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Revista Brasileira de Educação

versão impressa ISSN 1413-2478versão On-line ISSN 1809-449X

Rev. Bras. Educ. vol.28  Rio de Janeiro  2023  Epub 20-Out-2023

https://doi.org/10.1590/s1413-24782023280113 

Artigos

Sistema de parceria público-privada na educação: estratégias mercantilistas para o ensino público de Manaus

SISTEMA DE PARTICIPACIÓN PÚBLICO-PRIVADA EN EDUCACIÓN: ESTRATEGIAS MERCANTILISTAS PARA LA EDUCACIÓN PÚBLICA EN MANAUS

PUBLIC-PRIVATE PARTNERSHIP SYSTEM IN EDUCATION: MERCANTILIST STRATEGIES FOR PUBLIC EDUCATION IN MANAUS

Rudervania da Silva Lima Aranha

Rudervania da Silva Lima Aranha é doutora em Educação pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Professora da Secretaria Municipal de Educação de Manaus (SEMED-Manaus). E-mail:rudervania.aranha@gmail.com

I  , Conceituação, Curadoria de Dados, Análise Formal, Escrita – Primeira Redação, Escrita – Revisão e Edição, Obtenção de Financiamento, Investigação, Metodologia, Administração do Projeto, Recursos, Software, Supervisão, Validação, Visualização
http://orcid.org/0000-0002-7111-0720

Selma Suely Baçal de Oliveira

Selma Suely Baçal de Oliveira é doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professora da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). E-mail:selmabacal@ufam.edu.br

II  , Conceituação, Curadoria de Dados, Análise Formal, Escrita – Primeira Redação, Escrita – Revisão e Edição
http://orcid.org/0000-0001-6765-4568

ISecretaria Municipal de Educação de Manaus, Manaus, AM, Brasil.

IIUniversidade Federal do Amazonas, Manaus, AM, Brasil.


RESUMO

O artigo aborda o aprofundamento do processo de expansão das organizações privadas no campo educacional. Observa-se um movimento hegemônico nesse campo, que as relações sociais são construídas pelo capital por múltiplos mecanismos de dominação. Nesta análise, as implicações do sistema de parceria público-privada na educação, executada pelos acordos e convênios com o ente público, corresponde à lógica privatista, em que o setor privado (inter)nacional passa a ser convocado para conduzir, apoiar e amparar o desenvolvimento do setor público, notadamente a Secretaria Municipal de Educação de Manaus, destinada ao atendimento da educação infantil e ensino fundamental. A pesquisa constatou que a inserção das organizações privadas hegemônicas na educação pública municipal de Manaus tem levado à internalização e naturalização de que tudo que envolve a educação pública pode e deve ser convertido em bens e produtos comercializáveis.

PALAVRAS-CHAVE sistema de parceria público-privada na educação; organizações privadas; educação pública

RESUMEN

El artículo aborda la profundización del proceso de expansión de las organizaciones privadas en el campo educativo. Así, es posible observar un movimiento hegemónico en el campo educativo que las relaciones sociales construidas por el capital establecen, mantienen y son reforzadas por múltiples mecanismos de dominación. En este análisis, las implicaciones del sistema de participación público-privada en la educación, implementado por acuerdos y convenios con la entidad pública, corresponden a la lógica privatista, en la que el sector privado (inter)nacional está llamado a liderar, apoyar y dar soporte para el desarrollo del sector público, en particular la Secretaría Municipal de Educación de Manaus, con el objetivo de atender la educación inicial y básica. Así, la investigación constató que la inserción de organizaciones privadas hegemónicas en la educación pública municipal de Manaus, ha llevado a la internalización y naturalización de que todo lo que involucra la educación pública puede y debe convertirse en bienes y productos transables.

PALABRAS CLAVE sistema de colaboración público-privada en educación; organizaciones privadas; educación pública

Abstract

The article addresses the deepening of the expansion process of private organizations in the educational field. It is possible to observe a hegemonic movement in that field, that the social relations are built by capital by multiple mechanisms of domination. In this analysis, the implications of the public- -private partnership system in education, implemented by contracts and agreements with the public entity, correspond to the privatist logic, in which the (inter)national private sector is called upon to lead, support and aid the development of the public sector, notably the Municipal Department of Education of Manaus, aimed at serving early childhood and elementary education. The research found that the insertion of hegemonic private organizations in the municipal public education system of Manaus has led to the internalization and naturalization of the idea that everything that involves public education can and should be converted into tradable goods and products.

KEYWORDS public-private partnership system in education; private organizations; public education

INTRODUÇÃO

A década de 1990 foi o período em que, na América Latina, se aprofundaram processos de inserção no mundo de mercados globalizados por meio da aplicação das políticas neoliberais, e em que foram redefinidos os limites entre o setor público e o privado, com sérias consequências para a educação. Com a reestruturação produtiva ocorreram mudanças no mundo do trabalho e na forma de organização das empresas que influenciam a administração pública e, consequentemente, a educação, como parte da totalidade social. Desse modo, observa-se que a mudança preconizada na redefinição da política pública educacional brasileira reflete a ideologia1 neoliberal, visto que expressa estratégias privatizantes e ideológicas que compõem as relações de poder e se beneficiam nesse processo, instituído pelo ritmo do capital financeiro2 internacional, ou seja, pela fusão do capital bancário com o capital industrial. Nesse sentido, este artigo permite refletir sobre o fato de que esses representantes formulam sistematicamente tais ideologias, em função dos interesses da classe.

Durante a década de 1990, propagou-se nas diversas regiões do mundo a reforma educacional, seguindo um receituário de políticas educacionais, embora seja óbvio que tais reformas denunciavam algum processo de internacionalização das reformas educacionais da época. Na América Latina, como por exemplo no Brasil, a receita era a mesma da maioria dos países e especificava os objetivos gerais de descentralizar as políticas educacionais, melhorar a qualidade, equidade e eficiência dos sistemas, dar maior autonomia e também cobrar maior responsabilidade da escola, investir mais e melhor na formação do professor e conectar a escola às demandas da sociedade.

Nessa perspectiva, a concepção apresentada por agências financeiras multilaterais soa como se essas redefinições educacionais fossem suficientes para o homem realizar a apropriação do conhecimento e provocar mudanças na sua prática social. Trata-se de tema de forte conotação ideológica, que tanto no passado como atualmente tem merecido ser compreendido em sua essência, não apenas para que se opere a sua crítica, mas antes e sobretudo para que seja compreendido na sua totalidade e no seu conteúdo, cuja complexidade requer ferramentas teóricas que possibilitem interpretar e explicar esse processo na educação.

A trajetória de consolidação da educação pública brasileira nos séculos XX e XXI tem sido “[…] determinada por forças que ora incentivam o crescimento do setor público, ora do setor privado, ora de ambos” (Cunha, 2007, p. 810) e forma-se como um processo prolixo e oposto. Com essa perspectiva, considera-se que a materialização dos acordos, convênios, consultorias, etc. entre o setor público e o setor privado (inter)nacional na educação oculta interesses hegemônicos do grande capital de forma disfarçada e camuflada para legitimar seus projetos e programas, como, por exemplo, o acordo de empréstimo externo entre o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e a Prefeitura Municipal de Manaus (PMM) para o financiamento das ações do Projeto de Expansão e Melhoria Educacional da Rede Pública de Manaus (PROEMEM). Percebe-se, desse modo, que a presença das organizações privadas na educação pública municipal, notadamente na formação docente, apresenta crescente sofisticação de concepções pedagógicas, delineando novos horizontes para a rede pública municipal de ensino e funcionando como atividade organizativa que, em Manaus, se efetiva na educação básica.

