1 Introdução
A Educação Especial foi instituída no Chile em meados do século XIX, por meio de iniciativas de estruturação institucional e consolidação de um trabalho específico e a constituição de uma carreira docente determinada, mediante formas e processos próprios de atenção. Para Ramos Abadíe (2014), no desenvolvimento da Educação Especial no Chile, quatro fases podem ser distinguidas: “(i) Período 1852-1989: origem e consolidação da educação especial; (ii) Período 1990-2004: emergência e consolidação de uma orientação teórica inclusiva; (iii) Período 2005-2010: contradição; e (iv) Período 2011 até atualidade: estagnação”. De acordo com o nosso interesse em discutir os primeiros anos do século XXI, deter-nos-emos no período correspondente às fases três e quatro da política de Educação Especial no Chile.
A política nacional de Educação Especial proposta nos primeiros anos do século XXI não desestimulou a matrícula de estudantes nas escolas especiais (Ramos Abadíe, 2014). Ao contrário, propôs fortalecer essas organizações propiciando as condições para que os estabelecimentos se organizassem de maneira similar à educação regular. Assim se desenvolveram os níveis de educação infantil, fundamental, média e de adultos em escolas especiais e regulares, com ou sem projetos de integração escolar (Ministério da Educação do Chile [MINEDUC], 2005).
A Educação Especial chilena mais recente também não introduziu mudanças efetivas nessa direção. Ramos Abadíe (2014) sustenta que há uma estagnação nos processos de desenvolvimento de uma política de Educação Especial com perspectiva inclusiva no Chile devido às contradições de um sistema educacional “baseado em um modelo de mercado”. Sua conclusão está apoiada no trabalho de Manghi et al. (2012), que consideram a Educação Especial chilena na perspectiva da educação inclusiva como sendo de caráter misto, apoiada, ao mesmo tempo, em premissas da inclusão escolar e em práticas de integração. Esse argumento está respaldado em dados do Ministério de Educação (MINEDUC), segundo os quais, em 2017, estavam em funcionamento naquele país 2.059 escolas especiais, 91,40% delas de gestão privada subvencionada pelo Estado.4 Também é relevante o aumento do número de escolas especiais no país, que, em 2005, estava constituído por 935 escolas. Portanto, no período de constituição de uma filosofia de educação inclusiva, houve um aumento de 120% de escolas segregadas em um intervalo de dez anos.
A oferta de Educação Especial nas escolas regulares mediante o Programa de Integração Escolar (PIE) funciona majoritariamente em escolas municipais, na proporção de duas por uma em relação ao sistema privado subvencionado.5 Observamos que a educação especial no Chile se caracteriza por atender predominantemente aos estudantes com necessidades especiais permanentes nas escolas especiais.6 Já os estudantes com necessidades especiais transitórias estão no programa PIE nas escolas regulares.7 O PIE foi implantado no Chile a partir do Decreto Nº 490 de 1990, passando por diversas alterações em sua trajetória. Posteriormente, o Decreto Nº 170 de 2010, a partir de definições relativas a subvenções educacionais, promoveu novas regulamentações do trabalho desenvolvido mediante o PIE.
Fabris, Falabella e Alarcón (2016) argumentam que as mudanças mais recentes que envolvem a Educação Especial no Chile, relacionadas a um enfoque inclusivo, teriam como fonte de superação da segregação educacional e escolar um modelo social de aprendizagem que se contraponha a um modelo clínico ou de reabilitação. Tais transformações têm sido propostas basicamente por meio dos PIE e de dispositivos de subvenção específicos para a Educação Especial. No entanto, as autoras questionam a ausência de modificações mais amplas nos processos de organização escolar, o que limita a ação das alterações propostas.
Vásquez-Orjuela (2015) destaca que as mudanças educacionais no Chile, em função da reforma desenvolvida nos anos de 1980 e de 1990, se caracterizaram pela descentralização e pela privatização, com concorrência entre as instituições escolares, decisões centralizadas e execução local. A autora afirma especificamente que o “círculo regulatório” em torno da avaliação (resultados de aprendizagem) com respeito ao currículo restringe a participação dos estudantes com necessidades educacionais especiais - transitórias ou permanentes. Na mesma direção, Cornejo Espejo (2016, p. 49) aponta que “em que pese os discursos oficiais de autoridades do governo no sentido de promover a inclusão nas escolas, os critérios de avaliação continuam privilegiando resultados quantificáveis”.
