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Revista Brasileira de Educação

versión impresa ISSN 1413-2478versión On-line ISSN 1809-449X

Rev. Bras. Educ. vol.28  Rio de Janeiro  2023  Epub 06-Sep-2023

https://doi.org/10.1590/s1413-24782023280092 

Espaço Aberto

Breve ensaio sobre a cidadania em tempos de pandemia: cidadão neurótico ou inconformado?

A BRIEF ESSAY ON CITIZENSHIP IN TIMES OF PANDEMIC: NEUROTIC OR NONCONFORMIST CITIZEN?

BREVE ENSAYO SOBRE CIUDADANÍA EN TIEMPOS DE PANDEMIA: ¿CIUDADANO NEURÓTICO O INCONFORMISTA?

1Universidade do Porto, Porto, Portugal.


RESUMO

O presente ensaio explora o conceito de neurotic citizen para analisar o tipo de cidadania que parece estar a ser promovido na gestão da pandemia provocada pela covid-19. Da reflexão realizada, emerge a proposta de uma “cidadania inconformada” como alternativa viável a uma “cidadania neurótica”, por esta pressupor o empobrecimento da qualidade democrática das sociedades. Releva-se o papel crucial da educação na promoção de uma cidadania crítica e inconformada, que permita aos indivíduos terem consciência das suas neuroses e de agirem em conformidade com os valores democráticos.

PALAVRAS-CHAVE cidadania neurótica; cidadania inconformada; educação; democracia

ABSTRACT

The present essay explores the neurotic citizen concept to analyse the type of citizenship promoted in managing the pandemic caused by covid-19. The proposal of a “nonconformist citizenship” emerges from the reflection as a viable alternative to a “neurotic citizenship”, as this presupposes the impoverishment of the democratic quality of societies. The crucial role of education in promoting critical and non-conformist citizenship is highlighted allowing individuals to be aware of their neuroses and to act in accordance with democratic values.

KEYWORDS neurotic citizenship; nonconformist citizenship; education; democracy

RESUMEN

Este ensayo explora el concepto de neurotic citizen para analizar el tipo de ciudadanía que parece promoverse en la gestión de la pandemia provocada por el covid-19. De la reflexión realizada surge la propuesta de una “ciudadanía inconformista” como una alternativa viable a una “ciudadanía neurótica”, en tanto presupone el empobrecimiento de la calidad democrática de las sociedades. Se destaca el papel crucial de la educación en la promoción de una ciudadanía crítica e inconformista, que permita a los individuos tomar conciencia de sus neurosis y actuar de acuerdo con los valores democráticos.

PALABRAS-CLAVE ciudadanía neurótica; ciudadanía inconformista; educación; democracia

O presente ensaio parte fundamentalmente dos contributos de Isin (2004), neurotic citizen, para analisar, de forma exploratória, o tipo de cidadania que parece estar a ser promovido na gestão da pandemia provocada pela covid-19, bem como o papel que a educação pode desempenhar nesse domínio. A reflexão que procuro trazer para aqui conta também com o auxílio de outros contributos teóricos: uns mais clássicos, mas com uma presciência desarmante, como a obra The Neurotic Personality of our Time, de Karen Horney (2007), editada pela primeira vez em 1937; outros com um perfil mais literário, mas que possuem uma lucidez e um realismo arrepiantes, como o texto de Arundhati Roy (2020) “The Pandemic is a Portal”.1