Verificou-se que as implicações do sistema de parceria público-privada na educação,3 que até então se inseriram nas atividades da educação básica como transporte, merenda e serviços de limpeza, atualmente alcançam a atividade fim no ensino, que se materializa nos acordos, convênios, consultorias, tecnologias educacionais e nas ofertas dos seus produtos que são comercializados entre setor público e organizações privadas na educação pública, especialmente na formação dos/das professores/as da educação básica.

O marco histórico deste artigo é definido a partir das especificidades do final do século XX e deve-se principalmente às reformas neoliberais para a educação que vieram a ser adotadas a partir dos anos de 1990 até os dias atuais. Essas reformas iniciaram-se com compromissos assumidos pelos governos de diferentes países e pelos organismos internacionais na Conferência Mundial sobre Educação para Todos, realizada em Jomtien, Tailândia, em 1990. A partir desse movimento, a educação passou a ser tema central das reformas políticas e econômicas, sendo “[…] fortemente direcionada, tanto na definição de suas prioridades quanto de suas estratégias, pelas orientações dos organismos internacionais financiadores” (Krawczyk, 2012, p. 347).

Observa-se, assim, um movimento hegemônico no campo educativo, pois, numa sociedade de base capitalista como aquela em que se vive hoje, as pedagogias hegemônicas correspondem aos interesses da burguesia, já que esta ocupa a posição de classe dominante. Já os interesses dominados se situam no movimento contra-hegemônico, ou seja, as pedagogias contra-hegemônicas correspondem aos interesses do movimento operário e do conjunto dos trabalhadores despossuídos.

Desta forma, foram consultados documentos relativos à materialização da expansão das organizações privadas hegemônicas na educação municipal, em que se apresentam informações sobre a Fundação Itaú Social e a Fundação Telefônica Vivo. A escolha dessas organizações privadas tem a ver com a sua atuação na formação docente da rede municipal e com a disponibilidade de informações encontradas em seus relatórios anuais, no Diário Oficial de Manaus, na página oficial da Secretaria Municipal de Educação de Manaus, entre outros documentos, como os que se referem às políticas educacionais, como legislações, resoluções, decretos, relatórios, normativas e outros. Esses documentos contribuíram para definir o contexto de estratégias mercantilistas no ensino.

A INFLUÊNCIA DAS ORGANIZAÇÕES PRIVADAS HEGEMÔNICAS NAS POLÍTICAS EDUCACIONAIS

Depois da Segunda Guerra Mundial, as principais nações do mundo decidiram organizar instituições internacionais que pudessem reger e disciplinar a atuação dos países por acordos, tratados e políticas de regulação e intervenção em diversos campos, como o econômico, o social, o cultural e o ambiental. Assim, para disciplinar as relações financeiras no campo econômico, foi adotado um sistema de regras públicas com essa finalidade em 1944, em Bretton Woods, Estados Unidos. Foram criadas duas organizações: o Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) e o Fundo Monetário Internacional (FMI). O BIRD tinha a finalidade de auxiliar na reconstrução e desenvolvimento dos países-membros no período pós-guerra; o FMI era destinado a supervisionar o sistema monetário internacional e garantir a estabilidade do sistema cambial.

As regras internacionais do comércio eram discutidas no Acordo Geral de Tarifas Aduaneiras e Comércio (em inglês, General Agreement on Tariffs and Trade — GATT), assinado somente em 1947, pois o texto, na sua íntegra, foi recusado pelos Estados Unidos da América. Assim, esse texto, que previa a criação da Organização Internacional do Comércio (OIC), continha duas versões econômicas que se opunham há época; uma visão mais liberal e uma visão keynesiana, obtendo, portanto, um equilíbrio entre as diferentes tendências econômicas do momento. Os capítulos que continham a visão keynesiana foram eliminados do texto final do GATT. O objetivo era criar regras para melhorar as condições do comércio internacional e diminuir as tarifas aduaneiras, permitindo preços mais acessíveis aos consumidores e criando as condições econômicas para a reconstrução dos países destruídos pela guerra.

No início, esse acordo incluía 23 países, porém ao cabo de oito rodadas de negociação, em 1994, 125 países eram membros do GATT. A última dessas rodadas, a do Uruguai, durou de 1986 a 1994 e culminou com a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC). Atualmente, o FMI é o pilar do sistema financeiro internacional, atuando em conjunto com o Banco Mundial e outras instituições congêneres, como o BID.

Moraes (2000) explica que, nos anos de 1980, programas neoliberais de ajuste econômico foram sendo impostos a países latino-americanos como desdobramentos dos processos de renegociação da dívida e de monitoração das economias locais pelo Banco Mundial e pelo FMI: “[…] Argentina, com Menem; 1989, Venezuela, com Carlos Andrés Perez; 1990, Fujimori, no Peru. E, desde 1989, o Brasil, de Collor a Cardoso” (Moraes, 2000, p. 17). No entanto, aparecem, nesse contexto, duas grandes principais exigências. Por um lado, as privatizações de empresas estatais e de serviços públicos e, por outro, criar novas regulamentações, um novo quadro legal que diminuísse a interferência dos poderes públicos sobre os empreendimentos privados.

Assim, o Neoliberalismo, como projeto hegemônico nos países ocidentais, comandado pela fração financeira do capital, será o suporte teórico e político de tal transformação, tornando-se hegemônico nos países centrais nos anos 1980 (com Margareth Thatcher, na Inglaterra; em 1979, com Ronald Reagan, nos Estados Unidos; em 1981, com Kohl; em 1982 na Alemanha) e nos Estados latino-americanos, basicamente a partir da década de 1990 (com a exceção do Chile, onde o neoliberalismo foi instaurado pela ditadura de Pinochet já em 1973). De acordo com Montaño (2014, p. 73), “[…] como solução parcial à crise capitalista, o neoliberalismo pretende a reconstituição do mercado livre, reduzindo e inclusive eliminando a intervenção social do Estado em diversas áreas e atividades”.

Perry Anderson (2008), ao fazer um histórico do neoliberalismo, demonstrou que este foi uma reação tanto teórica quanto política contra o Estado de Bem-Estar Social e seu caráter intervencionista. Conforme o autor Hayek, principal formulador do projeto neoliberal, localizam-se as raízes da crise do capitalismo no poder excessivo dos sindicatos, que haviam consumido as bases de acumulação capitalista com suas reivindicações salariais e sua pressão para que o Estado aumentasse os gastos sociais. A solução estava, portanto, na capacidade de manter um Estado forte, disposto tanto a romper o poder dos sindicatos e controlar o dinheiro quanto a diminuir os gastos sociais e as intervenções econômicas (Anderson, 2008).

As reformas do Estado introduzidas na América Latina nas últimas três décadas configuraram mudanças na condução da economia, da política, da educação etc., bem como nas relações estabelecidas entre essas esferas. Com o propósito de promover a reorganização das relações de produção e conter o endividamento dos países menos desenvolvidos e em desenvolvimento, os governos e as organizações financeiras multilaterais perceberam a necessidade de aplicar políticas de ajuste e reformas estruturais nos diversos países para assegurar a governabilidade.

SISTEMA DE PARCERIA PÚBLICO-PRIVADA NA EDUCAÇÃO

A educação brasileira foi bastante influenciada pelas reformas empreendidas pelo Estado4 brasileiro, principalmente durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (1994–1998; 1998–2002). Essas reformas receberam forte influência dos intelectuais do capital, entre os quais o Fundo Monetário Internacional (FMI), Grupo Banco Mundial (GBM), Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), Organização Mundial do Comércio (OMC) e BID.

