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Revista Brasileira de Educação

Print version ISSN 1413-2478On-line version ISSN 1809-449X

Rev. Bras. Educ. vol.28  Rio de Janeiro  2023  Epub Mar 14, 2023

https://doi.org/10.1590/s1413-24782023280024 

Entrevista

O cotidiano como perspectiva metodológica e alavanca para o conhecimento: diálogo com José Machado Pais

IUniversidade de Caxias do Sul, Caxias do Sul, RS, Brasil.


O PONTO DE PARTIDA: SITUANDO O CONTEXTO DA ENTREVISTA

Como diz Saint-Exupèry (2005, p. 74), “[…] tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas.”. Com esse princípio, adentramos nas rotinas de um pesquisador referência em estudos sobre o cotidiano — José Machado Pais —, com vistas a explorar sua vasta contribuição para a pesquisa social. A motivação advém da sua presença em Caxias do Sul (RS), Brasil, e das marcas deixadas com aqueles que foram alcançados por suas palavras.

Já se passam 15 anos do nosso primeiro contato para a realização de estágio de doutorado (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior — CAPES), acolhido por Machado Pais e pela direção do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-ULisboa). O projeto incluía a intenção de aprofundar os estudos sobre a vida cotidiana como perspectiva metodológica.1

Desde 2005, muitos ecos foram produzidos pelos textos trazidos e socializados, além das produções científicas decorrentes da tematização do cotidiano como perspectiva metodológica e alavanca para o conhecimento. Exemplos são palestras proferidas, disciplinas e seminários ministrados, projetos de pesquisa desenvolvidos, pesquisas orientadas, bancas compartilhadas e textos publicados, sempre tendo o cotidiano da educação como cenário de observação e reflexão. Além disso, um conjunto de trajetórias acadêmicas foi impactado pela mediação dos contatos, culminando em novos aceites para estadas em Lisboa, no ICS, sob sua orientação e/ou supervisão.2 Em 2019 e 2020, houve outra acolhida no ICS, da professora Flávia Brocchetto Ramos, como visitante sênior.3

A partir da sua presença física, em maio de 2017, oportunizada pelo Apoio a Professor Visitante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (APV-CNPq), a referência à sua produção científica se amplia em múltiplos espaços e tempos da pesquisa em educação desenvolvida no PPGEDU da Universidade de Caxias do Sul (UCS). Palestra, minicurso, seminário, entrevistas, participação em bancas e trabalho de campo nas comunidades estreitaram o entendimento das dimensões teóricas e metodológicas sobre o cotidiano.4

No âmbito da agenda do professor Machado Pais, tomamos a iniciativa de consultá-lo para realizar esta entrevista. O desejo é partilhar — e não guardar para um seleto grupo — a riqueza da convivência e da reflexão.

Feito o convite e manifestada a concordância, partimos para a construção do roteiro. Almejamos uma entrevista temática com a criação de blocos, como se fossem rodas ou microconversas, visando à tessitura da trama. A gentileza e o talento do entrevistado estão presentes. Dentre as questões propostas, ele escolheria o que responder e quais fios seriam tomados para compor a sua renda de bilros, integrando as suas palavras à textura da peça, imagem trazida no texto O cotidiano e a prática artesanal da pesquisa.5

Entre as ideias iniciais, a insinuação para a realização da entrevista, a formalização do aceite e a construção e o envio do roteiro, vários meses se passaram. “Em setembro, quando se insinua a primavera no Brasil e o outono em Portugal, poderei responder.”, nos escreveu José Machado Pais. Discutido e revisado, o roteiro finalizado foi reenviado. Nessa altura, estávamos frente a outro tempo, o tempo e a vida do professor.

Tempo de espera no Brasil. Nas “cronotopias do cotidiano”,6 entram ações planejadas e aquelas que brotam, as que se escondem, as que ficam à espreita, acrescidas dos tempos da pandemia. Recebemos a entrevista com as interações e voltamos ao texto para compor a moldura que as reflexões de Machado Pais merecem. Elaboramos abertura, notas e fechamento. Entregamos reflexão primorosa tecida por um generoso pesquisador, não sem antes apresentá-lo.

Com graduação em Economia e Doutorado em Sociologia, José Machado Pais pertence à categoria de Investigador Coordenador do ICS-ULisboa. Atuou em diversas universidades da Europa e da América do Sul, além de desenvolver e coordenar projetos de abrangências nacional e internacional. Esteve à frente na gestão do Observatório Permanente da Juventude Portuguesa e do Observatório das Actividades Culturais, da revista Análise Social e da editora Imprensa de Ciências Sociais e desempenhou a função de subdiretor do ICS-ULisboa por três mandatos. Coleciona prêmios e distinções conferidos por instituições renomadas, bem como publicou dezenas de livros e de artigos que reverberam suas reflexões.

No currículo de Machado Pais,7 encontramos os seus percursos acadêmicos, mas há outra dimensão do pesquisador, a do anfitrião que recebe pesquisadores sêniores e júniores no seu gabinete, no quarto andar do ICS-ULisboa. Essa figura é destacada por todos que usufruem do seu acolhimento. A escuta atenta é permeada por solidariedade e empatia, na prontidão para sintonizar com as expectativas e necessidades dos que têm o privilégio de com ele interagir. A conversa sobre o ponto de pauta sugerido para o encontro é decorrência de olhar sensível para “as pessoas que moram”8 naqueles que o visitam.

Feita essa contextualização, apresentamos a estrutura do texto, composta de quatro seções, seguidas das considerações finais e das referências, assim intituladas:

  1. Os percursos de formação e o interesse pela sociologia do cotidiano;

  2. O cotidiano como alavanca metodológica do conhecimento;

  3. A lógica da descoberta, as posturas e os instrumentos do(a) pesquisador(a); e

  4. Os riscos das interpretações equivocadas dos conceitos.

A partir deste ponto do texto, o diálogo se faz a três vozes, considerando as perguntas endereçadas e as interações generosas do nosso interlocutor. Essa lógica procura escavar pormenores já ditos em outros suportes, ou que ainda estão em incubação para serem expressos de outro modo.

ENLAÇANDO OS FIOS, PUXANDO PROSA COM JOSÉ MACHADO PAIS

Os percursos de formação e o interesse pela sociologia do cotidiano

Nilda e Flávia: Você poderia nos relatar um pouco dos seus percursos de formação e de atuação profissional, desde o economista e professor de matemática na educação secundária até ao sociólogo do cotidiano, pesquisador das gerações e das singularidades das práticas culturais cotidianas?

José Machado Pais: O meu percurso de formação sofreu um percalço aos 12 anos, num exame de admissão ao liceu. Utilizo a palavra percalço no duplo sentido que ela tem, pois não sei qual dos dois sentidos é o mais apropriado, se o de contrariedade ou o de ganho. Tudo aconteceu na prova de desenho. Ainda hoje recordo o cenário da sala. No cimo de cada mesa, um mealheiro de barro. A prova consistia num desenho que fielmente o representasse. Eclodiu então uma árdua briga entre o lápis e a borracha nas frustradas tentativas para o reproduzir numa imaculada folha de papel. Reprovei e guardei o mealheiro como relíquia de uma guerra perdida com as simetrias. Não me restou outra opção que não fosse a do ensino técnico-profissional. Concluí o curso comercial e graduei-me depois em Economia, no ISCTE, hoje Instituto Universitário de Lisboa (IUL). O meu primeiro dinheiro de bolso foi ganho em concertos e bailes animados por uma banda de rock, Song's Boys, teria os meus 17 a 19 anos.

Ainda estudante universitário, dei aulas de matemática e história no ensino secundário. Foi uma valiosa experiência que ecoaria em estudos que posteriormente viria a realizar no âmbito da Sociologia da Educação. Recordo que uma vez, surpreendentemente, uma das minhas melhores alunas de matemática começou a claudicar no aproveitamento escolar. Era outra, apática e desmotivada. Um dia, no fim de uma aula, perguntei-lhe o que se passava. Levando as mãos ao rosto e começando a soluçar, contou-me que o pai chegava à casa bêbado e costumava agredir a mãe. No refúgio do seu quarto, ela bem se esforçava por estudar, mas não conseguia. Essas vivências extraescolares não entram no jogo dos parâmetros da avaliação escolar. Tantos anos passados, continuo a constatar que os currículos escolares são alheios aos percursos de vida dos seus destinatários e nem sempre são motivantes. As aulas de história mais entusiasmantes eram as que aconteciam depois das visitas de estudo a museus, antigas fábricas ou espaços arqueológicos. Costumava incentivar os alunos a registrar num bloco de notas as coisas mais interessantes que haviam descoberto e as que gostariam de saber, movidos por uma curiosidade insatisfeita. Como essas aulas eram animadas!