Com efeito, a primeira ideia que se acomete logo à partida sobre a presente reflexão é que a análise de Isin (2004) apresenta uma atualidade quase irreal. Apesar de ter sido escrita na primeira metade dos anos 2000, parece ter sido elaborada especificamente para o tempo de pandemia que ainda vivemos. O autor propõe conceitos como “neurotic citizen”, “government through neuroses”, “neuropolitics”, “neuropower” e “neuroliberalism”, que têm como base, todos eles, a ideia de que o indivíduo, o cidadão/a cidadã, se move a partir da necessidade de gerir as suas ansiedades e incertezas, exigindo segurança, serenidade, saúde, calma e felicidade como direitos. Um/a cidadão/cidadã que se move, portanto, a partir das suas emoções, por contraposição a um cidadão biónico, disciplinado, que se move sob o princípio de calibrar as suas ações em função dos riscos e benefícios calculados e que está subjacente à metáfora da biopolítica (ver Foucault, 2008 [1978-1979]) que Isin (2004) considerou já não capturar ou explicar adequadamente o modo como os indivíduos são governados. O que Isin (2004) nos propõe, na sua essência, é que os cidadãos, os governos (i.e., government through neurosis) e os regimes políticos (i.e., neuropolitics) orientam toda a sua ação em função das neuroses apresentadas pelos cidadãos, que não são assumidas como produtos de um desequilíbrio patológico, mas antes como legítimas reivindicações que encontram eco nas entidades governativas, formadas também por cidadãos neuróticos que mais não fazem do que focar a sua governação não “[…] nas causas, nem na cura, nem no cuidado, mas na tranquilização da ansiedade, entendida como um novo normal de se ser.” (Isin, 2004, p. 228).2 Por outras palavras, argumenta que o cidadão neurótico não calibra a sua conduta a partir da racionalidade, condição elementar do sujeito liberal e neoliberal que era autossuficiente e que se governava fundamentalmente através da sua liberdade, mas sim a partir dos seus medos e inseguranças.

Um exemplo claro desse tipo de governação relativamente ao caso português na gestão da pandemia foi o facto de a sociedade se ter antecipado à declaração de estado de emergência de 18 de março (Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020 — Portugal, 2020b), que estabeleceu o primeiro confinamento obrigatório. Nomeadamente as famílias que optaram por não levar os filhos às escolas antes da declaração do estado de emergência e até mesmo antes de o Governo decretar, no dia 13 de março (Decreto-Lei nº 10-A/2020 — Portugal, 2020a), o encerramento de todas as escolas no país.3 Um outro exemplo também desse tipo de governação através das neuroses foi a primeira fase do processo de desconfinamento, em maio de 2020, na qual houve a necessidade de gestão de uma neurose (i.e., confinamento obrigatório) que perdurou com intensidade cerca de dois meses e que, no sentido de aliviá-la, apesar de os riscos associados à doença continuarem a persistir, se incentivou os cidadãos e as cidadãs a reativarem os seus hábitos de consumo para que a economia pudesse se normalizar e recuperar.4 Os argumentos implícitos apresentados pelo Governo, que parecem corroborar a proposta de Isin (2004), consistiam em pedir-lhes que, desde que garantidas as devidas medidas de prevenção da doença, deveriam avaliar a sua conduta para não colocarem em risco a saúde da economia, cujas consequências (i.e., falências, desemprego, pobreza, etc.) poderiam agravar as suas neuroses. Aludindo à retórica de Isin (2004), melhorar a economia significaria, por conseguinte, reparar os medos e as ansiedades, ou seja, as neuroses de cada cidadão e cidadã. Em concreto, tais argumentos assentavam na ideia de que a atividade de consumo poder-se-ia constituir como a solução paliativa para as suas ansiedades e incertezas (neuroses),5 tal como Isin (2004, p. 227) descreveu a respeito da sociedade americana e que parece aplicar-se, de forma irrepreensível, ao momento de desconfinamento que foi vivido:

[…] fazer compras era uma forma de acalmar e reparar o sentimento do cidadão americano sob tremenda ansiedade. O consumo no século XX já se havia transformado no sentido de satisfazer as necessidades de se equipararem aos vizinhos, como Veblen (1899) havia reconhecido. O mesmo pode muito bem se ter transformado numa disposição para gerir a neurose no século XXI.