A reforma educacional que se desencadeia no século XX no Brasil e intensifica-se a partir da década de 1990 — com desdobramentos que, nos dias atuais, continuam desempenhando papel ideológico de propagadores do sistema capitalista — colocava a educação como eixo entre a reforma e a produtividade e objetivava garanti-la para todos, desde que fosse eficiente. Por conseguinte, sucederam-se modificações de ordem prática no sistema educacional, especificamente relativas à flexibilidade, descentralização e competitividade, o que conduzia a marcos conceituais instrutivos e transformava o Estado num mero fiscalizador das políticas educacionais.

Nesse cenário, o governo federal promulgou, em 1995, o Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE),5 que possuía entre as suas alegações o estímulo à realização de parceria entre esfera pública e privada na promoção dos direitos sociais, entre os quais a educação.

No Brasil, a doutrina do neoliberalismo foi determinante para as reformas na administração pública que ocorreram no período de 1995 a 2000 com o gerencialismo6 de Fernando Henrique Cardoso. Nessas exposições, implica-se a ideia de que é no contexto da reforma do Estado que o terceiro setor é estimulado a essa forma de participação, e no PDRAE (Brasil, 1995) se encontram os elementos fundamentais do chamamento e do desafio apresentados pelo governo para que esse setor adote a implementação de políticas sociais.

As parcerias público-privadas na educação, que foram largamente difundidas a partir dos anos 1990, foram estimuladas pela doutrina neoliberal, mas fundamentalmente pela Terceira Via. A Terceira Via teve origem na Inglaterra e apresenta como características gerais a presença do voluntariado, a desresponsabilização da esfera estatal com os direitos sociais, a meritocracia nas questões da avaliação escolar e a responsabilidade pela execução da sociedade civil. Assim, “A Terceira Via surge quando o Novo Trabalhismo se apresenta como uma alternativa ao Neoliberalismo de Thatcher e também à antiga social democracia” (Caetano e Peroni, 2019, p. 59). De acordo com Antunes (2001), passa a haver novas regulamentações entre a esfera pública e privada.

Em decorrência da reforma do Estado, a constituição do terceiro setor, segundo Montaño (2010), esconde o conveniente interesse de uma classe dominante de cunho neoliberal no Brasil. Nesse sentido, é de fundamental importância para esta nova lógica a parceria entre Estado e sociedade para o financiamento dessas entidades. Conforme destaca Montaño (2010, p. 199), “[…] em geral, as organizações do chamado terceiro setor não têm condições de autofinanciamento e dependem particularmente da transferência de fundos públicos para seu funcionamento mínimo […]”. Ele (Montaño, 2010, p. 199) completa afirmando que “[…] esta transferência é chamada, ideologicamente, de parceria entre Estado e sociedade civil com o Estado supostamente contribuindo, financeira e legalmente, para propiciar a participação da sociedade civil […]”.

Neste estudo, o termo parceria é utilizado de acordo com Di Pietro (2019, p. 25), que “[…] designa todas as formas de sociedade que, sem formar uma nova pessoa jurídica, são organizadas entre os setores público e privado, para a consecução de fins de interesse público”. Nesse contexto, a parceria pode servir a variados objetivos e formalizar-se por diferentes instrumentos jurídicos. A parceria pode ser utilizada como:

  1. forma de delegação da execução de serviços públicos a particulares, pelos instrumentos da concessão e permissão de serviços públicos, ou das parcerias público-privadas (concessão patrocinada e concessão administrativa, criadas pela Lei n° 11.079, de 30-12-2004); e também por meio do contrato de gestão com organizações sociais, quando estas prestam serviço público;

  2. meio de fomento à iniciativa privada de interesse público, efetivando-se por meio de convênio, contrato de gestão, termo de parceria, termo de colaboração, termo de fomento ou acordo de cooperação;

  3. forma de cooperação do particular na execução de atividades próprias da Administração Pública, pelo instrumento da terceirização (contratos de prestação de serviços, obras e fornecimento, sob a forma de empreitada regida pela Lei n° 8.666, de 21-6-1993, ou de concessão administrativa, regida pela Lei n° 11.079/2004);

  4. instrumento de desburocratização e de instauração da chamada Administração Pública gerencial, por meio dos contratos de gestão. (Di Pietro, 2019, p. 25-26)

Por esse motivo, a parceria serve ao objetivo de diminuição do tamanho do aparelhamento do Estado, enquanto delega ao setor privado algumas atividades que hoje são desempenhadas pela Administração, com a consequente extinção ou diminuição de órgãos públicos e entidades da administração indireta (Di Pietro, 2019).

O governo FHC assumiu compromissos políticos com o capital internacional, pois o financiamento da contrarreforma do Estado passou a ser prioridade do Banco Mundial (BM) e do BID. FHC e toda a sua equipe realizaram a maioria dessas contrarreformas e construíram um império para um grupo já claramente apresentado. Diante de tais constatações, a chamada era FHC começou a fazer alterações constitucionais com o objetivo de mudar institucional e patrimonialmente a relação entre Estado e mercado, com o objetivo de reduzir a participação estatal nas atividades produtivas e dar outra espécie de tratamento às empresas e ao capital internacional.

Nesse cenário, a criação em 1995 do Ministério da Administração e Reforma do Estado (MARE), comandado por Luiz Carlos Bresser Pereira, na apresentação do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE), pretendia estabelecer no Brasil as bases de uma Administração Pública Gerencial de caráter social democrático: “[…] no plano democrático, a prática cada vez mais frequente da participação e controle direto da administração pública pelos cidadãos […]” (Brasil, 1995, p. 14). O PDRAE focaliza sua atenção na Administração Pública federal, entretanto muitas de suas diretrizes e propostas podem também ser aplicadas nos níveis estadual e municipal (ibidem). No que concerne à Administração Pública, a ideia é “[…] transformá-la de administração pública burocrática, rígida e ineficiente, voltada para si própria e para o controle interno, para uma administração pública gerencial, flexível e eficiente, voltada para o atendimento do cidadão” (Di Pietro, 2019, p. 19).

Outra tarefa do PDRAE foi a de delimitar as funções do Estado, dividindo-as em três áreas básicas:

  1. Núcleo Estratégico. Corresponde ao governo, em sentido lato. É o setor que define as leis e as políticas públicas, e cobra o seu cumprimento. É, portanto, o setor onde as decisões estratégicas são tomadas. Corresponde aos Poderes Legislativo e Judiciário, ao Ministério Público e, no poder executivo, ao Presidente da República, aos ministros e aos seus auxiliares e assessores diretos, responsáveis pelo planejamento e formulação das políticas públicas.

  2. Núcleo de Atividades Exclusivas. É o setor em que são prestados serviços que só o Estado pode realizar. São serviços em que se exerce o poder extroverso do Estado — o poder de regulamentar, fiscalizar, fomentar. Como exemplos temos: a cobrança e fiscalização dos impostos, a polícia, a previdência social básica, o serviço de desemprego, a fiscalização do cumprimento de normas sanitárias, o serviço de trânsito, a compra de serviços de saúde pelo Estado, o controle do meio ambiente, o subsídio à educação básica, o serviço de emissão de passaportes, etc.

  3. Núcleo de Serviços Não Exclusivos. Corresponde ao setor onde o Estado atua simultaneamente com outras organizações públicas não-estatais e privadas. As instituições desse setor não possuem o poder de Estado. Este, entretanto, está presente porque os serviços envolvem direitos humanos fundamentais, como os da educação e da saúde, ou porque possuem “economias externas” relevantes, na medida que produzem ganhos que não podem ser apropriados por esses serviços através do mercado. As economias produzidas imediatamente se espalham para o resto da sociedade, não podendo ser transformadas em lucros. São exemplos deste setor: as Universidades, os Hospitais, os Centros de Pesquisa e os Museus. (Brasil, 1995, p. 42)

No Núcleo de Serviços Não Exclusivos, há entidades de variados tipos que em princípio serão administradas, ou não, pelo Estado, com ou sem os recursos governamentais. Nesse terceiro núcleo na proposta de Bresser Pereira, as entidades da sociedade civil estariam no nível máximo de publicização dos serviços estatais (termo bastante controverso, visto que a maioria das ações do Estado já é pública), entretanto ele foi criado com o propósito de diferenciar o que era uma ação estatal sendo privatizada para fins lucrativos e o que foi privatizado para fins de filantropia.