Muito mais tarde, quando participei, como coordenador nacional, num amplo inquérito sobre a consciência histórica de estudantes europeus do ensino secundário, vim a confirmar que, entre várias representações da história9 — livros escolares, romances históricos, documentários televisivos, filmes de ficção, narrativas dos professores, etc. —, os jovens portugueses colocavam na dianteira das preferências as visitas a museus e a lugares históricos, sendo acompanhados pela maioria dos jovens europeus. Com essas e outras experiências, aprendi que as escolas não devem limitar-se a debitar conhecimento. O importante é que consigam criar cenários de aprendizagem — não necessariamente confinados à sala de aula — para que os horizontes de conhecimento se expandam. Os alunos não podem ficar capturados pelo apreendido. O mais sábio saber é o que vai além de si mesmo, é o que consegue saber o que fazer com o que sabe, seja o teorema de Pitágoras, seja a resolução de equações da matemática.

Em 1977, terminada a graduação em Economia, iniciei a minha carreira de docente universitário, lecionando introdução às ciências sociais no ISCTE-IUL. Poucos meses depois, era chamado a cumprir serviço militar obrigatório na Força Aérea, em que lecionei as disciplinas de sociologia e de economia, no curso de formação de oficiais. Durante dois anos, percorri, quase diariamente, cerca de 100 km (ida e volta) de Lisboa à Base Aérea da Ota, pois à noite continuava a lecionar no ISCTE. No cumprimento do serviço militar, dei comigo a pensar na força dos ritos militares, no seu carácter dramático e cerimonial, desde logo o da continência militar, cuja repetibilidade é um garante simbólico de uma ordem hierarquizada e, cotidianamente, patenteada. Embora integrasse uma incorporação de jovens graduados, alguns já doutorados, na fase da recruta, éramos apenas milicianos, meros aspirantes a oficiais. As paradas e marchas diárias, com exercícios físicos extenuantes, anunciavam a integração formal na instituição militar, solenizada por um rito de passagem, o juramente à bandeira. Todas essas experiências viriam a suscitar em mim um interesse pela descoberta de sentido dos ritos sociais. Foi como se o tempo vivido noutro tempo me desse depois oportunidade de o voltar a viver. Eu já era outro, como outro era o tempo, mas todos esses tempos se entrelaçam em minha trajetória de vida.

Cumprido o serviço militar, realizei uma pós-graduação na Universidade Autônoma de Madrid e, em 1984, vinculei-me, contratualmente, ao Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-ULisboa), tendo continuado no ISCTE-IUL como professor convidado, onde, em 1985, lancei a disciplina de sociologia da vida quotidiana. Em 1991, obtive, no ISCTE-IUL, o doutoramento em Sociologia, com orientação do professor António Sedas Nunes. Em 1999, realizaria provas de agregação nessa mesma instituição que só abandonaria, em 2016, já como professor catedrático. Mas foi no ICS-ULisboa que sediei todo o meu percurso de investigação. Eu não seria quem sou se não tivesse me beneficiado da excelente ambiência intelectual que se vive nessa instituição.

Nilda e Flávia: A que aspectos você atribui a grande repercussão de sua produção no Brasil, inicialmente voltada para as culturas juvenis e, já há alguns anos, relacionada também aos pressupostos teóricos e metodológicos da sociologia na vida cotidiana?

José Machado Pais: Dois principais fatores terão contribuído para essa relativa projeção. Por um lado, a participação em congressos de âmbito lusófono. Por outro lado, o acolhimento que, na Universidade de Lisboa, tenho dado a muitos professores visitantes e doutorandos brasileiros. O início dessa longa cooperação acadêmica deu-se no II Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais que se realizou em São Paulo, em 1992, organizado pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP). Fui então convidado a participar numa mesa-redonda cuja temática de debate era o social em movimento, tendo em vista os novos atores e movimentos sociais. Nessa sessão, tive o privilégio de ter sentado a meu lado o professor Florestan Fernandes com quem, no fim, tive uma agradável conversa sobre o desenvolvimento da Sociologia no Brasil e em Portugal. No restaurante de professores da USP, tive também a grata oportunidade de ser apresentado à professora Ruth Cardoso, cuja trajetória acadêmica me suscitou algumas reflexões metodológicas que viria a publicar num artigo da revista Análise Social.10 Sabendo dos meus interesses pela sociologia da juventude, acabamos falando sobre a condição juvenil contemporânea e o protagonismo dos jovens nos novos movimentos sociais. Pouco tempo depois, em colaboração com Helena Sampaio,11 Ruth Cardoso editaria uma bibliografia sobre a juventude, com referência a obras publicadas no Brasil e no estrangeiro, entre as quais se incluía o meu livro sobre culturas juvenis.12

Em São Paulo, Boaventura de Sousa Santos lançara-me o repto de organizar o III Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais em Lisboa, o que veio a acontecer com o apoio do ICS-ULisboa. A minha participação nesse e em outros congressos vindouros propiciou estreitamento de laços de cooperação com os colegas brasileiros. Na Assembleia Geral do XI Congresso, realizado em Salvador da Bahia, em meados de 2011, aprovaram-se os estatutos da futura Associação Internacional de Ciências Sociais e Humanas de Língua Portuguesa, tendo-se também procedido à eleição dos respetivos órgãos sociais. Para minha surpresa, fui eleito vice-presidente. Uma enorme prova de confiança, pois não me tinha candidatado nem ninguém me sondou para tal efeito. Lá acabei por aceitar o cargo que implicaria um moroso encargo burocrático, o da legalização da associação. Em 2015, realizaríamos, em Lisboa, um novo congresso.

Enfim, a minha trajetória acadêmica tem raízes profundas no Brasil. Participei de projetos de pesquisa envolvendo colegas brasileiros; fui acolhido como professor visitante em várias universidades; integrei mais de meia centena de júris acadêmicos; participei em variadíssimos congressos e outros eventos acadêmicos; faço presentemente parte do conselho editorial, científico ou consultivo de cerca de uma vintena de revistas brasileiras de ciências sociais. Fazendo balanço dessa cooperação acadêmica com o Brasil e inspirado noTimoneiro (1996),13 de Paulinho da Viola, diria que, na rede do meu destino, a onda que me carrega, ela mesmo é quem me traz. Essa boa onda tem-me também trazido a amizade de dezenas de doutorandos e professores visitantes de pós-doutorado que tenho acolhido, o melhor que posso, no ICS-ULisboa. A recompensa é o que de mais valioso há na cooperação acadêmica. Um fluir de dádivas mútuas.

O COTIDIANO COMO ALAVANCA METODOLÓGICA DO CONHECIMENTO

Nilda e Flávia: O seu livro Sociologia da vida quotidiana — publicado em Portugal em 2001 pela Imprensa das Ciências Sociais e, no Brasil, em 2003, pela Editora Cortez, com o título Vida Cotidiana: Enigmas e revelações14 — sistematiza um conjunto de reflexões que transversalizam sua produção de longos anos. Essa publicação poderia ser caracterizada como um limiar de convergências dos anseios e das posturas dos pesquisadores que atentam para os detalhes da vida cotidiana. Além disso, esse livro seria o indutor para a introdução de um novo objeto de estudo, voltado para as situações em interação e para o instante?

José Machado Pais: Sim, podemos falar de um novo objeto de estudo que, todavia, não se esgota em si mesmo. É mais do que um objeto de estudo, é uma metodologia cuja especificidade consiste na leitura do social através das lentes do cotidiano. Nesse sentido, o cotidiano constitui-se suporte metodológico de outros objetos de estudo: culturas juvenis, crenças religiosas, relações de gênero, modos de vida, preconceitos raciais, desigualdades sociais, insucesso escolar, etc. Como objeto empírico, o cotidiano abrange, de fato, situações de interação nas quais irrompe a instantaneidade da vida social. Como alavanca metodológica do conhecimento, a novidade reside na construção de um novo olhar sobre o social, suscitado por novas formas de o questionar, de o problematizar, de o interpretar que outorgam ao cotidiano uma relevância sociológica que até então não tinha.