Passados seis meses e após declaração de novo estado de emergência (Decreto n.º 8/2020 — Portugal, 2020c), com taxas de novos casos de infeção muito superiores às verificadas no período mais crítico da primeira vaga da pandemia,6 o Governo, reforçando mais uma vez a tese de Isin (2004), prefere já não confinar totalmente a sociedade e a atividade de consumo, procurando equilibrar os efeitos sanitários e económicos da pandemia. Por essa altura, assiste-se, em simultâneo, a recordes de mortes por covid-19 por dia e a manifestações de empresários da restauração, comércio e hotelaria para contestar as novas restrições (parciais) impostas pelo Governo, argumentando que, após tantos meses de sacrifício, já não tinham “pão para pôr na mesa”.7 A economia assume-se, assim, como uma preocupação que rivaliza com o medo dos efeitos sanitários do vírus, sendo esta um dos domínios, destaca Isin (2004, p. 226), através dos quais

sujeitos neuróticos têm sido cada vez mais incitados a comportarem-se como cidadãos neuróticos. A transformação da subjetividade neurótica em cidadania envolve responder a apelos para ajustar a conduta, não através de hábitos calculistas, mas sim através de hábitos que acalmem, apaziguem, tranquilizem e, acima de tudo, giram as ansiedades e inseguranças.

Não obstante a profundidade dos detalhes teóricos mobilizados por Isin (2004) para fundamentar os conceitos, o aspeto que mais intriga nessa proposta é que a energia que alimenta as dinâmicas sociais e políticas reside nas neuroses dos indivíduos: é a partir delas que os indivíduos definem a sua ação. Portanto, partindo dessa asserção, os indivíduos nunca são passivos: mesmo a sua decisão de não ação é uma forma de ação8 condicionada pela forma, mais ou menos consciente ou inconsciente, como decidem gerir as neuroses. As palavras eloquentes e de uma lucidez desarmante de Arundhati Roy (2020, n. p.) são bem ilustrativas da consciência generalizada mais ou menos assumida do exacerbamento das neuroses no contexto do período mais crítico da pandemia, em que o medo e a desconfiança se generalizaram e em que o uso de uma linguagem bélica sem armas e sem inimigos se naturalizou:

Quem consegue usar agora o termo “viral” sem estremecer um pouco? Quem consegue olhar para qualquer coisa mais — uma maçaneta de porta, uma caixa de papelão, um saco de vegetais — sem imaginá-la fervilhando com aquelas bolhas invisíveis, mortas-vivas, sem vida, pontilhadas de ventosas à espera de se prenderem nos nossos pulmões? Quem consegue pensar em beijar um estranho, entrar num autocarro ou mandar seu filho para a escola sem sentir medo real? Quem consegue pensar no prazer comum e não avaliar o seu risco? Quem entre nós não é um epidemiologista charlatão, virologista, estatístico e profeta? Que cientista ou médico não está a rezar secretamente por um milagre? Que padre não está — secretamente, pelo menos — a submeter-se à ciência? […] Os mandarins que estão a controlar esta pandemia gostam de falar em guerra. Eles nem sequer usam a guerra como uma metáfora, eles usam-na literalmente. Mas se realmente fosse uma guerra, quem estaria mais bem preparado do que os EUA? Se não fossem máscaras e luvas de que os soldados da linha de frente precisassem, mas armas, bombas inteligentes, destruidores de bunkers, submarinos, aviões de caça e bombas nucleares, haveria escassez?

Partindo dessa assunção, i.e., de que a energia das neuroses alimenta as dinâmicas sociais e políticas e tendo como pano de fundo as perplexidades presentes no discurso de Arundhati Roy, várias questões são suscitadas: será que os cidadãos neuróticos têm consciência do tipo de energia que os mobiliza? Será que as neuroses dos cidadãos neuróticos são manipuladas, inculcadas? Quem define as neuroses? E quando os indivíduos têm consciência clara dessa energia, será que as neuroses continuam a ser neuroses? É desejável uma cidadania neurótica? Querer o impossível, como Isin (2004) argumenta, é desejável? Querer o impossível não será uma espécie de eterna espera por um futuro que há de estar sempre por vir que perpetua o estado de neurose? Não será o desejo esperançoso de Arundhati Roy (2020), ele próprio, uma neurose? Uma neurose moralmente bem-intencionada, preocupada com a justiça social, os direitos humanos e as alterações climáticas, enfim, com a criação de um novo mundo, ainda assim uma neurose fundada no sofrimento de se querer escapar de um mundo real indesejado e alcançar um outro imprevisível, incerto e ainda por vir?

