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Revista Brasileira de Educação Especial

versão impressa ISSN 1413-6538versão On-line ISSN 1980-5470

Rev. bras. educ. espec. vol.26 no.1 Marília jan./mar. 2020  Epub 12-Fev-2020

https://doi.org/10.1590/s1413-65382620000100007 

Relato de Pesquisa

O Que as Pessoas com Deficiência Intelectual Pensam sobre a sua Participação no Trabalho a Partir de Dois Estudos de Casos

Ana Paula Ribeiro ALVES2 
http://orcid.org/0000-0003-0762-7511

Nilson Rogério da SILVA3 
http://orcid.org/0000-0002-8866-0964

2Doutoranda em Educação. Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Campus de Marília. Marília/São Paulo/Brasil. Email: dani_anapaula@hotmail.com.

3Professor Associado Doutor da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Campus de Marília. Marília/São Paulo/Brasil. Email: nilson@marilia.unesp.br.


RESUMO:

O trabalho tem sofrido significativas transformações durante o percurso da humanidade, tendo o seu próprio sentido modificado. Torna-se, então, questionável até que ponto ele age na humanização do homem, ou ao contrário - se, no atual contexto social, ele pode contribuir para sua desumanização. Nesse contexto, o trabalhador com deficiência intelectual está sujeito, além dos aspectos de exploração e de alienação, aos constructos sobre a deficiência, com questionamento acerca de suas capacidades, sendo considerado incapaz de ocupar postos de trabalho que exijam funções mais elaboradas e complexas. O objetivo deste estudo foi analisar a percepção do sujeito com deficiência intelectual sobre sua participação no mercado de trabalho. Dessa forma, duas pessoas com deficiência intelectual foram selecionadas para relatar suas experiências e percepções. Para a realização das entrevistas, foi utilizado o método História de Vida, e os dados foram analisados por meio de Temas Emergentes como: Trabalho como princípio de humanização e Trabalho como princípio de desumanização. Os temas emergidos foram interpretados segundo o ideário da teoria histórico-cultural, que considera o homem, independentemente de sua condição biológica, como um sujeito formado pelas e nas relações com o outro. Os resultados evidenciaram a importância do trabalho no desenvolvimento humano dos participantes que se realizaram profissionalmente e alcançaram conquistas que estão além do aspecto financeiro, abrangendo aquelas especificamente humanas. Os participantes deste estudo contrariaram o que era previsto pela sociedade de forma geral àqueles com deficiência intelectual e demonstraram que é possível se humanizar por meio do trabalho.

PALAVRAS-CHAVE: Trabalho; Desenvolvimento humano; Deficiência intelectual

ABSTRACT:

Work has undergone significant transformations during the course of humanity, having its own sense disturbed and modified. Thus, it becomes questionable to what extent it acts on the humanization of man, or on the contrary, whether, in the present social context, it can contribute to its dehumanization. In this context, the worker with intellectual disabilities is exposed, in addition to the aspects of exploitation and alienation, to constructs about disability, as preconceptions about their abilities, being considered incapable of occupying jobs that require more elaborate and complex duties. The objective of this study was to analyze the perception of the subject with intellectual disability about his/her participation in the labor market. Thus, two people with intellectual disabilities were selected to talk about their experiences and perceptions. For the interviews, the Life Story method was used, and the data were analyzed through Emerging Themes such as: Work as a principle of humanization and Work as a dehumanization principle. The themes emerged were interpreted according to the ideology of historical-cultural theory, which considers the human being, independently of his/her biological condition, as a subject formed by and in relations with the other. The results evidenced the importance of the work in the human development of the participants that were realized professionally and reached achievements that are beyond the financial aspect, covering those specifically human. The participants in this study contradicted what was generally predicted by society to those with intellectual disabilities and demonstrated that it is possible to humanize themselves through work.

KEYWORDS: Work; Human development; Intellectual disability

1 Introdução

O contexto social vivenciado pelo trabalhador com deficiência intelectual constitui um aspecto importante para a compreensão do papel que ele desempenha na sociedade, considerando que “o que decide o destino da personalidade, em última instância, não é o defeito em si, senão, suas consequências sociais, sua realização sócio- psicológica” (Vygotsky, 1997, p. 44).

