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Revista Brasileira de Educação

versión impresa ISSN 1413-2478versión On-line ISSN 1809-449X

Rev. Bras. Educ. vol.29  Rio de Janeiro  2024  Epub 05-Feb-2024

https://doi.org/10.1590/s1413-24782024290010 

Resenha

Em defesa de outra postura institucional: sobre leitura e escrita no meio universitário

A case for an alternative institutional approach:about reading and writing in the academic setting

En defensa de otra postura institucional:sobre lectura y escrita en el medio universitario

I Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: mdsf.antonio@gmail.com

SACRINI, Marcus. Leitura e escrita de textos argumentativos. ., São Paulo: EDUSP, 2019. 356 pp.


No Brasil, as dificuldades de leitura e escrita são profundas e graves, mas é necessário ressaltar que elas se fazem presentes em níveis preocupantes também no meio universitário, até mesmo entre alunos das melhores universidades, inclusive na pós-graduação. Diante disso, duas posturas institucionais parecem predominar: de um lado, há o não reconhecimento do problema, o que ocorre por se supor que, só por serem alfabetizados, os alunos são aptos à leitura densificada e que, uma vez cobrada do aluno a leitura de textos argumentativos complexos, quaisquer dificuldades decorreriam tão somente de sua falta de empenho ou preguiça; de outro, reconhece-se o problema, mas, como solução, sob o pretexto de que nada pode ser feito para que os alunos se tornem aptos à leitura densificada, propõe-se a simplificação de conteúdos, pela qual a leitura é substituída por esquematizações que os alunos recebem do professor. Naquela, parte dos alunos irremediavelmente fica para trás, e mesmo aqueles que chegam à universidade com uma maior capacidade para a leitura e a escrita perdem a oportunidade de aperfeiçoá-las; nesta, todos perdem. Os riscos são evidentes, sobretudo (mas não só) naquelas áreas em que tais aptidões são especialmente exigidas: uma formação medíocre, a inaptidão para o bom exercício da profissão e mesmo a desistência da carreira.

É contra essas duas posturas ou “concepções vulgares” que Marcus Sacrini (2019, p. 27) lançou-se ao publicar Leitura e escrita de textos argumentativos pela EDUSP, propósito, aliás, que o autor fez questão de deixar explícito: “[...] gostaríamos de sugerir e auxiliar na construção de outra postura institucional […]” (Sacrini, 2019, p. 29). Composto de oito capítulos e envolvendo tanto a fundamentação das práticas de leitura e escrita de textos argumentativos complexos como o oferecimento de algumas das estratégias e técnicas mais usadas, o essencial no livro é a ideia de que essas são aptidões que podem ser desenvolvidas através do treino metódico e habitual (portanto, não são dons naturais) e que seu adequado exercício depende da autonomia daquele que as pratica.

Se a noção de autonomia parece óbvia em se tratando da escrita, convém de início ressaltar que também a leitura envolve a participação ativa do leitor na atribuição de sentido ao texto. Tal é por excelência do escopo do capítulo 3, no qual o autor ressalta que tal atribuição ultrapassa a face explícita do texto: embora esta condicione aquela, a leitura é um ato de elaboração. Ao fim e ao cabo, tanto o sentido atribuído pelo leitor quanto o sentido que o próprio texto demanda possuem autonomia relativa uma em face da outra. Professor na área de História da Filosofia Contemporânea na Universidade de São Paulo (USP), Marcus Sacrini (2019) lança mão de referências conceituais de seu campo de especialidade: é o caso da concepção de cultura de Husserl, da noção de “sujeito leitor” (ibidem, p. 45) em Ricoeur e da noção sartreana de “situação” (ibidem, p. 67): “[...] o leitor sempre está situado existencial e socialmente, e a ele cabe, por meio da leitura, recontextualizar o conteúdo significativo, ou seja, situá-lo em um ambiente concreto […]” (ibidem, p. 68). Abordando as dimensões implícitas da leitura (de ordens semântica e pragmática), Sacrini (2019) teve o cuidado de apontar para o risco de uma circularidade viciosa, na qual o leitor destaca apenas o que lhe é familiar. A esta, contrapõe-se a circularidade virtuosa, em que o repertório do leitor é confrontado pelo texto ao mesmo tempo em que o confronta. Ainda quanto à compreensão do texto, ele chama a atenção para a plurivocidade interpretativa: o texto é um, mas as interpretações, desde que não sejam arbitrárias e injustificadas, são muitas, o que não significa que tenham o mesmo valor. Aqui, novamente, Ricoeur (apudSacrini, 2019, p. 84) é evocado: “[...] não é verdade que todas as interpretações são equivalentes […]”.

Quanto às estratégias propriamente, estas figuram nos capítulos 4 a 6 (estratégias de leitura) e 8 (estratégias de escrita). De início, é necessário observar que, a despeito da grande ênfase dada ao fichamento - estratégia de leitura exposta de maneira minuciosa e para o qual são dedicados dois capítulos -, as estratégias expostas na obra não devem ser tomadas como modelos. Em verdade, o autor insiste em que as estratégias descritas são típicas ou esquemáticas e que requerem constante ajuste ou frequente regulagem. Ao leitor, será mais enriquecedor tomar contato com as estratégias expostas no livro menos como modelos a serem seguidos à risca - efetivamente, o livro não é um manual e nele não há um passo a passo - do que como exemplos inspiradores. Falando especificamente sobre as estratégias de leitura, Sacrini (2019, p. 90, grifos nossos) assevera tratar-se de um “saber prático” e complementa: “[...] somente a prática regular dessas estratégias em diversas situações enriquece o discernimento de modo a permitir decisões satisfatórias acerca de quais estratégias seguir […]”.