As nossas mentes estão ainda a correr para trás e para a frente, a ansiar por um retorno à “normalidade”, procurando coser o nosso futuro ao nosso passado e recusando-se a reconhecer a rutura. Mas a rutura existe. E no meio desse terrível desespero, é-nos oferecida a chance de repensar a máquina do fim do mundo que construímos para nós mesmos. Nada poderia ser pior do que um retorno à normalidade. Historicamente, as pandemias forçaram os humanos a romper com o passado e a imaginar de novo o seu mundo. Esta não é diferente. É um portal, uma passagem entre um mundo e o outro. Podemos escolher caminhar por ele, arrastando as carcaças do nosso preconceito e ódio, da nossa avareza, dos nossos bancos de dados e ideias mortas, dos nossos rios mortos e céus enegrecidos de fumo atrás de nós. Ou podemos caminhar com leveza, com pouca bagagem, prontos para imaginar outro mundo. E prontos para lutar por isso. (Roy, 2020, n. p.)

Enfim, quais as consequências de uma cidadania neurótica? Quais são as alternativas a uma cidadania neurótica?

Um olhar breve sobre essas questões identifica imediatamente uma regularidade, melhor dizendo, um viés: todas essas questões procuram, de forma mais ou menos explícita, olhar somente para o lado negativo, ensombrado do espírito humano. Por conseguinte, talvez seja importante também admitir a plausibilidade de uma alternativa que olha para o lado positivo, esperançoso do espírito humano, fundada não no medo permanente, mas na possibilidade sempre iminente de alcançar o objeto de desejo. O período atual que vivemos dá-nos fortes razões para, no mínimo, questionarmos as reais consequências de uma cidadania neurótica. A minha hipótese é a de que ela não é, em si mesma, um estado negativo. Veja-se, por exemplo, o caso do assassínio do estadunidense George Floyd, em maio de 2020, às mãos de polícias considerados racistas que levantou uma onda de indignação e até mesmo de violência por todo o mundo. Esse estado de indignação é fundado também na presença de neuroses que desassossegam os/as cidadãos/cidadãs, criando-lhes ansiedades, medos, revoltas, enfim, emoções, que são mobilizadoras das suas ações. Bem entendido, o aspeto que quero chamar aqui à atenção é que a cidadania neurótica não parece ser sempre negativa, sendo mesmo, em certos casos, desejável. Considerando o retrato que Isin (2004) nos oferece, parece ser indesmentível que uma cidadania neurótica é uma cidadania suspensa, meramente simbólica — veja-se a saída dos/as cidadãos/cidadãs, autoinfligida, ou aceite passivamente, do espaço público, que o grande confinamento implicou e que foi adotado praticamente em todo o mundo, independentemente dos regimes políticos, democráticos ou não, instalados.

No entanto, também parece ser verdade que a cidadania neurótica, movida a sentimentos de indignação e de injustiça, pode desencadear um processo quase imparável de ocupação do espaço público para protestar/reivindicar uma sociedade que não pode deixar impune qualquer manifestação de racismo. Os protestos, violentos ou não, verificados, sobretudo nos Estados Unidos e um pouco por todo o mundo através do movimento Black Lives Matter, podem, à falta de designação alternativa, ter sido realizados por cidadãos e cidadãs neuróticos/as. Porém, com a racionalidade/lucidez suficiente para se resgatarem do confinamento, colocando em segundo plano as ansiedades e os medos relacionados com a doença da covid-19, e ocuparem o espaço público para porem em prática uma cidadania plena, que não se inibe de se manifestar contra práticas antidemocráticas e de exigir justiça. Desse ponto de vista, considero que o cidadão neurótico, que, na proposta de Isin (2004), representa sobretudo um estado condicionado por medos que podem vir a concretizar-se sobre ou pelos próprios sujeitos em dimensões como a economia, o corpo, a casa, o ambiente e as fronteiras, pode ser também um cidadão pleno, saudavelmente neurotizado com as injustiças sociais.

