SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.28BREVE ENSAYO SOBRE CIUDADANÍA EN TIEMPOS DE PANDEMIA: ¿CIUDADANO NEURÓTICO O INCONFORMISTA?ERRATA índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Compartir


Revista Brasileira de Educação

versión impresa ISSN 1413-2478versión On-line ISSN 1809-449X

Rev. Bras. Educ. vol.28  Rio de Janeiro  2023  Epub 18-Feb-2023

https://doi.org/10.1590/s1413-24782023280043 

Resenha

Para conhecer Antonieta de Barros: educadora, política e pioneira negra

Surya Aaronovich Pombo de Barros I  
http://orcid.org/0000-0002-7109-0264

IUniversidade Federal da Paraíba, João Pessoa, PB, Brasil.

ROMÃO, J.. Antonieta de Barros: Professora, escritora, jornalista, primeira deputada catarinense e negra do Brasil. Florianópolis: Editora Cais, 2021.


Antonieta de Barros (1901-1952), primeira deputada negra do país, vem despertando o interesse do grande público, porém os textos até agora disponíveis não faziam jus a sua importância. O livro aqui apresentado enfrenta essa lacuna, debruçando-se sobre essa multifacetada intelectual.

Jeruse Romão navega com segurança nas águas de “Maria da Ilha”. Reconhecida por sua atuação na historiografia da educação negra, ela organizou o livro História da Educação dos Negros e outras histórias (2005). Militante negra, autora de textos sobre educação e relações raciais, professora e organizadora de eventos sobre a temática, Romão foi responsável pela celebração pública do centenário de Antonieta de Barros.

A identificação da autora com a protagonista é evidente - ambas mulheres, professoras, catarinenses e, acima de tudo, mulheres negras em uma sociedade racista. O objetivo do livro é apresentar Antonieta não apenas para a comunidade acadêmica, desnaturalizando-a, humanizando-a, vinculando sua trajetória à história de mulheres e de mulheres negras brasileiras. Não é uma biografia, mas articula Antonieta a questões mais amplas sobre pessoas negras na sociedade brasileira, especialmente da região Sul. A pesquisa é apoiada em fontes diversas - depoimentos de familiares e pessoas que tiveram contato com a protagonista, imprensa, documentos oficiais, textos escritos por Antonieta, fotografias, documentos privados e objetos pessoais, aliados à bibliografia atualizada e a questões atuais acessadas por Romão.

Além da Apresentação - feita por Azânia Mahin Romão Nogueira, filha da autora, militante e pesquisadora - e da Introdução, o livro divide-se em sete capítulos, que vão da discussão sobre a formação racial de Florianópolis ao legado de Antonieta para o movimento de mulheres negras brasileiras. Traz ainda um Posfácio escrito por Flavio Soares de Barros, seu sobrinho-neto, a cronologia de sua vida, sambas-enredo compostos em sua homenagem e a relação de suas publicações. A obra é ilustrada com fotografias da professora em eventos públicos e privados, de sua família e de pessoas negras que se destacaram no mesmo período. São imagens cotidianas, que nos aproximam de Antonieta e emocionam.

No primeiro capítulo, “Florianópolis nos tempos de Antonieta”, Romão discute a origem da cidade e a presença negra em Santa Catarina do século XIX à década de 1950. Ela destaca que, a despeito da invisibilidade, foi uma região com presença negra, com escravidão, com pessoas negras livres, com resistência e permanência no pós-abolição. Ela discute as mudanças na Ilha - que “se modernizava” na primeira metade do século XX, passando por uma série de reformas urbanas -, costurando eventos com a vida de Antonieta.

O capítulo 2, “Os Barros: por uma genealogia da pessoa”, reflete sobre o conceito e as representações das famílias negras a partir da família da protagonista. Enfrentando o desafio da ausência de fontes, apresenta a origem de Antonieta, sobrenomes e relações de compadrio acessadas para sobrevivência, além de discorrer sobre seus pais, seus irmãos e suas irmãs, sempre relacionando a família às mudanças pelas quais passava a cidade. Vale observar o destaque dado a sua mãe, Catarina, que, como tantas mulheres negras no Brasil, foi cozinheira, empregada doméstica e lavadeira e cujas filhas alçaram importantes postos na sociedade local. A irmã Leonor, também professora, acompanhou Antonieta durante toda a vida e merece atenção, cooperando “[...] para a produção de conhecimentos sobre como as famílias de descendentes de africanos escravizados emergiram e se estruturaram no período pós-abolição em Santa Catarina.” (Romão, 2021, p. 79).

No capítulo 3, “Magistério como estratégia e ofício”, o percurso das irmãs Barros como alunas, professoras e diretoras de escola está no centro da análise. Elas cursaram a escola normal, tornando-se as primeiras da família a “ter ciclo escolar completo”. Por falta de concurso público e “pistolão”, não teriam conseguido lecionar no ensino público, oferecendo aulas particulares em casa, no que se transformou no colégio de prestígio que contou com a presença de alunos pertencentes à elite catarinense. A trajetória das irmãs é relacionada à de professores/as negros/as da região. Apesar dessa trajetória de sucesso, a autora não romantiza a vida da protagonista, evidenciando o racismo por ela sofrido, como os “trotes” relatados pelas sobrinhas-netas: “Antonieta sofria ameaças por telefone. Ouvia coisas horríveis. Atendia, e as pessoas mandavam perguntar à Antonieta se ela queria vender o beiço para fazer feijoada [...].” (Romão, 2021, p. 98).

