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Revista Brasileira de Educação

Print version ISSN 1413-2478On-line version ISSN 1809-449X

Rev. Bras. Educ. vol.28  Rio de Janeiro  2023  Epub Nov 23, 2023

https://doi.org/10.1590/s1413-24782023280118 

Artigos

Pensar o lugar das periferias no desenvolvimento de trajetórias educativas: apontamentos a partir de um estudo narrativo com jovens do Brasil e de Portugal

Reflecting on the peripheries locus in the development of educational trajectories: observations from a narrative study with Brazilian and Portuguese youth

Pensando en el locus de las periferias en el desarrollo de trayectorias educativas: observaciones a partir de un estudio narrativo con jóvenes brasileños y portugueses

Thiago Freires

Thiago Freires Rodrigues é doutor em Ciências da Educação pela Universidade do Porto (Portugal). Investigador e membro integrado do Centro de Investigação e Intervenção Educativas (CIIE) da mesma instituição. E-mail: tfreires@fpce.up.pt

, Investigação, Escrita — Primeira Redação, Conceituação, Análise Formal, Metodologia, Escrita — Revisão e Edição, Obtenção de FinanciamentoI 
http://orcid.org/0000-0003-4741-0763

Fátima Pereira

Fátima Pereira é doutora em Ciências da Educação pela Universidade do Porto (Portugal). Professora catedrática e membro integrado do Centro de Investigação e Intervenção Educativas (CIIE) da mesma instituição. E-mail: fpereira@fpce.up.pt

, Conceituação, Análise Formal, Metodologia, Escrita — Revisão e Edição, Obtenção de FinanciamentoI 
http://orcid.org/0000-0003-1107-7583

1Universidade do Porto, Porto, Portugal.


RESUMO

Este artigo centra-se em parte dos resultados de uma investigação cujo objetivo maior era compreender as trajetórias de escolarização de jovens residentes em contextos periféricos no Brasil e em Portugal. O estudo problematizou o significado da Escola para esses jovens, sob o enfoque da massificação da escola pública. Organizado como uma investigação multicasos, ancorado nos princípios da abordagem biográfica, o projeto assentou na análise da inter-relação de fatores pessoais e contextuais/sociais nas biografias juvenis, por forma a situar os possíveis sentidos da Escola conforme percepcionado pelos participantes. Ao todo, o projeto envolveu 25 estudantes do ensino médio. Neste texto, assenta-se na dimensão de análise referente ao sentido da periferia, tema orientador e fundador da problemática investigada. Os resultados apontam para a polissemia do conceito, realçando a sua (re)construção semântica a partir da abordagem biográfica.

PALAVRAS-CHAVE periferias; trajetórias educativas; narrativas biográficas; escola pública

ABSTRACT

This article focuses on part of the results linked to a research project whose main goal was to understand the schooling trajectories of youth living in peripheral contexts in Brazil and Portugal. The study problematized the meaning of the School for these young people, under the focus of the massification of the public school. Organized as a multi-case research, anchored in the principles of the biographical approach, the project grounded on the analysis of the interrelationship of personal and contextual/social factors in youth biographies, in order to situate the possible meanings of the School as perceived by the participants. Overall, the project involved 25 secondary school students. This paper draws on the analysis dimension concerning the meaning of the periphery, the guiding and founding theme of the investigated issue. The results point out to the polysemy of the concept, suggesting its semantic (re)construction from the biographical approach.

KEYWORDS peripheries; educational trajectories; biographical narratives; public school

RESUMEN

Este artículo se centra en una parte de los resultados de una investigación cuyo principal objetivo fue comprender las trayectorias escolares de jóvenes que viven en contextos periféricos, en Brasil y Portugal. El estudio problematizó qué significa la Escuela para estos jóvenes, bajo el foco de la masificación de la escuela pública. Organizado como una investigación de casos múltiples, basado en los principios del enfoque biográfico, el proyecto se basó en el análisis de la interrelación de factores personales y contextuales/sociales en biografías de jóvenes, con el fin de establecer cómo los participantes entienden la Escuela. En total, el proyecto involucró a 25 estudiantes de secundaria. En este texto, se fundamenta en la dimensión de análisis referente al sentido de la periferia, tema rector y base del problema investigado. Los resultados apuntan a que el concepto es polisémico, y destaca su (re)construcción semántica desde el enfoque biográfico.

PALABRAS CLAVE periferias; trayectorias educativas; relatos biográficos; escuela pública

INTRODUÇÃO

O ponto de partida para a realização do projeto em que assenta este artigo, epistemológica e empiricamente, se conflui no sentido que se pode atribuir à periferia, tendo esse conceito sido alvo de intensa reflexão desde o processo de desenho da investigação até a sua materialização no terreno. Em causa, o interesse por perceber sentidos atribuídos por jovens, com residência em contextos socioeconomicamente desfavorecidos, à Escola e aos processos de escolarização. A periferia, como ponto de partida, fora designada como um espaço multifacetado, na forma de territórios imprecisos e não consolidados, comummente associados aos subúrbios (de forma negativa), demarcados por um conjunto de ausências/carências do ponto de vista estrutural, enfrentando constante comparação face a um centro (Domingues, 1994; Zanten, 2001). Essa periferia, por vezes, é explicitamente visível a olho nu, mas não tem que necessariamente o ser. Na sua abstração, pode disfarçar-se nos desígnios da sua infraestrutura física, emulando, por isso, uma aparência de centro que, até certo ponto, acaba por invisibilizar as carências presentes no seu contexto, que podem ser das mais variadas naturezas — cultural, educacional, familiar, socioeconómica (Freires, 2019). Conscientes dos processos de invisibilização que a periferia pode acionar, e certos de que se trata de um conceito polissêmico, neste artigo, abordamos como, no processo de pesquisa, a abordagem biográfica permitiu problematizar a noção de periferia. Nessa direção, nas seções seguintes apresentamos o enquadramento teórico, assente no campo semântico da periferia, fazemos a ligação com a metodologia eleita para a pesquisa em foco e apresentamos os resultados em linha com a abordagem biográfica.

AS PERIFERIAS COMO LUGAR DE COMPLEXIDADE

A periferia, às vezes, subúrbio, é uma fragmentação do espaço urbano, apresenta-se como margem e sugere um território impreciso e não consolidado. Enquanto subúrbio, a periferia pode emergir da espontaneidade da ocupação popular, caso em que se consagra, com frequência, uma região carente de infraestrutura, o que fortalece o caráter negativo que lhe aparece associado. Domingues (1994) refere que é o grau de afastamento do centro que condiciona a posição periférica, numa relação em que quanto maior é a visibilidade, o poder e a clareza dos atributos das condições centrais — ou seja, a sua imagem —, maior é o estatuto de periferia; embora seja verdade que é cada vez mais premente pensar essas relações fora de um espectro binário contraditório (Santos, 2002; Silva, 2022).

O conceito de periferia, assim como sua relação com um centro, de toda forma, pode ser pensado em planos distintos, partindo do local ao regional, do micro ao macro. Se, por um lado, as cidades em si podem constituir um núcleo de estudo dos sentidos da periferia, por outro, os blocos geográficos alargados face a um mundo globalizado também podem emergir como fontes poderosas para se pensar os significados e a coerência de zonas intituladas marginais, sensíveis (Zanten, 2001). Na Europa, a questão do centro e da periferia tornou-se novamente relevante e atual, a partir da emergência de fluxos migratórios entre as diferentes cidades e os distintos países, sejam eles países membros da União Europeia ou não (Heikkinen, 2001). Para Heikkinen (2001), o fenómeno das migrações tem promovido o aparecimento de novas culturas de classes sociais e formas de vida, de modo que as distinções feitas a partir do ponto de vista étnico remetem apenas a um aspecto singular.