Não obstante, quer se trate de uma cidadania neurótica ou de uma cidadania inconformadamente lúcida (aqui está uma designação alternativa),9 as emoções parecem estar inexoravelmente presentes, corroborando as teorias da ciência política que as colocam em lugar de destaque no que respeita a níveis de participação de maior intensidade (e.g., Bobbio, 1995; Walzer, 1995; 2002; Mouffe, 2002). Tomando a designação alternativa como plausível e passível de ser adotada neste texto de carácter ensaístico, talvez um ponto que mereça ser discutido, ainda que de uma forma muito exploratória, é o de saber identificar a linha que separa a cidadania neurótica da inconformada e de quem, indivíduos ou entidades, define essas linhas. É bem possível que ambos os lados da linha achem que os comportamentos neuróticos só estão a ter lugar no outro lado. Com isto quero dizer que os comportamentos de indignação antirracista que lavraram um pouco por todo o mundo, alguns deles ilegais e violentos, que livremente classificámos serem consequência de uma cidadania lúcida e inconformada, podem ser considerados por outros como sendo única e simplesmente neuróticos. O mesmo se poderá aplicar às manifestações contra as restrições impostas na segunda vaga da pandemia, em que os apelos para se proteger a economia e o emprego, em prejuízo das medidas sanitárias, podiam ser simultaneamente considerados como lúcidos ou neuróticos. Em bom rigor, a identificação deste relativismo moral não é nova nem sequer recente. Karen Horney (2007, p. viii) já referia, na sua obra The Neurotic Personality of our Time, que as neuroses eram geradas não só a partir das condições psicológicas de cada indivíduo, mas também a partir das condições culturais específicas em que os indivíduos viviam:

Reconhecemos que as neuroses são geradas não apenas por experiências individuais incidentais, mas também pelas condições culturais específicas em que vivemos. Na verdade, as condições culturais não apenas emprestam peso e cor às experiências individuais, mas, em última análise, determinam a sua forma particular.

Para ilustrar o seu argumento, Horney (2007, p. 14-15) recorre a vários exemplos, alguns deles divertidos, que provam o nosso enviesamento etnocêntrico — o facto de achar divertido comprova aliás o nosso próprio etnocentrismo —, como a seguinte situação:

Pode-se diagnosticar uma perna partida sem conhecer a formação cultural do paciente, mas correria um grande risco ao chamar um menino índio de psicótico porque ele nos disse que tinha visões nas quais acreditava. Na cultura particular desses índios, a experiência de visões e alucinações é considerada um presente especial, uma bênção dos espíritos, e são deliberadamente induzidas, conferindo certo prestígio a quem as possui.

Perante esse relativismo moral, julgamos que um contributo teórico valioso para ultrapassar a aporia anquilosante que lhe está subjacente poderá ser a assunção de que existem certos princípios ético-políticos, como a igualdade e a liberdade, que devem ser tidos em conta para se compreender melhor quem se encontra de um lado e do outro, evitando-se, desse modo, a discricionariedade absoluta e a falta de racionalidade ou moralidade no processo de avaliação sobre as nossas posições políticas (ver Mouffe, 1993; Biesta, 2009; 2011).

Com efeito, o que está aqui em jogo não são as emoções propriamente ditas (isto é, se é desejável abdicarmos ou não totalmente delas), mas o que causa essas emoções, quais são os seus interesses, a sua agenda política. Diria que não há nenhum mal em ser-se cidadão neurótico (ou inconformado, se tomarmos o neurótico como classificação pejorativa por poder estar a desconsiderar certos princípios ético-políticos), desde que haja também a neurose de se saber quais os interesses que estão a ser defendidos e se há ou não tentativas de manipulação em função desses mesmos interesses que coloquem em causa a possibilidade de se exercer livremente uma cidadania plena — um caso evidente de manipulação das emoções dos cidadãos foi a estratégia política adotada por Jair Bolsonaro, presidente do Brasil, que procurou produzir “[…] a naturalização do absurdo, isto é, a banalização das mortes […]” (Duarte e César, 2020, p. 16), com o objetivo de promover a negação da política, corroendo as práticas e os valores da democracia. Estratégia, essa, que se enquadra num contexto marcado por uma grave crise do sistema político brasileiro, em que o que está em jogo “[…] é a própria noção de democracia […]” (Dalbosco e Mendonça, 2020, p. 3).

