INTRODUÇÃO
Diários podem ser encontrados em qualquer livraria e fazem parte de um gênero literário bem difundido. Podem ter diferentes propósitos vinculados à produção de conhecimentos, relacionados à pesquisa, à formação, à construção/elaboração de histórias, como também para registrar experiências vividas, sejam elas na escola, no trabalho, sejam elas na vida pessoal.
É no início do século XX que a prática do diário passa a ser um "instrumento" de registro de informações na/da pesquisa científica, embora sua existência como escritura de acontecimentos pelos sujeitos sociais seja anterior ao uso científico (El Hammouti, 2002; Hess, 2006; Oliveira, 2014).
O registro em diários é uma prática comum, a qual pode estar vinculada a diferentes campos de conhecimento e abordagens teórico-metodológicas, principalmente nas pesquisas qualitativas (Pezzato e L'Abbate, 2011). Encontramos, até mesmo, estudos com diários em pesquisas de perspectiva positivista, com utilização de medidas quantificáveis e no "formato multimétodo, que incluem medidas quantitativas e narrativas analisadas qualitativamente" (Zaccarelli e Godoy, 2010, p. 552).
O trabalho com diários, principalmente no contexto da pesquisa, carrega consigo forte vinculação à etnografia. Muitas vezes, se identifica com a denominação de "diário de campo", mesmo sem utilizar o seu referencial teórico-metodológico e, em outras, como apontaram Roese et al. (2006), nem sequer apresenta um referencial específico que o fundamenta epistemologicamente.
Philippe Lejeune (2015, p. 11-19), em quarenta anos de estudos dos gêneros autobiográfico e diários pessoais, na língua francesa, questiona: "será que um diário em si pode ter uma gênese?". Após explorar as implicações teóricas dessa questão, afirma ser seu objetivo primeiro o "acúmulo de rastros e o acompanhamento da vida do seu autor". E conclui que "o diário é um objeto de estudo ambíguo: essencialmente prática de escritura, às vezes e secundariamente, produção de obra. Cabe a nós articular da melhor forma possível todos os métodos de que dispomos".
Para René Lourau (2004, p. 276), outro estudioso desse gênero, a produção de diários é um exercício de escrita que possibilita explorar diferentes dimensões do vivido, colocando em cena a narrativa do "como se faz a pesquisa", em suas temporalidades e desvios. Torna-se um dispositivo de intervenção, produz efeitos que provocam desequilíbrios e desnaturalizam as práticas, assumindo a inexistência de neutralidade por seu autor.
Seguindo esse caminhar e compondo com a abordagem de pesquisaformação1 narrativa (auto)biográfica, a ideia de pensarmos um transbordamento para o sentido dado aos diários se potencializa em um atravessamento entre os movimentos de pesquisa e de formação. Uma "pesquisaformação outra que não abre mão da rigorosidade metódica, da consistência, mas que segue (re)inventando modos de vivernarrarpesquisarformar" (Bragança, 2018, p. 76). Uma concepção porosa aos múltiplos sentidos encontrados na "pesquisa (auto)biográfica", como abordado no ensaio de Pezzato, Bragança e Rosa (2023). Em entrevista, Remi Hess (2009, p. 63) inscreve o trabalho com diários em uma perspectiva biográfica, "há um continuum da escrita biográfica no qual se encontra a história de vida, o autobiográfico, o diário, a correspondência, a monografia de família. […] o diário se inscreve mais geralmente dentro de um movimento biográfico cujos instrumentos são múltiplos e complementares".
É nesta conexão de sentidos que realizamos uma revisão bibliográfica, como parte de uma pesquisa de pós-doutorado da primeira autora pelo Programa de Pós-Graduação em Processos Formativos e Desigualdades Sociais da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FFP/UERJ). O objetivo é historicizar e problematizar os modos como os diários vêm sendo trabalhados em pesquisas e processos formativos, especialmente em saúde e educação, bem como os campos de conhecimento e aportes teórico-metodológicos tomados como referência.
No delineamento do artigo, partilhamos os caminhos trilhados para a realização dessa revisão narrativa, trazendo lampejos da história com base na literatura estudada, ou seja, um sobrevoo sobre o modo como os artigos da revisão perspectivam os trabalhos com diários em pesquisa e em processos formativos, finalizando com indícios apreendidos e reflexões.
UMA REVISÃO NARRATIVA
Na literatura acadêmica, encontramos certa tendência ao cientificismo hegemônico que enquadra e tipifica qualquer atividade de pesquisa, classificando-a em função de ter ou não rigor científico, como se houvesse apenas uma racionalidade, uma ciência. Não pretendemos entrar nessa discussão, mas sim afirmar que seguimos outra perspectiva epistemológica. Consideramos a importância do rigor científico, entretanto não entendemos que possa ser concebido de forma única, mensurável e preestabelecida. As opções epistemopolíticas (Santos, 2011) que fazemos implicam, também, na compreensão do rigor. Aproximamo-nos, assim, da "rigorosidade metódica" em Freire (1996) e do "rigor flexível" em Ginzburg (1989).
A revisão narrativa realizada acompanhou o movimento produzido pela leitura dos textos, buscando identificar um estado da arte da literatura, deixando espaços abertos para interlocuções. O caminho seguido não foi aleatório, foi construído no movimento da pesquisa, assumindo possíveis "vieses de seleção e interferências subjetivas" (Cordeiro et al., 2007, p. 430) como parte do método de interpretação e compreensão dos achados, uma vez que entendemos não haver neutralidade do pesquisador no processo de pesquisar (Lourau, 1988; 2004; Barbier, 2002).