Em consequência, tais ideias balizam a legislação que data desse período, como a Lei da Organizações Sociais, Lei n° 9.637, de 1998 (Brasil, 1998c), do mesmo modo que a Lei das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, Lei n° 9.790, de 1999 (Brasil, 1999).

Cria-se, assim, uma legislação tanto para a criação de Organizações Não Governamentais (ONG) como para transferir dinheiro público, sem licitação, para entidades consideradas de interesse social7 mediante os Termos de Parceria.8 Foi nesse processo que se propiciou o encurtamento da função social do Estado, desresponsabilizando-o da ação social. As perdas de direitos universais por serviços públicos de qualidade tendem a ser vistas como ganhos nas atividades desenvolvidas pelo conjunto das forças voluntárias, não governamentais e filantrópicas. É assim que as políticas sociais que temos se transformam em ações sociais prestadas na base da filantropia social e/ou empresarial e da ação voluntária ou um serviço comercializável (Montaño, 2014).

Assim, as Organizações da Sociedade (OS) foram denominadas de terceiro setor, ou seja, aquele composto de entidades da sociedade civil que exercem atividades de interesse público e não lucrativas. O terceiro setor numa perspectiva crítica e de totalidade refere-se a um fenômeno real que é produto da reestruturação capitalista.

Assim, as entidades da sociedade civil estão formalizadas nas Leis: n° 8.666/1993 (Brasil, 1993), sobre licitação e contratos; Lei n° 9.637/1998 (Brasil, 1998c), denominada Organizações Sociais; Lei n° 9.790/1999 (Brasil 1999), qualificada de Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público; e na Lei n° 13.019/2014 (Brasil, 2014), sobre as Organizações da Sociedade Civil. Nesse contexto, apresentam-se no Quadro 1 instrumentos de formalização de parceria possíveis em função do serviço para privatização. São as novas formas de parceria com o terceiro setor, por intermédio de convênios, contratos de gestão, termos de fomento, termos de colaboração, acordos de cooperação, cada qual composta de leis específicas, que, no sentido amplo do termo privatização de acordo com Di Pietro (2019, p. 7), “[…] podem assumir diferentes formas, todas se amoldando ao objetivo de reduzir o tamanho do Estado e fortalecer a iniciativa privada e os modos privados da administração dos serviços públicos”.

Quadro 1 Instrumentos de parceria público-privada. 

Lei Instrumento de parceria público-privada Atuação
Lei n° 8.666/1993. Estabelece normas gerais sobre licitações e contratos da Administração Pública. (Brasil, 1993) Em seu art. 193 a nova Lei de Licitações estabelece a revogação das seguintes leis de forma fracionada no tempo: I - os arts. 89 a 108 da Lei n° 8.666, de 21 de junho de 1993, na data de publicação desta Lei; II - a Lei das Licitações (Lei n° 8.666/1993), a Lei do Pregão (Lei n° 10.520/2002) e os arts. 1° a 47- do Regime Diferenciado de Contratações – RDC (Lei n° 12.462/2011), após decorridos 2 (dois) anos da publicação oficial desta Lei. A entrada em vigor da nova Lei ocorreu, conforme o art. 194, na data da sua publicação, 1° de abril de 2021. (Brasil, 2021). Institui Convênios, Acordos, Ajustes e outros instrumentos celebrados por órgãos e entidades da Administração. Órgãos da administração direta, os fundos especiais, as autarquias, as fundações públicas, as empresas públicas, as sociedades de economia mista e demais entidades controladas direta ou indiretamente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios.
Lei n° 9.637/1998. Regulamenta as Organizações Sociais (OS). (Brasil, 1998a) Institui Contrato de gestão como instrumento para as parcerias entre o Poder Público e as OS. Na área do ensino, pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico, proteção e preservação do meio ambiente, cultura e saúde.
Lei n° 9.790/1999. Qualifica pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP). (Brasil, 1999) Institui Termo de parceria como instrumento para a formalização entre o Poder Público e as OSCIP. Na área dos serviços sociais, como saúde, educação, cultura etc.
Lei n° 13.019/2014 alterada e complementada pela Lei n° 13.204/2015. Disciplina as parcerias entre a administração pública e as Organizações da Sociedade Civil (OSC). (Brasil, 2014; 2015b) Institui os termos de Colaboração e de Fomento e os Acordos de cooperação como instrumentos de parceria voluntária entre Poder Público e OSC. Execução de atividades ou de projetos previamente estabelecidos em planos de trabalho inseridos em instrumento de colaboração, fomento e ou cooperação, estabelecidas pela Administração Pública com OSC para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco.

Fonte: Elaboração das autoras (pesquisa documental).

Os instrumentos apresentados no Quadro 1 são utilizados no direito brasileiro para a formalização da parceria público-privada. As parcerias formalizadas pelos convênios, acordos, ajustes e outros instrumentos congêneres são disciplinadas, basicamente, pelo art. 116 da Lei n° 8.666/1993 (Brasil, 1993); porém, segundo Di Pietro (2019), com relação aos convênios, não mais se aplica a norma do art. 116 da Lei n° 8.666/1993, salvo em duas hipóteses: quando o convênio é celebrado entre entes federados ou pessoas jurídicas a eles vinculados e quando decorrente da aplicação do disposto no inciso IV do art. 3°, ou seja, os firmados com entidades filantrópicas e sem fins lucrativos, com fundamento no art. 199, § 1°, da Constituição.

A Lei n° 9.637/1998 (Brasil, 1998c) estabelece o Contrato de gestão como instrumento adequado para as parcerias entre o Poder Público e as Organizações Sociais (OS). A Lei n° 9.790/1999 (Brasil, 1999) institui o Termo de parceria como instrumento para formalização das parcerias entre o Poder Público e as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP). Finalmente, a Lei n° 13.019/2014 (Brasil, 2014) institui os termos de Colaboração e de Fomento como instrumentos de parceria voluntária entre o Poder Público e as Organizações da Sociedade Civil (OSC), que se ampliaram com as alterações introduzidas pela Lei n° 13.204/2015 (Brasil, 2015b).

No entanto, a Lei n° 13.204/2015 (ibidem) institui normas gerais para as parcerias entre a Administração Pública e OSC, em regime de mútua colaboração, para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco, mediante a execução de atividades ou de projetos previamente estabelecidos em planos de trabalho inseridos em termos de Colaboração, em termos de Fomento ou em Acordos de cooperação (Brasil, 2014).

Por conseguinte, o art. 2°, inciso VII, define o termo de colaboração como o instrumento por meio do qual são formalizadas as parcerias estabelecidas pela Administração Pública com as OSC para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco, propostas pela Administração Pública e que envolvam a transferência de recursos financeiros. E o termo de fomento é definido pelo art. 2°, inciso VIII, como o instrumento por meio do qual são formalizadas as parcerias estabelecidas pela Administração Pública com as OSC para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco, propostas pelas OSC, que envolvam a transferência de recursos financeiros. De acordo com Di Pietro (2019, p. 366), os instrumentos têm por finalidade a consecução de atividades de interesse público e recíproco, e os dois envolvem a transferência de recursos financeiros — a diferença é apenas uma: “[…] enquanto o termo de colaboração é proposto pela Administração Pública, o termo de fomento é proposto pela organização da sociedade civil”.