No caso das estratégias de leitura, convém destacar aquelas anteriores ao ato de ler, já que o senso comum não parece duvidar de que estratégias possam ser empregadas durante a leitura. O autor ressalta a importância de informar-se sobre o texto e de organizar-se para a leitura, o que envolve preocupações que não raro passam despercebido pelos leitores, sobretudo aqueles menos experientes, como a gestão do tempo. Particularmente notável é o fato de Sacrini (2019, p. 100-1) ter se ocupado da “disposição psicofísica” - e é uma pena que, nesse ponto, o autor não tenha feito menção explícita à saúde mental, um tema da maior relevância e que ainda é tratado como tabu em muitos contextos. Já no que concerne às estratégias que se deve empregar durante a leitura, Sacrini (2019) destaca algumas que costumam ser ignoradas: é o caso da necessidade de se fazer pausas no decorrer da leitura, chamadas pelo autor de naturais - apesar de contraintuitivo para muitos, o fato é que estas fazem parte da leitura. Argumento análogo aparecerá no capítulo final, dedicado à escrita, quando Sacrini (2019) enfatiza a importância dos momentos difusos ou de livre conexão, em que o escritor toma distância do texto.

No caso das estratégias de escrita, por seu turno, dá o tom a necessidade da clareza expressiva ou comunicativa, evitando-se os estilos difíceis ou demasiado herméticos. Aqui também figuram noções que, em maior ou menor grau, contrariam o senso comum, mas de que um leitor experiente não pode discordar. Por exemplo, a tese de que a escrita não é um mero ato de externalização de ideias, mas, bem ao contrário, ela toma parte na “ordenação e expansão das próprias ideias” e na “elaboração de posicionamentos próprios” (Sacrini, 2019, p. 260/267). Outro exemplo é a inserção na área disciplinar, um objetivo elementar do ensino universitário e que o leitor encontrará no capítulo 7, dedicado às estratégias anteriores à escrita (contextualização e preparação). Já quanto às estratégias para a realização da escrita, convém, aqui novamente, a ressalva: tais estratégias não são meros instrumentos de que o escritor se vale mecanicamente, mas orientações que ele deve sempre adaptar às suas necessidades e intenções, com cuidado e destreza. Dentre as estratégias apresentadas, os marcadores metadiscursivos e as citações e paráfrases são os que talvez melhor revelem o caráter singular de seu emprego e, por conseguinte, o quão necessária é a autonomia do escritor em decidir quais estratégias empregar, quando e como, na chave de um saber prático.

O livro não se esgota nesses aspectos. Dentre a enorme gama de assuntos nele implicados, gostaria de ressaltar ainda dois. Em primeiro lugar, a discussão sobre o aspecto material da leitura ou do texto como “objeto espacial” (Sacrini, 2019, p. 63). O ponto é desenvolvido na segunda parte do capítulo 3, embora seja retomado em outros momentos. Em tom de controvérsia e não escondendo um relativo pessimismo, Sacrini (2019) aborda a complicada (e, apesar de não tão nova, ainda pouco discutida) questão do suporte digital e seus efeitos não apenas sobre a compreensão do texto, mas também sobre a atenção dos leitores e sobre o hábito da leitura de uma maneira geral. Qualquer que seja a conclusão a que possamos chegar ou a posição que adotemos, a conjuntura aberta pela pandemia de COVID-19 tornou patente o alerta feito por Sacrini (2019, p. 65) “[...] contra a frivolidade (para dizer o mínimo) com que certas inovações tecnológicas são tomadas como inescapáveis para as práticas de ensino […]”.

Em segundo lugar, atravessa essa obra a ideia de que a leitura e a escrita intervêm de maneira decisiva sobre a própria percepção do leitor e do escritor, com repercussões em suas atitudes sociais, políticas, éticas e interpessoais. Não por acaso essa ideia é desenvolvida no capítulo 2, dedicado aos aspectos culturais e sociais da leitura, ainda que tenha sido adiantada na parte final do capítulo 1, que tem o sugestivo título de “Perspectivas emancipatórias trazidas pela leitura amadurecida”. Algumas linhas antes, Sacrini (2019, p. 19) sustentara que a leitura é uma “[...] ocasião privilegiada para a manutenção de uma postura crítica ante preconceitos e extremismos”. Já ao abordar a escrita, Sacrini (2019, p. 281-2) a associa ao “pensar crítico” e ao “exercício consciente de tomada de posição”. Tal ordem de questões ecoa ideias que o autor desenvolvera no instigante epílogo de uma obra anterior, Introdução à análise argumentativa: teoria e prática (2016/2023), em torno da relação entre a prática da argumentação e o ambiente cultural no qual tal prática se dá.

Por todas essas razões, a publicação de Leitura e escrita de textos argumentativos é mais que oportuna. Trata-se de uma obra que merece ser empregada em todos os cursos em nível superior, em particular para as turmas de primeiro ano, sendo ainda de grande valia e utilidade para todo aquele que deseja ou precisa aperfeiçoar-se nessas duas tarefas.

REFERÊNCIAS

SACRINI, Marcus. Leitura e escrita de textos argumentativos. São Paulo: EDUSP, 2019. 356 p. [ Links ]

Como citar este artigo: DAVID, Antônio. Em defesa de outra postura institucional: sobre leitura e escrita no meio universitário. Revista Brasileira de Educação, v. 29, e290010, 2024. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1413-24782024290010

Financiamento: O estudo não recebeu financiamento.

Recebido: 28 de Outubro de 2021; Revisado: 26 de Setembro de 2022; Aceito: 30 de Janeiro de 2023

Conflito de interesse:

O autor declara que não há conflito de interesse.

SOBRE O AUTOR

ANTÔNIO DAVID é doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP).

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