Quando se pensa a organização urbana na sua relação com movimentos de segregação face a processos de escolarização, é possível pensar, no contexto europeu, em mudanças profundas, que alteraram a paisagem étnica e social (Zanten, 2005). Essas mudanças desencadeiam, pelo menos, dois desdobramentos. O primeiro relaciona-se com o ambiente social dos bairros e das escolas onde as crianças crescem, que pode ser lido sob a forma de capital social individual ou coletivo, no sentido de que as composições social e étnica têm impactos na socialização da criança. A segunda questão se refere ao acesso a diferentes instituições educativas, de acordo com a localização. Segundo observa Zanten (2001), a localização é bastante pertinente porque os pais tendem a matricular seus filhos na sua vizinhança e também porque, em muitos países, as crianças devem ser matriculadas de acordo com o seu local de residência. Assim, a autora demarca a ocorrência de dois fenómenos, a segregação e a agregação, que acontece quando as classes mais altas se associam em determinadas zonas, gerando uma acumulação de capital cultural e econômico, o que produz capital social valioso para as vizinhanças e escolas de seus membros.

O pensamento da periferia, no contexto de uma abordagem micro, aponta outras formas de se conceptualizar o periférico, por forma a reconhecer-se potencial para que a periferia ela própria também se possa configurar como um espaço de centro, a partir de dinâmicas que constituam um foco que não o da localidade (Silva, 2010). Seria o caso das relações dinamizadas num espaço específico. Uma determinada instituição periférica pode se tornar um centro a partir do sentido de núcleo que adquire nas relações constituídas com os sujeitos que com ela interagem e os arredores que a cercam (Silva, 2010; Freires, 2019). Ao evidenciar esse movimento de reconfiguração do lugar periférico, Silva (2010) demonstra uma clara intenção de destacar o fato de que a periferia não é singular ou uniforme (Domingues, 1994; Silva, 2022). No que toca às questões educativas, entretanto, não podemos negar que, até certo ponto, o meio sociocultural é regulador e, inclusive, disciplinador das expectativas juvenis, conforme afirma Costa (2013). Para a autora, os meios socioculturalmente mais desfavorecidos seriam, se não preditores, pelo menos condicionadores do tipo de expectativa que o jovem pode conceber face à escola.

Numa perspectiva macro do sentido da periferia, reconhece-se que há figuras intermediárias, como será o caso da semiperiferia, caracterizada por combinar, em simultâneo, características de contextos desenvolvidos e outras típicas de geografias condicionadas pelas desigualdades (Stoer e Araújo, 2000). Uma posição tal que pode emergir de um desenvolvimento desigual ao longo dos anos, traduzido na figura de condições sociais, políticas, econômicas e culturais em mutação, que fomentam uma posição intermediária face ao diálogo entre a periferia e o centro (Santos, 1985). Na conjuntura global, nos países periféricos, assim designados, sobretudo, em função da posição econômica, observa-se um desenvolvimento desigual entre regiões e o imperativo da concentração dos meios de produção e de renda (Freires, 2019).

As noções de centro e periferia são ainda fundamentadas numa interpretação da educação e formação e seus respetivos impactos econômicos, isto quer do ponto de vista da produção de políticas, quer da realização de pesquisa em educação. Heikkinen (2001) realça que a teoria do capital humano continua a ser uma perspectiva habitual no desígnio das relações de marginalização, de modo que os países de centro são assim determinados mediante a sua atuação superior em mercados globais enquanto as periferias se definem em função da marginalidade que representam nos mercados e dos baixos índices de produtividade (Lipman, 2013). A periferia, no entanto, não se pode confundir única e exclusivamente com um estereótipo imagético que dela se constrói — ou com a ausência dele. Sua problematização, aliás, é passível de — e deve — ser ancorada com as populações que a povoam, permitindo a emergência de um sentido que é situado, colaborado e, especialmente, eticamente formulado, a partir do vivido — e não somente do atribuído.

METODOLOGIA

Este artigo deriva, conforme referido antes, de um projeto de pesquisa que objetivava compreender os sentidos da educação escolar para jovens cujos processos de escolarização tomam lugar em contextos considerados periféricos. Com a finalidade de responder a esse objetivo, foi desenvolvido um estudo multicasos, com recurso a diferentes técnicas de recolha de informação e de produção de dados, ocupando a abordagem narrativa (Clandinin e Connelly, 2000) um lugar privilegiado na construção do objeto científico. Relativamente aos instrumentos de recolha de informações, optou-se pelos grupos de discussão focalizada e pelas entrevistas de tipo biográfico. O trabalho empírico incidiu também na análise de documentos pertinentes para a caracterização dos contextos. O objeto de estudo encontra-se vinculado a dois contextos distintos, Brasil e Portugal, intermediados, cada um deles, por uma escola pública de ensino médio. As regiões de localização destacadas para o desenvolvimento do estudo — nomeadamente, o Distrito do Porto, especificamente, o concelho de Paços de Ferreira em Portugal (Figura 1), e o estado do Ceará, especificamente a cidade de Fortaleza no Brasil (Figura 2) — foram escolhidas em função de um conjunto de características, que, entre diferentes dimensões, considera questões de baixo desenvolvimento humano ou condições de desigualdade social (Portugal, 2004; PNUD, 2010; Gonçalves, Matos e Manso, 2012; PNUD, FJP e IPEA, 2016).

Fonte: Elaboração dos autores.

Figura 1 Localização do concelho de Paços de Ferreira, Distrito do Porto, Portugal. 

Fonte: Elaboração dos autores.

Figura 2 Localização da cidade de Fortaleza, capital do estado do Ceará, Brasil. 

As escolas, por seu turno, foram designadas para a investigação por diferentes razões. No caso brasileiro, a instituição localizada no Conjunto Palmeiras (bairro da cidade de Fortaleza, capital do estado do Ceará) foi escolhida por conta da sua localização numa zona urbana periférica, com histórico educativo deficiente em que o índice de analfabetismo da população em idade ativa ultrapassava os 50%. Em Portugal, a escola selecionada, sita no concelho de Paços de Ferreira, mostrou-se interessante por se localizar num contexto cercado de zonas semirrurais, congregando uma população variada, com significativas marcas de vulnerabilidade socioeconómica. Em ambas as regiões geográficas, identificaram-se contextos com maior tendência para situações de desigualdade, discriminação e exclusão socioeconômica. Os critérios de escolha de jovens estudantes que participaram da investigação procuraram respeitar uma diversidade de gênero, idade e ano de escolaridade. A propensão dos sujeitos a situações de vulnerabilidade foi outra questão levada em consideração. No total, participaram da investigação 25 estudantes, sendo 13 rapazes e 12 raparigas, dentre os/as quais 11 brasileiros/as e 14 portugueses/as.

A pesquisa guiou-se por uma racionalidade ética assente numa dinâmica de reflexividade metodológica, de modo que a participação de jovens respeitou as suas vontades individuais e o direito de participação espontânea, buscando-se forjar uma relação de horizontalidade sempre que admissível (Clandinin, Caine e Lessard, 2018; Freires e Pereira, 2020). Foram assinados consentimentos informados pelos participantes, seus responsáveis legais e também pelos representantes das escolas onde os jovens estavam matriculados. A fim de garantir o anonimato e a confidencialidade dos dados, os nomes referidos ao longo do texto, naturalmente, são de natureza fictícia, com a particularidade de terem sido escolhidos pelos próprios participantes da investigação.