Definimos como base de dados para a busca o portal da Scientific Electronic Library Online (SciELO) e da Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)biográfica, por serem ambas fontes de excelência de estudos e pesquisas nos campos da educação e da saúde. Utilizamos, como descritores, as palavras "diário" e "diários", sem uma questão específica predeterminada. Não delimitamos um intervalo de tempo para a busca, o que possibilitou encontrar artigos publicados no período dos últimos 24 anos (1997–2021). Encontramos o total de 186 artigos. Iniciamos com uma leitura cuidadosa dos resumos, com o intuito de identificar os que possuíam aproximações com os objetivos desta revisão em uma abordagem qualitativa. Deles, selecionamos 86 artigos e demos sequência à leitura dos textos completos, deixando em aberto a possibilidade de outras interlocuções.
Selecionar trechos dos textos, pensar em núcleos de sentidos, focar na leitura e organizar o material para refletir e conversar com todos esses interlocutores e suas referências foi um processo intenso. Durante o processo de leitura, diálogos com outros autores nos convocaram à leitura de outros textos, criando uma "roda de conversa" entre eles e seus vínculos epistemopolíticos. Outros artigos, livros, capítulos de livro, teses e dissertações somaram-se às leituras e esse movimento contribuiu, consideravelmente, para a ampliação da nossa revisão e do nosso campo de estudo. Com isso, foram incluídos 15 artigos, compondo ao todo o total de 91.2
Os artigos lidos traziam histórias, reflexões, aprofundamentos teóricos que prendiam a nossa atenção e nos transportavam para outras narrativas, produzindo o desejo de querer saber mais sobre os diários e a escritura em diários, não apenas em processos formativos e de pesquisa, mas nos múltiplos territórios e campos do conhecimento em que o diário se encontra presente. Processo esse que ampliou ainda mais as inúmeras possibilidades do que "pode um diário". Em função desse movimento, produzimos fichamentos digitalizados que foram anexados/guardados em pastas para acesso posterior, permitindo realizar uma segunda seleção e identificar os textos mais relevantes e que contribuíam para os objetivos desta revisão; resultando em trabalharmos, no presente artigo, com 49 artigos, seis livros e oito capítulos. Não pretendemos esgotar as discussões contidas em todo esse material, mas sim compartilhar reflexões produzidas pela leitura e análise no que se refere aos propósitos aqui apresentados.
LAMPEJOS DA HISTÓRIA: PROCURANDO RASTROS DE HISTÓRIAS COM DIÁRIOS
Na bibliografia pesquisada, encontramos um conjunto de artigos que retomam a história dos diários, abordando os marcos considerados fundacionais e os desdobramentos em diversas formas de uso social, em pesquisa e formação.
Encontramos referência aos hypomnematas como um dos primeiros indícios de escrita em diários que se tem registrado, presente na Grécia Antiga. Uma caderneta na qual eram anotadas memórias do cotidiano para não serem esquecidas e que podia ser consultada posteriormente, lida e relida, servindo como guia ético (Domingues e Azevedo, 2019).
Por volta do século X, surgiram os diários, tanto na Europa (clero anglo-saxão) quanto no Japão (corte japonesa), ainda de forma muito restrita, apenas entre os membros das elites alfabetizados que possuíam acesso a papel e tinta. Com a expansão do uso da escrita e dos recursos técnicos, textos com depoimentos de caráter pessoal se ampliaram (Alaszewski, 2006 apudZaccarelli e Godoy, 2010, p. 551).
Desde os sécs. XVII e XVIII, diários, memórias e testemunhos constituíram-se como procedimentos comuns da escritura pessoal, "sem uma consciência do eu privado", nos moldes dos diários pessoais (Cunha, 2021, p. 255). Até o início do séc. XIX, os diários de viagens eram, em sua maioria, escritos por homens e serviram como fonte histórica da época da colonização, com a exploração do "Novo Mundo". Trouxeram descrição da flora, fauna, vida cotidiana, hábitos e saberes dos outros povos e sua cultura (El Hammouti, 2002; Pimenta, 2017; Cunha, 2021).
Ao longo das décadas de 1700, os diários de viagens nos mares do Atlântico Sul, escritos por geógrafos e cartógrafos, transformaram o discurso científico europeu no que se refere aos conhecimentos da geografia, da "Ciência Náutica do Setecentos" e dos registros históricos dessas viagens (Domingues, 2008).
Tal fora a transformação causada na era das navegações, como destacam Andrade e Almeida (2018), que o testemunho histórico contido no diário da viagem de Vasco da Gama às Índias foi considerado patrimônio "Memória do Mundo" pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO).
Seguindo outra forma de escrita, ainda no século XVIII, As confissões de Jean-Jacques Rousseau configuram-se como "marco do gênero autobiográfico" (Lejeune, 2014, p. 13-14). Para alguns autores, essa obra é considerada precursora do diário íntimo (Borges, 2002; Henrique, 2005; 2009; Cunha, 2018), assim como "o diário é sobrinho" dos Ensaios de Montaigne (Charbel, 2020, p. 118), escrito no século XVI. Na referida obra, o autor faz reflexões pessoais e subjetivas sobre diversos temas: a religião, o amor, a amizade, a educação, a liberdade, a guerra, entre outros, retratando o momento histórico vivido na Europa renascentista.
Na era romântica, por volta de 1800, surge uma infinidade de diários, cadernos de viagem, escritos autobiográficos e memórias publicados postumamente, bem como o journal intime, como era denominado o diário das jovens da elite francesa. Destaca-se, ainda, uma progressiva feminilização da escrita em diários íntimos (Lejeune, 1997; 2014; Gouvea, 2019; Cunha, 2021). Temos, com isso, um momento de intensificação da escrita, denominado por Lejeune (2014) de "febre autobiográfica". Para o sociólogo e demógrafo francês Alain Girard, foi nesse período que "o diário se tornou um novo gênero de escrita" (Borges, 2002, p. 115).
Ainda no século XIX, o diário passou a ser utilizado até mesmo por determinadas ciências e por certos pesquisadores, principalmente por ser esse um século fecundo para o surgimento de novas ciências (Oliveira, 2014).