Para tal, como sugere Peters et al. (2020, p. 32), reforçando a ideia da importância de uma cidadania inconformada, é necessária uma educação que ensine a ler e depois a agir para interromper ações e políticas desumanizadoras:

A falta de ética e moralidade do neoliberalismo emergiu da pandemia à medida que as questões da “abertura das economias” são priorizadas sobre o humanismo e o coletivismo local-global necessários para parar a covid-19. […] Ensinar a ler e, em seguida, agir para interromper tais cálculos desumanizantes (práxis) devem ser lições da covid-19, assim como combater os cálculos desplanetarizantes através da alfabetização ecopedagógica.

Dito de outro modo, tal como procurámos sustentar noutro trabalho (ver Ribeiro, Neves e Menezes, 2017), é necessário resgatar a dimensão política da educação para se promover uma visão crítica e inconformada permanente sobre os regimes e as ordens políticas que nos governam. A inexistência dessa capacidade pode levar à complacência ou até mesmo ao reforço de ações e de medidas políticas que impliquem a suspensão dos princípios democráticos. Renunciar o papel que a educação pode ter na consciencialização política dos indivíduos é aceitar que se possa educar para não questionar, para se obedecer cegamente às ordens estabelecidas. Tais ordens, que carregam sempre consigo a possibilidade de se basearem em princípios negativos, que serão tidos como certos e inquestionáveis se não houver a capacidade de os indivíduos conceberem sequer a possível existência desses mesmos princípios. Bem entendido, o indivíduo conformado e despolitizado não se permite diferenciar princípios, apenas dá conta deles e aceita-os sem qualquer juízo ético ou moral.

Por conseguinte, é necessário uma educação que conceba a importância de existir um questionamento permanente das sociedades e das entidades que nos governam. É necessária uma educação que promova um pensamento mais complexo sobre a política. Que promova o confronto entre diferentes pontos de vista e que protagonize espaços marcados pelo pluralismo e pela diferença, donde é possível conferir-se maior qualidade desenvolvimental (i.e., atitudes, disposições e comportamentos mais democráticos nos indivíduos) às experiências educativas e de participação (e.g., Ferreira, 2006; Ferreira, Azevedo e Menezes, 2012; Ribeiro, Neves e Menezes, 2017). É necessário uma educação que integre, na sua práxis, uma conceção de democracia que, tal como defendem determinados filósofos políticos (e.g., Rancière, 1995; 1999; 2003; Mouffe, 1999; 2005), não assenta no cumprimento cego das ordens políticas que nos governam, mas precisamente no confronto plural com essas mesmas ordens. Em conclusão, é necessário uma educação investida em promover uma cidadania inconformada nos indivíduos que lhes permita atingir o estado essencial democrático de saberem, em consciência, identificar as emoções que os movem e as suas causas e de decidirem, em liberdade, o sentido das suas ações. Bem entendido, uma cidadania inconformada que permita aos indivíduos terem consciência das suas neuroses e agirem em conformidade com determinados princípios ético-políticos da democracia, como a liberdade, a igualdade e a justiça.

Perante a reflexão realizada, inclinamo-nos, assim, a considerar que é plausível a proposta de uma cidadania inconformada como alternativa viável à cidadania neurótica, na medida em que esta última pressupõe uma certa incapacidade de agência dos indivíduos (prisioneiros das suas neuroses, agem a partir delas — e não apesar delas), bem como uma certa manipulação por parte de entidades externas que podem servir-se do estado neurótico dos indivíduos para defenderem os seus próprios interesses e que, por isso, só empobrecem a qualidade democrática das sociedades.