O RECURSO AOS GRUPOS DE DISCUSSÃO FOCALIZADA

A abordagem dos grupos de discussão focalizada (GDF), no contexto de uma investigação vincada nos princípios da abordagem narrativa, teve por finalidade concretizar a entrada no campo empírico. Interessava, numa etapa inicial, recolher, escutar e debater as perspectivas dos jovens acerca de seu investimento em educação e, ao mesmo tempo, levantar pistas sobre concepções relacionadas aos respectivos contextos geográficos e escolares. Foram realizados dois GDF, um no Brasil e outro em Portugal, cada um deles contando com a participação de seis estudantes.

Em Portugal, havia alunos dos três anos do ensino médio, portanto, oriundos dos 10°, 11° e 12° ano, de acordo com a nomenclatura do sistema de ensino português; uma distribuição equitativa em termos de gênero; e uma variação de idade entre os 15 e 17 anos. Todos os participantes frequentavam o ensino secundário em Artes Visuais.1 No Brasil, a atividade contou, igualmente, com o envolvimento de três rapazes e três meninas, com idades variando entre os 16 e 17 anos, oriundos dos três anos correspondentes ao ensino médio, na sua modalidade comum, ou seja, sem currículo vocacionado.

O guião previamente elaborado para essa atividade contemplava um debate acerca de três áreas chave: a Escola, o ensino médio e a juventude. A realização dos GDF, em ambos os contextos, durou cerca de duas horas, e a discussão se centrou na conceptualização da Escola. O GDF decorreu, no Brasil e em Portugal, numa sala de aula. Antes de iniciar a atividade, o investigador espalhou fotografias em mesas. Assim, numa das etapas iniciais, os participantes foram convidados a escolher uma foto dentre as 16 disponíveis.

As imagens expostas representavam ambientes escolares e integravam-se em três categorias — não explicitadas — para discussão: fachadas, salas de aulas e zonas de recreio. As fotografias também estavam organizadas em dois grandes grupos, escolas de países considerados periféricos (Quênia e México, por exemplo) (Figura 3) e instituições de países desenvolvidos2 (Finlândia e Japão, por exemplo) (Figura 4). A justificativa das fotos era provocar um debate sobre a escola, a partir das motivações pessoais que levariam cada jovem a escolher uma determinada fotografia. Em especial, essas imagens promoviam a oportunidade para problematizar a concepção de periferia, despertando um debate a partir do visível. Na esteira de Campos (2011), compreende-se a imagem como signo capaz de transmitir informações sobre uma realidade observável. Como ver-se-á na seção de resultados, a periferia, tal como problematizada pelos estudantes, é tanto mais sentida quanto mais visível aos olhos. As histórias levantadas por meio dos GDF foram depois retomadas no processo de construção das narrativas juvenis, fazendo-se sentir o lugar da infraestrutura, da imagem e do lugar estereotipado que elas podem avivar na relação que os jovens organizam com os seus contextos e com as sociabilidades que experimentam.

Fonte: © James Mollison (s.d.a).

Figura 3 Exemplo de imagem utilizada no grupo de discussão focalizada (Escola Valley View, Quênia). 

Fonte: © Tuomas Uusheimo (s.d.).

Figura 4 Exemplo de imagem utilizada no grupo de discussão focalizada (Escola Secundária Saunalahti, Finlândia). 

AS ENTREVISTAS BIOGRÁFICAS E A CONSTRUÇÃO DA DIMENSÃO NARRATIVA

O interesse pela compreensão em profundidade de aspectos sociais, institucionais, culturais, laborais, entre outros, que colaboram para a percepção que os jovens desenvolvem sobre a Escola, bem como as estratégias que elaboram para os seus projetos educativos, na consideração dos percursos de escolarização, compõem um processo que exige um contato proximal e aprofundado com as histórias dos sujeitos. Por essa razão, pareceu indispensável recorrer a uma epistemologia da escuta, privilegiando o ponto de vista dos eventos na voz dos atores que o vivenciam em primeira instância, logo, os próprios estudantes. Trata-se de uma opção metodológica que se justifica perante a instabilidade dos paradigmas positivistas assentes numa lógica de objetividade, já negada em variados aspectos (Charlot, 2000; Santos, 2002). A iminência de novas vozes e o interesse por interpretar o que elas têm a dizer levaram ao encontro da entrevista de caráter biográfico como principal técnica de recolha de informação.

A consideração das entrevistas de tipo biográfico compôs uma oportunidade de inferir o percurso de escolarização dos estudantes, desde seu acesso à escola até a sua presente situação de formação, o que permite problematizar e ampliar a concepção sobre as perspectivas que os jovens têm acerca de seus percursos formativos, inclusivamente de seus contextos, elucidando os sentidos de adesão ou recusa à cultura escolar. A opção por uma entrevista de tipo biográfico, como método de pesquisa neste trabalho, reporta-se à concepção de que as experiências são determinadas num contínuo temporal, de modo que olhar para uma situação contemporânea exige perceber os processos que permitiram a sua configuração. Conforme baliza Goodson (2013), numa reflexão acerca das histórias de vida, a abordagem narrativa aponta para uma forma de se examinar como as pessoas se encontram em constante luta para compreender os propósitos e sentidos de sua história. Em congruência, compreende-se que a história de vida e as metodologias narrativas são pertinentes para a compreensão de como as experiências educacionais de um sujeito podem formar suas crenças e construções identitárias (Rodriguez e Polat, 2012).

Compreendendo-se, portanto, que a abordagem narrativa viabiliza uma pesquisa que assenta no estudo das histórias que as pessoas vivem e contam (Clandinin e Connelly, 2000; Freitas, Pereira e Nogueira, 2020), mediante as indagações e dúvidas que se levantam ao longo do processo de investigação, optou-se por essa estratégia, com o propósito de compreender a pertinência e os sentidos da Escola segundo a experiência de um conjunto de jovens cuja residência se associa a contextos periféricos. Ao longo do trabalho empírico, foram elaboradas 21 narrativas, a partir do material recolhido por meio de entrevistas biográficas. No Brasil, participaram 10 estudantes e, em Portugal, outros 11 jovens. Houve o cuidado, ao longo do trabalho, de manter uma distribuição relativamente equitativa em termos de gênero e em cobrir os três anos do ensino médio, com predominância de alunos do 3° ano (12° ano em Portugal). Essa predominância associa-se com a compreensão da investigação, no decorrer do trabalho empírico, de que os jovens que se encontravam no fim do seu percurso de escolarização obrigatória apresentavam maior repertório para problematizá-lo. Ainda assim, entendeu-se que continuava a ser interessante buscar marcas e sentidos da escola para os alunos dos demais anos de escolaridade, evidenciando-se o lugar do(s) tempo(s) no desenvolvimento das trajetórias educativas.

SOBRE A ANÁLISE DE DADOS

O tratamento e a análise da informação recolhida por meio dos GDF, bem como a interpretação do material das entrevistas de tipo biográfico, foram realizados segundo as técnicas de análise de conteúdo, privilegiando-se uma interpretação mediadora, isto é, num contexto de descoberta, a possibilidade de o investigador formular teorias ou modelos, a partir de um conjunto de hipóteses que podem emergir em diferentes fases da investigação (Pereira, 2010). No caso das entrevistas, num primeiro momento, os dados foram também organizados a partir de leituras flutuantes, resultando em narrativas (conforme seção seguinte), mais tarde aglutinadas em grupos temáticos. Apenas num momento conseguinte, as informações recolhidas foram submetidas à análise de conteúdo. Da análise de conteúdo, resultaram sistemas categoriais específicos para os GDF e para as entrevistas biográficas, contemplando dimensões relativas aos percursos de escolarização; às experiências juvenis; à família; à comunidade; à identidade; e aos projetos de futuro. Para este artigo, centramos a discussão nos resultados alinhavados na dimensão da comunidade, no caso da análise dos GDF, e também mobilizamos duas narrativas, por forma a dialogar com os resultados oriundos desta etapa da investigação.

ADENTRAR HISTÓRIAS — AS NARRATIVAS BIOGRÁFICAS

Os estudantes que participaram da realização dos encontros biográficos para o desenvolvimento de narrativas, em parte, foram também participantes dos GDF. Esse foi o caso de Adam, jovem do Brasil, e de Hugo, jovem de Portugal, ambos matriculados no 3° ano do ensino médio na altura do trabalho empírico. Outra situação que liga esses estudantes é o facto de terem escolhido, no GDF, a mesma imagem — a foto de uma quadra desportiva de uma escola japonesa (Figura 5). A escolha de cada um se deu por diferentes razões. No Brasil, Adam realçou a beleza da imagem referindo sua admiração pela infraestrutura escolar que a compunha, assegurando que nunca teve acesso a edifício escolar semelhante. Em Portugal, Hugo centrou-se na fotografia da escola japonesa pelo que ela trazia de ligação com o esporte, uma de suas paixões. Nos encontros biográficos que se seguiram com esses jovens, essa imagem voltou a funcionar como elemento desencadeador de partilhas, permitindo resgatar questões relacionadas com o desenrolar da experiência escolar em contextos periféricos. A seguir, apresentamos, sucintamente, as narrativas elaboradas com esses dois jovens a partir das entrevistas biográficas.

Fonte: © James Mollison (s.d.b).

Figura 5 Imagem escolhida por Adam e Hugo no grupo de discussão focalizada (Escola Básica Shohei, Japão). 

ADAM E A OUSADIA COMO RESPOSTA À IMAGEM CONCRETA DA PERIFERIA

Adam era aluno do 3° ano do ensino médio e tinha 17 anos quando nos reunimos. Estudou sempre em escolas públicas, nomeadamente, em escolas periféricas. Para ele, o termo periferia está consagrado na sua realidade e, por isso mesmo, no seu percurso escolar sente que aprendeu a sobreviver. Foi a partir da escola que começou a ver o mundo de um ponto de vista diferente e acredita que, no espaço escolar, teve mais oportunidades de se expressar do que em casa, onde os valores são “à moda antiga”.

O jovem frequentou duas escolas diferentes até ao 5° ano. Narra que era conflituoso e se envolvia, constantemente, em atritos com os colegas. Tinha muita dificuldade de socializar e, por isso, acabava por se isolar. Considera-se inteligente e refere que não teve dificuldades no percurso escolar. Apesar de obediente, era bagunceiro e tinha confrontos com os colegas, o que acarretou algumas idas à diretoria nesse período.

No 6° ano, precisou mudar de escola novamente. Sem vagas na instituição para onde desejava ir, foi para a escola mais periférica de todas que ficava “dentro da favela”. Conta que todos as escolas da sua região são perigosas, mas esta era, sem dúvidas, a pior. Nessa época, a família se encontrava tensa com seu perfil confrontativo, porque nessa escola não se podia brigar com qualquer um — havia muitos alunos envolvidos em gangues e as brigas podiam acabar mal.

A família conseguiu uma vaga para Adam em outra escola, no 7° ano, onde ficou até ao 9° ano — a melhor escola de todas, segundo o jovem. Nesse período, desenvolveu habilidades sociais e fez amigos. Como em toda as escolas, afirma, havia professores bons e ruins e conta que foi com os professores dessa escola que aprendeu, na prática, valores como o respeito e a humildade. Ao longo do 9° ano, cursou o preparatório para o exame de acesso ao Instituto Federal do Ceará (IFCE), uma escola técnica de nível secundário. Por achar que se tinha saído mal no exame, Adam nem sequer confirmou o resultado. Quando uma amiga lhe contou que ele tinha sido aprovado, já estava matriculado na escola de ensino médio do bairro e decidiu permanecer.

O rapaz gostaria de ter optado por outra escola, mas a mãe fez questão que ficasse mais perto de casa para poder ajudar com as tarefas domésticas. Adam diz que na escola de ensino médio há professores ruins e outros péssimos, porém, “alguns sabem dar uma aula”. Na sua concepção, uma das dificuldades que os professores do ensino secundário enfrentam é lidar com a diversidade de perfis dos alunos. Na escola “Tem gays, lésbicas, ateu, protestante, cristão, tudo, numa sala só”.

Descrevendo-se como pouco influenciável e ambicioso, o rapaz diz que buscou em si próprio uma base para formular os seus valores. Vive com os dois irmãos mais novos, os avós maternos, uma tia, uma prima e outro tio. A mãe mudou-se há pouco tempo, fora viver com um namorado, mas é presença constante. Os pais se separaram quando ele tinha cerca de 6 anos e a relação com o pai é frágil, apesar de morarem próximos. Adam refere que a família nunca foi de conversar, apesar de todos estarem prontos para apoiar um ao outro. A “criação” ficou a encargo da avó porque a mãe, que é empregada doméstica, costumava dormir na casa onde trabalhava, então só se reuniam aos fins de semana. Diz que a mãe valoriza a questão do trabalho e o lembra, frequentemente, que ele já tem idade para arranjar um emprego.

Nascido em Fortaleza, o jovem cresceu no bairro onde vive, o Conjunto Palmeiras. Refere que já foi um contexto mais violento, a ponto de os tiroteios ficarem banalizados. A sua rua é famosa pela violência e, sempre que diz onde mora, ouve suspiros e tem de responder a perguntas do tipo “Você anda armado?”. Ousado, nunca deixou de fazer o que tinha vontade em função da violência. Anda de fones na rua, enquanto toda a gente acha perigoso. Explica que não admite viver num país em que não possa ouvir música enquanto caminha.

No futuro, espera se apresentar como alguém que venceu na vida. Traça pequenas metas para que possa cumpri-las porque isso traz satisfação. No ensino secundário, participou de uma experiência de aulas de reforço em que os alunos é que davam aulas uns aos outros. Ficou encarregado da matéria de inglês e ganhou apreço pela atividade. Daí, nasceu a ideia de se tornar professor, considerando, portanto, seguir um curso de Línguas na faculdade. Afirmativo, reforça que, enquanto não puder dizer “Eu fiz”, vai insistir que “Eu faço”.

HUGO, SONHOS IMPOSSÍVEIS E A PERIFERIA ENQUANTO IMAGEM ABSTRATA

Aos 18 anos, Hugo estava a finalizar o 3° ano do ensino médio, em Portugal, na vertente das Artes Visuais, quando nos reunimos. Escolheu a via focada nas artes porque sempre foi bom a desenho, única disciplina em que a nota máxima era garantida no seu boletim no ensino fundamental. Outras áreas de interesse envolviam o esporte, uma paixão ainda presente em sua vida, e a matemática, matéria que foi perdendo peso em sua trajetória. A escolha da escola de ensino médio deu-se pela proximidade de sua residência.