O diário íntimo de Amiel é um exemplo clássico que traz as características dos diários do século XIX. Contém registros de 30 anos da vida cotidiana do seu autor, escrito em linguagem informal, em tom confessional, muito incomum para os filósofos daquela época (Henrique, 2005). Trata-se de "um diário íntimo de 16.000 páginas, que diz sobre todas as dimensões de sua vida" (Hess, 2009, p. 82).
Segundo Hess (2006, p. 89-90), o diário de pesquisa foi inaugurado em 1808 por Marc-Antoine Jullien, cujo "Ensaio sobre o método" tinha o objetivo de organizar o emprego do tempo como forma de ser feliz. Tal método propunha aos jovens escreverem três diários diferentes: um diário do corpo, um da alma e um intelectual, "como um tipo de formação total do ser". De certa forma, Jullien inaugurava o trabalho com diários, articulando pesquisa e processos formativos e relacionando-os às dimensões vitais do ser humano.
Gajanigo e Souza (2021, p. 52) ponderam que, "do século XIX em diante, tudo passará pelo escrito e a escritura estará na ordem do progresso, deixando a oralidade alhures presa nas tradições, como bem escreveu Walter Benjamim". Os autores chamam a atenção para o fato de a escrita da vida cotidiana, registrada em diários, despertar interesses como parte da produção social da época, influenciando, a partir de 1915, os sociólogos da primeira geração do departamento de sociologia da Universidade de Chicago3 a introduzirem a autobiografia como método de ensino. Fato que vai permitir "la elaboración de estudios que llevaron a la construcción de hipótesis, planteamientos teóricos y concepciones científicas en un amplio espectro" nas ciências sociais e humanas (Morales et al., 2021, p. 67).
O que consolidou a prática com diários no meio científico foi a publicação, em 1922, do livro Argonautas do pacífico ocidental,4 do antropólogo Bronislaw Malinowski. Marco considerado inaugural do método etnográfico, o diário de campo foi um dos seus instrumentos de pesquisa, junto com outros conceitos-chave — pesquisa de campo e observação participante —, os quais fundamentaram a elaboração dos "chamados métodos qualitativos de pesquisa nas ciências sociais" (El Hammouti, 2002, p. 11). O diário de campo foi o produto do registro das observações teóricas do seu autor durante o trabalho de campo realizado entre 1914 e 1918, nas Ilhas Trobriand (Pacífico Sul) (Malinowski, 1978).
Um diário íntimo também foi produzido por Malinowski, nesse período, no contexto dessa mesma pesquisa etnográfica. No entanto, foi mantido em segredo por mais de 40 anos pelo próprio autor. Publicado postumamente, revelou "a complexidade dos encontros etnográficos" (Firth, 1997, p. 35), até então pouco considerados. Ainda pouco conhecido e reconhecido no meio acadêmico, esse diário e sua publicação receberam muitas críticas por parte de estudiosos/pesquisadores (Geertz, 1997; Lourau, 1988; 2004; Henrique, 2005; Weber, 2009).
Uma análise foi feita por René Lourau (2004, p. 281) com base nesses dois diários de Malinowski e procurou mostrar a importância do "extratexto", do "canteiro de obra" da pesquisa, sugerindo um terceiro diário: "o diário do diário", denominado de diário de pesquisa e que, dito pelo autor, é um "novo intertexto dentro do extratexto […]".5 Foi publicada em 1988, no livro Le Journal de recherche: matériaux d'une théorie de l'implication,6 em que o autor estudou diários de outros pesquisadores das ciências humanas: Margareth Mead, Ludwig Wittgenstein, Sandor Ferenczi, Edgard Morin, Michel Leiris, Jeanne Favret-Saada, André Gide, entre outros. Para o autor, a escritura diarística "reintroduz a dimensão escondida da pesquisa: a temporalidade", muitas vezes recusada de análise, assim como a carga de subjetividade, comumente não explicitada no diário de campo (Lourau, 2004, p. 203).
Segundo Hess (1988, p. 10), a partir de 1985, "a técnica do diário tornou-se uma paixão" entre professores do Departamento de Ciências da Educação na Universidade de Paris 8. O autor aponta uma convergência das experiências francesas com o trabalho de diários na formação de professores, realizado pelo espanhol Miguel Zabalza (1994).
Em um número especial da revista Pratiques de Formation (n. 9), em 1989, foram publicados vários textos dos "pedagogos da escrita" de Paris 8, um dos quais tratou da técnica do "diário de itinerância", de René Barbier (2002, p. 130), como "instrumento de investigação sobre si mesmo em relação ao grupo", associado à pesquisa-ação existencial.
Zabalza (1994), por sua vez, destacou a importância da narrativa favorecida pelo diário nos movimentos de reconstrução da ação e dos sentidos a ela atribuídos pelos diaristas, evidenciando o foco dos diários na prática dos professores. Situou, até mesmo, o trabalho com diários "no contexto dos documentos pessoais e materiais autobiográficos". Um diário transversalmente vinculado à pesquisa e à formação. Na pesquisa, como "espaço narrativo dos pensamentos dos professores […], expressão da versão que o professor dá da sua própria actuação na aula e da perspectiva pessoal com que a encara". E, na formação, pela potencialidade reflexiva da escrita, "quer dizer, a narração constitui-se em reflexão" (Zabalza, 1994, p. 82-95).
Cunha (2021, p. 252) explica que foi "a partir da década de 1980, na clave das propostas da História Cultural", que esse tipo de fonte recebeu um novo olhar, que se convencionou denominar como "práticas culturais do sensível", fazendo com que os diários pessoais fossem considerados "documentos valiosos para a compreensão de vidas cotidianas".