O termo de parceria Acordo de cooperação, incluído pela Lei n° 13.204/2015 (Brasil, 2015b, p. 2), define-se como o “[…] instrumento por meio do qual são formalizadas as parcerias estabelecidas pela administração pública com organizações da sociedade civil para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco que não envolvam a transferência de recursos financeiros.”.

Assim, o Acordo de cooperação distingue-se dos dois outros instrumentos por não envolver transferência de recursos financeiros. Os arts. 16 e 17 da Lei n° 13.204/2015 (Brasil, 2015b) exigem que o termo de Colaboração e o termo de Fomento sejam adotados pela Administração Pública em caso de transferências voluntárias de recursos para a consecução de planos de trabalho propostos, respectivamente, pela Administração Pública ou pela OSC, que envolvam transferência de recursos financeiros.

A Lei n° 13.204/2015 (Brasil, 2015b) prenuncia a dispensa do chamamento público nos casos de: urgência decorrente de paralisação ou iminência de paralisação de atividades de relevante interesse público, pelo prazo de até 180 dias; guerra, calamidade pública, grave perturbação da ordem pública ou ameaça à paz social; e, por fim, atividades voltadas ou vinculadas a serviços de educação, saúde e assistência social, desde que executadas por OSC previamente credenciadas pelo órgão gestor da respectiva política. No art. 31 da referida lei se prevê a inexigibilidade do chamamento público na hipótese de inviabilidade de competição entre as OSC, em razão da natureza singular do objeto da parceria ou se as metas somente puderem ser atingidas por uma entidade específica, notadamente quando: o objeto da parceria constituir incumbência prevista em acordo, ato ou compromisso internacional, em que sejam indicadas as instituições que utilizarão os recursos e a parceria decorrer de transferência para OSC que esteja autorizada em lei e na qual seja identificada, expressamente, a entidade beneficiária, mesmo quando se tratar da subvenção prevista “[…] no inciso I do § 3° do art. 12 da Lei n.° 4.320, de 17 de março de 1964, observado o disposto no Art. 26 da Lei Complementar n.° 101, de 4 de maio de 2000” (Brasil, 2015b, p. 3).

A partir da Constituição Federal de 1988 (Brasil, 1988), no art. 205, coloca-se a educação como dever do Estado e da família, que deve ser promovido e incentivado com a colaboração da sociedade. O art. 206, ao relacionar os princípios a serem observados com relação ao ensino, inclui “[…] o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino […]” (ibidem, art. 206, inciso III, n. p. 118) e a “[…] gestão democrática do ensino público […]” (ibidem, art. 206, inciso VI, p. 118). O art. 209 (Brasil, 1988, p. 119) deixa claro que o ensino não é serviço exclusivo do Estado, ao determinar que ele “[…] é livre à iniciativa privada […]”, ficando, no entanto, sujeito às normas gerais da educação nacional e à autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público. Dito isso, a ideia de fomento à iniciativa privada de interesse público está presente na Constituição Federal de 1988 no art. 213, que permite o repasse de recursos públicos a entidades privadas de natureza comunitária, confessional ou filantrópica, desde que

[…] comprovem finalidade não lucrativa e apliquem seus excedentes financeiros em educação […] (Brasil, 1988, Art. 213, inciso I) [e] […] assegurem a destinação de seu patrimônio a outra escola comunitária, filantrópica ou confessional, ou ao Poder Público, no caso de encerramento de suas atividades. (Brasil, 1988, Art. 213, inciso II)

Ainda na Constituição Federal de 1988, no Art. 213 § 2°, foi incluído pela Emenda Constitucional n° 85/2015 (Brasil, 2015a, Art. 213, § 2°) o seguinte artigo: “As atividades de pesquisa, de extensão e de estímulo e fomento à inovação realizadas por universidades e/ou por instituições de educação profissional e tecnológica poderão receber apoio financeiro do Poder Público”.

A Emenda Constitucional n° 19/1998 (Brasil, 1998a, p. 1) abriu a oportunidade para o procedimento da licitação para as empresas estatais, com as alterações introduzidas no Art. 22, inciso XXVII:

[…] normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1°, III.

O referido artigo, combinado com o art. 173, § 1°, da Constituição de 1988, “[…] estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens, ou de prestação de serviços, dispondo sobre […]” (Brasil, 1998a). Assim, de acordo com Di Pietro (2019), a Lei n° 8.666, de 1993, veio disciplinar as licitações e os contratos administrativos de forma nefasta, pois ultrapassou os limites da competência da União, previstos no art. 22, inciso XXVII, da Constituição Federal de 1988. Outorgada apenas para estabelecer “normas gerais”, a lei carregou exageradamente no formalismo; o que é pior, impôs para todas as entidades da Administração direta e indireta, independentemente do regime jurídico a que se sujeitem, idêntico procedimento licitatório:

[…] nem mesmo com relação aos contratos fez qualquer distinção, o que trouxe como consequência a atribuição de prerrogativas públicas a pessoas jurídicas de direito privado, inclusive empresas que atuam ou deveriam atuar em regime de competição com a iniciativa privada; o resultado é que se veem, a todo momento, editais de licitação baixados por empresas estatais, como bancos, por exemplo, com itens idênticos aos do Poder Público, inclusive previsão de penalidades. (Di Pietro, 2019, p. 31)

A implicação do formalismo excessivo da Lei n° 8.666/1993 (Brasil, 1993) foi o surgimento gradativo de outras leis estabelecendo normas específicas sobre licitações para determinados contratos, exemplificativamente, as parcerias público-privadas. Na referida lei, no art. 78, inciso XV, é importante também observar que constitui motivo para rescisão do contrato o atraso superior a 90 dias dos pagamentos devidos pela Administração decorrentes de obras, serviços ou fornecimentos, ou parcelas deles, já recebidos ou executados, “[…] salvo em caso de calamidade pública, grave perturbação da ordem interna ou guerra, assegurado ao contratado o direito de optar pela suspensão do cumprimento de suas obrigações até que seja normalizada a situação […]” (ibidem, p. 18). Quer dizer, ultrapassados os 90 dias sem que a Administração efetue os pagamentos em atraso, é dado ao contratado, licitamente, suspender a execução do contrato. No pressuposto do inciso XV do art. 78 da Lei n° 8.666/1993 (ibidem, p. 41), se for dada continuidade ao contrato, o particular faz jus à manutenção do equilíbrio econômico-financeiro; se houver rescisão, caberá a indenização prevista no art. 79, § 2°:

Quando a rescisão ocorrer com base nos incisos XII a XVII do artigo anterior, sem que haja culpa do contratado, será este ressarcido dos prejuízos regularmente comprovados que houver sofrido, tendo ainda direito a: I - devolução de garantia; II - pagamentos devidos pela execução do contrato até a data da rescisão; III - pagamento do custo da desmobilização.

Ainda a Lei n° 8.666, de 1993 (ibidem), no art. 10, consente que as obras e serviços sejam prestados por execução direta ou indireta. Além disso, o Art. 6°, inciso II, dessa lei define o serviço como todas as atividades destinadas a obter determinada utilidade de interesse para a Administração, tais como: “[…] demolição, conserto, instalação, montagem, operação, conservação, reparação, adaptação, manutenção, transporte, locação de bens, publicidade, seguro ou trabalhos técnico-profissionais […]” (ibidem, p. 5).

Como dito antes, a regra para aquisições, contratações e concessões na Administração Pública é a licitação, entretanto, a Constituição de 1988, Art. 37, inciso XXI (Brasil, 1988, p. 25) permite a chamada contratação direta

[…] ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.