Esse giro que, insisto, é de natureza metodológica, emergiu quando a modernidade avivou a consciência da desordem, quando o recurso à explicação pela ordem passou a contemplar a desordem. A viragem foi bem identificada porBalandier (1997), em seu livro Le Désordre. Éloge du Mouvement15. As Ciências Sociais começaram então a interrogar o seu próprio saber, mapeando novos objetos de estudo, já não centrados, exclusivamente, na problemática da ordem, mas, sobretudo, no que a perturba e desestabiliza. A busca da efervescência do social concretizou-se onde, supostamente, era menos visível. Na vida cotidiana. Não é por acaso que o cotidiano aparece, vulgarmente, como um simulacro da ordem, do repetitivo, da monotonia, da banalidade. Porém, essa é apenas a dimensão mais visível do cotidiano, a da cotidianidade. A vida cotidiana abre-se também ao imprevisível, à aventura, à dissidência, à aspiração e à concretização de desejos. A minha proposta, de natureza teórica e metodológica, busca o inesperado e a turbulência na aparente mesmidade, procura o excecional no banal, a mudança no repetitivo, a rotura na rotina. Nesse novo paradigma do conhecimento, a própria mudança social deixa de ser teorizada a partir de proposições de validade genérica para ser questionada através do circunstancial e do conjuntural. Nesse sentido, pode dizer-se que há uma valorização das situações em interação e da própria instantaneidade.

De GeorgSimmel (1977)16 nos chegou o repto de captar o cotidiano em sua instantaneidade. A interpretação dos dilemas da modernidade em muito fica a dever aos contributos de Simmel, mestre pioneiro na captura de realidades fugazes e fragmentárias que caracterizam a vida moderna. Daí a valorização dos miuçalhos fortuitos da realidade, dos detalhes que se constituem em chances de interpretação da complexidade da modernidade. Eram bem conhecidos os snapshots [retratos instantâneos] com que intitulava as crônicas sociais que assinava num jornal alemão. O desafio apaixonante que nos propõe Simmel pressupõe uma astúcia, uma capacidade para nos deixarmos surpreender pela labilidade do social. O que temos na vida cotidiana? Temos a cultura em movimento: o que se diz, o que se veste, o que se come, o que se faz; temos as crenças, os ritos, as simbologias que caracterizam as práticas culturais. Por isso mesmo, o cotidiano aparece como uma mediação simbólica entre o vivido e o imaginário, os rituais e as crenças, a razão e a paixão.

Porém, nem sempre o instante revela as forças sociais que o produzem. Daí resulta um outro desafio metodológico, o de nos livrarmos das armadilhas que o presente coloca quando o tentamos captar em tempo real. Em pesquisas etnográficas, as notas dos cadernos de campo veem-se frequentemente ameaçadas por registos instantâneos do celular cuja pertinência carece de vigilância epistemológica. Esquece-se que na instantaneidade se dá uma condensação da complexidade que a produz. Como é reconhecido pelos próprios defensores dos live methods, o rigor metodológico exige que nos livremos do aprisionamento ao tempo curto, caso contrário perdemos a capacidade das vistas largas, as que permitem analisar o presente inscrito nas engrenagens do tempo histórico. O mesmo se pode dizer das situações vividas em interação. Embora as pesquisas que tomam o cotidiano como uma lente de observação do social se centrem nas interações cotidianas, estas não são entendíveis fora das dinâmicas processuais. Há que convocar o ali para entender o aqui, e apelar ao fluir do tempo para apreender qualquer um dos seus estágios, sejam eles o presente, o passado ou o futuro. As temporalidades enroscam-se em si mesmas, daí a sua interdependência.

Nilda e Flávia: O cotidiano tomado pelo(a) pesquisador(a) como alavanca metodológica do conhecimento gera intenso processo de sedução, justamente pela lógica da descoberta que a ela se associa, desafiando à decifração do que aparentemente está encoberto nas expressões culturais que observa. Mas, ao mesmo tempo, essa perspectiva metodológica não é afastada de angústias e de dilemas, haja vista que a realidade não se entrega ao primeiro galanteio, como você próprio afirma, mas apenas se insinua, se indicia. Como lidar com esse paradoxo e garantir a cientificidade das produções decorrentes?

José Machado Pais: Lida-se bem com o paradoxo transformando a angústia em prazer. Há uma dimensão lúdica no processo que nos faz pular do desconhecimento para a descoberta. O trampolim desse pulo é, inevitavelmente, o questionamento, a interrogação. Os psicólogos identificaram a importância da idade dos porquês em crianças dos três aos quatros anos de idade, quando começam a questionar o mundo cotidiano que as rodeia. Antes encetam descobertas sensoriais, tateando, manuseando ou levando à boca os objetos a que deitam mão. Depois, movidos por uma curiosidade espontânea, como diria PauloFreire (1997),17 começam a questionar a imensidão dos detalhes do mundo à volta de si. Daí a avalanche de porquês à qual nem todos os pais reagem positivamente. A domesticação da irrequietude dos porquês é um quiproquó da educação familiar e escolar, desde o ensino básico. Como a papa de cereais, os manuais escolares são frequentemente preparados como papa digestível, liberta do engulho dos porquês. Subsiste uma pedagogia inibidora dos porquês.

O que de mais entusiasmante há numa pesquisa são os enigmas de realidades por desvendar. Isso é válido tanto em pesquisas acadêmicas quanto em investigações levadas a cabo por detetives ou agentes secretos. Não há pesquisa a sério que não se enfrente com um caso insólito ou qualquer questionamento que a mobilize. Em seu livro Énigmes et complots, o sociólogo francês LucBoltanski (2012)18 mostrou bem a relevância dos enigmas quando fez um recorrido pelas novelas policiais e de espionagem de fins do século XIX a meados do século passado. Ao tomar esses registros literários como objeto de estudo sociológico,Boltanski (2012)deu-se conta de que qualquer enigma é suscitado por um evento intrigante, por justamente sair fora de uma normalidade prevista. Mas também podemos questionar a razão de ser de normalidades cujo sentido nos escapa. Por exemplo, nos anos 1980 do século passado realizei uma pós-graduação na Universidade Autônoma de Madrid. Nas viagens periódicas de retorno a Lisboa, alguns colegas gracejavam comigo: “Qualquer dia apareces aí com uma espanhola. Toma cuidado, de Espanha nem bom vento nem bom casamento”... Que enigmático provérbio, dei comigo a matutar. Contatei o Instituto de Meteorologia para sondar a cartografia dos ventos, na suposição de que poderiam ajudar o explicar o sentido do provérbio. Mas a hipótese não tinha sustentabilidade, os ventos não eram assim tão ruins. Vim depois a descobrir que provérbios desse tipo se inscrevem numa fortíssima tradição de rejeição a casamentos exolocais e a tudo o que, vindo de fora, pode ser olhado como causa de todos os males de um determinado ordenamento social. Norbert Elias já havia chegado a uma conclusão semelhante em seu livro The Established and the Outsiders (Elias e Scotson, 2000). 19

Como bem o reconheceuGeertz (1978),20 a compreensão de uma cultura assemelha-se mais a entender um provérbio, a captar uma ilusão ou a perceber uma anedota do que a alcançar uma idealizada totalidade. Por isso, em minhas pesquisas, tenho valorizado o sentido de provérbios, piadas, grafites, apelidos, rumores, palavrões, lápides de cemitério, letras de música, mensagens de pacotes de açúcar, propagados chás de amarração, etc. O que busco são sempre excedentes de significação no aparentemente insignificante. Sigo estratégias oblíquas. Tomo o conceito da obliquidade em dois sentidos. Num deles, a obliquidade é referida ao simulado, ao oculto, ao que nos chega indiretamente ou de forma ambígua. Noutro sentido, a obliquidade é referida à astúcia, à sagacidade, à arte feita de ardis. Ambos os sentidos se interpenetram num jogo de simulação e decifração, o que se esconde e o que se descobre. Vou na pegada de Sherlock Holmes quando reconhecia que, em suas investigações, buscava sempre o inesperado, numa lógica de descoberta, ao contrário dos que só questionam o que pressupõem. Esses, sim, alinham num posicionamento que pouco tem de científico.

Nilda e Flávia: Você afirma que “[…] os conceitos e teorias devem entender-se como instrumentos metodológicos de investigação ao serviço da capacidade criadora de quem pesquisa.” (Pais, 2003, p. 31).21 Contudo, as amarras acadêmicas e os indicadores de regulação e avaliação tendem a requerer um mergulho teórico intenso antes do contato com o campo empírico da pesquisa. Ao render-se a essa tradição, estariam os(as) pesquisadores(as) limitando o potencial de descoberta que a filiação à sociologia do cotidiano oportuniza?