Nessa mesma linha, de valorização das histórias "ordinárias", alguns anos depois, em 1992, Lejeune inaugurou a Association Pour l’Autobiographie et le Patrimoine Autobiographique (APA), buscando recolher e preservar textos não publicados, como autobiografias, diários e correspondência escritos por quaisquer pessoas que quisessem compartilhar seus registros relacionados à sua vida (Lejeune, 2014; Simonet-Tenant, 2017; Gajanigo and Souza, 2021).
Henrique (2005, p. 289) recupera os escritos de Gilberto Freyre, que, em 1933, já chamava a atenção para a necessidade de pesquisar sobre a "vida doméstica de nossos antepassados". E continua afirmando que foi a partir da escola dos Analles,7 quando os diários íntimos passaram a ser considerados fontes históricas, que pesquisadores brasileiros do campo das ciências sociais se dedicaram a analisá-los, embora eles ainda fossem restritos "às pessoas importantes da história do país, como D. Pedro II. […] Mas, também passam a valorizar o registro íntimo de pessoas comuns, cuja existência até então era desconhecida pelos brasileiros, como é o caso do diário da Viscondessa do Arcozelo". Vasconcelos (2020) tomou esse diário como objeto de estudo, assim como outros artigos resgataram diários de mulheres com diferentes posições sociais como fontes documentais, recuperando modos de vida, cotidianos e seus costumes, suas intimidades domésticas e escritas femininas de diferentes épocas (Lejeune, 1997; Borges, 2002; Henrique, 2005; Alves, 2012; Pimenta, 2017; Simonet-Tentant, 2017; Gouvea, 2019).
Mesmo com alguns movimentos que valorizam a escrita diarística, em consonância com as grandes mudanças sociais e culturais do século XX, tais práticas diminuíram, principalmente diante do surgimento da internet, fazendo com que migrassem para outros territórios como os blogs, YouTube e outras mídias — territórios abertos para a leitura sem restrições. "Deixando de ser um ato solitário, como no séc. XIX, mas sim como um ato para se dar a ver, beirando o exibicionismo". Instauram outros modos de escritas pessoais e de sociabilidades (Cunha, 2021, p. 258).
Registros do ordinário estiveram muito presentes durante o ano de 2020, em que vivemos a pandemia da COVID-19 (Charbel, 2020; Nascimento, 2020; Gajanigo and Souza, 2021).
Gajanigo e Souza, (2021, p. 40) relatam que, em consequência do movimento da APA na França, surge um manifesto produzido por arquivologistas e historiadores franceses divulgando "um chamado amplo: ‘Por uma memória ordinária do extraordinário’, no mês de abril de 2020". Os autores partem
da hipótese de que a forma do registro do cotidiano, como diário, relato e testemunho, tornou-se uma forma social privilegiada para organizar a experiência pandêmica. […]; e quando aparecem adjetivados, como o "diário da pandemia", servem de organizadores de uma experiência ordinária e extraordinária ao mesmo tempo. Ordinária por ser um diário, atento aos detalhes da rotina, e extraordinária pois é um diário qualificado como um tempo especial, um período específico retirado da condição de diário simplesmente. (p. 42)
Diante desta narrativa histórica dos diários, em seus diferentes momentos e movimentos, que deixaram rastros nas pesquisas e processos formativos, no que se produziu cientificamente a partir de então, a questão que se coloca para nós, nesta revisão narrativa, é: o que pode um diário?
DIÁRIOS NAS PESQUISAS: SEGUINDO RASTROS
Na literatura acadêmica, podemos encontrar uma variedade de maneiras de compreender e trabalhar com diários, fundamentada em diferentes campos do conhecimento e referenciais teórico-metodológicos. No estudo realizado, entretanto, identificamos que, em muitos trabalhos, a ausência de conceituação e de referenciais teórico-metodológicos específicos sobre diários também se fez presente.
De acordo com Oliveira (2014, p. 72), nos séculos XX e XXI, os diários estiveram/estão presentes em "diversos campos e aspectos de pesquisa que perpassam pela Psicologia, Serviço Social, História, Antropologia, Sociologia, Educação, entre outras". Além destes, em nossa revisão, constatamos outros campos de conhecimento, como pedagogia, análise institucional francesa, enfermagem, saúde coletiva, saúde bucal, teoria literária, administração e artes, com os mais variados desenhos teórico-metodológicos: etnografia/observação participante, pesquisa-intervenção, pesquisa narrativa, pesquisa (auto)biográfica, cartografia, pesquisa-ação, história oral, estudos pós-estruturalistas, história de vida/autobiografia, multirreferencialidade, pesquisa documental, pesquisa nos/dos/com os cotidianos e estudos de caso.
Apesar da presença frequente dos diários em trabalhos de pesquisa, é fato que, para alguns pesquisadores, ele "nada mais é do que um conjunto disseminado de notas heterogêneas" (Weber, 2009, p. 157). Cachado (2021, p. 557) refere-se a certa "insegurança que o diário de campo pode ainda provocar" no âmbito científico, principalmente quando a base documental da etnografia8 são somente registros em diário de campo. Isso leva muitas pesquisas a utilizar múltiplas fontes com a possibilidade de triangular métodos, com "entrevistas, bem como com outras técnicas quantitativas, tais como escalas e testes", permitindo complementar e validar a investigação (Zaccarelli e Godoy, 2010, p. 560). Outro ponto levantado por Cachado (2021, p. 558) foi a instabilidade conceitual do diário de campo, uma vez que ele é usado de diversas maneiras, não havendo um "modelo etnográfico" a ser seguido, e recebe uma variedade de denominações, sem uma unificação como ocorreu com a "prima entrevista", por exemplo (aberta, estruturada, semiestruturada); "enquanto o diário de campo se mantém como aquele que se conhece ao longe, todos sabem quem é, mas poucos interagem com ele de forma epistemológica".
Em referência à mesma constatação, Roese et al. (2006) realizaram uma revisão de literatura diante da necessidade sentida de encontrar na literatura referências bibliográficas relacionadas à construção e à utilização do diário de campo, tendo, como pano de fundo, sua vinculação à pesquisa etnográfica.