Nascido em Santo Tirso (concelho vizinho de sua residência), onde ficava o hospital mais próximo de sua casa, o jovem cresceu em Figueiró (freguesia do concelho de Paços de Ferreira) e frequentou a sua primeira escola numa freguesia limítrofe, onde esteve do 1° até ao 4° ano. Não foi à pré-escola, pois os pais preferiram deixá-lo aos cuidados de uma tia. Ela funcionava como uma ama, diz o jovem. A partir da frequência à escola, era ela ainda quem buscava a ele e ao irmão. Guarda memórias de ajudar a tia a alimentar o gado e a fazer o comer.

No 5° ano passou para uma nova escola, em que permaneceria até o 9° ano. A transição exigiu alguma adaptação, mas Hugo conta que o processo foi facilitado porque os colegas também se transferiram. Enquanto aluno, sente que foi rebelde nesse período, o que associa com a ideia de andar a chatear as meninas, jogar a bola em todo canto e praticar parkour. Para o rapaz, no fundo, todas as escolas são parecidas. Há sempre bons e maus professores.

A transição para o ensino médio se fez perante uma série de expectativas e a maior delas se prendia com a ideia de que finalmente poderia se dedicar àquilo de que gostava. A primeira frustração foi que, no início do 1° ano do ensino médio, uma professora de desenho deixou de dar aulas por razões de saúde (licença-médica) e não houve substituto. Além disso, o jovem percebeu que havia um conjunto de disciplinas que precisava assistir que não se prendiam diretamente com a sua área de interesse. Entretanto, refere que gosta muito do ambiente na escola. Diz que os funcionários são menos «resmungões» e enfatiza que os professores avaliam que a sua turma, composta de alunos que não trabalham, denota alguma maturidade e educação.

Hugo sugere que alguns professores apenas se preocupam em transmitir os conteúdos e seguir o programa, enquanto outros estão mais disponíveis para ajudar e fazer com que os alunos, de fato, se saiam bem nos exames. Na sua reflexão do que é a escola, o jovem afirma que é na instituição que aprendemos a nossa forma de ser e que ela pode nos tornar pessoas melhores. Para ele, a escola “é a primeira sensação que nós temos em relação à vida”. Podendo ser muita coisa, a escola pode ser, inclusive, “um refúgio para os problemas de casa”.

Enquanto aluno, o jovem se apresenta como quieto e refere que jamais teve problemas com os professores. Sente que tem dias bons e maus. Nos bons, esforça-se minimamente naquelas disciplinas de que gosta mais ou nas quais tem uma melhor relação com o professor. Nos maus, não suporta a escola, anda sempre a olhar para o relógio e desequilibra o ambiente. Acredita que, a partir do ensino médio, passou a ter menos dias maus em função de estar a estudar algo de que gosta. Como não gosta de ser o centro das atenções, nunca se envolveu em órgãos de gestão escolar. O jovem conta que prefere lutar por si.

Confrontado sobre suas lutas, fala sobre o seu desejo de seguir carreira militar. Em criança, sonhava ser cozinheiro ou jogador de futebol, mas ambos os desejos foram perdendo força. No caso do segundo, concluiu que havia colegas que eram mais focados do que ele. Outra projeção de futuro era ser arquiteto, mas, ao perceber que as médias não chegavam, deixou também cair esse sonho. Gostava de ir para o ensino superior, mas entende que custa caro frequentar a universidade. Vai investir na carreira militar e, no futuro, pode repensar.

Filho de um marceneiro e de uma costureira, Hugo descreve que não é rico, nem pobre, vive «a meio». Não teve as melhores coisas, porém, nunca sentiu falta de nada. Conta que o que gostaria de ter e não obteve representou uma forma de os pais o ensinarem sobre prioridades. Ao fim e ao cabo, a escola é uma forma de melhorar de vida e seus pais querem que ele alcance oportunidades que os próprios não tiveram, pois foram obrigados a trabalhar desde cedo para ajudar no sustento familiar. Com o apoio deles, Hugo espera concretizar na sociedade o papel de militar e de militante — porque também espera ajudar outras pessoas.

VISIBILIDADES E INVISIBILIDADES – RECENTRAR A PERIFERIA

As periferias, ou zonas sensíveis (Zanten, 2001), apontam, em especial, para a articulação de um conjunto de ausências, carências ou deficiências numa relação estabelecida com um centro (Santos, 1985; Stoer e Araújo, 2000; Freires e Pereira, 2018). Dessa forma, o periférico somente se preenche de sentido quando ocupa um lugar numa determinada relação, que pode ter caráter micro ou macroespacial (Heikkinen, 2001), integrando diferentes esferas da sociedade, como é o caso da educação.

Na sequência do que se tem afirmado, a seleção dos contextos no Brasil e em Portugal preenchem relações periféricas em conjunturas distintas. No Brasil, pode-se percepcionar a periferia numa lógica macro, em que se reconhece não somente o Conjunto Palmeiras enquanto periférico em relação à cidade de Fortaleza, mas o próprio país denota carências, sobretudo, socioeconômicas, numa conjuntura global (Rummert e Alves, 2010). No caso português, Paços de Ferreira emerge perifericamente na espacialidade micro (Gonçalves, Matos e Manso, 2012), nomeadamente, quando confrontado com a região metropolitana do Porto, em que se situa às margens, bem como corresponde regionalmente a uma semiperiferia, naquilo que remonta a Portugal enquanto um país que denota traços de desenvolvimento, ao mesmo tempo em que revela carências, inclusive, socioeconômicas (Stoer e Araújo, 2000).

O fato é que, assim como a periferia se define por meio da relatividade, embora não só (Silva, 2022), a sua conceção e experiência também precisam ser compreendidas face às subjetividades que a ocupam. A periferia, demonstram os resultados, não remonta apenas a lugares geograficamente situados, mas a espaços de produção de determinadas dinâmicas sociais. Nesse sentido, os GDF compuseram lugares centrais para a problematização da noção de periferia, servindo também como instrumento de desconstrução de uma imagem negativa que se associa a zonas socialmente carentes (Domingues, 1994) e, eventualmente, mais afastadas. Mais tarde, tal discussão, em grande medida desencadeada pelo recurso a imagem — de escolas periféricas e outras de países de centro — fora corroborada pelas narrativas tecidas pelos participantes do estudo. Nas subseções a seguir, apresentam-se especificidades da periferia no Brasil e em Portugal, reforçando-se o sentido polissémico do conceito em causa.

RESSIGNIFICAR A PERIFERIA — O CASO BRASILEIRO

Os resultados, no caso do contexto brasileiro, sugerem uma forte componente de estigmatização de jovens que residem no Conjunto Palmeiras, compondo-se esta situação num dos maiores desafios que os estudantes enfrentam a nível das relações sociais. Famoso por cenas de criminalidade, amplamente disseminadas em programas televisivos de caráter informativo, o bairro é associado a uma imagem de violência e desordem, que interfere na forma como as pessoas de outras localidades veem os seus moradores. Não obstante, a estigmatização não se limita a uma produção imagética daqueles que extrapolam as fronteiras do bairro. Como faz questão de referir uma estudante, “Até a galera daqui mesmo [do Conjunto Palmeiras] se rotula” (Luna),3 o que gera um forte debate identitário sobre o que significa viver e ser desse bairro.