As políticas de inclusão educacional desenvolvidas no Chile enfrentam o objetivo de incluir estudantes com necessidades educacionais especiais, de forma “isolada e principalmente com uma finalidade compensatória” (Vásquez-Orjuela, 2015, p. 56) buscando equilibrar a igualdade de oportunidades e direitos. Os estudantes com necessidades educacionais permanentes estão incluídos em um sistema de Educação Especial, porém à margem do sistema educacional regular (Vásquez-Orjuela, 2015).
O currículo é objeto de debate na relação entre uma proposta para todos os estudantes independentemente de suas condições pessoais ou contextuais, ou programas curriculares diferenciados e individualizados em função das características dos estudantes (San Martín, Salas, Howard, & Blanco, 2017). Na história da Educação Especial no Chile, tem sido enfatizado o trabalho das escolas especiais com currículos estabelecidos a partir dos déficits dos estudantes, fato que impediu em grande medida a mobilidade entre escolas especiais e regulares. Com o Decreto Nº 83 (Decreto Exento nº 83, 2015), entra em cena a implementação dos processos de diversificação curricular de acordo com o currículo nacional, que dinamiza em grande medida, o trabalho docente desenvolvido mediante o PIE.
Baseadas no panorama inicialmente exposto, nosso objetivo é apresentar a política de Educação Especial no Chile no último período, discutir as alterações conceituais acerca da Educação Especial desde a perspectiva da educação inclusiva, demonstrar a organização escolar da Educação Especial na perspectiva da educação inclusiva por meio do PIE, buscando identificar metodologicamente mudanças e continuidades.
Compreendemos que as políticas educativas são mobilizadas entre e dentro dos países por diferentes forças e que tais movimentos têm encontrado acolhida em formas ampliadas de funcionamento dos Estados nacionais (Mendonça, 2014), na fase atual do capitalismo imperialista financeiro (Foster, 2013). É necessário considerar que a política educacional e a Educação Especial não são autônomas em relação ao conjunto das relações sociais vigentes. Portanto, é fundamental ter em conta a dinâmica social e suas expressões políticas no período histórico relacionado com nosso objeto de estudo. Para tanto, organizamos nossas reflexões compreendendo que as proposições políticas no capitalismo atual assumiram um caráter mundial, naquilo que podemos definir como governança supranacional, exigindo localizar sempre nossas análises de políticas em relação às diretrizes internacionais.
Consideramos o conceito de governança no sentido proposto por Shiroma (2016, p. 49), segundo o qual “expressa mudanças nas formas de governar, considerando outros sujeitos, grupos e organizações, além do Estado, que atuam na formulação e implantação de políticas públicas”. Na área da educação, o destaque de participação ativa dos organismos internacionais não é novidade, ainda que sua atuação tenha sido redimensionada.
2 Método
Para o desenvolvimento da presente discussão, trabalhamos com análise documental como estratégia para conhecer a política tal como propõe Fairclough (2001). Tratamos os documentos como representativos das políticas e não como elas mesmas, como veículos de um conjunto de ideias difundidas pelo uso de conceitos específicos. A leitura dos documentos baseou-se em identificar ideias e conceitos presentes no discurso político e relacioná-los com os princípios que presidem esses pensamentos sociais.
O exame da documentação foi realizado em duas etapas: a primeira com documentos internacionais, e a segunda com documentos nacionais. Nos dois casos, o critério de seleção do conteúdo foi o enfoque na educação e na inclusão. Em relação aos documentos internacionais, utilizamos como critério de seleção a cobertura da América Latina com explicitação dos projetos de política educacional cujos disseminadores são organismos internacionais. Os documentos nacionais foram selecionados em função de representar movimentos importantes para a política de Educação Especial atual, e organizados em dois grupos de documentos aglutinados no período 2005 e 2015. Pela natureza de seus conteúdos, foram considerados como documentos orientadores e de legislação da educação, assim como fontes de dados estatísticos.
O estudo que desenvolvemos buscou especificamente as modificações percebidas na política de Educação Especial chilena, articuladas em um intervalo de dez anos. Para isso, analisamos dois blocos de documentos nacionais: 1) aqueles relacionados com o documento orientador Política Nacional de Educación Especial (MINEDUC, 2005); e 2) aqueles vinculados com as discussões propostas para avançar na perspectiva inclusiva, cujas ideias estão concentradas em um documento “oficioso” (Evangelista, 2012), assim tratado por não ser um dispositivo legal, nem um documento oficial orientador da política em análise. Além disso, difunde orientações ainda não incorporadas plenamente na política oficial, mas que contém conceitos que apontam para mudanças e a colocam em disputa. Trata-se do documento de trabalho intitulado Propuestas para avanzar hacia un sistema educativo inclusivo en Chile: Un aporte desde la educación especial (MINEDUC, 2015). O período de tempo estudado justifica-se por coincidir com as propostas mais importantes em relação à Educação Especial no passado recente do país.
3 A perspectiva de inclusão escolar ou educação inclusiva a partir dos discursos internacionais emanados de organismos internacionais
Ao longo das últimas décadas, o discurso dos organismos internacionais tem orientado as ações dos Estados nacionais mediante propostas sobre inclusão em sentido amplo. A inclusão escolar ou a educação inclusiva tem se convertido em slogans das políticas educacionais nos últimos anos, fazendo-se presente nos discursos políticos internacionais mediante documentos do Banco Mundial (BM), da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) e da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO).
Contudo, na virada para o século XXI, mais do que o uso do termo aplicado à educação, a noção ampla de inclusão relaciona-se a um conjunto de significados que atribuem à sociedade capitalista um caráter humanizado, com justiça social, solidariedade, pertencimento, coesão social, associados às mudanças sociais apresentadas no discurso oficial como necessárias para as melhorias que se impõem à sociedade. Nesse sentido, a “sociedade inclusiva” é difundida como o par social e político da economia de mercado, do imperialismo e da financeirização, como opção correlata ao “Estado de bem-estar social” como par social e político do modelo fordista e keynesiano. Em uma conjuntura mundial de sucessivas crises econômicas, o início do novo século é cenário de muitas lutas sociais e políticas, entre as quais podemos mencionar, entre outras, os movimentos de gênero, etnia e os direitos das pessoas com deficiência.
Os movimentos políticos pelos direitos das pessoas com deficiências apresentam, como marco fundamental, a organização do chamado “movimento social de deficiência” na Inglaterra nos anos de 1970,8 que teve como uma de suas consequências o debate sobre as formas de interação social que traria maior desenvolvimento aos sujeitos que representa. Em particular, e em relação a esse movimento político, a afirmação dos direitos das pessoas com deficiência ganhou visibilidade pública e foi replicada mundialmente, interpelando de alguma forma as políticas públicas dos Estados nacionais, exigindo o reconhecimento de direitos e a necessidade de subsídios, entre outras medidas (Oliver, 1998).
Em princípios do século XXI, presenciamos a difusão de um discurso coordenado dos organismos internacionais em torno da valorização de uma gestão moderna, que necessitava uma reforma da administração pública no âmbito dos Estados nacionais para ampliar sua eficiência (Banco Mundial, 2000), o que previa, segundo o discurso da OCDE, a participação da “comunidade” na gestão pública (Ranson, 2001). Os sentidos presentes nos discursos políticos remetem à presença de organizações privadas atuando na gestão pública e, particularmente, na oferta de educação. A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura [UNESCO] (1999) também fortalece esse discurso quando afirma a necessidade de uma nova institucionalidade estatal frente ao novo contexto econômico, social e político internacional. Nessa perspectiva, são justificadas as medidas de descentralização, de privatização e de focalização dos gastos públicos, com uma gestão pública moderna, uma “modernização conservadora”, tal como apresentado por Fernandes (1981) quando afirma que a contrarrevolução burguesa é um elemento constitutivo da história da América Latina.
Tal perspectiva instala-se no Chile mediante as reformas dos anos de 1980. A municipalização educacional teve um caráter descentralizador para a desconstrução da educação fiscal, pública e estatal e a construção de um novo cenário de “sostenedores” educacionais (públicos e privados). As políticas de educação inclusiva estão marcadamente propostas e levadas a cabo em meio a políticas mais amplas orientadas por princípios de matiz neoliberal, revelando a sobreposição dos princípios liberais aos propósitos sociais disseminados pelo movimento social de deficiência em sua versão original.
Mais recentemente, o Banco Mundial (2011) reitera a necessidade de “expansão e melhoria da educação” como estratégia de adaptação às mudanças e apresenta uma nova estratégia centrada no lema “aprendizagem para todos”, além de um debate sobre o ensino. A articulação da aprendizagem com o desenvolvimento econômico e a redução da pobreza, de forma autônoma em relação aos processos educacionais e de ensino, trabalha com a ideia de capital humano priorizando a economia ao desenvolvimento humano.
A UNESCO, por sua vez, reforça a noção de desenvolvimento sustentável ao levar a cabo os propósitos da Agenda 2030 (UNESCO, 2015), associando inclusão e equidade - em particular, o objetivo 4, “garantir uma educação inclusiva e equitativa de qualidade e promover oportunidades de aprendizagem permanente para todos”. Nesse documento, estão identificados os estudantes com maiores necessidades de apoio educacional, tais como aqueles provenientes das comunidades mais pobres, das minorias étnicas e linguísticas, dos povos indígenas e as pessoas com necessidades especiais e deficiências (UNESCO, 2017).
A OCDE iniciou, em 2016, um Programa Regional para a América Latina e Caribe no qual articula inclusão social com produtividade e o fortalecimento da governança. Destaca que os países da América Latina devem enfrentar “desafios duplos - grandes lacunas de produtividade e inclusão” que justificam reformas estruturais amplas (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico [OCDE], 2014, p. 3).
No passado recente, o termo inclusão conferiu força discursiva às políticas de combate à “exclusão” recrutando a “comunidade” para fortalecer a necessidade de operar reformas administrativas no âmbito dos aparatos de Estado e suas formas de gestão (Garcia, 2004). Mais recentemente, com as reformas de Estado consolidadas na região, o discurso internacional se desloca para a meritocracia, a justiça social e a produtividade. Observamos que o discurso político é modificado para renovar sua validade e atualizar seu poder de influência sobre os sentidos políticos, à medida que a realidade social apresenta elementos objetivos que o debilitam, naquilo que se pode denominar um discurso “camaleônico” (Shiroma, 2001).
Pode-se estabelecer um duplo sentido nas políticas de educação inclusiva a partir das proposições internacionais: um sentido estrito, com a ideia de uma escola comum a todos e na qual as aprendizagens são valorizadas, ainda que sejam percebidas desigualdades e restrição das condições necessárias para tanto; e um sentido amplo, sob a ideia de gestão educacional e escolar organizada em torno dos princípios de privatização e de competitividade (meritocracia). Entretanto, no âmbito da proposta política, os dois sentidos são complementares, aprofundando os efeitos de desigualdade e de segregação em relação à educação oferecida a diferentes grupos de sujeitos, entre eles as pessoas com deficiência.
4 Movimentos da política de educação especial no Chile
Ao estabelecer uma articulação entre os dois períodos analisados no presente trabalho, ressaltamos os movimentos da política de Educação Especial no Chile em relação à adoção de uma perspectiva inclusiva. A educação inclusiva no Chile, como em outros países, vem sendo implementada em meio a várias temáticas, tais como gênero, migrações, diferenças de habilidades dos estudantes, condições socioeconômicas, grupos étnicos, a deficiência e outras condições humanas relacionadas à Educação Especial.
No Chile, país emblemático na implementação de políticas neoliberais, podemos estabelecer que o discurso da educação inclusiva é difundido a partir de orientações de organismos internacionais, em um contexto de ampliação das matrículas da Educação Básica e Média, com aprofundamento dos processos de privatização da educação (Sisto, 2018), que, sem financiamento de base, tem uma necessidade real de competitividade por matrículas e frequência, que opera por meio do voucher, chamado de “subvenção escolar”.
No caso da Educação Especial, a subvenção adicional requer um diagnóstico individual formalizado por um profissional especializado, o que se torna, consequentemente, em compromisso e responsabilidade para a escola fornecer uma provisão individual às necessidades educacionais especiais dos estudantes. As diretrizes em curso para a política de Educação Especial (MINEDUC, 2005) foram elaboradas por uma comissão de especialistas que organizou um informe como subsídio para a política de Educação Especial (MINEDUC, 2005).9 Um relatório internacional aponta dados que justificam a preocupação do governo chileno em relação a esse tema. Em 2004, a Rede Internacional sobre Deficiência publicou o documento Monitoreo internacional de los derechos de las personas con discapacidad,10 no qual estão classificados os países americanos nas categorias “mais inclusivos”, “moderadamente inclusivos” e “menos inclusivos”. De acordo com esse estudo, o Chile foi considerado como “moderamente inclusivo”. Ainda que o país subscreva a Convenção dos direitos das pessoas com deficiência (Organização das Nações Unidas [ONU], 2006), foi considerado como destinando “algumas proteções básicas” à educação, emprego e comunicação. Em relação à acessibilidade, está avaliado com “proteções pobres ou ausentes” (Red Internacional sobre Discapacidad [IDRM], 2004).