Não ter um referencial teórico que fundamente o modo como o diário foi abordado deixa rastros que nos dão algumas pistas. Uma delas é o fato de não haver um referencial conceitual específico para fundamentar o trabalho com diário. É como se houvesse apenas um modo de trabalhar com ele e esse modo estivesse dado na antropologia; "ou seja, apesar de o diário de campo ser referido e de haver reflexões teórico-metodológicas sobre sua utilização, ele é por vezes tomado como dado adquirido pelos praticantes de etnografia, omitindo-se a sua elaboração […]", mesmo pelos não antropólogos (Cachado, 2021, p. 555). Carneiro e Fleischer, (2020, p. 10) apontam questionamentos relevantes sobre o "fazer diário de campo" na tentativa de desmistificá-lo, uma vez que
pouco lemos diários alheios, pouco os tomamos como uma peça também construída socialmente. Há poucos diários de campo publicados e poucas são as antropólogas dispostas a compartilhar seus diários de campo como uma publicação oficial. […] Há um entendimento na área de que, natural ou espontaneamente, a antropóloga saberá como produzir seu diário de campo, quando o momento assim demandar.
Outra pista seria que, por se tratar de um trabalho considerado prático, fazer registros em diário "é possível para qualquer pessoa leiga que esteja sensibilizada e conscientizada das relações sociais vivenciadas e que de certa forma seja iniciada a técnica" (El Hammouti, 2002, p. 14), carregando consigo ocupar territórios não acadêmicos, portanto, de fora, o que não justificaria um corpus teórico do como e nem do porquê. Como afirma Lejeune, (2015, p. 12), "o diário, no entanto, é primeiramente uma prática, […] uma série de vestígios datados", escrito em primeira pessoa". Dos artigos selecionados para esta revisão, oito não possuem uma referência conceitual específica sobre diário (Domingues, 2008; Alves, 2012; Queiroz et al., 2013; Ferreira and Marques-Schafer, 2016; Jinzenji, Luz e Campos, 2017; Pimenta, 2017; Charbel, 2020; Pereira et al., 2020).
Uma terceira pista seria a de que, quando o autor do estudo é antropólogo, o diário de campo "é supostamente entendido como parte da norma nas pesquisas que envolvem etnografia" e, portanto, não há necessidade de explicitar uma referência específica de diário, pois a antropologia possui "o monopólio do uso do diário de campo como recurso central em suas coletas empíricas", mesmo reconhecendo que outras ciências sociais também utilizam esse recurso (Cachado, 2021, p. 551).
Nos textos estudados, filiados a outros campos de conhecimento, encontramos uma variedade de denominações para o diário: íntimo, pessoal, de viagem, de bordo, de pesquisa, de itinerância, de aula, de formação, escolar, de classe, de momentos, institucional, reflexivo, invertido, coletivo, da pandemia, cartográfico, afetivo, de leitura, virtual e fotográfico. O que será que muda quando adjetivamos um diário? O adjetivo por si só define sua vinculação teórico-metodológica? Ao trocar a denominação diário de campo por diário de pesquisa, por exemplo, estamos definindo um referencial teórico-metodológico? Ou o adjetivo está relacionado com os seus muitos modos de inserção em uma pesquisa?
Seguindo os rastros dos trabalhos com diários em pesquisa nos campos da saúde e da educação, os diários ocupam variadas funções: instrumento de coleta de dados, técnica de pesquisa, ferramenta metodológica, dispositivo de pesquisa, fonte documental, reflexão da prática, escrita de si, registro da experiência, acompanhamento do processo, produção de dados, registro da observação, narrativa do pesquisador, registro de processo criativo, espaço narrativo do pensamento, ferramenta pedagógica, estratégia de produção de dados, registro de memória, registro fotográfico, técnica metodológica.
Nóvoa (1992), ao sistematizar os estudos de abordagem (auto)biográfica, identifica três grandes grupos quanto aos objetivos, a saber, os que apresentam: objetivos essencialmente teóricos, relacionados com a investigação; objetivos essencialmente práticos, relacionados com a formação e, ainda, os que enfocam objetivos, essencialmente emancipatórios, em uma abordagem de investigação-formação.
Nos artigos vinculados à educação, encontramos muitos trabalhos com diários articulados a estudos teóricos e que tomam os diários como possibilidade de pesquisa. Nesse âmbito, estão presentes pesquisas em trabalhos de história da educação, em que os diários constituem fontes documentais. São exemplos a pesquisa realizada por Cunha (2018), a qual tematiza os diários, no conjunto de outros escritos (auto)biográficos, como documentos de memória produzidos por imigrantes, e a de Jinzenji, Luz e Campos (2017) para um estudo no âmbito da formação de professoras nas escolas rurais em Minas Gerais.
Do mesmo modo, encontramos um conjunto significativo de artigos que apresentam pesquisas sobre a prática docente e a formação, tendo o diário como opção metodológica. Zibetti (2004) apresenta o diário como dispositivo da prática pedagógica de uma professora de alfabetização iniciante, com o objetivo de discutir a angústia docente da perspectiva freudiana. Com foco dirigido à reflexão sobre a prática do professor, Freire e Fernandez (2015) socializam pesquisa sobre as docências supervisionadas, com base no diário de aula escrito por estagiários de um curso de licenciatura em química. Também no contexto de estágio supervisionado, Pereira et al. (2020) analisam escritos em disciplinas de introdução à prática e estágio em um curso de licenciatura em história. A estratégia desenvolvida consiste na produção de planejamentos e de diários dos licenciandos, tomados como fonte de pesquisa. Garofalo e Miño (2021) abordam as contribuições dos diários para a autoavaliação e avaliação colaborativas na produção de novas formas didáticas para as aulas de biologia da Universidade de Buenos Aires.