José Machado Pais: Tudo depende dos usos que façamos da teoria. A teoria tem uma indiscutível relevância, quer em pesquisas de pendor positivista, quer em pesquisas de pendor qualitativo, mais próximas da sociologia do cotidiano. Com uma diferença. No primeiro caso, a teoria assume uma função de comando de todo o percurso de pesquisa, podendo inviabilizar as descobertas que saem fora do seu alcance. Nesse caso, é possível haver um atrofiamento do potencial de descoberta. Em contrapartida, em pesquisas qualitativas, o diálogo entre a teoria e a realidade empírica tende a ser mais aberto, a ponto de a realidade, à medida que vai sendo questionada e pesquisada, reclamar novas construções teóricas que a tornem inteligível. Nessas circunstâncias, criam-se condições de possibilidade para o surgimento das chamadas grounded theories, isto é, teorias ancoradas na realidade, como propõemStrauss e Glaser (1967), em seu livro The discovery of grounded theory.22

Dando um exemplo. Quando realizei a minha tese de doutoramento sobre Formas Sociais de Transição para a Vida Adulta — de que resultou o livro Culturas Juvenis (Pais, 1993),23 dominavam modelos teóricos que pressupunham trajetórias lineares determinadas por inquestionáveis marcos de passagem: o abandono da escola, a obtenção de um emprego, a autonomia residencial em relação à família de origem, o casamento, o nascimento de um filho. Esse quadro teórico continua a direcionar muitas pesquisas sobre as transições dos jovens para a vida adulta. Contudo, a teoria dos marcos de passagem parecia-me não dar conta de toda a realidade dessas transições, pelo menos da realidade vivida por alguns dos jovens que pesquisava. Por que razão haveria de ficar aprisionado à rigidez da teoria dos marcos de passagem?

Com essa interrogação na cabeça, fez-se luz nela quando comecei a questionar a afeição dos jovens de então pelas performances do ioiô, disco preso por um fio com o qual se podem fazer variadíssimos movimentos oscilatórios. Isolados ou em grupo, era vê-los na ida ou vinda da escola, no recreio ou na paragem do ônibus, soltando da palma da mão, em voltas mirabolantes, o mágico ioiô. A Coca-Cola, atenta a essa moda juvenil, não perdeu a oportunidade para promover a marca, lançando concorridas competições de ioiô, com atrativos prêmios: viagens à Euro Disney, packs Super Nintendo, televisores, bicicletas, t-shirts, bolsas da Coca-Cola, bolas, rádios, porta ioiôs, etc. Em Portugal, foram realizadas mais de duas mil competições em locais concorridos como shoppings, praias, feiras populares, etc. Se a Coca-Cola explorava a potencialidade dessa cultura juvenil, tendo em vista os seus objetivos comerciais, porque haveria eu de me inibir de fazer o mesmo, tendo em vista objetivos de pesquisa? Foi dessa inspiração que surgiu o conceito de “trajetórias ioiô”, que rapidamente pegou moda ao ser profusamente reproduzido na literatura internacional.

A hipótese da reversibilidade, que dava acolhimento às “trajetórias ioiô”, incentivou-me a valorizar as lógicas ambivalentes que as caracterizam: ora rígidas, uniformes e coercivas; ora flexíveis, opcionais e sedutoras. Desse modo, fui descobrindo, entre os jovens pesquisados, realidades que escapavam à mira da teoria dos marcos de passagem, quando rigidamente considerados: trajetórias de vida marcadas por inconstâncias, flutuações, descontinuidades, reversibilidades, movimentos de vaivém, como os performatizados pelo ioiô: saída de casa dos pais para, a qualquer outro momento, a ela voltarem; abandono dos estudos para os retomarem tempo depois; obtenção de um emprego para, meses depois, o perderem; e por aí afora.

As categorias estudante/não estudante, ativo/inativo, celibatário/casado conviviam com uma multiplicidade de estatutos intermédios e reversíveis, mais ou menos transitórios ou precários. A própria sequência desses umbrais de passagem não era linear ou uniforme. Enfim, os processos de transição eram francamente heterogêneos e marcados por apreciáveis descontinuidades e roturas. A vida dos jovens que acompanhava não era guiada por qualquer imaginável seta de tempo. Em vez de forçar a realidade a encaixar-se num quadro teórico de partida — a teoria dos marcos de passagem —, optei por enfrentar a realidade que ia observando com indagações teóricas orientadas para a sua interpretação. Desse modo, surgiu a hipótese da reversibilidade ilustrada pelo conceito das trajetórias ioiô e a descoberta de um desalinho do tempo, atravessado por disritmias e dissincronias.

A LÓGICA DA DESCOBERTA, AS POSTURAS E OS INSTRUMENTOS DO(A) PESQUISADOR(A)

Nilda e Flávia: Você afirma: “O verdadeiro desafio que se coloca à sociologia do quotidiano é o de revelar a vida social na textura ou na espuma da “aparente” rotina de todos os dias, como a imagem latente de uma película fotográfica.” (Pais, 2003, p. 31).

Para transpor esse desafio, com quais posturas e instrumentos o(a) pesquisador(a) deve adentrar o campo de sua pesquisa? Qual deve ser a sua matéria-prima para análise? Como dados tão sensíveis seriam tratados?

José Machado Pais: Uma boa questão para investigar é o ponto de partida de qualquer processo de pesquisa. Ter boas hipóteses de investigação, quando se adentra no campo de pesquisa, é também um bom princípio metodológico. Porém, para a sociologia da vida cotidiana, o mundo não tem de ser apenas convocado para confirmar ou inferir hipóteses de investigação levantadas no início de uma pesquisa. O mundo social, sobretudo o que pulsa na vida cotidiana, é uma permanente fonte de interrogações sempre que o saibamos interrogar. É no caudal dessas interrogações, ou de enigmas por desvendar, que as hipóteses de investigação vão emergindo, muitas delas com o desenrolar da própria pesquisa. Tolstói24 foi um dos grandes escritores a evidenciar a pujança do cotidiano para refletirmos em realidades esquivas a formulações teóricas que tendem a desvalorizar o que nessas realidades mais as caracteriza, o vivido. Daí a ênfase que colocava na descrição das experiências da vida, nas cores, nos cheiros, nos sabores, nos sons e nos silêncios; nos ciúmes e nas paixões; nos amores e desamores; nos ódios e nas compaixões; na sucessão das efervescências e epifanias da vida. Para a sociologia da vida cotidiana, o vivido é a matéria-prima de análise. No entanto, na captação do vivido, há vários desafios a enfrentar.

Para começar, muitas das dimensões do vivido são difíceis de captar por envolverem sentimentos, afetos e emoções. Dei-me verdadeiramente conta dessa dificuldade quando uma editora me convidou a escrever um livro sobre a solidão. Ao aproximar-me de alguns cenários de vidas solitárias ou marcadas pela solidão, alguns entrevistados assumiam, declaradamente, a dificuldade em traduzir em palavras o que sentiam. Como desvendar a realidade de sentimentos que dificilmente se expressam em palavras? Esse é um desafio do qual as Ciências Sociais se têm esquivado, já que os sentimentos também se esquivam dos métodos que habitualmente são usados para dar conta de outras realidades que não a dos sentimentos. Sabemos como abrir uma lata de atum ou de cerveja. Sabemos como quebrar um coco e extrair dele o suco. Sabemos ainda como abrir um cofre. Mesmo que a chave se tenha perdido, ou a lembrança do código, há sempre a possibilidade de o arrombar. Mas, como me dizia um sem-teto, é muito complicado chegar ao sentimento das pessoas, penetrar no interior dessa misteriosa caixinha produtora de sentimentos.

Nessas circunstâncias, a pesquisa exige o desvendamento das configurações sociais que geram os sentimentos, bem como o bosquejo dos traços biográficos de quem os vive, de quem só revela os seus sentimentos a alguém que o saiba escutar em seus desabafos e silêncios. Da mesma forma que o dizer não apenas desvenda como oculta, o silêncio também é revelador no que aparentemente encobre. Num ou noutro caso, a escuta — incluindo a escuta do silêncio — gera a possibilidade de abertura ao outro, transforma uma entrevista numa relação de cumplicidade. Perante realidades sensíveis, há que se desenvolver uma arte de escuta, como nos propôs ErichFromm (2012).25 Sem escuta, a palavra silenciada não tem existência. Nem o pensamento. Nem o diálogo. Nem a compreensão do ininteligível. A decifração dos mistérios do mundo sensível exige disponibilidade sensitiva para a sua captação e sensibilidade teórica para a sua interpretação.