O documento chileno de 2005 contempla que a Educação Especial é parte da reforma educacional, para valorizar o direito à educação e torná-la “mais integrada e inclusiva” ao sistema educacional (MINEDUC, 2005, p. 7). Também faz referência ao Projeto Regional de Educação para a América Latina e o Caribe (PRELAC) de 2002, que difundiu a ideia de melhorar a qualidade da educação até 2015. Para isso, apresenta como objetivo geral: “Fazer efetivo o direito à educação, à igualdade de oportunidades, à participação e a não discriminação das pessoas que apresentam necessidades educacionais especiais, garantindo seu pleno acesso, integração e progresso no sistema educacional” (MINEDUC, 2005, p. 45).
O documento baseia-se nos conceitos de integração e de atenção à diversidade. Contém como recomendação para a organização da Educação Especial o Programa de Integração Escolar.11 No caso dos projetos de integração, trata-se de uma organização que envolve professores, outros profissionais e organização curricular, visando à integração escolar de estudantes com necessidades educacionais especiais consideradas como transitórias ou permanentes. No artigo 3º, fica claro o caráter parcial da proposta, uma vez que alguns estudantes não serão incorporados na escola regular. “Quando a natureza e/ou grau de deficiência não possibilite a integração nos estabelecimentos comuns, a educação especial será realizada em escolas especiais, o que deverá ser avaliado por equipes multiprofissionais do Ministério da Educação” (Decreto Supremo nº 1, 1998).
A integração escolar está proposta, portanto, como um processo gradual e parcial. O Decreto Supremo Nº 490 de 1990 (Decreto Supremo nº 490, 1990) já apontava para a integração escolar em escolas regulares. Contudo, as escolas especiais - “estabelecimentos especiais” - são tratadas como instituições que têm uma grande tradição no setor e devem ser fortalecidas, inclusive com financiamento do Estado (MINEDUC, 2005).
As necessidades educacionais especiais, tratadas como permanentes ou transitórias, estão mais bem detalhadas no Decreto Nº 170 de 2009, o qual afirma, em seu artigo 2º:
Aluno que apresenta Necessidades Educacionais Especiais: aquele que precisa ajudas e recursos adicionais, sejam recursos humanos, materiais ou pedagógicos, para conduzir seu processo de desenvolvimento e aprendizagem, e contribuir a alcançar as finalidades da educação. Necessidades educacionais especiais de caráter permanente: são aquelas barreiras para aprender e participar que determinados estudantes experimentam durante toda sua escolaridade como consequência de uma deficiência diagnosticada por um profissional competente e que demandam ao sistema educacional a provisão de apoios e recursos extraordinários para assegurar a aprendizagem escolar. Necessidades educacionais especiais de caráter transitório: são aquelas não permanentes, que requerem os alunos em algum momento de sua vida escolar como consequência de um transtorno ou deficiência diagnosticada por um profissional competente e que necessitam de ajudas e apoios extraordinários para acessar ou progredir no currículo por um determinado período de sua escolarização. (Decreto nº 170, 2009, p. 4).
Para esses alunos, está indicado que o currículo necessita adaptações e, para isso, considera-se necessário que professores da Educação Especial e outros profissionais atuem como apoio ao ensino regular. Observa-se uma ênfase na defesa da presença de uma equipe multidisciplinar, a partir do MINEDUC, para atuar na avaliação e na definição das necessidades educacionais dos estudantes. Reforça-se, portanto, um modelo especializado de professores e profissionais (Decreto Supremo nº 1, 1998).
A organização da Educação Especial chilena adota também um discurso em consonância com a Declaração de Incheon (UNESCO, 2015), cujo slogan é “para uma educação inclusiva, equitativa e de qualidade, e uma aprendizagem ao longo da vida para todos”. Essas ideias estão presentes no documento de 2015 intitulado Propuestas para avanzar hacia un sistema educativo inclusivo en Chile: Un aporte desde la educación especial. Seu objetivo é apresentar uma nova proposta para a Educação Especial a partir da perspectiva de inclusão e foi elaborado por uma comissão de especialistas constituída por membros do MINEDUC em colaboração com universidades, fundações, associações e organizações multilaterais.12
Os conceitos principais presentes no documento são sistema educacional inclusivo, educação inclusiva, barreiras, avaliação da qualidade, currículo, provisão e apoios, formação docente e competitividade. Destacamos algumas ideias presentes no discurso político em questão que reforçam as premissas de qualidade e equidade da proposta inclusiva: a ideia de flexibilidade e contextualização da diversidade; a “igualdade de condições” e “colaboração”; a “provisão de diferentes opções educacionais equivalentes em qualidade” (MINEDUC, 2015, p. 8). Como tratar possibilidades tão distintas como de qualidade equivalente sendo diferentes por sua natureza? O discurso inclusivo, nesse caso, é insuficiente para alterar as estruturas educacionais, ainda que reconheça sua necessidade.