No ano de 1991, a Lei n° 8.213, de 24 de julho, popularmente conhecida como Lei de Cotas, determinou a obrigatoriedade de as empresas privadas reservarem porcentual de 2 a 5% de vagas para as pessoas com deficiência. Outros importantes documentos e decretos visam assegurar um conjunto de direitos para a inserção e a participação da pessoa com deficiência no mercado de trabalho, educação e demais âmbitos da sociedade. Dentre eles, a Lei Brasileira de Inclusão - LBI - Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015, que, superando a perspectiva restritamente médica, considera também os aspectos sociais da deficiência, em outras palavras, a forma como a sociedade se organiza para receber esse público, assegurando direitos no âmbito do trabalho como igualdade de oportunidades, adaptações, recursos tecnológicos e de acessibilidade. Embora se constitua em um importante passo em direção à inserção da pessoa com deficiência, e, para muitos, única forma de ingresso no trabalho, ressaltamos que a legislação por si só não tem sido suficiente para que esses indivíduos ingressem e permaneçam no mercado competitivo.

Os dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) revelaram que, no ano de 2016, em âmbito nacional, 46,1 milhões de pessoas possuíam vínculo empregatício, sendo 418,5 mil trabalhadores com alguma deficiência, o que implica em menos de 1% dessa população com emprego formal. Quando se trata de trabalhadores com deficiência intelectual, o número de contratações é ainda mais reduzido com 34,3 mil, sendo um dos menores em comparação às demais deficiências (Deficiência física: 48,9%; Deficiência auditiva: 19,2%; Deficiência Visual: 12,8%; Deficiência intelectual: 8,2%; e Deficiência múltipla: 1,7% de contratações). Os dados da RAIS (2016) indicam o descumprimento da lei que impõe a obrigatoriedade de reservar vagas para contratação desses sujeitos, evidenciando ainda a preferência por algumas deficiências em detrimento de outras.

Os empregadores justificam que existem vagas reservadas a esse público; entretanto, não há candidatos com escolarização mínima e qualificação profissional para ocupá-las. Revelam as concepções construídas acerca da identidade desses trabalhadores como pessoas com baixa autoestima, imprevisíveis, desqualificadas profissionalmente e capazes de usar a própria condição biológica como justificativa para não realizar suas funções laborais. As empresas que admitem esses profissionais comumente não realizam adaptações no ambiente, não promovem capacitações ou qualquer estratégia metodológica para a inclusão laboral. As contratações, portanto, são realizadas por imperativo da lei, mas sem que haja qualquer esforço ou modificações para que de fato se perpetuem (Assis & Carvalho, 2014; Maia & Carvalho-Freitas, 2015; Tanaka & Manzini, 2005).

Diante de justificativas como baixa escolaridade e falta de qualificação profissional, às pessoas com deficiência intelectual são reservadas atividades consideradas mais simples que não exijam funções psíquicas mais elaboradas como criatividade, pensamento abstrato, raciocínio lógico, entre outras, e consequentemente, recebem os salários mais baixos com poucas perspectivas de progressão. É inegável o fato de que muitas pessoas sem deficiência, consideradas dentro dos padrões de normalidade, também se encontram em situações precárias de desenvolvimento, não têm suas funções superiores desenvolvidas devido à negligência cultural e, igualmente, têm sua força de trabalho explorada pelo capital, exercendo atividades consideradas simples e mecânicas. Entretanto, todas essas características são acentuadas para aqueles que, por causa da deficiência, sofreram histórica exclusão, foram discriminados e impedidos de se desenvolver como sujeitos humanos. A identidade construída pela sociedade para as pessoas com deficiência intelectual submete-as a uma posição de significativas desvantagens, não restando, muitas vezes, alternativa, senão a de representarem o papel que lhes foi designado (Alves, 2018).

A inserção da pessoa com deficiência intelectual no mercado formal de trabalho compreende, portanto, um cenário de desafios e de incertezas, uma vez que se desconhece até que ponto a inclusão da forma como está posta pode contribuir para a sua humanização oudesumanização. É oportuno, ainda, o questionamento sobre em que medida o atual cenário propaga a discriminação e a exploração e, se privá-los de tais vivências humanas, seria mesmo um mecanismo de proteção, ou, antes, uma nova roupagem para a continuidade de sua exclusão laboral (Alves, 2018).

Diante do exposto, o objetivo neste estudo foi analisar a percepção da pessoa com deficiência intelectual sobre a sua participação no mercado formal de trabalho. Para isso, é imprescindível que o leitor o considere como um sujeito histórico e cultural, além de biológico, constituído nas e pelas relações com o outro, e que, segundo Glat (2009), muitas vezes aprende e reproduz o papel de deficiente que a sociedade para ele construiu.