Espaços não formais, como clubes negros e operários, são mencionados como lugares que ofereciam experiências educacionais que “[...] remetem à ação urgente de visibilizar, no campo da história da educação catarinense, a presença dessas pessoas.” (Romão, 2021, p. 105). Romão destaca as atividades das irmãs Barros na fundação da Liga do Magistério Catarinense e finaliza com a atuação de Antonieta na educação pública a partir da década de 1930, quando foi indicada para lecionar português e literatura em um grupo escolar. Alguns anos depois, foi nomeada para o Instituto Estadual de Educação e Colégio Coração de Jesus, onde lecionou também psicologia, sendo reconhecida com sucessivos convites para paraninfa. Romão discute ainda suas relações sociais e seu pioneirismo em questões como dirigir, possuir carro e telefone, viajar nas férias e defender os direitos das mulheres. A autora não se furta de tocar no ponto do sacerdócio ligado ao magistério, uma vez que nem Antonieta nem Leonor se casaram ou tiveram relações amorosas publicamente reconhecidas, remetendo à discussão sobre a solidão da mulher negra.

Essa parte se encerra com as pautas de Antonieta para a educação. É admirável e perturbador notar que, na primeira metade do século XX, ela defendia temas ainda urgentes, como concurso público para magistério e cargo de direção de escolas; relevância da educação de adultos; necessidade de organização da categoria docente; aproximação entre crianças pobres e livros; e “[...] erguia a bandeira do compromisso social docente para os educandos e a sociedade.” (Romão, 2021, p. 123).

O capítulo 4, “Antonieta, uma jornalista de seu tempo”, aborda a intelectual como “mulher das Letras”, inserindo-a no lugar de pioneira na imprensa catarinense, na qual foi colunista, diretora e colaboradora por quase três décadas. Romão mostra como a escrita jovial e bem-humorada da juventude se modificou para textos de maior amadurecimento, tratando de assuntos diversos como questões cotidianas da cidade, assuntos polêmicos como direitos das mulheres, educação e política partidária. Romão aproveita para esquadrinhar o catolicismo de Antonieta, comparando seus textos ao de intelectuais negros/as e brancos/as e mostrando que seu discurso era muito religioso e filantrópico. Ela defendia causas “católicas”, como a defesa dos pobres e dos doentes de hanseníase. Seu livro Farrapo de Ideias (1937) teve a renda da primeira edição revertida para a caridade.

O capítulo 5, “A deputada Antonieta de Barros”, analisa sua carreira política à luz do pequeno grupo de homens negros na política e de mulheres catarinenses que começavam a tentar ocupar lugar nesse mundo. A autora indica algumas questões que ajudam a entender como uma mulher negra alcançou aquele posto. Ela respondia a anseios de diferentes grupos, numa época em que se pressionava pela presença feminina na política. Porém, uma presença contida, católica, de “bons costumes”. Romão discute suas campanhas e seus dois mandatos, o apoio de outras mulheres e de pessoas negras, o racismo explícito sofrido e a repercussão nacional de sua vitória, especialmente entre o movimento feminista. Como deputada, participou de comissões de educação, cultura e funcionalismo público, defendendo a expansão do ensino secundário, a equidade salarial e a educação profissionalizante feminina.

Em “Trançando relações: negros e negras em movimento, nos tempos de Antonieta”, capítulo 6, Romão discute raça e racismo em Florianópolis, realizando uma “cartografia da militância negra” na primeira metade do século XX. Romão apresenta clubes e associações, iniciativas no teatro, o carnaval, espaços de religiosidade, escolas de samba e eventos protagonizados por negros/as catarinenses, articulando essa diversidade com a trajetória de Antonieta, e finaliza com sua autoafirmação ao responder o racismo de um adversário: “[...] as considerações em torno da situação desoladora do ensino público, foram ditadas pelo coração de uma negra brasileira, que se orgulha de sê-lo, que nunca se pintou de outra cor, que nasceu, que trabalhou e vive nesta terra e que bendiz a Mãe, a santa Mãe, também negra, que a educou, ensinando-a a ter liberdade interior [...].” (Romão, 2021, p. 262).

Finalmente, o capítulo 7, “Antonieta ancestral: a continuidade do legado em Leonor”, discute a morte da professora, a comoção pública que a sucedeu e as homenagens recebidas. Leonor foi a herdeira da irmã, tanto no sentido de manutenção do Colégio Antonieta de Barros quanto na guarda de sua memória até sua morte, em 1973, quando caíram no esquecimento. Romão termina exortando: “Todavia, foi Antonieta - e, por extensão, Leonor - alçada ao reconhecimento que merecia? No contexto popular e das memórias pessoais, particulares, sabemos que sim, mas no contexto público, com certeza, ainda não [...].” (Romão, 2021, p. 277).

O livro contribui para o reconhecimento da importância de Antonieta. A pesquisa extensa e rigorosa, imagens, relatos de familiares e seus textos nos aproximam da mulher, negra, professora, intelectual e política cuja atualidade fica patente. Através dela, Jeruse Romão evidencia a aproximação negra com o universo letrado e reforça a heterogeneidade de experiências negras brasileiras. Antonieta enfrentou o racismo e o machismo e obteve respeito e reconhecimento. Este é um livro fundamental para estudantes e pesquisadores/as, assim como para qualquer pessoa interessada em história, educação, gênero e raça.

REFERÊNCIAS

ROMÃO, J. Antonieta de Barros: Professora, escritora, jornalista, primeira deputada catarinense e negra do Brasil. Florianópolis: Editora Cais, 2021. [ Links ]

Financiamento: O estudo não recebeu financiamento.

Recebido: 04 de Agosto de 2021; Aceito: 19 de Maio de 2022

Surya Aaronovich Pombo de Barros é doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professora da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). E-mail: surya.pombo@gmail.com

Conflitos de interesse: A autora declara que não possui nenhum interesse comercial ou associativo que represente conflito de interesses em relação ao manuscrito.

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons