APRESENTAÇÃO
Em outubro de 2019, Patricia Hill Collins esteve no Brasil para participar da 39ª Reunião Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) a convite de vários grupos de trabalho (GT).1 Nesse mesmo período, também participou de um conjunto de eventos, entre São Paulo e Rio de Janeiro, a partir de uma articulação que envolveu diferentes universidades, centros de pesquisa, organizações não governamentais e movimentos sociais.
Desde o momento em que foi convidada para estar na ANPEd, Patricia valorizou a possibilidade de participar de um encontro envolvendo pesquisadores e pesquisadoras, bem como docentes da área da Educação. Embora não fosse sua primeira participação em eventos no Brasil, era a primeira vez que estaria em um encontro nacional no campo da educação, possibilitando-lhe recuperar tanto parte de sua trajetória acadêmica e profissional na área, quanto os interesses de algumas de suas pesquisas mais recentes em torno da temática da educação e da juventude negra. Seu entusiasmo com o convite também advinha do fato de que ela se reconhece como uma professora, antes de tudo, como destaca já no início de sua entrevista.
Patricia Hill Collins é professora emérita do Departamento de Sociologia da Universidade de Maryland desde 2005, dedicando-se aos estudos de raça, pensamento feminista e teoria social crítica. Nascida em 1º de maio de 1948 na Filadélfia, sempre estudou em escolas públicas onde viveu experiências de silenciamento e invisibilização que marcaram sua trajetória e escolhas profissionais e acadêmicas. Em 1965, deixou a Filadélfia para cursar Sociologia na Universidade de Brandeis, em Massachusetts. Ainda estudante universitária, realizou vários trabalhos em escolas da comunidade negra de Boston, desenvolvendo modelos educacionais que partiam da realidade de estudantes negros e negras. Sua experiência no campo da educação contribuiu para que realizasse seu mestrado em ensino de educação em Ciências Sociais, na Universidade de Harvard, tendo, nesse período, lecionado e participado da construção de currículos em várias escolas. Em 1976, atuou como diretora do Centro Africano-Americano na Universidade de Tufts, em Medford. Em 1980, iniciou seu doutorado em Sociologia na Universidade de Brandeis, onde concluiu sua graduação. Ainda no doutorado, ingressou como professora no Departamento de Estudos Afro-Americanos da Universidade de Cincinatti, onde permaneceu por 23 anos. Foi a primeira mulher negra a ocupar a presidência da Associação Americana de Sociologia, em 2009.
Patricia Hill Collins é internacionalmente reconhecida por suas contribuições para o pensamento feminista negro e para a interseccionalidade como teoria social crítica como metodologia de investigação e como modo de resistência. Como reconhece nesta entrevista, em uma carreira focada em ensinar e aprender com jovens negros e negras, a interseccionalidade foi o caminho.
Na 39ª Reunião da ANPEd, Patricia participou da mesa redonda “Interseccionalidade e Educação: desafios teóricos e metodológicos”, ao lado de Helena Hirata e Marilia Pinto de Carvalho, e ministrou o minicurso: “Não apenas ideias: interseccionalidade e pesquisa em educação”.
A presença e a importância da educação e da juventude negra nas experiências e nas elaborações teóricas e metodológicas, temáticas centrais em suas atividades na ANPEd, são exploradas nessa entrevista concedida a nós por Patricia. Inspiradas pelas análises e provocações da intelectual e por nossas próprias inquietações, construímos conjuntamente as perguntas. Embora a ideia inicial fosse realizar a conversa durante a reunião da ANPEd, o conjunto de atividades que já vinha sendo realizado por Patricia naquele momento fez com que encaminhássemos as questões para serem respondidas posteriormente por e-mail, respeitando-se o tempo necessário para a sua realização.
A pandemia do novo coronavírus atravessou o processo de construção e de preparação desta entrevista para esta publicação. A despeito do longo intervalo entre a participação de Patricia Hill Collins na ANPEd e sua publicação, as questões aqui contempladas permanecem centrais e ganham ainda mais relevância em um contexto de significativos retrocessos, perdas e negação de direitos para a população negra e em especial para a juventude negra. Sua solidez teórica, sua imaginação sociológica e política e sua abertura para o diálogo e para a construção de propostas para o campo da educação, que marcaram sua presença na ANPEd, estão presentes nesta entrevista.
QUESTÕES
Comecemos por apresentar você a um público no Brasil, particularmente, do campo da educação. Gostaríamos de começar perguntando: quem é Patricia Hill Collins?
Eu sou, antes de mais nada, uma professora. Minhas percepções sobre ensino e pedagogia moldaram não somente minha carreira na educação, mas muitos aspectos da minha vida adulta. Eu procuro imaginar meus leitores enquanto escrevo, então, minhas publicações também são projetos pedagógicos elaborados para diferentes públicos. Eu me pergunto: “O que estou ensinando aqui, e por quê? É esta a melhor maneira de dizer o que estou tentando dizer a esses leitores especificamente?”. Essas são as mesmas perguntas que os bons professores e professoras fazem sobre suas relações com estudantes. Nesse sentido, a pedagogia é um empreendimento mais amplo que reflete a relação entre ensino e aprendizagem. Trata-se de um diálogo entre docentes e estudantes que aprendem uns com os outros. Minha visão de ensino e aprendizagem influenciou não apenas a forma como escrevo, mas também o que escolho publicar, as palestras que dou a diversos públicos, os trabalhos que tenho procurado e como os realizei. Em outras palavras, minha filosofia de educação tem sido central na minha biografia, uma filosofia em que as interconexões entre ensino e aprendizagem moldaram meu ativismo intelectual.
Eu vejo uma distinção entre educação emancipatória e educação crítica. A educação emancipatória tem um compromisso com uma visão mais ampla da mudança social que é informada por princípios éticos como liberdade, justiça social ou democracia participativa. A educação crítica responde ao que é - ela critica as desigualdades sociais, aponta os problemas sociais, propõe soluções e prepara populações para serem solucionadoras de problemas. Porque visa mudar as realidades atuais, ela ajuda as pessoas a lidar com os problemas sociais com os quais elas se confrontam. A educação emancipatória imagina o que é possível além do aqui e agora, e a educação crítica fomenta as habilidades de pensamento crítico que nos levam até lá.2
Quando retomo minha trajetória de vida, consigo perceber como minhas experiências como estudante e como professora contribuíram para minha filosofia de educação. Durante meus 12 anos frequentando as escolas públicas da Filadélfia, eu tinha poucas opções para desafiar e muito menos para mudar as estruturas disciplinares ao meu redor. Para obter meu diploma do ensino médio, eu tive que fazer o que os professores me diziam para fazer. Mas eu não precisava acreditar no que eles me diziam ser verdade. Eu me formei na Philadelphia High School for Girls (Escola de Ensino Médio da Filadélfia para Meninas), uma escola pública fundada em 1848 com a missão de educar meninas. Para meu espanto, mesmo considerando a diminuição de verbas das escolas públicas nos Estados Unidos, essa escola existe até hoje, agora recebendo estudantes negros/as, latinos/as e meninas. Até hoje sou grata pelas competências de alfabetização, matemática e ciências que adquiri no ensino médio. Mas também me entristece o custo que paguei por tantos anos sentada silenciosamente nas salas de aula, reprimindo minhas ideias. É aqui que me afasto de Audre Lorde, que aconselha: “seu silêncio não te protegerá”. Meu silêncio no ensino médio de fato me protegeu, mas não me quebrou. Eu consegui meu diploma.
Minha escolaridade formal foi projetada para me ajudar a me assimilar em um lugar respeitável em um sistema que fundamentalmente não estava familiarizado com estudantes como eu. Eu não via nada de errado em ser uma garota negra de uma família da classe trabalhadora, mas não era assim que as escolas e os professores me viam. Eles me ofereceram um lugar pronto na sociedade norte-americana, no qual meninas e mulheres negras eram adequadas somente para servir aos outros por meio de trabalho doméstico mal remunerado, trabalho sexual ou, se tivessem sorte, trabalhos em fábricas ou de secretariado de nível inferior. Aos meus professores faltava visão sobre meus sonhos e minhas possibilidades. Eles me ofereceram a fórmula de me tornar os tipos de professores que eles eram, trabalhando dentro de uma profissão respeitável na qual eu poderia replicar sua visão de assimilação para a juventude negra. Eu vi o que aconteceu com as meninas negras que foram consideradas muito ousadas, arrogantes ou independentes, ou que criticaram essa narrativa dominante. Essas garotas não se formaram. Minha família, comunidade e igreja me apresentaram uma visão diferente. Quando cheguei ao meu colégio público de elite, estava claro, para mim, que muito dependia do meu sucesso na escola. Eu era uma das duas únicas garotas negras do meu bairro inteiro que passaram no exame de admissão à minha escola. Meu colégio era praticamente todo branco, e eles sabiam que eu estava indo para uma batalha. Membros de minha família, vizinhança e igreja foram os que me encorajaram a mirar tão alto quanto quisesse e a sonhar com possibilidades que nem eles, nem eu, poderíamos imaginar. Eles forneceram uma análise alternativa da minha relação com a educação que ia além das minhas preocupações individuais. Eles enfatizaram a importância da educação não apenas para certificação, mas também para criar possibilidades que não estavam disponíveis para aqueles que tinham vindo antes de mim. Eles não me enviaram à escola para me tornar uma servidora melhor - eles esperavam mais.
Ao olhar para trás na minha carreira, posso ver como procurei experiências que me ajudaram a dar sentido às minhas experiências educacionais formais e informais. Quando me inscrevi na faculdade, eu aspirava a ser professora, em parte porque essa era a principal ocupação aberta às mulheres educadas, e em parte porque o movimento dos direitos civis estava fundamentado no significado da educação para as lutas antirracistas. Durante os meus anos de graduação, recebi uma excelente educação de artes liberais na Universidade Brandeis, que aguçou as minhas capacidades de pensamento crítico em torno de questões que me importavam. As pessoas negras dos bairros da classe trabalhadora não estavam presas a empregos sem saída e de baixa remuneração por falta de talento ou por falta de motivação, ou por inclinação criminosa. Há outras explicações para essa situação. Meu silêncio do ensino médio foi eclipsado pela minha crescente voz sobre questões sociais na universidade. Eu me formei em Sociologia porque oferecia uma análise estrutural de raça e racismo, bem como um foco nos movimentos sociais. O conteúdo da Sociologia era oportuno, mas a liberdade intelectual que vivenciei na Brandeis, em um Departamento de Sociologia não tradicional, foi inestimável. Para meu trabalho de conclusão de curso, escrevi um artigo sobre “Controle Comunitário das Escolas Negras”, no qual investiguei minhas próprias questões e desenvolvi meus próprios argumentos. Por meio desse projeto, aprendi que, quando trabalhamos em algo pelo qual somos apaixonados, você não sente isso como trabalho. A minha dissertação tinha quase cem páginas - eu não fazia ideia de que tinha tantas palavras em mim!
A inscrição no mestrado do Programa de Ensino da Universidade de Harvard foi uma escolha com muito sentido. Eu ganharia os certificados para me tornar professora numa sala de aula e poderia aprofundar a minha compreensão da educação crítica e emancipatória por meio de um estudo sério. A formação técnica que recebi em Harvard foi inestimável - a análise de John Dewey da necessidade da educação pública para a democracia participativa, a teoria pedagógica de Paulo Freire sobre a alfabetização como forma de empoderamento e a inestimável bolsa de estudos para me dedicar às análises históricas e sociológicas de William E. B. Du Bois sobre o povo negro; tudo isso aguçou o meu conjunto de ferramentas de educação crítica. Mas os contatos que estabeleci com educadores afro-americanos que estavam lutando pela oferta de uma educação de qualidade à juventude negra fizeram-me saber que eu estava no caminho certo. Harvard provou ser uma importante pedra de toque conectando uma progressão surpreendentemente sem interrupções: da minha conclusão de curso até o trabalho como professora no movimento de escolas da comunidade negra em Boston.
Passei os cinco anos seguintes trabalhando em três escolas comunitárias de ensino fundamental em bairros negros da classe trabalhadora onde imaginávamos as nossas escolas como centrais para a luta pela liberdade negra. Isso é mais ou menos o que compartilhávamos quando começamos. As nossas diferenças eram muitas - trabalhei com pais negros, freiras católicas, ex-freiras, empresários negros, estudantes graduados de Harvard e professores de educação, alguns líderes estudantis incríveis, um voluntário que foi designado para a nossa escola como parte do seu programa de regime aberto e duas jovens brancas do Colorado que simplesmente queriam ajudar. Nem precisa dizer que havia tantas diferenças de opinião quanto pessoas trabalhando lá. Tínhamos uma visão, não uma ideia acabada de uma escola “ideal” cujas fórmulas seguimos, mas, melhor dizendo, tínhamos a responsabilidade de vislumbrar a educação por meio da prática. Estávamos tentando construir escolas comunitárias negras em tempo real e em espaço real, criando currículo, pedagogia, tudo para melhor abordar a questão: o que constitui uma educação de qualidade para a juventude negra na nossa escola? Essa pergunta e as experiências que a informam me conduziram ao longo de toda a minha carreira. Minha educação formal me concedeu certificações impecáveis como professora, mas, para mim, o tipo de ensino que fui capaz de fazer nas escolas comunitárias foi um ato radical.
Meus anos trabalhando no movimento das escolas da comunidade negra certamente ampliaram minha percepção atual do motivo de os professores serem tão significativos como atores da linha de frente nas iniciativas de justiça social. Como docentes temos que decidir como nos posicionaremos no campo da educação enquanto uma profissão para a qual fomos formados e da educação como uma vocação cuja missão é desafiar e criticar tudo ao seu redor. Como profissionais da educação, somos encorajados a assimilar e a nos adequarmos e, então, transmitirmos nosso conhecimento para os jovens. Mas é realmente útil para as crianças negras ter professores cujo objetivo principal é socializá-las dentro de um sistema que as oprime? Eu não sabia disso na época, mas meu trabalho de conclusão do curso de Sociologia, meu programa de mestrado em ensino ao longo de dois anos e minha decisão de renunciar a um emprego bem remunerado para trabalhar como professora em sala de aula em escolas da comunidade negra solidificou um compromisso com a educação crítica e a educação emancipatória que tenho levado comigo desde então.
Sem dúvida, minhas experiências práticas como estudante e como professora expandiram minha visão da educação para além da crítica, alcançando possibilidades de educação emancipatória. Terminei o ensino médio aos 17 anos de idade e, se vocês me tivessem pedido para imaginar o que me esperava na vida, eu não poderia ter feito isso. Eu era jovem demais e muito inexperiente para saber como o mundo funcionava, que dirá meu propósito e meu lugar nele. Eu só conseguia enxergar até chegar à faculdade, mas realmente não tinha pensado muito no que faria quando chegasse lá. Eu nunca tinha ouvido falar em sociologia, muito menos tinha planos de me formar nisso. Como eu poderia aspirar a ser uma administradora universitária dirigindo um centro estudantil negro, ou uma professora trabalhando 23 anos em um Departamento de Estudos Afro-Americanos, ou uma professora de sociologia em uma universidade de prestígio? Eu não tinha noção de que meu amor pela leitura pudesse dar base a uma profissão (fiquei chocada quando descobri que você pode ser pago para ler) ou que eu publicaria tantos livros e artigos. Quem diria que eu seria convidada a falar em conferências internacionais como a ANPEd. Tem sido uma longa jornada, mas estou muito feliz por estar aqui.
Minha carreira na educação deu muitas voltas inesperadas, mas cada um dos passos foi pautado em minha crença no poder da importância da educação crítica como uma ferramenta de empoderamento e na necessidade de criatividade e imaginação para a educação emancipatória. Encontrei meu próprio caminho, certamente com outras pessoas me ajudando. Estou convencida de que, com oportunidades e um pouco de incentivo de educadores de dentro e de fora da escola, cada estudante pode encontrar seu próprio caminho também. Quando se trata de trabalho de justiça social, não há fórmulas para o êxito. E estamos todos juntos nisto. Por que ajudaríamos as pessoas a se submeterem a sistemas que as oprimem? Por que faríamos isso a nós mesmos como professores e como estudantes?
Seu pensamento na educação está sendo introduzido por pesquisadoras negras que participam ou são leitoras do Black Feminist Thought [Pensamento Feminista Negro]. Percebemos que algumas jovens mulheres negras são leitoras e ativistas do feminismo negro. Elas leem Patricia Hill Collins, especialmente as traduções recentes. Como você apresentaria os principais aspectos de seu pensamento feminista negro àqueles e àquelas que atuam no campo da educação?
Várias das principais ideias do Black Feminist Thought [Pensamento Feminista Negro] (Collins, 2000) se destacam como essenciais para cultivar a educação crítica e a educação emancipatória. Em primeiro lugar, as mulheres negras são agentes do conhecimento, não são objetos do conhecimento. Temos ideias e análises e nos empoderamos quando definimos nossas próprias realidades em nosso próprio nome. Houve um período de tempo em que as mulheres negras eram vistas e se falava sobre elas, mas raramente eram ouvidas. Quando as pessoas são oprimidas, elas geralmente sabem disso e querem fazer algo a respeito. Às mulheres negras têm sido negadas posições formais de autoridade enquanto criadoras de conhecimento, mas há muito tempo elas encontraram maneiras de agir em prol de seus objetivos. Por exemplo, as mulheres negras têm usado poesia, música, dança, narração de histórias, culinária, jardinagem e arte para resistirem a serem tratadas como objetos em pesquisas e estudos formais/tradicionais, assim como na cultura popular. A expressão “abrir caminho a partir do nada” pode significar “se virar com menos - contentar-se e simplesmente sobreviver”. Ou pode significar imaginar possibilidades de seguir adiante, apesar da clara orientação sobre o futuro. Nós fazemos nosso futuro pelo que pensamos e fazemos agora. Isso é empoderador.
Em segundo lugar, o conhecimento autodefinido das mulheres negras vem de uma sensibilidade diferente em relação à família, ao trabalho, à sexualidade, ao governo e muitos outros tópicos. Por exemplo, como a maternidade é um assunto importante para muitas mulheres negras, constitui um local de análise e ativismo político. As mulheres negras se preocupam profundamente com seus filhos, mas porque são responsáveis por seu bem-estar, as mães negras enfrentam questões importantes. Como manter nossos filhos seguros em um mundo que pode matar seu espírito e seus corpos? Será que desejamos que nossas filhas e nossos filhos se dirijam voluntariamente para seus lugares designados e subordinados na sociedade ou queremos que a juventude negra rejeite esses lugares e imagine novos futuros para si mesma? Quer uma mulher negra tenha ou não filhos próprios, essas perguntas fazem parte de um discurso mais amplo sobre a maternidade nas comunidades negras. As atividades das mulheres negras como mães, quer como mães biológicas de seus próprios filhos, quer como mães não biológicas que cuidam das crianças em suas famílias extensas, quer como mães da comunidade que conquistam respeito dentro de seus bairros e igrejas, quer ainda como trabalhadoras comunitárias em organizações de base como Mothers of Murdered Children [Mães de Crianças Assassinadas] informam os entendimentos feministas negros sobre o trabalho materno. E essa interpretação do trabalho materno articula-se com a compreensão das mulheres negras sobre o poder e o potencial da educação. Minha noção do trabalho materno das mulheres negras é que ele abraça o conceito de Paulo Freire de educação para a consciência crítica em que desenvolver a alfabetização social ou a habilidade de “ler” a sociedade é fundamental para a juventude negra.
Em terceiro lugar e de forma relacionada, o trabalho materno promove uma compreensão ampla da educação que contribui para explicar por que a educação tem sido um local importante de ativismo político para as mulheres negras. As mulheres negras veem e usam a educação para construir organizações, reinterpretar práticas que desvalorizam as pessoas negras e proteger os jovens. Pensamento Feminista Negro apresenta numerosos exemplos de como a educação constitui um local de engajamento político das mulheres negras. Há muito tempo as mulheres negras como professoras têm realizado contribuições importantes para o desenvolvimento da comunidade negra. Algumas atividades são óbvias - muitas intelectuais negras proeminentes dos séculos XIX e XX foram professoras. Antes do fim do século XX, ensinar era um dos poucos empregos que mulheres negras alfabetizadas e formalmente educadas podiam encontrar. Mas essas mulheres, muitas vezes, interpretaram seus papéis como educadoras de forma mais ampla. Elas tornaram-se educadoras comunitárias, percebendo a educação como importante para o desenvolvimento da comunidade negra. Anna Julia Cooper é celebrada por seu livro de 1896, A Voice from the South [Uma voz do Sul], que apresentou uma análise interseccional de raça e gênero. Cooper corria continuamente o risco de perder seu emprego como professora no sistema escolar de Washington, DC, mas mantinha uma escola complementar gratuita para crianças negras da classe trabalhadora em sua sala de estar/escola em seu próprio tempo livre. Ida Well-Barnett lutou para obter sua própria educação e conseguiu um emprego como professora nas escolas públicas de Memphis. Isso não foi pouca coisa para uma mulher negra que nasceu na escravidão. Mas Wells-Barnett achou seus colegas professores muito conciliadores em relação à violência racial e deixou sua carreira de professora em favor do jornalismo como seu terreno de educação. Existem tantas outras mulheres negras que interpretaram o ensino e a educação de forma mais ampla, como um local de empoderamento político.
Finalmente, a própria existência do pensamento feminista negro fala da importância de criar e sustentar comunidades de mulheres negras. A comunidade está no cerne do pensamento feminista negro. Em Black Feminist Thought, eu examino como as mulheres negras desenvolveram uma série de espaços seguros que permitiram que o pensamento feminista negro florescesse. As ideias não são totalmente independentes - elas são reproduzidas por pessoas em ambientes sociais específicos em resposta a desafios e necessidades específicos. O tipo de conhecimento oposicional que é essencial para a resistência das mulheres negras é alimentado em espaços políticos específicos. Quanto mais aprendo sobre o Brasil, mais vejo conexões entre a noção brasileira de espaço do quilombo como um espaço livre para as mulheres negras e o conceito de espaço seguro como uma metáfora do que eu tinha em mente ao descrever as comunidades de mulheres afro-americanas. Quando visitei um quilombo em São Paulo em 2019, senti que estava em um espaço livre, onde o agir da mulher negra era central, onde o espaço coletivo não era vigiado, onde o trabalho materno da mulher negra estava vivo e bem, onde estava claro que a educação é política e onde o valor do conhecimento oposicional era respeitado. Minha visita me fez lembrar de tantos espaços de mulheres negras que estão espalhados por muitos lugares, muitas vezes escondidos à vista de todos para serem eficazes. A visita também me lembrou de nossos esforços para criar espaços seguros e livres para a juventude negra, informando o movimento das escolas comunitárias.
Há uma distinção entre ver o espaço do quilombo como uma “coisa” e entender o quilombo como uma metáfora para uma variação da comunidade de mulheres negras que, por ser um espaço político livre, proporciona segurança para que as mulheres negras sejam plenamente humanas. A educação crítica e emancipatória requer tais espaços para criar e alimentar essa forma de conhecimento. Encontrar espaços para criar e sustentar o pensamento feminista negro como um empreendimento coletivo significa atender às comunidades de mulheres negras e aos espaços que podem nutrir esse conhecimento. Tais espaços são centrais para as mulheres negras, mas prometem enriquecer a todos nós.
No Brasil, temos um problema sério: o genocídio da juventude negra. Apesar das estatísticas e denúncias do Movimento Negro e da juventude negra, a produção de conhecimento parece não encontrar categorias analíticas que nos ajudem a compreender essa situação. No caso do Brasil, a idade, como categoria, não poderia ser considerada estrutural para a compreensão dessa realidade?
Acho que a idade pode ser especialmente útil para analisar as formas de violência que a juventude negra vivencia tanto no Brasil quanto em um contexto global mais amplo. Infelizmente, a violência dirigida contra jovens negros no Brasil por policiais e grupos de extermínio não é nova nem está restrita ao Brasil. Tal violência tem sido o legado das sociedades de colonizadores brancos que criaram uma riqueza enorme para as potências coloniais europeias por meio de sistemas de colonialismo e escravidão. Sabemos que a negritude foi demonizada dentro de uma ideologia de supremacia branca de maneiras que impactam mulheres e homens diferentemente. Porque trabalho dentro de uma estrutura interseccional, continuo estudando como raça, classe e gênero como sistemas de poder impactam a vida dos negros. Mas a pergunta de vocês me faz pensar ainda mais. Se os jovens estão, de fato, sujeitos a formas estruturais de discriminação por raça, gênero e classe por serem jovens, de que forma a idade como categoria de análise pode ajudar a explicar esses padrões? Além do mais, se esse for o caso, como ser jovem pode ser um local para resistir ao racismo sistêmico? Poderíamos ver análises da violência e formas de resistência à violência distintas por parte das próprias pessoas que são seus alvos?
A abordagem dessas questões depende de como a idade é conceitualizada. Em meu trabalho atual, estou usando a interseccionalidade e a análise geracional como dois caminhos promissores para pensar como a idade poderia funcionar como uma categoria estrutural de análise. Quando se trata de interseccionalidade, a idade é mencionada, mas a idade como sistema de poder ainda tem que obter a mesma atenção que a concedida a raça, classe, gênero ou sexualidade. Mas as análises de raça, classe, gênero e sexualidade como sistemas interseccionais de poder podem esclarecer por que a interseção de opressões recai mais fortemente sobre os jovens que são multiplamente desfavorecidos dentro desses sistemas de poder. Porque essas questões teóricas são amplas, tento torná-las mais manejáveis por meio da teorização das experiências específicas da juventude negra. Como a intersecção das relações de poder pode afetar a juventude negra porque ela é jovem? Esse é um bom ponto de partida para revelar como a idade enquanto sistema de poder estrutura as experiências específicas da juventude negra, neste caso, a violência. Ser jovem e negro nos Estados Unidos proporciona um conjunto de desafios comuns. A interseccionalidade fornece uma lente por meio da qual certas características estruturais da sociedade norte-americana vêm à tona - o significado da escolaridade, o sistema de acolhimento familiar, o sistema de justiça de menores e a representação da juventude negra dentro da mídia e da cultura dominante. Também vemos certos problemas sociais que afetam desproporcionalmente a juventude negra, por exemplo, taxas mais altas de suspensão escolar, a forma como o sistema de acolhimento familiar responde às crianças e aos jovens negros que ficam sem-teto quando seus pais não podem cuidar deles e o tratamento diferenciado dado à juventude negra pela polícia e outras agências do sistema de justiça criminal. Ser jovem expõe os jovens a certos problemas sociais, por exemplo, maior vigilância e violência policial. No entanto, os jovens experimentam esses problemas sociais comuns de maneiras diferentes devido ao gênero, à sexualidade, à classe e ao status de cidadania.
A ideia de uma geração social fornece outra estrutura para pensar sobre a juventude. A análise geracional sugere que pessoas que compartilham experiências semelhantes quando são jovens, especialmente se tais experiências têm um impacto direto em suas vidas, desenvolvem sensibilidades geracionais que moldam sua consciência e seu comportamento políticos. Os jovens negros podem compartilhar uma idade cronológica com seus pares não negros, mas as relações de poder que se intersectam e promovem experiências compartilhadas podem gerar uma consciência geracional compartilhada. Acredito que chegar à idade adulta como negro nos Estados Unidos promove, de fato, uma conscientização compartilhada do racismo do sistema se simplesmente soubermos como procurá-lo. Por exemplo, os jovens negros nos EUA que participaram ou testemunharam o crescimento do movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), entre os anos de 2014 e 2020, têm vivido o que pode ser uma mudança radical na compreensão do racismo sistêmico na sociedade norte-americana. A interseccionalidade fornece uma estrutura para analisar as relações de poder deste período, enquanto a análise geracional oferece uma janela para perceber como os jovens que viveram esse período poderão chegar à idade adulta com uma consciência geracional distinta sobre esses eventos.
Compreender como a violência enquanto problema social afeta a juventude negra, bem como suas respostas em relação a essa experiência de viver sob ameaça de violência se prestam a este tipo de análise. Por exemplo, os jovens negros são vulneráveis a formas específicas de violência porque são jovens. Por exemplo, meninas negras que são expostas à violência de assédio sexual nas escolas, nos transportes públicos e no sistema de assistência social, ou meninos negros que são pressionados a se juntar a gangues de rua que controlam seus bairros, ou jovens negros LGBTQ que enfrentam bullying e assédio, ameaças de violência - se não violência e assédio reais - mais do que outros grupos. Políticas cada vez mais agressivas de encarceramento em massa em conjunto com a persistência de estruturas de oportunidades bloqueadas de moradia, educação e emprego nas últimas décadas têm sido devastadoras para os jovens negros nos Estados Unidos. E eles não têm sido os únicos vivendo em sociedades que rotineiramente veem a juventude negra como um problema social, em vez de tentar resolver os problemas sociais que a juventude negra enfrenta.
Isso não significa que a juventude negra tenha sido receptora passiva dessas políticas públicas punitivas. Por serem jovens demais para votar, os jovens negros não têm estado presentes na política eleitoral, mas têm sido visíveis e expressivos na política cultural. O ativismo negro da juventude negra assumiu duas formas que complementam sua participação em protestos políticos e um movimento social cada vez mais visível contra o racismo antinegro: criando o hip-hop como o protesto social da juventude negra contra um “novo Jim Crow“ caracterizado pelo encarceramento em massa em guetos, cadeias e prisões e sob a bandeira do Black Lives Matter, engajando-se em protestos sociais contra a violência sancionada pelo Estado por meio de uma constelação de iniciativas locais e populares de base. O hip-hop marcou uma categoria de jovens como uma geração social à qual faltava a voz eleitoral dos políticos e a proteção da riqueza adquirida por uma crescente classe média negra. O hip-hop criou uma plataforma global que destacou o significado da política cultural como um local crucial de ativismo, enquanto o movimento Black Lives Matter combinou a política cultural das mídias sociais com uma organização comunitária de base eficaz. A explosão de protestos sociais globais em 2020 em resposta ao assassinato de George Floyd se apoia nas ações da juventude negra que mantinha um discurso que resistia às discussões dominantes sobre a violência negra com o hip-hop e que também estava visivelmente presente nas convulsões sociais. As mortes do adolescente Trayvon Martin, na Flórida (2012), do adolescente Michael Brown em Ferguson, Missouri (2014) e de Freddie Gray, de 25 anos (2015), foram catalisadores de um protesto social generalizado entre afro-americanos, principalmente entre os jovens. Eventos gravados por jovens cidadãos-jornalistas em seus smartphones e discutidos no Twitter e em mídias sociais similares criaram uma esfera pública negra para o ativismo da juventude negra. Esses e outros eventos catalisaram uma miríade de formas de ativismo por parte dos jovens negros e seus aliados.
E esse é apenas um exemplo de uma geração social de jovens negros em um determinado tempo e lugar. Em diversos cenários nacionais, os jovens há muito têm resistido às injustiças sociais que acompanham o racismo, o sexismo, o heterossexismo e o militarismo. Por exemplo, a juventude negra na África do Sul participou de uma ampla luta antiapartheid, com muitos boicotando suas escolas para protestar serem ensinados em africânder. No Brasil, estudantes de escolas públicas e universitários que eram desproporcionalmente pobres e/ou negros ocuparam suas escolas e faculdades para resistir às mudanças curriculares propostas e aos cortes de verbas. O surgimento das tecnologias de comunicação e do acesso à internet possibilitam novas formas de protesto da juventude na era digital que transcendem as fronteiras nacionais.
Como você avaliaria este movimento transnacional ultraconservador, forte no Brasil após as últimas eleições, que dissemina um discurso antigênero, racista, sexista e LGBTfóbico que tem sido enraizado na escola, nas políticas sociais, nas concepções familiares? E quanto ao papel da mulher?
Minha avaliação geral dos grupos ultraconservadores se baseia em responsabilizar seus líderes por todas as mortes evitáveis que ocorrem sob sua supervisão. Nossas autoridades eleitas estão falhando em nos manter seguros, alimentados, abrigados, educados e esperançosos em relação ao futuro. Minha avaliação geral dos movimentos de extrema-direita tem sido consistentemente negativa, mas o ano de 2020 nos trouxe tantos eventos inesperados que a liderança irresponsável de políticos ultraconservadores é inadmissível.
Estes são tempos estarrecedores no Brasil, mas também nos Estados Unidos, em que nossos respectivos países tiveram ambos os líderes democraticamente eleitos, Jair Bolsonaro e Donald Trump, que negaram as realidades da vida e da morte. A covid-19 tem sido um divisor de águas. A pandemia global da saúde tornou as grandes diferenças da desigualdade social explicitamente claras, tanto dentro dos países quanto entre os Estados-nação. Promessas de que uma globalização irrestrita fundamentada em livres mercados e fronteiras abertas traria segurança econômica a todos soam vazias. O ano de 2020 também trouxe o surgimento do protesto social global e multirracial contra o racismo sistêmico que, para minha surpresa, ocorreu sob o estandarte do Black Lives Matter. Quando uma adolescente negra de 17 anos de idade se manteve firme e filmou o assassinato de George Floyd pela polícia de Minneapolis, ela não tinha como saber que sua filmagem seria o catalisador de um protesto social manifesto. A morte evitável de Floyd provocou uma agitação social global não apenas entre os negros que foram mais proximamente afetados, mas também entre os jovens que marcharam em solidariedade pela justiça social. No entanto, diante desses desafios globais de uma pandemia sem precedentes, uma crise econômica que agravou as desigualdades sociais e os protestos sociais globais contra o racismo sistêmico, as lideranças no Brasil e nos Estados Unidos dobraram a aposta na postura de negação da covid-19 como uma ameaça real. Ao falhar em instituir medidas de saúde pública responsáveis e ao ameaçar usar a força contra os seus cidadãos como forma de reprimir a dissidência, eles se tornaram a ameaça à democracia participativa.
Vejo este momento como um importante ponto de inflexão para recalibrarmos a forma como entendemos a resistência política. Por “nós” quero dizer pessoas pobres, negros, mulheres, povos indígenas, jovens, LGBTQ+, muçulmanos, palestinos e grupos igualmente colonizados, vítimas do antissemitismo, pessoas com deficiência e todos os outros que são membros de grupos visados por grupos ultraconservadores e/ou que são solidários com indivíduos desses grupos-alvo. Meus comentários anteriores sobre educação crítica e emancipatória se referem diretamente a este desafio de construir solidariedade entre grupos que os líderes ultraconservadores e seus seguidores demonizam rotineiramente para ganho político. Não vejo nenhum movimento de massa global já pronto no qual todos nós possamos nos unir sob alguma bandeira ou slogan de paz, amor e felicidade. A conformidade ideológica com qualquer linha partidária, por mais sedutora que seja, não é o que é necessário agora. Na verdade, precisamos de um pensamento crítico e emancipatório que lide com a questão de construir esse tipo de solidariedade. O alcance e as paixões dos protestos sociais globais sugerem que os sentimentos e as emoções estão presentes. No entanto, pensar a resistência é duro pela dificuldade de vislumbrar nosso caminho adiante em tempos de mudanças sociais tão profundas.
Viver em um presente desconfortável é sempre mais desafiador do que fazer o inventário de um passado ao qual sobrevivemos ou sonhar com um futuro que ainda está por vir. Olhar para trás para aprender com os nossos erros e celebrar nossas vitórias é muito mais fácil do que pensarmos o aqui e agora. Tentar entender como chegamos aqui examinando os exemplos históricos da ascensão de Hitler ao poder na Alemanha nos anos 1930 ou o sucesso do movimento de Direitos Civis dos Estados Unidos nos anos 1960 em desmantelar a segregação racial formal só pode nos levar até certo ponto. Podemos esmiuçar as histórias de ultraconservadorismo ou de fascismo para obter insights sobre como os movimentos de direita chegaram ao poder e o que foi necessário para desalojá-los. Precisamos de uma análise crítica da história para explicar o presente. Porém, também precisamos perguntar e responder às nossas próprias perguntas sobre o momento atual. Como exatamente um movimento transnacional ultraconservador se tornou poderoso o suficiente para prevalecer na política eleitoral das sociedades democráticas? E o que nossa análise crítica pode nos dizer sobre os passos a darmos aqui e agora para moldar o futuro que queremos ver?
Nunca presumo que as pessoas oprimidas sejam complacentes. Eu não interpreto o silêncio como submissão ou consentimento. Em vez disso, quando vejo pessoas que aparentemente sofrem em silêncio, sempre assumo que existe resistência política, mesmo que ela não tenha sido expressa e/ou tenha permanecido não reconhecida. Estudar a resistência na vida cotidiana é um desafio porque grande parte dela permanece escondida e/ou mal reconhecida por grupos mais poderosos, muitas vezes já por concepção. Por exemplo, historicamente, a resistência das mulheres tem sido escondida, dando a impressão de que as mulheres concordam com as decisões dos homens mais poderosos de suas famílias, suas comunidades, seus locais de trabalho e seus estados-nação. Mas tem havido uma tremenda variabilidade entre as mulheres em sua aceitação das injustiças sociais, tanto as suas próprias quanto as das pessoas que as cercam. Para mim, estudar as mulheres negras tem promovido uma nova visão de como as mulheres têm sido e podem se tornar centrais na resposta às injustiças sociais. As mulheres têm sido importantes para as iniciativas de educação crítica tanto como aquelas que encorajam crianças e jovens a se enquadrar nas desigualdades existentes quanto como aquelas que as encorajam a mudá-las. Mas essas contribuições são facilmente ignoradas por teorias que conferem poder e autoridade aos homens. A educação é frequentemente vista como um local subordinado às relações de poder, um lugar reservado para mulheres e crianças cujas experiências são supervisionadas e interpretadas pelos homens. Essa narrativa de gênero vê a educação como apolítica e incontestável. Espera-se que crianças bem-criadas e bem-educadas assimilem o status quo, e as mulheres são frequentemente julgadas por sua capacidade de produzir tais crianças. Mas uma análise política da educação vê todos os locais em que os jovens aprendem sobre seu lugar e propósito no mundo como locais de contestação do poder. E se o mundo que somos encorajados a abraçar é organizado por meio de relações injustas de poder, então cada um de nós deve encontrar seu lugar e propósito em um mundo de racismo, sexismo, exploração de classe e homofobia. A educação não é neutra. Ao contrário, é um lugar de contestação entre privilégio e penalidade, em que cada um de nós é pressionado a ir para o lugar que lhe foi atribuído.
Gente demais permaneceu em silêncio diante dos movimentos transnacionais ultraconservadores em suas nações, cidades, bairros, locais de trabalho e famílias. Será que eles não reconhecem o perigo de movimentos que difundem discursos de ódio antigênero, racistas, sexistas, LGBTfóbicos e anti-imigrantes? A questão é o que significa o silêncio deles. Nos Estados Unidos, vemos a face visível de tais movimentos em manifestações de supremacia branca, nós a ouvimos na retórica de nossos líderes nacionais e a lemos em postagens anônimas nas mídias sociais. Alguns que permanecem em silêncio num contexto desse discurso de ódio podem apoiar as ideias implicitamente, pensando que os danos que elas causam não os prejudicarão. Mas outros que permaneceram em silêncio podem simplesmente ter medo do que pode acontecer com eles e com aqueles que amam. Meu trabalho sobre o pensamento feminista negro me convenceu a não interpretar mal o silêncio como consentimento, independentemente de quem está silencioso. Até agora, o anonimato e o silêncio têm aparentemente protegido todos aqueles que se recusam a tomar uma posição. Mas esta pandemia global, a desigualdade social que dispara e os protestos sociais globais contra o racismo sistêmico sugerem que as coisas não serão mais o negócio de sempre para nenhum de nós. A mudança social pode não vir amanhã, mas virá um dia. As mortes evitáveis empobrecem a todos nós. Nós merecemos mais de nossos lideranças e uns dos outros.
Qual dos seus livros ainda não traduzidos para o português você apontaria como possível tradução no Brasil a fim de expandir o pensamento na área da educação?
Quando eu estava crescendo, os livros me abriram o mundo, permitindo-me visitar lugares onde eu nunca pensei ir e imaginar coisas que estavam além do meu dia a dia. O melhor presente que minha mãe me deu foi me ensinar a ler, encontrar livros para eu ler e me ajudar a conseguir meu primeiro cartão de biblioteca. Assim que pude escrever meu nome (um requisito para obter um cartão de biblioteca), ela me levou à nossa filial local da Biblioteca Pública Gratuita da Filadélfia e me ajudou a me inscrever. Ela queria ser professora de inglês, mas não tinha condições financeiras de frequentar a faculdade. Eu herdei seus sonhos e suas decepções com a educação. Mais importante: desenvolvi meu amor pelos livros a partir dela.
Publiquei três livros que gostaria que estivessem sendo traduzidos, que escrevi tendo em mente os tipos de leitores que usam bibliotecas públicas. Ao contrário dos meus livros mais acadêmicos, esses três livros visam explicar as questões centrais do meu trabalho de um modo mais acessível aos leitores em geral. Eu gostaria de ver On Intellectual Activism [Sobre o ativismo intelectual] (Collins, 2012) traduzido para o português. Esse livro reúne ensaios, palestras e entrevistas do meu trabalho sobre feminismo negro, a sociologia do conhecimento, educação crítica e política racial. Como as pessoas frequentemente chegam ao meu trabalho através de um desses portais, muitas vezes elas não sabem a variedade de coisas que publiquei. Em On Intellectual Activism, descrevo dois tipos de narração da verdade que informam a análise crítica, a saber, dizer a verdade ao poder e dizer a verdade às pessoas. Falar a verdade ao poder significa criticar as desigualdades sociais e as injustiças sociais que resultam em tratamento injusto diretamente àqueles que detêm o poder, por exemplo, administradores, autoridades eleitas, líderes corporativos e executivos da mídia. Dizer a verdade ao poder muitas vezes começa com uma simples pergunta: “por que as coisas são do jeito que são?”. Esforços para silenciar uma pergunta aparentemente tão simples dizem muito sobre como essa pergunta pode ser ameaçadora para as pessoas que exercem o poder. Em contraste, dizer a verdade às pessoas fomenta discussões críticas entre pessoas que estão em um local social semelhante, por exemplo, para as mulheres negras, falando a verdade umas com as outras e a outras que estão em circunstâncias semelhantes sobre as realidades de nossas vidas e nossas interpretações dessas realidades. Esses dois aspectos do discurso crítico estão interligados, mas não são os mesmos. Acredito que as crianças pequenas fazem os dois tipos de narrativa da verdade naturalmente. Elas fazem as perguntas difíceis de “por quê?” que os adultos consideram embaraçosas ou ingênuas. Elas também questionam as experiências e visões de mundo umas das outras e estão dispostas a aprender umas com as outras se forem encorajadas a fazer isso. Meu desenvolvimento intelectual foi alimentado dentro de ambientes em que ambos os tipos de narrativa da verdade foram cultivados.
Gostaria de ver uma versão revisada ou expandida de Another Kind of Public Education: Race, Schools, the Media and Democratic Possibilities [Outro tipo de educação pública: raça, escolas, mídia e possibilidades democráticas] (Collins, 2009) traduzido para o português. Esse livro contém ensaios que preparei a partir de transcrições de palestras que fiz em 2008 como parte de uma série de conferências para assistentes sociais, professores e trabalhadores comunitários em Boston, Massachusetts. Em Another Kind of Public Education, eu uso exemplos das minhas próprias aulas para examinar as conexões entre pedagogia e educação crítica. Essas discussões se sustentam bem. Mas também apresento um argumento sobre visualizar as possibilidades democráticas que, infelizmente, têm sido muito contestadas pelas realidades políticas atuais nos Estados Unidos. Acredito que as principais ideias do livro se sustentam bem, mas ele deve ser lido no contexto de sua época. Eu estava escrevendo durante a campanha presidencial de 2008 de Barack Obama. Quando enviei o livro para impressão, não tinha ideia de quem tinha ganhado a eleição. Foi um momento de grande otimismo - comecei meu mandato como presidente da ASA [American Sociological Association] em 2008 e estava planejando a reunião anual de 2009. A crise financeira global estava no horizonte e também coloriu minhas análises. Minhas ideias sobre a educação pública e o que ela pode fazer pela democracia foram moldadas por esse contexto. Agora, eu moderaria minhas ideias consideravelmente, à luz do surgimento de um populismo de extrema-direita que se propôs a um sucateamento de muitos dos programas educacionais que estavam em vigor naquela época. Esse livro apresenta vários dos princípios que me são caros, por exemplo, o compromisso mencionado com a educação crítica e o conhecimento emancipatório. Uma edição revisada desse livro poderia ser bastante útil.
Acabo de descobrir que a edição revisada de meu volume em coautoria com a Sirma Bilge, Intersectionality [Interseccionalidade], segunda edição (Collins e Bilge, 2016), está programada para ser lançada em português em 2021. Espero que isso aconteça, mas todos precisamos ser flexíveis durante esta pandemia global. Esse volume contém um capítulo inteiro sobre interseccionalidade e educação crítica. O argumento que esboço em Another Kind of Public Education sobre raça, escolaridade e democracia através da lente da interseccionalidade é desenvolvido mais completamente em Intersectionality. Eles podem ser lidos como peças complementares, e ambos são escritos para um público geral.
Quando escrevo, eu vejo cada uma de minhas publicações como uma oportunidade de ensinar e aprender com pessoas que nunca conhecerei. Uma boa escrita se assemelha a uma boa pedagogia - professores habilidosos sabem traduzir material complicado em termos que ressoam com as pessoas que querem alcançar. Mas os professores também devem aprender com as pessoas que eles pretendem alcançar e construir suas experiências na pedagogia. Ensinar e aprender é um processo recursivo e recíproco. Em meus livros, eu tenho a intenção de ensinar, mas também de aprender com aqueles que os leem.