Todavia, classifica-se como contratação direta os seguintes: dispensa de licitação, inexigibilidade e vedação, entre os quais se destaca a inexigibilidade. Exclusivamente em razão da sua natureza, esta caracteriza-se pela inviabilidade de competição, o que torna irreclamável a licitação. Os três casos de inexigibilidade trazidos pelo art. 25 da Lei 8.666/1993 (Brasil, 1993, art. 25, p. 21, grifo nosso) são:

I - para aquisição de materiais, equipamentos, ou gêneros que só possam ser fornecidos por produtor, empresa ou representante comercial exclusivo, vedada a preferência de marca, devendo a comprovação de exclusividade ser feita através de atestado fornecido pelo órgão de registro do comércio do local em que se realizaria a licitação ou a obra ou o serviço, pelo Sindicato, Federação ou Confederação Patronal, ou, ainda, pelas entidades equivalentes; II - para a contratação de serviços técnicos enumerados no art. 13 desta Lei, de natureza singular, com profissionais ou empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação; III - para contratação de profissional de qualquer setor artístico, diretamente ou através de empresário exclusivo, desde que consagrado pela crítica especializada ou pela opinião pública.

Um exemplo da parceria público-privada formalizada pelo contrato, oriundo do acordo de empréstimo externo entre o BID e a Prefeitura Municipal de Manaus, com fulcro no art. 25 e no art. 42, § 5° da Lei n° 8.666/1993 (Brasil, 1993), tem se tornado comum e, sobre a inexigibilidade de licitação, constata-se que o referido acordo tem se destacado em elaborar e negociar com instituições privadas na área educacional. Observa-se que, em Manaus, ocorre uma prática corriqueira de inexigibilidade de licitação referente à contratação da empresa Global Editora todos os anos, desde 2015. O art. 25 diz ser inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, especialmente para a aquisição de materiais, equipamentos, ou gêneros que só possam ser fornecidos por produtor, empresa ou representante comercial exclusivo, vedada a preferência de marca. Observa-se no contrato licitatório com a empresa Global Editora e Distribuidora Ltda. a inexigibilidade; assim,

Fica Declarado Inexigível o procedimento licitatório, com fundamento na GN n° 2349-9 — BID c/c o art. 25 da Lei 8.666/93, referente à contratação da empresa GLOBAL EDITORA E DISTRIBUIDORA LTDA, […] objetivando a aquisição de material didático e pedagógico para atender ao Projeto de Aceleração e Alfabetização, desenvolvido em parceria com o Instituto Ayrton Senna, através dos programas ACELERA BRASIL, SE LIGA, PIT STOP E FÓRMULA DA VITÓRIA MATEMÁTICA, no valor de R$ 989.690,32 (novecentos e oitenta e nove mil, seiscentos e noventa reais e trinta e dois centavos). (Manaus, 2018, p. 22, grifos nossos)

Tal orientação movimenta um conjunto de ações e legislações que incentivam a entrada de empresas privadas na condução da educação pública. Do ponto de vista ontológico, “[…] a maioria das leis não pode deixar de ter uma validade concretamente delimitada em sentido histórico-social” (Lukács, 2012, p. 501), pois legalidade e historicidade são formas de expressão estreitamente entrelaçadas de uma realidade.

Dessa forma, o Estado cria ordenamentos políticos e jurídicos que favorecem o envolvimento da sociedade civil e expandem o setor privado no campo educacional. Como afirma Freitas (2018, p. 51), “[…] coloca-se a escola a caminho da privatização plena da educação, ou seja, sua inserção no livre mercado, como uma organização empresarial”. Isto posto, Caetano e Peroni (2019, p. 101)

[…] também apresentam que os processos de privatização do público podem ocorrer via execução e direção, em que o setor privado atua diretamente na oferta da educação, ou quando a atuação do privado ocorre na direção das políticas públicas, ou das escolas sendo que a propriedade permanece pública.

Nesse sentido, as autoras alertam que não entendem essa relação entre o público e o privado apenas como propriedade, mas como projetos societários em disputa numa perspectiva de classe (Caetano e Peroni, 2019). Essa perspectiva propõe uma alteração no papel do Estado em relação à educação, modificando, substancialmente, a dinâmica de funcionamento das escolas públicas, para que estas passem a se submeter a controle mais acentuado por parte do Estado e da sociedade civil. Diante disso, inevitavelmente, cabe discutir a atual forma da organização social sob o domínio do capital financeiro.

Em vista disso, o sistema de parceria público-privada na educação, em sua lógica de mercado, acarreta uma proposição específica para organizar, executar e implementar as orientações das organizações privadas em suas assessorias, seus produtos e na formação ou treinamento, em situações específicas, como é o caso da Secretaria Municipal de Educação (SEMED)/Manaus. Isso se constata mediante os relatórios das organizações privadas investigadas sobre as atividades executadas, que apresentam o fornecimento de orientações para a escola e, também, pela presença de técnicos e formadores por elas contratados e pagos com o recurso público.

Pode-se concluir que a complexidade da melhoria da educação não se resolve com a adesão de sistema de parceria público-privada na escola pública, pois, como foi observado neste estudo, o capital financeiro vem implementado ações que interferem diretamente na educação, via programas, projetos etc. E esse sistema de parceria público-privada na educação tem servido para realizar transferências de recursos públicos para entes privados, dado o fato de que as condições estabelecidas em tais “parcerias” impõem grande carga ao Estado, que, “[…] além de pagar pelos investimentos (geralmente através da emissão de dívidas públicas), ainda protege as empresas contra quase todos os riscos do negócio” (Fattorelli, 2013, p. 51).

UM PROGRAMA MÁXIMO, UM PROFESSOR MÍNIMO: ESTRATÉGIAS MERCANTILISTAS PARA A FORMAÇÃO DOCENTE

Com o intuito de demonstrar no campo da educação pública a hegemonia das organizações privadas e as implicações dessa relação construídas pelo capital e reforçadas por múltiplos mecanismos de dominação administrados pela hegemonia do Estado, é importante assinalar que uma das maiores organizações privadas que atuam na educação pública brasileira é o BID. Percebe-se que existe uma agenda para a educação da América Latina coordenada e financiada pelas organizações internacionais e orientada por documentos produzidos por essas organizações que necessitam da articulação da burguesia dos Estados Nacionais para sua materialização.

Dito isso, a entrada do BID como intelectual, com seu arcabouço de formulações conceituais, impõe interferência de grande porte do capital na educação, mas acompanhada pela força ideológica e física da classe burguesa, que vem se materializando no ambiente escolar e influenciando as políticas educacionais. Esse movimento expressou a tensão entre os pensadores da educação em torno da extensão da educação pública para todos, revelando a dimensão contraditória e conflitante entre a permanência e a transformação social que poderia ser provocada pela instrução.

Pode-se afirmar, hoje, que os formuladores das políticas educacionais, como a Conferência de Jomtien de 1990, a UNESCO, o BID e o Banco Mundial (BM), foram os principais intelectuais do capital na disseminação e execução das propostas de reforma neoliberais.

Observa-se que as relações sociais construídas pelo capital estabelecem, se mantêm e se reforçam por meio de mecanismos de dominação administrados pela hegemonia do Estado e inculcados em documentos produzidos por organizações privadas. Refletindo sobre a dimensão política e a eficácia ideológica, que estabeleceram um consenso mundial a favor de novos esforços no campo educacional, ativadas pelas inúmeras demandas dos países em desenvolvimento, observa-se que os bancos internacionais se tornaram os financiadores da reforma educacional na maioria dos países.