Em uma lógica positivista, reclama-se distanciamento do pesquisador em relação ao objeto de estudo, coisificado nesse distanciamento, pois há o receio de que a sua presença possa contaminar os resultados da pesquisa. Em contrapartida, nas pesquisas com o cotidiano, principalmente as de pendor etnográfico, há uma imersão do pesquisador no universo pesquisado. O pesquisador não se evade do mundo que pesquisa, intromete-se nele, o que não o impede, como é devido, de clarificar as implicações — positivas ou negativas — dessa intromissão. Dito isso, embora o conhecimento empírico seja considerado pelo positivismo radical um obstáculo epistemológico, a sociologia do cotidiano não o toma num sentido pejorativo, como o fazem aqueles que olham para os antropólogos como se fossem curandeiros, porque a eles dão ouvidos. Estarão as explicações científicas impedidas de levar em linha de conta as explicações nativas? Como interpretar o que as pessoas dizem e fazem se desprezamos os conceitos que elas usam cotidianamente para exprimir as suas experiências? Esses conceitos sensíveis, como HerbertBlumer (1982)26 os designou, são preciosas fontes de informação na interpretação dos mundos sociais que são pesquisados com a lente do cotidiano. Resta saber se os pesquisadores são fiéis tradutores desses conceitos e se conseguem fazer bons usos deles.

Nilda e Flávia: Nesse sentido, qual o vocabulário, a sintaxe, o perfil de escrita mais adequado para o(a) pesquisador(a) comunicar o conteúdo da observação que processa sobre o cotidiano?

José Machado Pais: Essas são questões que têm sido bastante discutidas em oficinas de escrita etnográfica. É um tipo de escrita influenciada por narrativas de viajantes, observadores e literatos que, aliás, nos dão precisos registros das sociedades que relatam, como bem o reconheceu Antônio Cândido,27 ao valorizar a literatura como fonte de conhecimento do social. Não espanta que alguns antropólogos se tenham deixado influenciar pelos traços pitorescos das culturas que descrevem e façam uso de um estilo literário, pródigo em artifícios e alegorias. Tristes Trópicos, de Lévi-Strauss (1996),28 é um bom exemplo de obra que se pode ler como uma novela, bem aparentada aos relatos de viagens. Aliás, alguns relatos etnográficos são geralmente tomados como literatura não apenas no sentido de uma literatura especializada — como acontece com a literatura médica ou jurídica —, mas também no sentido de uma escrita em que o autor se projeta no que escreve, pondo a nu a sua subjetividade. Nalguns casos, chega a caprichar a escrita na tentativa de captar a atenção e a emoção dos leitores. Temos aqui um problema epistemológico. Não seria preferível descrever a realidade com objetividade, tal como ela é, esquecendo os efeitos que a escrita pode ter sobre os leitores? O sim parece ser a resposta mais aceitável, mas não resolve satisfatoriamente o problema. Qual a mais rigorosa objetividade? A que pretende descrever a realidade, tal como ela é? Ou a que objetivamente admite que há um hiato entre a realidade tal como se acredita que é e a realidade tal como supostamente é, à luz do ponto de vista de quem a descreve?

As fronteiras entre literatura e alguns relatos etnográficos são muito instáveis, havendo entre os antropólogos significativas dissensões, principalmente entre os que reclamam uma autoridade científica que se liberte dos fait-divers do cotidiano e das memórias de cunho pessoalista e os que defendem que a etnografia dificilmente se liberta de uma contradição cuja origem passa justamente pela razão de ser da própria etnografia. A objetividade que se reclama nos registros etnográficos exige o reconhecimento das experiências subjetivas que os pesquisadores vivem no trabalho de campo. Ou seja, o pesquisador tem de se assumir como autor, obreiro intrometido no que pesquisa, mas, ao mesmo tempo, comprometido com o rigor metodológico que coloca nas descrições e interpretações da realidade observada. O rigor metodológico não passa pelo reconhecimento de uma impossibilidade — a restituição da realidade tal como ela é —, apenas exige representações fidedignas dessa realidade. A objetividade científica não é posta em causa desde que se reconheçam os processos de reflexividade que se geram entre pesquisados e pesquisadores e os pressupostos ontológicos e epistemológicos que guiam os métodos usados na compreensão dos fenômenos analisados.

Talvez haja que pensar num método de gestão da produção do conhecimento, semelhante ao que nos foi proposto porRamon Llull (1304), há mais de sete séculos, em seu livro Liber de ascensu et descensus intellectus.29 No método da escalada, como o designou, Llull questiona a passagem do sensível ao inteligível ou, extrapolando, do conhecimento empírico ao conhecimento científico. Essa escalada é potenciada pela sensibilidade ou imaginação teórica. O perigo de resvalar na escalada aparece quando surge a tentação de fazer com que os dados da observação empírica digam mais do que podem dizer. É o que acontece quando a interpretação se emprenha de excessos de significação, sem sustentabilidade empírica, daí ressaltando uma contradição entre os dados empíricos e a sua interpretação. O entusiasmo pelos achados de pesquisa pode levar a interpretações e extrapolações sedutoras, mas abusivas. Não há que maltratar os dados da observação empírica quando se descreve a realidade pesquisada, tampouco deslizar para uma tergiversação deles. Quanto à escrita, não é recomendável um estilo empolado, presunçoso, mais dado a pintar a realidade com um colorido retórico do que a revelá-la com naturalidade e rigor. Porém, o rigor inscrito na escrita não obriga ao uso de uma linguagem hermética. Por vezes, tão hermética que nem o próprio autor a consegue decifrar.

OS RISCOS DAS INTERPRETAÇÕES EQUIVOCADAS DOS CONCEITOS

Nilda e Flávia: Percebemos que alguns estudos que se dizem filiados à sociologia da vida cotidiana são traídos pelas palavras, as quais também revelam as concepções que as fundamentam. Exemplo disso podem ser os quadros teóricos e conceitos tomados a priori como camisas de força que impedem o desembaçamento das lentes de observação do pesquisador, bem como a lógica da demonstração quando o campo empírico é coisificado para apenas demonstrar o que teorias e conceitos preconizam ou para corroborar hipóteses inicialmente desenhadas ou problema de pesquisa rigidamente formulado, os quais limitam o processo permanente de busca que a pergunta oportuniza. Frente a isso, o que você tem a dizer para os jovens pesquisadores que se encantam com essa perspectiva metodológica e que ainda não têm as devidas competências desenvolvidas?

José Machado Pais: Em relação ao embaçamento das lentes de observação, tudo passa pelos usos que se façam das teorias e dos conceitos e da sua pertinência em diferentes contextos de pesquisa. Como bem sustenta Luís deGusmão (2012), em seu livro O fetichismo do conceito,30 há limites do conhecimento teórico na investigação social. As credenciais teóricas e conceptuais não são por si só suficientes para garantir uma eficácia heurística. A acuidade de uma pesquisa avalia-se pela relevância social, política e científica do que se pesquisa e do como se pesquisa, isto é, dos respetivos trilhos e protocolos metodológicos. As pesquisas que convocam as vivências cotidianas têm relevância social e política porque se, por um lado, a vida cotidiana aparece como um espaço de refúgio às ameaças que a tornam difícil ou insustentável, ela pode, por outro lado, transformar-se num campo de contestação à degradação dos modos de vida — o que permite questionar os contextos de vida como matrizes de poder e contrapoder. Quanto à relevância científica das pesquisas que trabalham com o cotidiano, ela decorre do fato de o próprio cotidiano ser usado como lente metodológica de questionamento e decifração do social.

Relativamente à traição das palavras, há que se reconhecer que, na interpretação do social, elas assumem uma significativa centralidade. Através de palavras, ditas ou escritas, analisam-se registros biográficos, fontes documentais, entrevistas, diários, etc. Porém, se as palavras revelam, também escondem quando mascaram a realidade narrada. O desmascaramento da realidade exige interpretação, a qual, todavia, é gerada por pré-interpretações que antecipam novas interpretações. Nessa teia de interpretações, todas elas feitas de palavras, tece-se a realidade interpretada. Como a interpretação do social requer uso de conceitos, estes devem ser rigorosamente definidos, mas não a ponto de deixarem escapar as realidades que procuram alcançar. Conceitos prenhes de indefinições ou reificados em definições apriorísticas podem gerar equívocos interpretativos que se avolumam com seu uso generalizado e acrítico. Tome-se um exemplo para ilustrar abusos nos usos do conceito de exclusão social. Nos acampamentos dos jovens indignados de maio de 2011, tanto na Plaza del Sol, em Madrid, quanto no Rossio de Lisboa,31 constatei que pessoas sem teto, que dormiam nas imediações desses acampamentos, participavam com alegria na sua limpeza e animação cultural. Essa cumplicidade com os manifestantes que, por sua vez, retribuíam com alimentação, colide com as teorias que associam a exclusão social a uma apatia imputada à debilidade de laços sociais. Esquecem que, da fragilidade dos laços sociais, deriva frequentemente a sua força. Mas nem sempre essas teorias questionam devidamente a debilidade dos laços sociais, sua natureza e causas, nem o próprio conceito de exclusão social.

Justas críticas a esse conceito têm sido desenvolvidas porJosé de Souza Martins (1997), desde logo no seu livro Exclusão e nova desigualdade.32 As suas críticas rejeitam a concepção dualista do fenômeno, uns dentro, outros fora. Nessa concepção simplista, a solução da exclusão passaria por incluir os excluídos como se o problema residisse na exclusão, e não nas causas que a originam. Para Martins, ao contrário dos que usam acriticamente o conceito de exclusão social, esta acaba por ser um problema menor, porque é o mais visível. Deve a solução do problema da exclusão social ficar confinada a estratégias de encerramento que apenas apelam a uma inclusão, cujos pressupostos e consequências não se discutem? Fala-se também, frequentemente, na necessidade de uma educação mais inclusiva, que permita integrar jovens que carregam o estigma de incapazes ou que apenas são vistos como vítimas de exclusão escolar e social. Porém, raramente se atua com eficácia sobre os processos sociais que originam essas exclusões. Todos esses equívocos e essas omissões exigem uma reflexão profunda sobre o desfasamento que pode ocorrer entre a realidade, por um lado, e, por outro lado, as teorias e os conceitos que se instrumentalizam para a alcançar. Esse é um alerta que deixo aos jovens investigadores, para que, em suas pesquisas, tenham sempre em mente uma hermenêutica da suspeita.

Nilda e Flávia: As perspectivas positivistas geram críticas sobre a sociologia do cotidiano pelo seu “baixo potencial de generalização” e por suas características microssociológicas. Contudo, em seus estudos, podemos acessar os alertas para a procura dos contínuos, entre a dimensão macro e microssociológica. Como fazer esse enfrentamento, considerando que as pesquisas situadas na sociologia do cotidiano são, na sua maioria, de natureza qualitativa?

José Machado Pais: A sociologia da vida cotidiana, ao dar visibilidade às dimensões ocultas da vida social que ficam à margem de correntes teóricas que apenas privilegiam as estruturas e as instituições sociais, fez reaparecer os indivíduos, frequentemente aprisionados em estruturas e engrenagens macrossociais. Não admira que a micro história tenha sido olhada com desconfiança e até desprezo pelos historiadores da velha escola, acusando a nova história de ter por alvo curiosidades bizarras, como a de um moleiro que, por suas ideias heréticas, foi condenado à morte pela Inquisição, tema do livro deCarlo Ginzburg (2006), O queijo e os vermes.33 No entanto, cartografar o social em suas minudências cotidianas é um desafio tanto mais estimulante quanto mais nos damos conta de que os enigmas do presente não podem ser decifrados sem convocar a sua historicidade. É essa historicidade que, ao permitir a descoberta de um sentido evocativo e criativo das vivências cotidianas, possibilita uma leitura do social através de um movimento heurístico de vaivém entre o micro e o macro, espelhando também a relação dialética ente indivíduo e sociedade.

Mas como convocar a temporalidade histórica para a decifração dos enigmas do presente? Declaradamente assumo uma estratégia próxima à das novelas policiais. O paradigma da novela policial assemelha-se a um filme projetado ao revés. Parte de um sucesso que é uma culminação: o enigma que se pretende desvendar e que desencadeia a pesquisa. Daí vai-se em busca dos seus determinantes, numa inversão do tempo que implica a substituição da ordem do acontecimento pela ordem do descobrimento. Tome-se uma curiosidade bizarra, as piadas que no Brasil têm por alvo os portugueses. Elas propagam-se em círculos microssociais de convivialidade. No entanto, de onde vêm as representações sobre o português otário? Só reivindicando a historicidade do cotidiano se consegue desvendar a razão de ser dessas piadas. Há que se fazer uma arqueologia desses imaginários. Como? Viajando no tempo histórico. Nos tempos da colonização, os estereótipos e os sentimentos de afronta contra os portugueses exploradores — mas também contra os trabalhadores que concorriam no mercado de trabalho e no mercado matrimonial — fez-se especialmente sentir no período que antecedeu a independência do Brasil. Desse modo, as piadas de portugueses que circulam no Brasil indiciam a necessidade de afirmação de uma identidade própria, por parte do Brasil, através do confronto com o colonizador. Elas permitiram afirmar o Brasil num tempo próprio, num tempo forte, em suma, num tempo brasileiro, ideia avançada por EduardoLourenço (2001)em A Nau de Ícaro.34 Na verdade, o cotidiano suscita mediações simbólicas entre o vivido e o imaginário, os rituais e as crenças, a razão e a paixão, o micro e o macrossociológico. São essas mediações que permitem interpretar o social, pois é no cotidiano que se expressa o sentido da vida, em toda a sua contraditória diversidade social.

Quanto ao baixo potencial de generalização dos estudos qualitativos, o que posso dizer é que não é cientificamente válido somente o conhecimento que tem um elevado potencial de generalização. O problema metodológico relativo à representatividade dos estudos qualitativos — que é o da capacidade ou não de generalizações indutivas — coloca em causa a riqueza das abordagens qualitativas, as suas lides com as subjetividades e os processos de subjetivação. O que se ganha com o exorcismo das pesquisas qualitativas? No entanto, há ainda quem as olhe com desconfiança. São, aliás, conhecidas as críticas do positivismo ao método biográfico, sobretudo às narrativas autoficcionalizantes. Passam ao lado do que é importante. O importante é questionar como é que nos relatos de vida se costuram ocorrências factuais e ficções, retalhos de vida vivida em suas próprias ficções. E, mais importante ainda, importa destapar o avesso do lastro biográfico que se esconde por detrás de alguns registros romanceados. O social. Tropeçam num equívoco os que pensam que a riqueza do método biográfico se circunscreve à singularidade de histórias de vida, individualmente tomadas. É certo que o método biográfico reconhece a valia do conhecimento subjetivo. Mas, pergunto, haverá subjetividade que não seja relacional, expressão de interações sociais historicamente determinadas?

Aliás, um dos baluartes metodológicos da sociologia da vida cotidiana é, justamente, a obliquidade do olhar, ao procurar ver o social através dos indivíduos e, simultaneamente, como o social se traduz na vida deles. Não quer isso dizer que os indivíduos sejam um mero reflexo do social. Eles apropriam-se do social ressignificando-o, projetando-o em suas subjetividades, reinventando-o ao mesmo tempo que se reinventam a si mesmos. É certo que as Ciências Sociais perderiam a sua razão de ser se não contemplassem o social. No entanto, a apreensão do social também deixaria de fazer sentido se desconsiderasse os meandros das interações cotidianas que, entre os indivíduos, geram o social. O repto que nos lançou Simmel em grande parte da sua obra foi, precisamente, o de procurar enlaces do individual com o social, do micro com o macrossocial. Para ele não contam apenas os destinos individuais, contam sobretudo os movimentos, as forças, as formas sociais que configuram esses destinos. Assim, quandoSimmel (1989)escreveu A filosofia do dinheiro35, não foi o tilintar do dinheiro que lhe despertou a atenção, foi antes o tilintar do social, as formas sociais engendradas na atividade econômica, o entendimento do dinheiro como símbolo de formas da vida social, os elos do dinheiro com sentimentos, posses, intenções... isto é, as expressividades individuais que só ganham sentido quando socialmente apreendidas.

Nilda e Flávia: Considerando o até aqui exposto, que cuidados o pesquisador do cotidiano poderia tomar para não se perder no emaranhado de dados empíricos que ele observa a partir de suas lentes quando está em campo?

José Machado Pais: Quando se realiza um inquérito com base numa amostra estatisticamente representativa de uma dada população — suponha-se, por exemplo, os usos do tempo cotidiano por parte dos residentes de um qualquer estado do Brasil —, sabemos de antemão como encaminhar a pesquisa, já que os procedimentos metodológicos se encontram protocolizados. Decide-se se a amostra de estudo é probabilística, estratificada ou mista; determinam-se os pontos de amostragem e o quantitativo de entrevistas a realizar para garantir a representatividade estatística da amostra; decide-se se a entrevista é presencial, por telefone, ou online; procede-se à seleção dos entrevistados, normalmente, através de itinerários aleatórios; constrói-se o questionário e preparam-se os entrevistadores para o trabalho de campo. Recolhidos os dados, avança-se para a sua tabulação e análise, recorrendo à estatística descritiva e inferencial. Em contrapartida, se a pesquisa recorre a métodos qualitativos — observação participante, entrevistas em profundidade, grupos focais, biografias, registros etnográficos, etc. —, nesse caso, há efetivamente o perigo de o pesquisador se perder num emaranhado de dados empíricos.

Para evitar essa ameaça, é necessário ter presente que a qualidade de uma pesquisa não depende tanto da abundância de dados reunidos quanto da pertinência das evidências empíricas que possam dar resposta à problemática de investigação. O que conta é a coerência dos argumentos, não a acumulação estéril de dados. Aliás, os dados não falam por si. Há que os fazer falar. Não há alternativa, só falam se os questionarmos. Podemos até imaginar um diálogo: dado meu, o que você tem para me oferecer? E o dado responderá: o que você quer saber? Se não houver pergunta, não haverá, obviamente, resposta. Feita a pergunta, pode também acontecer que o dado replique: lamento, não posso ajudar, tem de bater a outra porta. Ou seja, os dados ao alcance da observação apenas se transformam em dados de pesquisa quando interrogados.

Dando um exemplo. Há tempos, ao adoçar um café, descobri num pacotinho de açúcar a seguinte mensagem: Um dia... sou turista na minha própria cidade. Estranhei a mensagem e interroguei-me: quem vive numa cidade não a deveria conhecer melhor do que um turista? Agucei a curiosidade e, remexendo a cesta dos pacotes de açúcar, sob o olhar desconfiado do moço da cafeteria, comecei a fazer montinhos de pacotes de açúcar de acordo com os conteúdos das mensagens. Segui na esteira das propostas deJean-Pierre Hiernaux (1997),36 quando sugere a metodologia das isotopias para a análise de conteúdo de grande quantidade de dados. No caso, uma cesta de pacotes de açúcar. As isotopias são lugares de sentido que, de certa forma, organizam os dados a partir da sua categorização. Cada montinho de pacotes de açúcar, com mensagens tematicamente afins, correspondia a uma isotopia.37 Uma das mais relevantes identificava apelos à evasão: Um dia... ponho a mochila às costas e vou conhecer o mundo; Um dia... largamos tudo e fugimos juntos; Um dia... fujo do trabalho para brincar com a minha filha… O sentido geral dessa isotopia transporta a ideia de fuga, de evasão, alertando-nos para o aprisionamento da vida pelo corre-corre cotidiano. No fundo, se o imaginário acolhe sonhos por realizar — como o de, um dia, se poder ser turista na própria cidade —, é porque a realidade revela a incapacidade para os alcançar. Cheguei a essa conclusão porque questionei o sentido das mensagens dos pacotes de açúcar. Os dados de pesquisa apenas deixam de ser factualidades reificadas quando se transformam em meios de interpretação da realidade.

Nilda e Flávia: Que outros pontos não contemplados nesta entrevista você considera importantes de serem abordados? Podemos encerrar este momento de conversa com uma mensagem aos pesquisadores?

José Machado Pais: Creio que as questões levantadas tocaram importantes aspectos no âmbito das pesquisas que tomam o cotidiano como uma lente de observação do social e, simultaneamente, como uma alavanca metodológica do conhecimento. Espero que o diálogo havido suscite entre os leitores o surgimento de outras questões ou dimensões problemáticas não abordadas na entrevista. Se isso acontecer, dou-me por satisfeito. Os diálogos que geram reflexão, entreabrindo portas para novos questionamentos e conhecimentos, são os que mais me atraem. Conhecimento incapaz de gerar novo conhecimento, encerrado em suas certezas e tautologias, pode ser rico em sobranceria, mas, certamente, será pouco estimulante. Por isso mesmo, talvez encerre a nossa conversa descerrando uma questão transversalmente presente na entrevista, ainda que de forma latente. O que fazer para que consigamos realizar pesquisas mais originais, com respostas inovadoras aos desafios societais, com novos instrumentos conceptuais e novas elaborações teóricas? Por outras palavras, como desenvolver pesquisas mais criativas?

Ao questionar processos criativos, sempre me lembro de Picasso quando dizia que “no todas las horas se es un buen brujo”. Nas pesquisas sociais, a criatividade talvez ocorra em momentos mágicos que nos fazem videntes, isto é, que nos levam a ver além do que normalmente é visto. De onde resulta essa sagacidade, no pressuposto de que ela não surge por mero acaso? Como nasce um objeto de estudo? Como germinam as hipóteses de investigação? Como potenciar a capacidade hermenêutica dos conceitos e a pujança explicativa das teorias? Essas questões, que de certo modo se soltaram da entrevista realizada — e que ilustrei com retalhos de pesquisas que realizei —, têm-me acompanhado no meu percurso acadêmico. Se continuo a pensar nelas, é porque levantam dilemas cuja solução implica um bom senso que deverá estar sempre presente nos processos de pesquisa. Por exemplo, em relação aos usos da teoria, urge uma permanente vigilância epistemológica em relação aos excessos da teorização, mas também à sua míngua. Nuns casos, a teoria sobrepõe-se aos achados empíricos, subalternizando-os, mutilando-os, escondendo o que eles têm para dizer; noutros casos, perde-se a relevância desses achados empíricos, pois não há investigação sem interpretação, nem interpretação sem teoria.

Aos mais jovens pesquisadores, lançava finalmente um repto, recorrendo a uma metáfora da gíria futebolística. Costuma dizer-se que um jogador, para ter uma boa performance, tem de ter fome de bola, comer a relva se for necessário. Para os pesquisadores que trabalham com o cotidiano, poderíamos falar de uma fome de rua, tomando-a, num sentido genérico, como o que se passa no mundo à volta. Como bem dizia Paulo Freire (1977, p. 57), “[…] o mundo é o suporte da vida da qual brota a existência que dá ao mundo outros mundos, ressignificando-o.”. Tenho desafiado os meus alunos a questionar o mundo à volta e com eles tenho deambulado por mercados, feiras, cemitérios, concertos musicais, peregrinações religiosas, carnavais, manifestações políticas, etc. Uma vez, aplicamos um pequeno questionário a transeuntes que circulavam próximos a monumentos históricos da cidade de Lisboa. A larga maioria dos entrevistados desconhecia o seu significado. Por que razão há um aparente divórcio entre a cidade patrimonial e quem por ela circula? São enigmas desse tipo que, transformados em objetos de estudo, geram uma ânsia de querer saber mais, dão fome de pesquisa. Para os pesquisadores que trabalham com o cotidiano, os momentos mágicos ocorrem quando a revelação do social resulta de perplexidades que incitam ao seu questionamento e se traduzem numa paixão pela pesquisa.

ARREMATANDO A TRAMA

Nesta sessão, voltamos a falar a duas vozes, encharcadas pelos ecos das palavras de nosso entrevistado, expressando nossos agradecimentos pela generosidade em nos conceder o seu tempo, em época tão difícil que tem sido a da pandemia provocada pelo novo coronavírus e que sacode a humanidade para o design de “novas coreografias sociais” (Paiva, 2020)38 ou, quiçá, para um novo processo civilizatório.

Quantos novos objetos de pesquisa emergem da “cruel pedagogia do vírus” (Santos, 2020)39 e dessa dolorosa experiência pela qual passamos? Temos fome de rua, mas precisamos manter o distanciamento social. Que cotidiano elegemos como perspectiva e alavanca para o conhecimento? Um cotidiano percebido pela janela ou pela varanda de nossas residências? Um cotidiano acessado pelas plataformas digitais? Um cotidiano em que ficamos mais próximos, mas nosso rosto esconde parte da nossa expressividade pelo uso da máscara? A educação do olhar da observação é requerida como nunca, como forma de potencializar as sensibilidades para perceber a linguagem dos olhos, dos movimentos do corpo, da modulação da voz, dos silêncios, dos encobrimentos.

E para finalizar essa peça trazida por Pais, à luz das nossas curiosidades, tomamos pensamentos, palavras alheias proferidas por uma mulher que fez do cotidiano matéria da sua poesia, Adélia Prado (2008, s. p.). A escritora sentencia: “[…] o cotidiano é um tesouro […]”.