Entretanto, a noção de inclusão como direito parece um argumento importante para uma política de acesso, pois critica a limitação de uma inclusão voluntária. A escolha da escola por parte das famílias e as dificuldades de mobilização de recursos pedagógicos e especializados por parte das escolas têm implicações nesse aspecto.
5 A disputa conceitual sobre educação especial na formulação de políticas com perspectiva inclusiva no Chile
No período recente, a disputa de conceitos em torno da formulação de políticas de Educação Especial no Chile pode ser entendida mediante a redefinição da Educação Especial. No grupo de documentos articulados em torno da política nacional de Educação Especial (MINEDUC, 2005, p. 35), esta é definida como uma “modalidade educacional”. Os discursos políticos difundidos no grupo de documentos articulados em torno das propostas que fariam avançar para um sistema educacional inclusivo (MINEDUC, 2015) contêm alterações que a redefinem como “uma modalidade de apoio transversal a todos os níveis e modalidades educacionais”.
No que se refere à mudança conceitual, o documento baseia-se na discussão acerca do termo inclusão em relação ao direito e redução de “barreiras que limitam o acesso, progresso, participação, aprendizagem e desenvolvimento integral de todas as pessoas” (MINEDUC, 2015, p. 5).
O conteúdo do documento indica, portanto, uma preocupação com o acesso escolar, sem descuidar o como os estudantes participarão no sistema educacional e as formas de apoio que receberão. Também está relacionado à qualidade educacional e à justiça social quando afirma que “é um elemento fundamental para melhorar a qualidade e equidade dos sistemas educacionais e contribuir assim ao desenvolvimento de sociedades mais justas e respeitosas em relação às diferenças” (MINEDUC, 2015, p. 5).
Ainda quando, nos documentos, o discurso da inclusão manifesta grande preocupação com a educação escolar, não supera a ideia liberal de progresso, segundo a qual a sociedade capitalista pode ser melhorada, aperfeiçoada, e que a justiça social trará maior humanização aos processos sociais. Como pensar em efeitos de humanização em um sistema educacional criado a imagem e semelhança de um sistema social, desigual, competitivo e meritocrático, baseado nas leis de mercado?
Percebemos a indicação de uma mudança ampla na educação escolar por meio da noção de “sistema educacional inclusivo”, na qual a Educação Especial necessita ser “re-significada”. Observamos, no discurso político, a defesa da assunção de um papel transversal em todos os níveis e modalidades educacionais, desempenhado por meio de um “contínuo de prestações”, diferentes graus de apoio, correspondendo à educação especial os apoios “mais especializados e intensivos”, mas entendida como uma articulação de conhecimentos, estratégias e recursos especializados que serão demandados pelos estudantes que enfrentam barreiras de maior monta para “participar ou aprender durante sua trajetória educacional”.
Observamos, além disso, a defesa de uma nova concepção de Educação Especial, a partir da mudança de paradigma da segregação para a inclusão, agora definida como um “sistema de provisão de apoios transversal a todos os níveis e modalidades educacionais” (MINEDUC, 2015, p. 10).
A tônica da alteração proposta estaria na constatação de que o marco normativo da política de Educação Especial está centrado na integração, o que conforme o discurso apresentado seria “uma barreira para o desenvolvimento de um sistema educacional inclusivo” (MINEDUC, 2015, p. 18).
Para superar o conceito de Educação Especial como “modalidade educacional” - que estaria mais próximo da ideia de integração - e assumir o de “sistema de provisão de apoios” - que seria mais inclusivo desde esta perspectiva-, encontramos a recomendação de que o currículo deve ser “único, flexível e inclusivo” (MINEDUC, 2015, p. 26). Os desenhos universais de aprendizagem devem substituir as adaptações curriculares individualizadas e devem ser revogados os planos de estudo por tipo de deficiência (MINEDUC, 2015, p. 28). Já quanto à avaliação, a comissão que elaborou o documento considerou que o Sistema Nacional de Avaliação de Resultados de Aprendizagem (SIMCE) é um dos pontos de maior dificuldade para que se instale um sistema educacional inclusivo (MINEDUC, 2015, p. 28). Nesse sentido, propõe que a diversidade seja um elemento central da noção de qualidade educacional, substituindo o SIMCE por um “sistema integral de avaliação da qualidade da educação” (MINEDUC, 2015, p. 29), sistema não descrito no documento, o que revela um tema de investigação a ser enfrentado no futuro.
