra um modelo hegemônico que dita o que é aceitável e desejável. Nesse ponto, a estética negra também ganha espaço no campo educativo e se torna pedagógica ao descentralizar aquilo que é considerado ideal, bom e belo.

Tanto as colocações de Elisa quanto as de Luís lembram que há uma estética negra que é admissível em certos espaços, desde que possibilitem embranquecimento, enquanto outras são tidas como feias, exóticas e distantes do que é aceito enquanto padrão de beleza. Ainda que haja a noção de que o colorismo diversifica as formas de opressão e de violência, entende-se que em ambos os relatos há uma objetificação da negritude, especialmente da mulher negra.

São situações como as ilustradas acima que mostram que, mesmo que existam contextos na escola que prezem o respeito à diversidade, o racismo entranhado nos comentários e piadas é recorrente e faz questionar que outras ações poderiam ser promovidas para uma reflexão aprofundada e cotidiana das práticas que circulam na escola, tanto entre professores/as como entre estudantes. Talvez um caminho possível seja revelar o que parece implícito: uma ofensa revestida de piada, uma agressão camuflada de opinião, um comentário racista transmitido como qualquer outra afirmação. Problematizar esses eventos é desnaturalizá-los, torná-los questão, uma reflexão cotidiana que ultrapassa o único dia no calendário.

FALAR DE NEGRITUDE, FALAR DE VIVÊNCIAS: ESCREVIVÊNCIA COMO PRÁTICA PEDAGÓGICA

No último encontro, ao serem questionados/as sobre quais características os/as tornariam negros/as, os/as estudantes sinalizaram, primeiramente, que eram suas características corporais e, em um segundo momento, as experiências que os/as marcaram como diferentes, especialmente no espaço escolar e com base em comentários depreciativos sobre a negritude.

Para além dos traços físicos e das experiências que os/as marcaram como diferentes, os/as estudantes questionaram se todos/as os negros/as compartilhavam de uma mesma cultura e o que caracterizaria essa cultura em termos de ritos. Chegaram à conclusão de que o candomblé e a umbanda seriam marcas de uma cultura negra, passando então a dizer que regiões que não possuíam essa característica religiosa de forma marcante eram aculturadas, reflexo de um país miscigenado. A questão da cultura negra ficou sem resposta, no entanto os/as estudantes abriram outras perguntas, igualmente sem conclusões: que outros fatores caracterizariam a cultura negra? Que aspectos dessa cultura foram apagados pela colonização? Existe mais de uma cultura negra? Existe mais de uma forma de ser negro/a? Viver em um mundo moderno apaga as marcas da negritude? Será que a vivência da negritude é caracterizada sempre pela dor?

Cabe destacar que a ideia de miscigenação visa, ao mesmo tempo, abarcar um país diverso étnico e culturalmente e escamotear as articulações de uma cultura hegemônica, que dificulta a manifestação de culturas historicamente marginalizadas (Munanga, 2015). Dessa forma, apaga-se a pluralidade cultural de um povo, os costumes, os ritos, os hábitos, a ancestralidade. Ao colocarem a cultura negra como distante, ligada a religiões com as quais eles/as não têm contato, os/as estudantes afastaram de si mesmos/as as vivências tão plurais e diversas que os/as formaram enquanto pessoas negras nas e para além das dores. Histórias essas que os/as afastam do local de objeto e os/as colocam como sujeitos que contam as próprias histórias, as próprias vivências, e que, ao mesmo tempo que contam deles/as particularmente, carregam a história do coletivo, daquilo que também é compartilhado, de modo plural.

Falar de suas percepções sobre as dinâmicas raciais possibilitou aos/às estudantes entender o que é importante para eles/as quando se debate essa temática no espaço escolar. Puderem explicitar o que, articulado com suas histórias de vida, com os episódios racistas que vivenciaram ao longo do tempo, bem como com as possibilidades de valorização do/a negro/a, pode ser reformulado, incentivado, abolido das práticas educativas quando mencionamos as atividades realizadas pela escola no incentivo à diversidade racial. Não se trata, portanto, de proposições que vêm de fora e nada têm a ver com a realidade dos sujeitos que compõem a realidade escolar, mas de articulações que conversem com as dinâmicas raciais que acontecem todos os dias no ambiente da escola. Para tanto, ouvir esses/as estudantes, que são atravessados/as pelas dinâmicas raciais e pelo racismo, é essencial.

Nesse sentido, ainda que os/as estudantes não tenham sugerido diretamente atividades específicas, eles ressaltaram, apoiados em suas experiências, que o modo como as relações raciais têm sido tratadas é insuficiente, que atividades como a Semana da Consciência Negra poderiam estar mais presentes no cotidiano escolar, que os debates na aula de Sociologia são instigantes, mas precisa-se criar um espaço protegido em que eles/as se sintam à vontade de expressar suas opiniões e contar suas vivências. Além disso, a estética negra, em seu sentido também político, pode ganhar espaço no cotidiano escolar, seja por debates, seja por oficinas, e tanto com educadores/as como com estudantes. Os diálogos realizados com os/as estudantes foram atravessados por suas histórias de vida, que sinalizaram, por um lado, o racismo presente nas relações escolares e, por outro, as fissuras possíveis para que os debates e reflexões sobre relações raciais possam ser realizados.