Curiosamente, a noção de pertença ao Conjunto Palmeiras não sofre comprometimento em detrimento dos estigmas associados ao bairro. Pelo contrário, o que as narrativas confirmam é uma posição de enfrentamento dos estereótipos e afirmação de si. Dentre as motivações, está o reconhecimento de potencialidades locais que ultrapassam as características negativas. Nesse sentido, elabora-se sobre o “espírito de familiaridade” e os “laços de solidariedade” que movem a obtenção de conquistas que se fazem a partir de lutas coletivas. Em certa medida, é possível apreender que os jovens se esforçam por neutralizar a periferia visível (carência de infraestrutura) a partir de uma construção de sociabilidade positiva que é abstrata. Em outras palavras, a periferia deixa de ser apenas o que se vê, uma imagem concertada, assumindo formas que não se tocam, mas que são passíveis de serem sentidas.

Gente, tem tanto ponto positivo [aqui], porque tem os amigos, tem a família, tem a comunidade, que é sua amiga, tem o tio da padaria que te conhece, o tio do frigorífico, o tio da budega, todo mundo te conhece. Então, tipo, há muitos pontos negativos, mas há muitos pontos positivos, porque o traficante que corre com uma 38 na cintura também é teu amigo. Porque quando eu era pequenina, o meu pai sempre foi amigo de todos eles, então, quando estava passando, que o meu pai bebia com eles, eles sempre me abraçavam, sempre falavam comigo, perguntavam se eu estava bem, se estava tudo bem, então, tipo, é aquilo que te faz bem, é aquela tua família que não tem o mesmo sangue que ti, mas é tua família, entendeu. (Angel, 1° ano, BR)

O reconhecimento dos aspectos positivos, no nível das sociabilidades, não elimina efeitos do que se sente enquanto carência local, no entanto. As dificuldades da comunidade, porém, são compreendidas segundo uma perspectiva ecológica. Logo, a periferia não é a violência ou a carência que a ela se associam, estas são apenas algumas de suas faces, com as quais, aliás, se fazem muitas aprendizagens. São aprendizagens forjadas no contexto e que, às vezes, implicam processos de sobrevivência. Essas aprendizagens dizem respeito, sobretudo, à violência e organizam saberes de natureza espacial-geográfica, relacional e de atitude: saber por onde andar, em que momentos e como o fazer; compreender as lógicas marginais, respeitando o seu lugar e as suas lideranças; nos círculos de socialização, estar atento ao que se diz e a quem (ver a narrativa do Adam), para evitar conflitos com ordens hierárquicas não explícitas (traficantes, membros associados e familiares). É de ressaltar que essas mesmas aprendizagens invadem também o círculo da escola, onde as relações entre pares é alvo de constante avaliação atitudinal — não provocar as pessoas erradas.

No contexto brasileiro, a luta de jovens contra a estereotipização de seus contextos reflete-se também no sentimento de que não é preciso amenizar a definição deles. Em vez de disfarçar a eventual existência de campos de desfavorecimento, os jovens assimilam as carências de seu bairro a partir das lentes do macro — a carência não é localizada, mas partilhada com a cidade, o estado, o país. Por essa razão, são capazes de reconhecer desigualdades internas e identificar a emergência de novos centros (Silva, 2010). Dessa forma, o Conjunto Palmeiras apresenta-se como um conglomerado de favelas que, às vezes, se constituem por uma única rua, o que quer dizer que a noção de favela é unidade de significação bastante complexa, segundo a narrativa juvenil. Essa complexidade, justamente, é o que permite sustentar crenças de ressignificação do contexto que se vê a olho nu.

Na periferia, você vê que tem a parte nobre também. Porque essa parte de cima, essa parte daqui [onde fica a escola] é a parte mais nobre, mas se você descer um pouquinho, chegando perto do outro bairro, você vê famílias que ainda trabalham catando o lixo, e tal, e eu vi muitas cenas assim. […] as casinhas começam a ficar mais simples, algumas eram até uns barracos, de taipa, que é, tipo, um cenário de interior […]. Pois é, a gente começava a ver aquilo ali e pensava “Poxa, isso é tão perto da minha casa”. Então, na minha realidade, eu achava que tinha muito isso em outro canto e quando eu desci, eu conheci o meu bairro e fiquei “Meu deus”. (Júlia, 10° ano, BR)

A periferia que se assiste (do exterior, a olho nu) não é a mesma que se experimenta (no cotidiano), isso porque os jovens a reconhecem na sua multiplicidade e, mais do que isso, assumem a sua configuração enquanto o resultado articulado de aspectos positivos e negativos. Um tal exercício parece resultar do reconhecimento de que somente assim é possível promover o rearranjo das carências que lhes tocam. Em linhas gerais, é possível identificar três dimensões principais da experiência periférica no contexto brasileiro, que remetem para questões estruturais, de identidade e de relação.

Uma primeira dimensão prende-se então com as fragilidades e carências da infraestrutura do contexto que são visíveis a olho nu e, portanto, explícitas — na escola, a deficiência das instalações; na comunidade, as fragilidades no nível do saneamento e da pavimentação das diferentes ruas, por exemplo. Por um lado, essa dimensão estrutural é reveladora de que a experiência da escola pública é diferente em função dos contextos (Gentili, 2009). Por outro, fortalece o argumento de que o espaço periférico é ele próprio polissémico, de modo que seu espaço topográfico é passível de vivenciar reorganizações internas e, por isso, promover novos centros e periferias (Silva, 2010; Freires, 2019).

A segunda dimensão, identitária, exige compreender a existência de um olhar externo que avalia a condição de subúrbio do Conjunto Palmeiras segundo a medida deficitária (Domingues, 1994; Correia e Caramelo, 2008), forjando uma imagem que emerge especialmente de aspectos negativos. É face a essa postura, às vezes observada por membros da própria comunidade, que se erige uma afirmação pessoal de raízes por parte dos jovens, cujo posicionamento passa pelo enfrentamento de uma visão única e estereotipada dos espaços e das populações da(s) periferia(s). Nesse sentido, a contranarrativa é alicerçada a partir dos laços de solidariedade que fundamentam o contexto periférico enquanto comunidade, na convergência de traços de acolhimento, segurança e conforto (Ferreira e Flores, 2012). Finalmente, observa-se uma dimensão relacional da experiência periférica que exige e, ao mesmo tempo, promove uma série de aprendizagens. A partir da consciência de que a vida na periferia tem especificidades, identificando-se diferentes espaços interiores (desiguais) e a heterogeneidade daqueles que povoam esses mesmos espaços, torna-se necessário assimilar formas de ser e estar em cuja raiz está o enquadramento do lugar do outro. Não surpreende, por isso, que essas aprendizagens sejam reveladoras de uma patente estratégia de sobrevivência.

A PERIFERIA PODE SER INVISÍVEL? O CASO PORTUGUÊS

Os participantes portugueses do estudo, à semelhança do que se passa no contexto brasileiro, evidenciam a constituição de sua pertença ao concelho em que vivem enquanto raiz da qual se orgulham. Diferente do caso brasileiro, em Portugal, os estudantes estão espalhados por várias freguesias ao redor da escola secundária, não vivendo imediatamente na mesma zona da instituição. Os jovens portugueses são provenientes de cinco freguesias distintas, para além de Paços de Ferreira, que é, ao mesmo tempo, freguesia e sede do concelho de mesmo nome.