Em nossos processos de análise, quando lemos materiais que são complementares, buscamos fazer uma leitura “documento com documento” (Shiroma, Campos, & Garcia, 2005). Nesse caso, para maior compreensão da nova proposta educacional inclusiva no Chile, selecionamos o Decreto Nº 83 de 2015, Diversificação do ensino, que aprova critérios e orientações de adequação curricular para estudantes com necessidades educacionais especiais de Educação Infantil e Educação Básica. A norma referida estabelece critérios curriculares para a Educação Infantil e Básica no ensino regular, “com ou sem programas de integração escolar nas modalidades educacionais, tradicionais, especial, de adultos e estabelecimentos educacionais hospitalares” (Decreto Exento nº 83, 2015, p. 7).
Destaca-se que a proposta curricular mais inclusiva não altera que os estudantes possam estar na escola regular ou especial, pois expressa “que estudem em estabelecimentos especiais ou em estabelecimentos de educação regular com ou sem Programas de Integração Escolar” (MINEDUC, 2015, p. 11). No entanto, a proposta incorpora, ao mesmo tempo, elementos novos no currículo da escola regular, sem deixar de lado uma organização escolar que possibilita oficialmente a atenção segregada nas escolas especiais.
O Decreto Nº 83 (Decreto Exento nº 83, 2015) tensiona o trabalho escolar com a proposta de desenho universal de aprendizagem (DUA) e o trabalho colaborativo envolvendo professores regulares e educadores diferenciais, tendo como horizonte as bases curriculares nacionais.13 O DUA foi proposto com base na ideia de “diversificação do ensino”. Nessa nova configuração curricular, o PIE “refere o uso de estratégias orientadas a reforçar o sistema escolar, mediante o trabalho colaborativo e, mais especificamente, a co-docência entre educadores regulares, educadores diferenciais e outros assistentes da educação” (Urbina Hurtado, Basualto Rojas, Durán Castro, & Miranda Orrego, 2017, p. 356).
Isso se articula desde uma compreensão das necessidades educacionais especiais como o deslocamento de um modelo centrado no déficit para um enfoque propriamente educacional. Essa ideia contrasta com a necessidade de diagnósticos justificados pela gestão do PIE em relação às subvenções, segundo o que está descrito no Decreto Nº 170/2010. Quanto ao trabalho colaborativo, está previsto que o tempo destinado ao apoio dos estudantes na classe regular não poderá ser inferior a 8 horas pedagógicas semanais em escolas com jornada escolar completa, e de 6 horas pedagógicas semanais nas escolas sem jornada escolar completa (Decreto nº 170, 2010).14
Nesse documento, foi observada a defesa de uma lógica de inclusão escolar, mediante a promoção da permanência dos estudantes com necessidades educacionais especiais (NEE) na classe regular, com o acompanhamento do educador diferencial, em lugar de transladá-los para a sala de recursos. Isso possibilitaria o financiamento público de um trabalho pedagógico colaborativo na classe regular. Entretanto, essa possibilidade diminui quando consideramos as limitações de uma sociedade orientada pela desigualdade, a educação privatizada e uma política de Educação Especial associada a limites no ensino mais que nas condições de aprendizagem dos estudantes, que privilegia a gestão das subvenções baseada na manutenção de práticas diagnósticas de orientação clínica em detrimento de uma proposta pedagógica mais robusta.
A forma como o Chile organiza a Educação Especial - como uma provisão especial de serviço - tem em comum, entre 2005 e 2015, o fortalecimento das escolas especiais e a segregação não superada na proposta específica e propiciada pela gestão da educação em geral. Os alunos do PIE são, principalmente os estudantes com necessidades educativas especiais transitórias e, em menor escala, os estudantes com deficiência.
6 Conclusão
A Educação Especial, no Chile, mantém o caráter de conhecimento específico de seus professores e de necessidades próprias dos estudantes. Além disso, as novas indicações curriculares remetem para o desenho universal associado ao currículo nacional, com planos individualizados quando “necessário”, valorizando as noções de diversificação e flexibilidade no currículo. Por outro lado, mantém o sentido de gestão privada da Educação Especial mediante a ação de instituições não públicas e não regulares que atuam no setor.