Entende-se que o fenômeno da incorporação da lógica do mercado na formação docente brasileira efetivada pelo sistema de parceria público-privada na educação se revela com mais nitidez em conjunturas marcadas pela globalização econômica, pela hegemonia do pensamento político neoliberal, pelo fortalecimento das aplicações tecnológicas e informacionais nas relações sociais, perante as constantes pressões do setor econômico por reformas do Estado e por redefinição das políticas sociais e educacionais. Nesse contexto, tem se manifestado a crescente valorização do mercado como regulador das relações sociais, que se constitui como parâmetro de qualidade destinado a organizar o funcionamento do setor público, o que se tem refletido em novos ordenamentos para a educação nacional enquanto ação de política pública social.

No entanto, é importante entender o que está posto para além das evidências apresentadas pela estrutura contraditória desse fenômeno, que ampliaram as antíteses e contradições historicamente marcantes na consolidação da educação pública no cenário nacional. Esse sistema de parceria público-privada é amparado por leis e normativas que regulamentam as parcerias, convênios e acordos políticos entre os setores públicos e privados e legitimam diferentes formas de privatização do setor público. Essa perspectiva tem se fortalecido com base numa nova justificativa ético-moral e política privatizante que se revela no projeto moderno de organização da educação dos países capitalistas.

Com o estabelecimento de convênios e contratos de empresas, bancos, fundações e instituições com o setor público, a lógica do mercado vai permeando a forma de organizar a educação pública municipal em todo o país. E o mercado educacional, com seus produtos, serviços e tecnologias, destaca-se por comercializar com os administradores da educação pública municipal as supostas vantagens da expansão e melhoria da qualidade educacional. A expansão relacionada à construção de unidades escolares e a ideia de melhoria da qualidade da educação comercializada pelo mercado está associada à aquisição dos produtos, serviços e tecnologias definidos como “[…] ações inovadoras para elevar a qualidade da educação […]” (BID, 2013, p. 10). O objetivo do acordo de empréstimo externo entre o BID e a Prefeitura Municipal de Manaus (PMM) é a realização de uma profunda reforma na rede municipal de ensino, atuando sobre a formação docente, conforme o Quadro 2.

Quadro 2 Proposta de ações para a implementação do Projeto de Expansão e Melhoria Educacional da Rede Pública de Manaus. 

AÇÃO OBJETIVO
Aperfeiçoamento da Qualidade na Educação Básica O objetivo deste componente é melhorar o rendimento e o desempenho escolar dos alunos da rede municipal de ensino por meio do aprimoramento da qualidade da educação no Ensino Fundamental e Educação Infantil. Ações previstas: Contratar consultoria para desenho de proposta pedagógica para todo o ciclo de Educação Básica; aperfeiçoar e expandir a cobertura do Programa de Aceleração da Aprendizagem “Voando para o Futuro”, voltado para a correção de fluxo de alunos do Ensino Fundamental com alta distorção idade-ano; apoiar o fortalecimento e a expansão do Projeto Tempo de Superação, voltado ao reforço escolar para alunos com baixo desempenho no EF; desenvolver e implantar projetos inovadores no ensino das disciplinas Língua Portuguesa e Matemática para alunos do EF; adquirir e distribuir materiais didático-pedagógicos para os CMEI e as EMEF; fortalecer as competências e habilidades dos docentes, gestores e profissionais da área administrativa por meio do desenho e da implantação de atividades de formação continuada e de disseminação e intercâmbio de boas práticas pedagógicas; contratar consultoria para apoiar 100 escolas da rede municipal, incluindo todas as unidades construídas com recursos do presente programa, no desenho (ou redesenho) de seus projetos político-pedagógicos; contratar consultoria para desenhar um projeto especial de educação para mulheres, notadamente aquelas que têm filhos e/ou trabalham.

Fonte: Elaboração das autoras, com dados do documento do Acordo entre o Banco Interamericano de Desenvolvimento e a Prefeitura Municipal de Manaus (BID, 2013).

CMEI: centros municipais de educação infantil; EMEF: escolas municipais de ensino fundamental.

No Quadro 2, observa-se que o processo de implementação das ações do Acordo BID-PMM atende às condicionalidades internacionais e aponta para um só caminho, no qual o sistema educacional precisa passar por uma reforma visando qualificar melhor as pessoas para enfrentarem um mundo mais competitivo, mais afinado com o mercado. Desse modo, o processo desencadeador da política educacional municipal em que as ações do PROEMEM foram implementadas possibilita a institucionalização de interesses privados no espaço escolar público e contou com a participação de profissionais da educação pública municipal, atuantes na rede de ensino de Manaus, que desde os anos de 2013 passaram a estudar e definir essa forma de sistema de parceria público-privada como meio de organizar a Educação Infantil e o Ensino Fundamental.

Conforme observado no Quadro 2, para a execução da ação intitulada Aperfeiçoamento da Qualidade na Educação Básica, a PMM firma convênios com a Fundação Itaú Social (FIS) para a implementação do Programa de Tutoria Educacional que, conforme o documento Guia de Tutoria de Área, define a tutoria como metodologia de formação em serviço, realizada no cotidiano da escola, pelo tutor e com o tutorado (professor), para desencadear o processo de aprendizagem, buscando agregar novos conhecimentos de caráter prático com o objetivo de melhorar os resultados de aprendizagem dos estudantes. O referido documento apresenta os princípios da tutoria, em que a rotina de trabalho do tutor se pauta em alguns princípios tais como: aprendizagem na prática, parceria, customização, protocolos e combinados, intencionalidade e transparência, foco na aprendizagem dos alunos (Fundação Itaú Social, 2010).

Para o BID, investir na capacitação e no acompanhamento do professor para o melhor desempenho dos estudantes é ação comprovada no documento do PROEMEM, “[…] desde que seja possível dotar esses profissionais de um papel mais ativo na formação continuada e no monitoramento regular dos professores” (BID, 2013, p. 13).

O Programa de Tutoria Educacional (PTE) é um programa da FIS que traz os fundamentos das mudanças para contribuir para a melhoria da educação brasileira: “A Reforma Educacional de Nova York: Possibilidades para o Brasil” (Gall e Guedes, 2009) e “Escolas Charter no Brasil: A Experiência de Pernambuco” (Fundação Itaú Social, 2010). Esses fundamentos correspondem às diretrizes do BID que pregam a descentralização da gestão escolar e a centralização dos sistemas de avaliação, a autonomia vigiada da comunidade escolar (diretor, professor e estudantes) por mecanismos de responsabilização e controle operacionalizados por testes de desempenho dos estudantes. A comercialização de produtos, serviços e tecnologias das organizações privadas adquiriu centralidade com a efetivação do financiamento das ações do PROEMEM na rede pública municipal, especificamente no âmbito da formação docente.

Desse modo, questiona-se o que representa essa política do acordo de empréstimo externo e como se dá a relação com o conhecimento sistematizado na escola pública sob a perspectiva das organizações privadas hegemônicas, buscando entender o papel dos profissionais da educação nesse processo. A aceitação dessa lógica fortalece uma nova justificativa ético-moral e política privatizante no projeto moderno de educação e reforça a predominância do interesse das organizações privadas no setor educacional, que se impõe sobre o interesse público e estatal.

Constata-se que a entrada das organizações privadas na formação docente aprofunda a privatização na educação básica das mais variadas formas, até mesmo com a inserção da fração empresarial na educação por meio do sistema de parceria público-privada. Shiroma e Evangelista (2014, p. 32) afirmam que há um empenho de “[…] grupos empresariais organizados em redes para interferir nos rumos da Educação, cujo projeto geral é reformar a educação”.

Assim, a lógica privada tem penetrado na formação docente no município de Manaus, e evidencia-se a execução das ações da FIS e Fundação Telefônica, que venderam produtos, serviços e tecnologias educacionais e se inseriram na formação continuada dos professores do ensino fundamental na rede municipal de ensino de Manaus.