Uma questão premente no que toca aos resultados de Portugal é o fato de que as freguesias onde residem os estudantes apresentam um caráter semirrural, de modo que a trajetória de vida dos alunos portugueses contempla uma densa composição de experiências do campo, tanto no âmbito da convivialidade, das culturas e dos climas relacionais, como na natureza dos trabalhos domésticos realizados. Por isso, no espaço da escola, instituição e geografia, essas diversificadas trajetórias se cruzam e, exatamente pela sua natureza distinta, por vezes, descarrilam-se desentendimentos na forma de compreender, idealizar e vivenciar a vida — essa mesma diversidade é fonte de aprendizagem. Enquanto no Brasil há uma certa homogeneidade no perfil urbano que atravessa todos os alunos, em Portugal, as nuances da vida em contextos semirrurais promovem uma heterogeneidade na forma de se percepcionar os espaços — os escolares e os pessoais. O sotaque é um dos fatores que explicitam o grau de periferialidade, sendo razão de tensão nalguns momentos.

Uma forte discussão emergente da realização do GDF com os jovens portugueses, no âmbito do território, alicerçou-se no tocante às oportunidades. Para os participantes, eles detêm uma posição privilegiada em que acedem a uma educação que consideram de qualidade e, por isso, entendem que devem fazer por valorizar a oportunidade que têm em mãos, em detrimento dos possíveis obstáculos que enfrentam socialmente (ver a narrativa do Hugo). Esses jovens estão convictos, portanto, de que detêm o “salário cultural mínimo” (Bolívar, 2005; Dubet, 2008) e, possivelmente, acedem a uma educação “poderosa” (Young, 2007) em contextos escolares capazes de reconhecerem a sua diversidade e pluralidade (Sampaio e Leite, 2018). Em boa medida, ao longo do GDF, observou-se um discurso de relativização, segundo o qual se observa que, se, por um lado, não está ao alcance dos jovens todos os meios para concretizar anseios acadêmicos, por exemplo, por outro, na localidade em que se encontram, têm garantido um mínimo de condições para poderem pensar o desenvolvimento de seus percursos de vida, percepção que reforça as condições do contexto enquanto um espaço semiperiférico (Stoer e Araújo, 2000; Macedo, 2018).

Numa clara concepção de que estão a meio das margens, nem demasiado marginalizados, nem demasiado no centro, os participantes recorreram à atividade de introdução da discussão, com recurso às fotografias, para ilustrar o seu ponto de vista. Apontam para imagens de espaços com maiores carências estruturais para valorizar o acesso que detêm em termos de infraestrutura educativa. Assim, é possível afirmar que a periferia. no caso português, não está expressa na objetivação que os jovens fazem dos seus contextos. Antes, a identificação com a marginalização, na sua ótica, virá a ser organizada num quadrante pessoal — são as esferas da família e subsequentes contextos econômicos que reforçam as eventuais carências. Podem-se fazer duas ilações dessa leitura. A primeira é que os jovens aprovam a qualidade do sistema educativo a que têm acesso; a segunda diz respeito às invisibilidades da margem. É curioso perceber que o periférico ganha força naquilo que se compõe visualmente.

No enquadramento desse pensamento, ao não se percepcionarem à margem de um centro, os jovens portugueses ignoram aquilo que não se pode tocar ou visualizar concretamente. A arquitetura de Paços de Ferreira ou a sua organização espacial não permite, numa primeira mirada, visualizar as carências que lhe subjazem. Essas insuficiências ou marginalidades constroem-se em relações econômicas, domésticas e, portanto, mais privadas. A periferia, nesses termos, dilui-se e torna-se sedimentada, em especial, no que corresponde às fragilidades econômicas de caráter estrutural e familiar:

[…] eu vejo pessoas que são muito inteligentes, mas que, por exemplo, não recebem ajudas para irem para às faculdades, universidades, […] e por não terem estas ajudas é que não conseguem ir mais longe. Por exemplo, o meu pai, pode ser que ele seja muito inteligente mesmo. E ele podia estar a trabalhar em escritórios, podia ser advogado e assim, e não consegue, porque não teve as oportunidades quando era mais novo. Agora, trabalha numa loja de móveis e esforça-se. E não ganha tanto quanto podia, quanto, se calhar, merecia. (Patrícia, 1° ano em Artes Visuais, PT)

O trabalho de elaboração das narrativas reforça essa posição a meio das margens, nem rico, nem pobre, em que jogam os jovens portugueses, assim como ilustrado pela história de Hugo. Por um lado, há oportunidades, por outro, não chegam. De um lado, acesso a boas condições educativas, de outro, barreiras na continuidade do processo de formação. Em certa medida, proximidade com o centro, a partir de certa instância, isolamento dele. Se é verdade que não se pode tocar a condição de semiperiferia, o seu sentimento é perfeitamente plausível. Do ponto de vista das fragilidades contextuais, para além das questões econômicas, é de se referir que a periferia se consagra na sensação de isolamento (outra vez não visível) — residência em freguesias afastadas, normalmente, com caráter rural e com ausência ou reduzida oferta de transportes que favoreçam a ligação a outros “centros”.

Eu acho que é fundamental ter carta porque uma pessoa para fazer tudo, precisa, não é. De carro, uma pessoa, por exemplo, se eu tiver alguma coisa para fazer ao Porto, em meia hora consigo chegar daqui ao Porto, ou assim, e sem depender de ninguém. (Violeta, 3° ano em Artes Visuais, PT)

A experiência da periferia no contexto português, concluímos, é caracterizada, em grande medida, por uma sensação de ambiguidade. Em contraposição ao contexto brasileiro, a narrativa juvenil acerca da vida em Paços de Ferreira edifica o estatuto local de semiperiferia (Stoer e Araújo, 2000), a par com relações que se observam nos níveis regional e nacional. Isso quer dizer que os jovens que participam deste estudo convergem no argumento de que o seu contexto, embora pese a presença de algumas vulnerabilidades, é capaz de assegurar as suas necessidades básicas ou mínimas. Uma tal tomada de posição, no fundo, é ela própria denunciadora de uma das características centrais da periferia portuguesa — a sua invisibilidade. A ideia de se estar a meio das margens, com algumas oportunidades, porém não as suficientes, aponta para a dificuldade de se operacionalizar um projeto de vida acadêmico/profissional, o que é suficientemente revelador de uma cidadania não plena (Gentili, 2009; Macedo, 2018). Ao relativizar o peso do contexto na execução de seus projetos de vida, assumindo para a sua esfera privada, nomeadamente, familiar, parte da dificuldade em executar os objetivos de futuro para si estabelecidos, os participantes recolocam no debate o lugar da (auto)responsabilização dos indivíduos que o projeto (neo)liberal imprimiu à educação e suas lógicas (Matos, 2013). Esta parece ser a armadilha a ser descontruída, no seio da periferia portuguesa, enquanto experiência e locus de socialização. A favor dessa desconstrução, conta o já longo percurso de afirmação de si e das suas culturas que esses jovens têm reclamado, salientando o lugar da periferia, na sua tessitura urbana ou rural, não enquanto espaço fragmentado, mas, antes, heterogêneo.

CONCLUSÕES

A investigação, aqui, parcialmente reportada, assenta na problematização do conceito de periferia, promovendo o seu debate em contraposição a um olhar estabilizado e estático. Pelo contrário, o estudo em causa assegurou às subjetividades expressas na construção da relação empírica, os meios para questionar e enriquecer o conceito que epistemologicamente fundava o seu próprio objeto. Localizando Brasil e Portugal, e respeitando as suas especificidades, assumimos que ambos os países convergem em características que permitem os identificar à margem — de outros países, de outras conjunturas, de outras regiões. Da mesma forma, ao localizar os jovens, designamos a dimensão periférica de cada contexto mobilizado nesta investigação. Expressamos o Conjunto Palmeiras enquanto uma periferia macro e assentamos na ideia de que Paços de Ferreira tem um caráter de periferia micro, isto é, regionalmente localizada. A partir dos encontros empíricos, extrapolamos essas designações segundo as lentes juvenis, demonstrando, e avançando teoricamente, a significação do periférico. A periferia, defendemos, complexa e polissémica se invisibiliza quando não se pode tocá-la; é tanto mais impactante quanto menos abstrata — nas relações econômicas, sociais e na produção de subjetividades.