Como uma característica própria, a Educação Especial, no Chile, mantém a forma de referir-se a seu alunado com o termo “com necessidades educacionais especiais”, relacionado à definição do grupo beneficiário de suas políticas como “transitórios” e “permanentes”, na qual a tendência é a maior presença dos transitórios nas escolas regulares e os permanentes nas escolas especiais. Em sentido estrito, a Educação Especial com perspectiva inclusiva aponta para que todos os estudantes, independentemente de suas condições individuais e culturais, estudem na escola regular, com boa convivência, com condições de aprendizagem e desenvolvimento humano. O sentido mais amplo da proposta de educação inclusiva como parte do projeto neoliberal - racionalidade atual que sustenta ao capital - incorpora o sentido estrito a seu favor, sem impedir, mas limitando poderosamente sua realização.
A disputa de conceitos sobre Educação Especial está obscurecida pela noção de sistema educacional inclusivo, que responde a uma amálgama de ideias tais como “igualdade de condições”, “colaboração”, “flexibilidade”, “contextualização”, “diversidade”, “provisão de diferentes opções educacionais equivalentes em qualidade”, mas se contradizem com “a superação de práticas classificatórias e comparativas mediante estândares em relação aos resultados”. As ideias que estão no cenário de disputas de projetos educacionais mantêm antigas forças do campo específico que coexistem ao interior da política de Educação Especial com outros elementos, o que produz uma aparência de mudanças. Nesse contexto, a busca da escola regular por parte das famílias dos estudantes com “necessidades especiais permanentes” segue sendo mais voluntária do que tratada como um direito, e não tem havido redução no número de escolas especiais.
A mudança mais considerável é o significado de sistema de provisão de apoios em substituição à modalidade educacional. Essa definição aproxima parcialmente a Educação Especial à lógica de mercado, se pensamos no sistema de apoios como serviços que podem ser prestados por instituições públicas, privadas, consultorias, empresas, fundações, organizações sociais, indistintamente.
A finalidade dessa investigação não foi comparar políticas, mas analisar o campo discursivo do debate entre paradigmas, das lógicas que sustentam os documentos internacionais e nacionais tanto oficiais como oficiosos. Com respeito a esses últimos, constatamos a presença de um grupo de interesse (stakeholder) conformado por uma “comissão de especialistas” acadêmicos e do âmbito das políticas públicas que se reuniram no ano 2005 e “forçaram” o debate por uma mudança conceitual. Alguns deles voltaram a se reunir em 2015 e apresentaram outro documento, que não obteve força de política oficial, mas parte dele conseguiu espaço nas ideias que presidem o pensamento político. Se, por um lado, o primeiro documento teve repercussão oficial, o mesmo não se pode dizer em relação ao segundo, embora tensione as disputas conceituais no campo discursivo da política educativa.
Concluímos que o discurso político acerca da Educação Especial no Chile acompanha o ideário inclusivo difundido por organismos internacionais em meio à governança global, ao mesmo tempo que mantém uma organização escolar própria, baseada na integração e em práticas sociais de segregação. Os resultados deste estudo permitem distinguir uma fórmula política que associa gestão gerencial com equidade. Resulta muito funcional à lógica da opção educacional por parte das famílias, sem reduzir a importância do modelo mais tradicional de Educação Especial, a instituição filantrópica privada da Educação Especial. O modelo neoliberal outorga as suficientes garantias, dentro de uma perspectiva de livre mercado, para que a oferta educacional seja suficientemente ampla, diversa e flexível para que alguns estabelecimentos escolares ofereçam a opção educacional aos estudantes com deficiência, como parte de um serviço optativo pelo qual receberam financiamento adicional. Esta é a política: não é obrigatória, é optativa.
As mudanças foram propostas, mas, no interior do PIE, nas proposições de DUA e de trabalho colaborativo, a voluntariedade de matrículas na escola regular e as avaliações que produzem discriminação e segregação não foram alteradas. O discurso inclusivo sustenta-se em uma estrutura escolar meritocrática, discriminatória e segregacionista em relação aos estudantes com necessidades especiais permanentes.
Finalmente, consideramos que este estudo pode ser aprofundado no futuro superando seus limites de análise baseado na empiria documental, com a inclusão de pesquisa de campo.