No que se refere à pesquisa no campo da saúde, com relação aos objetivos essencialmente práticos (Nóvoa, 1992), o diário de campo, em Silva et al. (2020), foi instrumento de registro das visitas, fundamentado nos pressupostos da etnografia. Para Kroef, Gavillon e Ramm (2020), o diário de campo foi uma ferramenta metodológica para registrar e analisar a experiência do pesquisador e dos participantes, incluindo o registro de conversas realizadas fora do trabalho de campo da pesquisa. Araújo et al. (2013) incluem, além do diário de campo, um diário de pesquisa como tecnologia de pesquisa qualitativa em saúde e não o restringem às anotações da observação e entrevistas. No entanto, os autores não apresentam fundamentação teórica para tal proposta. Em um movimento de provocar deslocamentos no modo mais tradicional de trabalhar com diários, introduzindo elementos teóricos e emancipatórios, Carneiro e Fleischer (2020) trabalharam com a ideia de um diário de campo compartilhado para fazer circular as "informações coletadas" com o restante do grupo, refletindo sobre autoria e ética no trabalho com diários. Oliveira et al. (2013) propõem um diário reflexivo numa residência multiprofissional em saúde, apontando para aproximações com o diário de campo do etnógrafo e os portfólios reflexivos. Os autores descrevem um trabalho de "tipo" etnográfico, demarcando uma preocupação em não distorcer as características originais do diário de campo. Domingues e Azevedo (2019, p. 24) incorporaram ao diário de campo o conceito de dispositivo e defendem que um diário, por conter uma escrita íntima e pessoal, "deve seguir o fluxo do pensamento", sem protocolos.
Somando-se aos objetivos emancipatórios (Nóvoa, 1992), encontramos artigos que trazem diversas tipologias de diários, no sentido de desconectá-los do registro das atividades de campo da investigação e ligá-los a um percurso, fundamentando-os teoricamente em diferentes referenciais. Pezzato e L’Abbate (2011, p. 1297) trabalham com três diários em uma mesma investigação: diário de pesquisa, diário institucional e diário de momentos, possibilitando "aos diaristas uma reflexão acerca da própria prática, desnaturalizando-a". Felix-Silva, Oliveira e Bezerra (2020, p. 307) trabalham com o diário cartográfico como estratégia de produção de dados para "registros de relatos e escrita de si". Pezzato, L’Abbate e Botazzo (2019, p. 307) trazem o diário de pesquisa como um dispositivo de intervenção em uma pesquisa multicêntrica que cumpriu "dupla função: a de ser uma escrita de si e a de propiciar a reflexão acerca do trabalho realizado e do seu conteúdo pedagógico". Borges e Silva (2019, p. 2) fazem um relato de experiência de como o diário de pesquisa foi um "potente instrumento para o acompanhamento do aprendizado e de análise de implicação do estudante/pesquisador’ durante o doutorado.
Esses rastros que testemunharam os trabalhos apresentados, com diários em pesquisa nos campos da saúde e da educação, nos remetem à afirmação de Pezzato, L’Abbate e Botazzo (2019, p. 301): "o uso de diários transcende à pesquisa e, antes, foi e continua sendo largamente utilizado no cotidiano da vida de muitas pessoas, tornando-se, muitas vezes, um estilo de ser".
DIÁRIOS NOS PROCESSOS FORMATIVOS EM SAÚDE E EDUCAÇÃO: SEGUINDO OUTROS RASTROS
Ao retomarmos a sistematização realizada por Nóvoa (1992), identificamos que os objetivos práticos no trabalho com diários, diretamente relacionados à formação, se destacaram tanto na área da saúde quanto na da educação. Todavia, alguns trouxeram elementos emancipatórios em uma perspectiva de investigação-formação.
Em cursos da área da saúde e na formação de professores, os diários marcam uma presença significativa, especialmente em disciplinas que envolvem o trabalho de campo e estágios supervisionados. Nesse sentido, por um lado, os artigos partilham experiências vividas nesses campos de trabalho e, por outro, contribuem com a produção do conhecimento científico em educação, bem como para com uma epistemologia de formação centrada na partilha de narrativas pedagógicas e (auto)biográficas, por meio dos diários.
No contexto de formação em saúde, encontramos artigos que relatam a experiência com diários em atividades de estágios e em outros cenários de prática, registrando um dos momentos do processo formativo, com a denominação "diário de campo". Guzzo et al. (2019, p. 5-6) apontam "a importância da escrita sensível na elaboração das experiências vividas e as possibilidades que esta assume na formação […] de profissionais de saúde, sendo "imprescindível para a articulação teórico-prática". Em Soares et al. (2011) e Queiroz et al. (2013), o diário de campo possibilitou o registro da vivência durante o estágio supervisionado.
Com propostas singulares no modo de trabalhar com diários, Oliveira et al. (2013) propõem um diário reflexivo em um curso de residência em saúde da família, unindo o diário de campo (etnografia) ao portfólio reflexivo (educação) direcionado para o registro do processo. Federici et al. (2021, p. 12), em uma proposta experimental, propõem um diário de campo invertido, em que os docentes registram suas experiências, que eram lidas pelos estudantes, possibilitando "que o formato diário de campo pudesse ser ressignificado e revitalizado". Flores e Souza (2014) trabalharam com um diário cartográfico digitalizado e enviado por e-mail ao professor, sem muitas regras preestabelecidas, que foi parte da avaliação da disciplina e com a finalidade de acompanhar o percurso formativo.
Nos cursos de formação de professores, os objetivos emancipatórios (Nóvoa, 1992) predominaram. Encontramos as mais diversas denominações para referenciar e adjetivar os diários, o que indica a abertura e inventividade presentes nas práticas de pesquisa e formação ancoradas nas abordagens narrativas e (auto)biográficas. É interessante, contudo, que a denominação diário de campo também marque a sua preponderância, sinalizando a força das contribuições da etnografia, bem como a expressão "diário de aula", baseada nas contribuições teórico-metodológicas de Zabalza (1994).