Entende-se que o sistema de parceria público-privada executado a partir do acordo de empréstimo externo entre o BID e a PMM para a formação continuada dos docentes converge com os ajustes delineados por organismos privados. Confirma-se, portanto, que o mercado adentra a escola pela lógica da produção, projetando a manutenção da hegemonia e o conformismo em torno da forma de atuação da fração burguesa hegemônica. Assim, evidencia-se a organicidade das ações dos mais variados entes privados, na tentativa de consolidar uma política para a educação pública e na criação de um nicho de mercado a ser adquirido pelo Estado.

As estratégias mercantilistas na condução da formação continuada de professores da rede pública municipal de Manaus são os acordos estabelecidos para o sistema escolar da rede municipal de ensino. Cita-se como exemplo a implementação dos projetos Tutoria Educacional, Aula Digital, Escolas Conectadas, Escola Digital, entre outros já citados. Antes, é necessário ressaltar que a Fundação Telefônica Vivo é uma das mantenedoras do Movimento Todos pela Educação. Faz-se necessário destacar a importância desse movimento na formulação das políticas para a educação básica. Assim, de acordo com Oliveira e Barros (2015, p. 165), “[…] o movimento constituiu-se na materialização, via educação escolar, da hegemonia neoliberal […], na construção da nova sociabilidade capitalista no espaço nacional”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O acordo BID-PMM expressa um processo contraditório, sendo neste caso indisfarçável sua condição de intelectual do capital, dada a iniciativa de exigências de condicionalidades a cada empréstimo realizado e, fundamentalmente, os aspectos ideológicos recorrentes na operação de crédito celebrada, que não deixam dúvidas quanto à identidade política da organização. Assim, está claro que a lógica mercantil prevalece orientando as políticas educacionais na capital amazonense. Essa realidade mostra que há muitos elementos que precisam ser estudados para que se entenda esse sistema de parceria público-privada que se estabelece na educação pública com os convênios, contratos, acordos e parcerias privadas realizados nas escolas públicas. Assim, a lógica do mercado vai permeando a forma de organizar a educação pública municipal, e o mercado educacional tem se destacado por vincular à aquisição e utilização de seus produtos, serviços e tecnologias educacionais os supostos benefícios para atingir determinada qualidade da educação.

Observa-se que tem se materializado a mercantilização na organização e no funcionamento da educação pública municipal. Ressalta-se a importância dada às questões inerentes à relação entre Estado e educação, diante do fato de que as políticas e diretrizes construídas para garantir as condições do atendimento escolar público, gratuito, democrático, laico, entendido como direito social e bem público, estão se dando na esfera dos interesses privatizantes, sendo a educação concebida como mercadoria educacional. Essa relação entre Estado, mercado e educação tem uma trajetória histórica conflituosa, dado o antagonismo dos projetos de interesses públicos e privados que mantêm suas diferenças estruturais, políticas e ideológicas no cenário de consolidação da educação pública brasileira.

Entende-se que público e privado se expressam como polos opostos e se revelam nas contradições que emergem nos espaços das lutas de classes, por meio dos sujeitos histórico-sociais em movimentos concretos.

A inserção dos programas Tutoria Educacional e ProFuturo analisada mantém-se orientada pela lógica da FIS e Fundação Telefônica Vivo, que tem seus fundamentos localizados nos princípios apresentados pela economia de mercado, em que os produtos e serviços dessas fundações assumem a centralidade do processo de conhecimento e da busca por uma denominada qualidade da educação, num processo fetichizado. O avanço do capital sobre a educação básica assume as mais variadas estratégias e, assim, evidencia-se a formação continuada de professores como uma delas.

Este trabalho revelou, portanto, as estratégias mercantilistas na condução da formação continuada de professores da rede pública municipal de Manaus, financiadas pelas ações do PROEMEM, pois o sistema de parceria público-privada no âmbito da SEMED/Manaus não se apresenta como inédito. No entanto, cabe apontar que foi a partir do acordo BID-PMM que se observou a expansão das organizações privadas hegemônicas na formação continuada dos professores da rede municipal de Manaus. Assim sendo, afirma-se que as implicações do sistema de parceria público-privada influenciam diretamente na política educacional para a educação pública de Manaus, especificamente na formação docente, que traz no bojo estratégias mercantilistas moldadas pela subserviência ao capital financeiro, estabelecendo seu terreno lucrativo no âmbito educacional e integrando-se ao processo de privatização da educação básica, que ameaça fortemente o processo da democratização da educação pública.

1Por se tratar de um conceito polissêmico, o termo ideologia, mesmo no campo marxista, apresenta diferentes entendimentos. Para Marx, o termo designa a “consciência invertida” do mundo real, e na definição de Engels a ideologia é definida como “falsa consciência” (Liguori, 2017). Concebe-se neste artigo a categoria ideologia como um sistema de crenças, valores e representações que se autoproduzem nas sociedades de classes com o objetivo de explicar, justificar e legitimar o sistema de dominação e a estrutura material de exploração. Nesse sentido, a possibilidade de depurar e desvelar a ideologia é perpassada pela luta de classes e dá-se por meio do discurso crítico vinculado à consciência da classe dominada.

2Nos estudos de Marx (2017, p. 524), presentes no livro III d‘O Capital, Seção V, acerca do crédito e capital fictício, menciona-se o “[…] processo real de valorização do capital e se reforça a concepção do capital como um autônomo que se valoriza por si mesmo”.

3Esse funcionamento distorcido de parceria público-privada que mercantiliza a educação é considerado neste artigo como sistema de parceria público-privada na educação.

4Não cabe aqui uma análise sobre a Reforma do Estado realizada por Bresser Pereira no governo de Fernando Henrique Cardoso, porém cabe notar que, pela direção adotada, coube-lhe ser denominada de contrarreforma, já que, negando e ignorando a própria Constituição Federal de 1988, ela altera substantivamente as funções do Estado e reduz o caráter público e universal das políticas sociais a ações que devem contar com a participação da iniciativa privada.

5Conforme previsto no Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado no Brasil, elaborado pelo Ministério da Administração Federal e da Reforma do Estado e aprovado em novembro de 1995, a reforma gerencial corresponde à necessidade de reduzir custos e aumentar a qualidade dos serviços, perpassando pelos valores de eficiência, qualidade e cultura gerencial, com maior participação dos agentes privados (Brasil, 1995).

6O gerencialismo difundiu-se como um “canto de sereia” associado à ideia de um Estado enxuto, eficiente, ágil, modernizado, desburocratizado, entre outras qualidades (Shiroma, 2018, p. 91).

7A Lei n° 9.608, de 18 de fevereiro de 1998 (Brasil, 1998b), dispõe sobre o Serviço Voluntário e a Lei n.° 9.637, de 15 de maio de 1998 (Brasil, 1998c), conhecida como lei da privatização ou lei Bresser, qualifica como Organizações Sociais (OS) pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujas atividades sejam dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção do meio ambiente, à cultura e à saúde.

8A Lei n° 9.790, de 23 de março de 1999 (Brasil, 1999), qualifica pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), institui e disciplina o Termo de Parceria. O artigo 9° da lei institui o Termo de Parceria, assim considerado o instrumento passível de ser firmado entre o Poder Público e as entidades qualificadas como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) destinado à formação de vínculo de cooperação entre as partes (ibidem). Trata-se da forma de qualificação requerida das ONG para a institucionalização de contratos de parcerias com o governo.

Financiamento: Esta pesquisa teve apoio da agência financiadora de Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM).

REFERÊNCIAS

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Recebido: 05 de Julho de 2022; Aceito: 04 de Novembro de 2022

Conflitos de interesse: As autoras declaram que não possuem nenhum interesse comercial ou associativo que represente conflito de interesses em relação ao manuscrito.

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