Na nossa compreensão, os alunos portugueses que participaram deste estudo vivem, em função da periferia que objetivam (abstrata e invisível), uma dificuldade em exercer a proliferação das margens, nos termos propostos por Santos (2002). Ao defender que vivemos um momento de transição paradigmática, Santos (2002) argumenta que a construção de uma subjetividade individual e coletiva, suficientemente apta para enfrentar futuras competições paradigmáticas e disposta a explorar experiências emancipatórias por ela abertas, deveria ser guiada por três grandes topoi — a fronteira, o barroco e o Sul. Assim, observamos que paira sobre os jovens de Paços de Ferreira, a força do princípio de individualização da responsabilidade pela construção de si na esfera social, uma marca que é consequência de arranjos globais assentes numa organização liberal — contra a qual parece não termos forças para lutar, devendo, antes, apreendermos formas de minimizar os seus efeitos. No Brasil, a expressão e o reforço de si como parte de um constructo amplamente periférico parecem ajudar no processo de ultrapassagem da margem, nomeadamente, por meio do desenvolvimento da subjetividade barroca, isto é, do usufruto da autonomia e da criatividade que nasce nas próprias margens; contra essa possibilidade está a própria subjetividade barroca, naquilo que privilegia a temporalidade do imediato, portanto, o hoje e o agora — quiçá, o lugar da plenitude da juventude.

Tomando por referência ainda as subjetividades propostas por Boaventura Sousa Santos, concluímos que os contextos que fazem parte desta investigação assentam em subjetividades de tipo “Sul do Sul”, isto é, em processos de desfamiliarização relativamente a um Norte, nem tanto imperial, porém, central. Essa subjetividade está expressa de modos muito distintos em cada um dos territórios. No Conjunto Palmeiras, o “Sul do Sul” é visual, é escolar, é institucional, social e pessoal. Em Paços de Ferreira, o “Sul do Sul” tem um caráter íntimo, é expresso em relações mais familiares, às vezes, sociais e, no campo da escola, apresenta alguma variedade ao longo do tempo; por vezes, demarcado na arquitetura do edifício educativo (visível), em outros momentos, revestido de sinais menos evidentes (invisíveis), o que recoloca em causa a noção de semiperiferia (Stoer e Araújo, 2000).

É por conta dessa complexa relação entre o distanciamento e a aproximação de si da periferia que o lugar da justiça social fica expresso entre margens. Em Portugal, há pouca problematização acerca da justiça, seja ela escolarseja social, por parte dos estudantes. O fato de que os jovens não percepcionam o peso dessa dimensão na regulação dos seus percursos de vida pode estar associado com as fragilidades que reconhecem de caráter privado, íntimo, e explica-se também por conta da referida questão de autorresponsabilização social no que toca a construir um lugar para si.

Isso não significa, todavia, que essa discussão não esteja presente. É patente um discurso que revela o desejo dos jovens em romper com histórias profissionais de família, que se caracterizam pela precariedade ou pelo baixo retorno econômico proporcionado pelo trabalho realizado. Igualmente, os jovens apontam constrangimentos de ordem socioeconômica para justificar a sua limitação em termos de futuro. Em consonância, os participantes mais marginalizados reclamam reconhecimento: de si, de suas pertenças e culturas locais. Posto está que compreendem o lugar da desigualdade social, ainda que só a questionem lateralmente e pouco associem essa dimensão, diretamente, com o papel da escola. Essa instituição torna-se problemática, quando reguladora dos percursos e futuros educativos, por exemplo, por meio das notas que ditam possibilidades de escolhas.

Enquanto há expressa relativização das oportunidades sociais por parte dos jovens portugueses, os participantes brasileiros alinhavam a questão da justiça social, indiretamente, com o caráter restrito das oportunidades que têm, tratando da questão da justiça escolar sempre em referência a ausência de infraestrutura ou ao seu caráter debilitado. Os resultados demonstram, aliás, que os jovens brasileiros reconhecem uma subordinação de si e de seus contextos a um conjunto desvalorizado de profissões, sugerindo que recebem uma educação de subserviência. Para alguns, essa educação não é assim tão má e, no fundo, está estigmatizada em função do contexto; para outros, é decepcionante, maçadora e pouca criativa. Provavelmente, porque em situação mais desvantajosa face aos pares portugueses, os participantes brasileiros são mais ativos no questionamento do seu direito à educação. São conscientes da existência de um sistema escolar público fragmentado e seu discurso ecoa as ideias de um “meio direito” (Gentili, 2009) ou de uma quase “quasi-cidadania” (Macedo, 2018), que se visibilizam, por exemplo, no reconhecimento de um sistema educativo público que é fragmentado e desigual, sendo, por vezes, alheio à pluralidade que a povoa e, portanto, pouco justo (Sampaio e Leite, 2018).

Perante essas considerações, é preciso reafirmar que a periferia, na sua polissemia, abriga apenas uma das faces das histórias educativas que tomam lugar no seu espaço topográfico. A experiência escolar e os diversos percursos que se podem desenrolar, ao longo da trajetória juvenil, requerem o reconhecimento de que essas jornadas apreendem sentido, a partir de uma série de elementos que, em interação, colaboram para o entendimento das vivências (Freires e Pereira, 2018), assim como expresso pelos participantes desta investigação. A escola vive-se muro fora e também do lado de dentro, a partir de relações de atividade, mobilização e trabalho (Charlot, 2000); trata-se, por isso mesmo, de uma experiência que exige compreender um complexo social macro, permeado por relações de caráter institucional, político, familiar e pessoal, cuja produção de sentido se faz na tessitura das relações que se dinamizam entre os distintos atores que a povoam, de perto e de longe. Dessa forma, a periferia não pode ser entendida enquanto ponto de partida ou de chegada; alheia a dicotomizações, é ponto de encontro e de produção de sentido. Por isso mesmo, deve ser valorizada a partir da sua ecologia, sobrepujando uma visão reducionista e deficitária da sua natureza. A periferia, visível ou abstrata, é franja, na medida em que compreender a sua margem exige investir, antes, na apreensão da inexistência de sua fronteira.

1Em Portugal, ao fim do 9° ano (equivalente ao Ensino Fundamental II no Brasil), os estudantes devem optar por uma área de concentração no Ensino Médio. Dentre os vários percursos disponíveis, estão opções de cursos científico-humanísticos, grupo em que assenta o curso de Artes Visuais.

2A classificação de desenvolvimento aqui empregue se prende com aspectos de ordem socioeconômica.

3Recordamos que todos nomes citados ao longo do texto são fictícios.

Financiamento: Este trabalho foi financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P. (FCT), com a referência PD/BD/105700/2014. Também se beneficiou de apoio da FCT no âmbito do financiamento Plurianual das Unidades de I&D 2020–2023 atribuído ao Centro de Investigação e Intervenção Educativas (CIIE — UIDB/00167/2020 e UIDP/00167/2020)..

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Recebido: 28 de Julho de 2022; Aceito: 17 de Novembro de 2022

Conflitos de interesse: Os autores declaram que não possuem nenhum interesse comercial ou associativo que represente conflito de interesses em relação ao manuscrito.

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