Observamos a significativa presença do trabalho com diários nos estágios das licenciaturas. Souza et al. (2012, p. 187) sublinham "as potencialidades formativas da escrita de diários", com destaque para a possibilidade de acompanhamento com feedback dos professores e as reflexões disparadas pelo compartilhamento entre os estudantes. O artigo de Charréu e Oliveira (2015, p. 424) compartilha a experiência no processo formativo de professores de artes visuais, no Brasil e em Portugal, destacando as potencialidades do diário de aula em movimentos de investigação e reflexão sobre a prática e como testemunho biográfico da experiência docente, bem como a possibilidade de partilha semanal, proporcionada pelos momentos de socialização das experiências vividas nas escolas. Esses autores indicam uma abertura na produção dos diários, reafirmando que "não há um modelo […], cada estudante/professor, em formação, irá fazer suas escolhas por uma determinada linguagem, irá utilizar-se mais ou menos da tecnologia, irá valer-se mais ou menos das imagens, enfim, tudo dependerá do seu percurso formativo".
Em outro artigo da licenciatura em artes visuais, Cardonetti e Oliveira (2019, p. 3-11) afirmam a opção "por esse método por acreditar que o diário poderia ser um espaço narrativo dos pensamentos, expressando textual e/ou visualmente as impressões […], tanto no trabalho realizado na escola como nos encontros de estudo na universidade". O diário foi produzido pelos estudantes, em versões textuais e/ou visuais, como "cartas, postais, performances, colchas de retalhos, cartazes, vídeos, histórias em quadrinhos, slides de PowerPoint, radiografias, toalhas para mesa e álbuns", apontando para a abertura e a (re)invenção presentes nos caminhos narrativos e (auto)biográficos de formação. O artigo de Baldi (2018, p. 712) apresenta uma experiência de trabalho na licenciatura em dança como "processos formativos de futuros(as) artistasdocentes", em que os diários de bordo acompanharam a dança como registros dos processos criativos, em contextos de montagem de espetáculos, favorecendo a narrativa de "histórias de vida e suas relações com a dança, a arte e o movimento".
No curso de pedagogia, Bampi e Araújo (2020, p. 1424) perspectivaram o diário de campo como dispositivo na formação docente, com o objetivo de que os estudantes pudessem tomar "o lugar de sujeito da experiência, se debruçassem sobre o próprio vivido, narrando oralmente ou a partir dos registros no diário de campo, no, com e para o grupo". El Hammouti (2002, p. 18) usa o diário com alunos de pedagogia, com a finalidade de incentivar a reflexão da própria prática, denominando-o de diário etnográfico profano, por considerar que "qualquer ator social como etnógrafo ordinário pode praticar os diários etnográficos nos seus diferentes sentidos descritos aqui, quebrando a barreira frequentemente feita entre o intelectual profissional e o praticante ‘profano’ (docente, trabalhador e estudante etc.)". Castro (2012) apresenta o uso dos diários como apoio às reflexões temáticas relativas a gênero e sexualidade, em uma disciplina eletiva de um curso de pedagogia, valorizando problematizações sobre a formação tanto identitária como profissional, em que as escritas de si são compreendidas como práticas de experimentação de si, favorecendo os processos de subjetivação em diálogo com as perspectivas foucaultianas.
Andrade e Almeida (2018, p. 99) apresentam uma revisão de literatura, relacionando a prática reflexiva ao trabalho com diários, de forma a indicar a sua potencialidade no desenvolvimento pessoal e profissional docente. Com base no estudo, tais autores listaram um conjunto de contribuições relativo a esse gênero, do qual destacamos que os diários: "auxiliam na interação do professor-pesquisador e professor-aluno, professor-professor"; "desenvolvem a criticidade"; "registram o desenvolvimento de professores em formação inicial ou continuada"; "estimulam a reflexão e autoanálise"; e "facilitam a identificação dos problemas didáticos e incentivam a autonomia docente".
Na perspectiva de um trabalho de formação com diários, como estratégia de ensino, Ferreira e Marques-Schäfer (2016) partilham a experiência no ensino de alemão, tendo como foco, especialmente, a contribuição para com os processos de documentação e autorregulação da aprendizagem, estimulando a reflexão, a tomada de consciência sobre valores e teorias implícitas e, também, como instrumento avaliativo.
Dias (2016), no contexto de um grupo de estudos, apresenta fragmentos do seu diário de pesquisa (Lourau, 2004) para abordar outras formas de escrita acadêmica, em que o diário traz o registro do processo de pesquisar e o texto a ser restituído. "O registro do trabalho de investigação ganha, desta forma, função de dispositivo, não propriamente para concluir o trabalho ou apresentar seus resultados finais, mas como disparador de desdobramentos da pesquisa".
O sobrevoo sobre os textos, com destaque para alguns deles, buscando-se, inicialmente, identificar os mais diretamente centrados na investigação, no presente item, na formação, leva-nos a problematizar a fronteira entre essas dimensões existentes nos artigos revisados. De diversas formas, os estudos que tomam os diários como possibilidade de produção de fontes, ao favorecerem a escrita ou ao retomarem diários já produzidos como fonte documental, mobilizam processos reflexivos e potencialmente formadores para quem pesquisa e/ou para os que são convidados a escrever. É pertinente observar que os trabalhos com objetivos práticos, centrados na formação, como os que foram destacados anteriormente, ao mobilizarem a escrita e a reflexão partilhada, produzem também pesquisa em educação. Caminhamos, dessa forma, com a escrita diarística para uma indissociabilidade entre pesquisar e formar, perspectivando a produção de conhecimentos em educação e em saúde, implicados com a vida e sua permanente (trans)formação, indicando a transversalidade entre pesquisaformação nas escritas narrativas (auto)biográficas, nos diários, em seus diversos modos de experimentação.