Post Scriptum: o tempo atual que vivemos, em que a neurose associada à pandemia provocada pela covid-19 parece ter sido bruscamente substituída pela depravação da guerra causada pela invasão da Rússia, de Vladimir Putin, à Ucrânia, impele-nos a ativar uma resoluta cidadania inconformada, que seja capaz de identificar todas as neuroses que povoam o nosso presente e de, sem nos deixarmos paralisar, defender, de modo intransigente, os inegociáveis e inalienáveis direitos humanos. Mais do que nunca, as neuroses que nos habitam (particularmente a económica) devem ser colocadas em perspetiva, sob pena de hipotecarmos irreversivelmente a possibilidade de vivermos em democracia. As circunstâncias da guerra urgem-nos, por isso, a sopesar de forma crítica e inconformada as neuroses e a perguntar a nós mesmos — parafraseando Mário Draghi, primeiro-ministro italiano, a respeito dos sacrifícios que são necessários fazer, incluindo os que resultam do embargo ao gás e petróleo russos — se queremos paz ou ar-condicionado ligado no verão.

1Texto disponível no Financial Times: https://www.ft.com/content/10d8f5e8-74eb-11ea-95fe-fcd274e920ca.

2Todas as traduções aqui presentes são da responsabilidade do autor.

3A esse respeito, ver o seguinte artigo publicado no jornal O Observador que mostra, por exemplo, que um grupo de pais tinha já minuta preparada com artigo da Constituição para não levarem filhos à escola, antes mesmo de o Governo decretar o fecho das escolas no país: https://observador.pt/2020/03/12/pais-tinham-minuta-preparada-com-artigo-da-constituicao-para-nao-levarem-filhos-a-escola/.

4Ver trabalho de Peters et al. (2020), no qual os autores reconhecem o papel das emoções no julgamento dos efeitos das duas pandemias associadas, a sanitária e a económica, aludindo ao conceito “the affect heuristic”, proposto por Slovic et al. (2007), que adota uma abordagem, do ponto de vista discursivo, “não patológica”, embora com o mesmo enfoque nos processos psicológicos de avaliação e decisão dos indivíduos.

5Por essa altura, era recorrente ver-se peças jornalísticas onde o presidente da República e o primeiro-ministro portugueses apelavam a um regresso da vida normal de consumo, incentivando compras e idas a restaurantes.

6Por exemplo, a 15 de novembro de 2010, registavam-se 6.035 novos casos de infeção, enquanto no pico da primeira vaga da pandemia, 10 de abril de 2020, o registo tinha sido de 1.515 novos casos. Para aprofundar a evolução da infeção por covid-19, em Portugal, ao longo do tempo, consultar o seguinte endereço da Direção-Geral da Saúde: https://covid19.min-saude.pt/relatorio-de-situacao/.

7Ver notícia disponível no seguinte endereço da Rádio e Televisão de Portugal (RTP): https://www.rtp.pt/noticias/economia/desacatos-em-manifestacao-no-porto-sao-reflexo-do-desespero_n1275284.

8A tipologia proposta por Ekman e Amnä (2012) das diferentes formas de envolvimento e participação política, nas quais se incluem (para além da participação civil e política) as formas de não participação antipolíticas e apolíticas, ajuda-nos a compreender melhor esse raciocínio.

9Em bom rigor, essa designação é inspirada num estudo nosso anterior (Ribeiro, Neves e Menezes, 2017), no qual se propõe uma educação para uma cidadania inconformada, argumentando-se que uma cidadania efetivamente politizada e democrática não assenta na manutenção ou reprodução da ordem política, mas na sua contínua interrogação e interrupção (e.g., Mouffe, 1993; Biesta, 2009; 2011).

Financiamento: Este trabalho foi apoiado por fundos nacionais, através da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), Instituto Público (IP), no âmbito do financiamento estratégico atribuído ao CIIE [bolsas nº. UIDB/00167/2020 e UIDP/00167/2020]. Norberto Ribeiro agradece ainda o financiamento da FCT para o seu contrato, estabelecido no âmbito do Programa Individual de Estímulo ao Emprego Científico (CEECIND/02115/2018).

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Recebido: 06 de Maio de 2022; Aceito: 21 de Setembro de 2022

Norberto Ribeiro é doutor em Ciências da Educação pela Universidade do Porto (Portugal). Investigador e membro integrado do Centro de Investigação e Intervenção Educativas (CIIE) da mesma instituição. E-mail:norberto@fpce.up.pt

Conflitos de interesse: O autor declara que não possui nenhum interesse comercial ou associativo que represente conflito de interesses em relação ao manuscrito.

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