Nessa mesma perspectiva e de modo semelhante, a escrevivência enquanto prática pedagógica descentra em si um saber hegemônico que preza uma neutralidade científica e um afastamento dos sujeitos, que não podem se envolver com aquilo que está sendo criado, pesquisado, estudado. Escrevivência como forma de se autoinscrever no mundo, como modo de abandonar aquilo que se diz sobre a negritude, de maneira estereotipada, preconceituosa, exótica e racista, para uma autoinscrição que traz dores e alegrias, pluralidade e vida. Uma escrita que se coloca presente e projetando um futuro para além da escrita colonial que repercute o corpo escravizado e da própria necropolítica, com seu projeto de extermínio (Evaristo, 2020b; Silva, 2020).

Os questionamentos dos/as estudantes sobre a presença ou não de racismo na escola no início dos grupos e o posterior vislumbre de cenas de racismo em diversos contextos fazem pensar em como os episódios racistas eram dificilmente nomeados e localizados pela forma escamoteada como se apresentavam. Se, em retrospectiva, os/as estudantes entendiam que a experiência do Ensino Fundamental foi mais dolorosa, já que eram apelidados/as e xingados/as por aquilo que se apresentava pelo corpo, no Ensino Médio uma piada que coloca o “negão” de modo estereotipado não é mais considerada racista, em um primeiro momento. Tem-se aqui a importância da escrevivência como modo de nomear os racismos cotidianos, que muitas vezes não são sinalizados e parecem experiências isoladas, particulares e mal compreendidas (Kilomba, 2019). Ainda que se reconheça que as experiências de dor e sofrimento não são as únicas a serem destacadas no contexto escolar, elas tornam-se importantes como modo de nomear aquilo que muitas vezes é tido como inexistente em um país tão miscigenado.

Tratando-se de um corpo vivido, presentificado e plural, a escrevivência como prática pedagógica trabalha também contra a essencialização do corpo negro e da sua exotização, que o coloca como distante, estranho e ameaçador. Pensamos que inserir a escrevivência no contexto escolar, nas mais diferentes disciplinas e contextos, contribui para a possibilidade de protagonismo dos/as estudantes negros/as no sentido de que suas escritas vividas contribuem para a formulação de atividades, conteúdos, eventos, debates, oficinas, reflexões que atravessam as relações raciais de modo presente, atual e plural, já que a negritude também é vivida de modos diferentes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Levando-se em consideração que não são apenas as mudanças na estrutura curricular que garantem uma educação antirracista, destacamos a importância de se inserirem, na prática pedagógica, espaços que considerem as experiências de vida de estudantes negros/as. Desse modo, suas vivências inscritas no corpo teriam abertura para explicitar como se dão as relações raciais no Brasil e possibilitar o desenvolvimento de uma educação politizada e aberta para a diversidade.

Por meio da escuta das vivências dos/as adolescentes, especialmente no tocante ao modo como a escola abarca as relações raciais em seu cotidiano, percebemos o quanto a própria história dá indícios daquilo que pode ser incentivado, reformulado, criado nas práticas pedagógicas. Sendo assim, a escrevivência inserida como prática pedagógica abre possibilidades para a construção de reflexões, debates e atividades voltadas para a diversidade racial no contexto escolar.

Entendemos que a escrevivência se configura como um modo de subversão daquilo que é tido como saber universal. Pensar na escrita advinda da experiência — escreviver — é também tornar a história da população negra cotidiana e plural, além de possibilitar que a história, a ciência, a cultura e os modos de vida da população negra sejam contados e registrados por seus protagonistas, e não modificados pela articulação daqueles que detêm o discurso hegemônico.

A escrevivência como prática pedagógica possibilita o entendimento de que as histórias tidas como pessoais e plurais dos/as estudantes contam a história de um povo, e visualizá-las como emocionais e distanciadas de um saber acadêmico e científico é uma forma de manter as hierarquias sociais e o domínio sobre determinadas parcelas da população, impossibilitando espaços para a diversidade.

Desse modo, escreviver configura-se como um modo de nomear racismos, pluralizar a história que é contada sobre a população negra e de embasar e fomentar discussões e reflexões em todos os espaços da escola sobre as relações raciais, com base nas vivências concretas e cotidianas, além de possibilitar a construção de uma educação antirracista.

1Bell hooks é pseudônimo de Gloria Jean Watkins, escritora norte-americana nascida em 1952. Seus textos são assinados em letra minúscula por decisão da própria autora.

2Este projeto foi revisado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Ciências Humanas da Universidade de Brasília — CEP/IH. Número do Parecer: 1.521.586

3Esta referência não consta nas referências, visto que se preza a não identificação do campo de estudo, observando-se o caráter ético da pesquisa.

Financiamento: O estudo recebeu financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

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Recebido: 22 de Julho de 2022; Aceito: 25 de Outubro de 2022

Nathália Pereira De Oliveira é doutoranda em Psicologia pela Universidade de Brasília (UnB). E-mail:nathalia.olivr@gmail.com

Regina Lúcia Sucupira Pedroza é doutora em Psicologia pela Universidade de Brasília (UnB). Professora da mesma instituição. E-mail:pedroza@gmail.com

Lúcia Helena Cavasin Zabotto Pulino é doutora em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professora da Universidade de Brasília (UnB). E-mail:luciahelenaczp@gmail.com

Conflitos de interesse: As autoras declaram que não possuem nenhum interesse comercial ou associativo que represente conflito de interesses em relação ao manuscrito.

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