Traçando um paralelo com a permeabilidade dos diários nos diferentes espaços em que transitaram e continuam transitando, "o percurso da biografia — de aproximadamente dois milênios, numa perspectiva ampla — oscilou entre as formas de conhecimento ou arte, ou seja, entre a ‘ciência’ e a ‘arte’, ou entre a história e a literatura" (Borges, 2002, p. 117).
CONSIDERAÇÕES FINAIS: COMPONDO COM OS RASTROS
[…] cada um inventa seu próprio caminho nesse gênero do qual existem talvez modelos, mas nenhuma regra. (Lejeune, 2014, p. 299).
Iniciamos nossa revisão sem imaginar o tamanho do território que estávamos prestes a conhecer. A revisão narrativa possibilitou essa aventura, procurando, seguindo e compondo com os rastros narrativos encontrados, a qual nos permitiu historicizar e problematizar o trabalho com diários em pesquisa e processos formativos, especialmente nos campos da saúde e da educação.
Partimos das origens da prática de diários na Grécia antiga e vimos, com os estudos de Lejeune (1997; 2014; 2015), que foi no século XIX com o diário íntimo, o seu apogeu. Posição demarcada, da mesma forma, nos artigos selecionados do campo da história, da teoria literária e das artes. Outro movimento sentido referiu-se às interlocuções transdisciplinares propostas por Lourau (1988; 2004) no diário de pesquisa ("diário do diário") e com o registro do processo vivido e refletido com o diário de aula proposto por Zabalza (1994), o que possibilitou dar outros contornos e deslocamentos para o trabalho com diários e a escritura diarística, outrora "preso", com o rótulo de caderno de notas da observação participante. Assim, como legitimar aportes teórico-metodológicos consistentes para a produção de um diário que não seja somente "de campo"? Ademais, assumindo que em todo diário há um movimento de um eu que, ao expressar-se por meio de múltiplas linguagens, constitui-se em um personagem de si mesmo, construindo na perspectiva arquitetônica bakhtiniana, um eu-para-si (Bakhtin, 2003), o autor do diário pode adjetivá-lo como quiser e o inserir na produção, seja na formação, seja na pesquisa ou ainda na pesquisaformação.
Seguindo esse caminhar, os diários seguem juntos e podem ocupar territórios de escritura abertos para a criação e a invenção de si e do outro. Transitam por diferentes referenciais, com diversas denominações e, até mesmo, reinventam-se em uma perspectiva polissêmica e flexível, provocando deslocamentos do que se tem instituído para um diário nos espaços acadêmicos e, até mesmo, fora dele.
Nesse conjunto de artigos diversos, alguns explicitaram que o trabalho com diários na pesquisa está (inter)conectado, de algum modo, com processos formativos, com a escrita de si, deixando rastros e dando pistas de deslocamentos possíveis nesses territórios, tendo uma multiplicidade de denominações. Sendo assim, o diário afirma-se como possibilidade de produção de fontes narrativas para a pesquisa em muitas áreas do conhecimento e da cultura, particularmente em educação e em saúde.
No campo da saúde, encontramos uma predominância do diário vinculado ao trabalho de campo, com a denominação de diário de campo. Talvez essa perspectiva seja tributária de uma "herança" da forte marca etnográfica exercida pelas ciências sociais e humanas no campo das pesquisas qualitativas em saúde. O que a revisão narrativa possibilitou foi a compreensão de que, mesmo na área da saúde, referenciais teórico-metodológicos advindos de outros campos do conhecimento provocaram deslocamentos não só em sua funcionalidade, mas também em sua escrita implicada, seja na pesquisa em saúde, seja na formação de profissionais ligados à saúde, como na enfermagem, fonoaudiologia, serviço social, odontologia, psicologia, residência multiprofissional em saúde da família, que estiveram presentes nesta revisão.
No campo da educação, especificamente na formação de professores, o trabalho com diários pode constituir-se como potente dispositivo, visto o caráter formativo da escrita de si, como possibilidade de experimentação e experiência de si. Favorece a partilha e problematização de aspectos da formação de cada um em um contexto coletivo, com ampla sustentação teórico-metodológica, não só da educação, como também de áreas afins e mesmo das artes, desprendendo-se das disciplinas de caráter profissional, como estágios e práticas de ensino. Com isso, esse dispositivo poderá subsidiar reflexões, seja na formação, seja na pesquisa, como uma poderosa fonte narrativa disponível para compreensões e interpretações singulares e plurais, individuais e coletivas. Colabora-se, assim, para a construção de uma ideia de educação que está intimamente associada e relacionada ao político, ao cultural e ao social.
Considerando o que diz Lejeune (2014, p. 299) sobre ser o diário uma modalidade de escrita que possibilita compor rastros, fragmentos soltos da memória de seu autor, em um espaçotempo vivido e inspirado na plasticidade de formas, tons, sentidos e conteúdos, encontrado no conjunto de textos desta revisão, propomos uma "abertura" do diário. Um diário que se abre para territórios de criação nos processos formativos e de pesquisa, de pesquisaformação, sendo reconhecido como um dispositivo potente, com um corpo teórico-metodológico denso, que pode sustentar diversos modos de trabalho, em diferentes perspectivas teóricas e diferentes enfoques metodológicos.
É diante dessa perspectiva que entendemos o trabalho com diários, seja na pesquisa, na formação, seja em outros territórios, compreendidos de modo aberto para possibilitar outros formatos, inventivos, criativos, personalizados, em que a linguagem verbal não seja a única a constituí-lo. Muito do que pode vir a ser um diário vai depender dos sentidos e finalidades que o diarista propõe em sua produção. Compondo com os rastros seguidos nas escrituras de Lejeune, destacado na epígrafe destas considerações finais, cabe, então, ao diarista definir o que o diário é ou será.
É isso, e talvez mais, o que pode um diário…