Nesta entrevista, José Machado Pais fala com leveza e vai nos dizendo como toca no cotidiano, um tesouro a ser escavado e lapidado. Pelo cotidiano, movimenta o método e encontra o objeto de investigação. A sensibilidade se estende ao compor e dar a conhecer seu modo inaugural de ser capturado pela simplicidade dos pacotinhos de açúcar acondicionados numa cesta depositada sobre a mesa de um café (Pais, 2015). Ou de apreciar os passos da dança, coreografados por pessoas simples de uma pequena comunidade rural do interior do Rio Grande do Sul, e capturar marcas da cultura açoriana na cultura gaúcha (Pais, 2018). O compromisso do pesquisador contempla as palavras nativas do campo que observa e as converte em matéria-prima para sua análise, com profundo respeito a quem de direito elas pertencem.

Como finalizar esta peça tecida com tanta delicadeza? Agradecendo a postura acolhedora de José Machado Pais que corporifica sua abertura ao outro e, a partir desta, estende o fio que tece a renda configurada em cada encontro, seja encontro de orientação, seja encontro com a empiria que faz ecoarem as dobras do cotidiano.

1O doutorado sanduíche, realizado entre 2005 e 2006, sob a co-orientação de José Machado Pais, culminou na tese Jovens e cotidiano: trânsitos pelas culturas juvenis e pela escola da vida, defendida no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul por Nilda Stecanela, sob a orientação de Carmem Maria Craidy, em 2010, e publicada em livro pela EDUCS.

2Entre 2016 e 2017, ocorreu intercâmbio de Cineri Fachin Moraes, culminando na tese Juventudes do século XXI e o cotidiano do Ensino Médio no Rio Grande do Sul: por entre as dobras do Seminário Integrado. Em 2018, Caroline Caldas Lemons esteve em Lisboa para estudar o cotidiano e suas reflexões integram a tese Aprendizagem no cotidiano escolar: direitos, experiências e percepções discentes. Também em 2016, ocorreu a mediação para intercâmbio de Alexandre Vieira, do Programa de Pós-Graduação em Música da UFRGS, cujo estudo versa sobre as trajetórias formativas profissionais em música.

3A professora Flávia Brocchetto Ramos esteve no ICS, por meio da bolsa Professor Visitante no Exterior Sênior — Edital CAPES nº 01/2019, com a pesquisa O cotidiano como lócus de investigação: observando a leitura. A interlocução deu início à realização desta entrevista e organização do dossiê A leitura pelo olhar do cotidiano, publicado na Revista Conjectura: Filosofia e Educação.

4A missão científica incluiu a entrevista Os jovens e as transições da vida (Pais, 2020), disponível em https://ucsplay.ucs.br/video/os-jovens-e-as-transicoes-da-vida/, e a construção dos dados presentes no artigo Chamarrita: uma chama da cultura açoriana na América Gaúcha (Pais, 2018), disponível em https://ojs.letras.up.pt/index.php/taa/article/view/5392.

5PAIS, J. M. O cotidiano e a prática artesanal da pesquisa. Revista Brasileira de Sociologia, v. 1, n. 1, p. 107-128, jan.-jul. 2013. https://doi.org/10.20336/rbs.26

6PAIS, J. M. As “cronotopias” das práticas culturais do quotidiano. Observatório das Actividades Culturais, n. 4, p. 7-9, out. 1998. Disponível em: http://www.observatoriojovem.uff.br/sites/default/files/documentos/OBS_4_As_cronotopias_das_praticas_culturais_do_quotidiano.pdf. Acesso em: 13 maio 2021.

8Analogia presente na obra: PINTO, M.; TEDESCO, J. C.; PAIS, J. M.; RELVAS, A. P. As pessoas que moram nos alunos. Porto: ASA, 1999.

9PAIS, J. M. Consciência histórica e identidade: os jovens portugueses num contexto europeu. Oeiras: Celta Editora, 1999.

10PAIS, J. M. A captação do social e as armadilhas do método: aprendendo com Ruth Cardoso e seu jeito de ser. Análise social, v. 222, n. LII (), 2017. Disponível em: http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/AS_222_dos01.pdf. Acesso em: 5 mai. 2021.

11CARDOSO, R. C. L.; SAMPAIO, H. Bibliografia sobre a juventude. São Paulo: Edusp, 1995.

12PAIS, J. M. Culturas juvenis. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1993.

13TIMONEIRO. [Compositor e intérprete]: Paulinho da Viola. Bebadosamba. São Paulo: BMG Brasil, 1996. 1 CD. Faixa 2.

14PAIS, J. M. Vida Cotidiana: Enigmas e revelações. São Paulo: Cortez, 2003.

15BALANDIER, G. A desordem: Elogio do movimento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.

16SIMMEL, G. Sociologia: Estudios sobre las formas de socialización. Madrid: Biblioteca de la Revista de Occidente, 1977. 2 v.

17FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz & Terra, 1997.

18BOLTANSKI, L. Enigmes et complots: Une enquête à propos d’enquêtes. Paris: Gallimard, 2012.

19ELIAS, N.; SCOTSON, J. L. Os estabelecidos e os outsiders: Sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

20GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

21PAIS, J. M. Vida Cotidiana: Enigmas e revelações. São Paulo: Cortez, 2003.

22GLASER, B. G.; STRAUSS, A. L. The discovery of grounded theory: Strategies for Qualitative Research. Chicago: Aldine, 1967.

23PAIS, J. M. Culturas Juvenis. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1993.

24O escritor russo Leon Tolstói (1828–1910), autor célebre, entre outras obras, de Guerra e Paz, por meio de seus personagens, traça perfil rico e preciso da Rússia.

25FROMM, E. El arte de escuchar. Barcelona: Paidós, 2012.

26BLUMER, H. El Interaccionismo Simbólico: Perspectiva y Método. Barcelona: Hora, S. A., 1982.

27Sociólogo e literato brasileiro que morreu em 2017. Foi responsável por pensar o sistema literário com base na presença do autor, do mercado editorial e do leitor. Reconhece a autonomia da obra literária, mas entende que ela é formada por influências da sociedade, da ideologia do tempo e do autor que a produziu. Nesse ponto, cita Machado de Assis como escritor brasileiro completo.

28LÉVI-STRAUSS, C. Tristes trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

29LLULL, R. Liber de ascensu et descensus intellectus. [s. l.]: 1304.

30GUSMÃO, L. O fetichismo do conceito: Limites do conhecimento teórico na investigação social. Rio de Janeiro: Topbooks, 2012.

31Jovens vão às ruas em Portugal, em Lisboa e Porto, para protestar contra as condições precárias de trabalho, como estágios não remunerados, emprego informal, exigência de 1 salário, entre outros pontos.

32MARTINS, J. S. Exclusão social e a nova desigualdade. São Paulo: Paulus, 1997.

33GINZBURG, C. O queijo e os vermes. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

34LOURENÇO, E. A nau de Ícaro e imagem e miragem da lusofonia. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

35SIMMEL, G. Philosophie des Geldes. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1989.

36HIERNAUX, J P. Análise estrutural de conteúdos e modelos culturais: Aplicação a materiais volumosos. In: ALBARELLO, L.; DIGNEFFE, F.; HIERNAUX, J-P.; MAROY, C.; RUQUOY, D.; SAINT-GEORGES, P. Práticas e Métodos de Investigação em Ciências Sociais. Lisboa: Gradiva, 1997. p. 156-202.

37Reflexão tratada no livro: PAIS, J. M. Lufa-lufa quotidiana: Ensaios sobre cidade, cultura e vida urbana. Lisboa: ICS, 2015.

38PAIVA, B. Novas coreografias sociais pós quarentena: a sociedade (e a escola) reinventada? Perfil de Bruna Paiva no Medium, 2020. Disponível em: https://brunaepaiva.medium.com/novas-coreografias-sociais-p%C3%B3s-quarentena-a-sociedade-e-a-escola-reinventada-1a8063c7b1ac. Acesso em: 13 maio 2021.

39SANTOS, B. S. A cruel pedagogia do vírus. Coimbra: Almedina, 2020.

REFERÊNCIAS

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Recebido: 11 de Novembro de 2021; Aceito: 02 de Junho de 2022

Nilda Stecanela é doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora da Universidade de Caxias do Sul (UCS). E-mail:nstecane@ucs.br

Flavia Brochetto Ramos é doutora em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Professora da Universidade de Caxias do Sul (UCS). E-mail:fbramos@ucs.br

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