2 Método

Trata-se de Estudo de Casos que tem o objetivo de proporcionar uma visão geral do problema e de identificar aspectos que podem influenciá-lo e/ou ser por ele influenciado (Gil, 2010). O procedimento adotado foi o método História de Vida e o percurso até a sua escolha não foi espontâneo e desprovido de intencionalidade. Antes, foi necessário superar algumas incertezas em relação ao procedimento, especialmente por considerar as especificidades do público em questão, pessoas com deficiência intelectual que foram historicamente estigmatizadas como incapazes de discorrer e refletir sobre suas próprias vidas.

Manter a escolha exigiu muita reflexão, adequações, estratégias, planejamento e replanejamento, uma vez que a proposta de entrevista aberta, com temas amplos e sem perguntas diretas que proporcionassem maior direcionamento, poderia tornar a coleta mais difícil. Durante as entrevistas, os participantes frequentemente fugiam dos temas ou, ainda, falavam pouco até mesmo negando-se a discorrer sobre determinado assunto considerado importante para a pesquisa.

Assim sendo, foram realizadas adaptações no método do presente estudo para que incluíssem e atendessem às especificidades desse público. Nesse sentido, uma única frase disparadora como sugere o método (Glat, 2009) não foi suficiente para que construíssem suas narrativas. Antes, foram necessárias intervenções pontuais e esclarecimentos, o que evidencia a necessidade de ajustes metodológicos quando se trabalha com pessoas com particularidades, como aquelas advindas da deficiência intelectual.

2.1 Participantes

A seleção dos participantes foi feita por meio de uma amostra de conveniência que atendesse aos critérios de base deste estudo. Assim, a procura foi por histórias de pessoas com deficiência intelectual inseridas no mercado formal de trabalho e que tivessem formação em escolas regulares de ensino. O motivo do segundo critério dá-se pelo fato de já haver na literatura estudos que contemplassem instituições especializadas e os denominados empregos apoiados, quando a pessoa com deficiência ingressa no trabalho por intermédio da instituição. A intencionalidade foi direcionada para conhecer outras trajetórias, bem como possíveis obstáculos e possibilidades.

O primeiro participante da pesquisa é ficticiamente denominado de Caio, um jovem com deficiência intelectual que trabalha em uma empresa multinacional do ramo de embalagens. Caio tem 25 anos de idade e sempre estudou em escolas regulares desde a Educação Infantil, cursando, no momento das entrevistas, o Ensino Médio em modalidade de ensino para jovens e adultos. Fez cursos profissionalizantes de informática e reposição. Em seu trabalho, realiza atividades que exigem a formulação de conceitos abstratos, trabalha com o sistema de medidas, entre outras, desmistificando a concepção de que a esse público só podem ser oportunizados serviços braçais e mecânicos que não exijam a capacidade de abstração.

A segunda participante é ficticiamente denominada de Laura, uma mulher de 35 anos com síndrome de Down. Concluiu o Ensino Fundamental e, em seguida, realizou cursos profissionalizantes como o de massagista que possibilitou o ingresso no mercado de trabalho. Trabalha há nove anos em uma farmácia de medicamentos homeopáticos e realiza diversas tarefas como o serviço de banco, manipulação de florais, massagens, entre outros. As atividades exercidas por Laura exigem habilidades complexas, tanto de sociabilidade, como cognitivas, contrariando o que comumente é esperado e observado da realidade desse público, a quem são ofertados serviços considerados simples e mecânicos. Da história de Laura, surgiu o interesse e o questionamento: o que pode ter contribuído para o sucesso de sua trajetória? Conhecer sua percepção sobre o que a levou a atuar em um papel diferente daquele esperado pela sociedade tornou-se nossa motivação.

2.2 Instrumento de coleta de dados: entrevistas

Não havia um roteiro estruturado, mas temas norteadores como o trabalho, a escola e a família. Cada tema contava com subtítulos a que denominamos de pistas, caso os participantes precisassem de esclarecimentos ou mais objetividade, uma vez que os temas eram amplos.

Com cada participante, foram realizados três encontros em suas próprias casas que tiveram a duração média de 50 minutos. As entrevistas foram gravadas em áudio e transcritas logo após a sua execução. As transcrições foram realizadas integralmente, porém com alguns ajustes e tratamento das falas, de modo a preservar os significados. Foram corrigidos apenas erros de português que dificultassem a leitura posterior e mantidos aqueles próprios da linguagem oral que não interferiam na compreensão do leitor.

As transcrições foram transformadas em textos narrativos que, desmontados e fragmentados, originaram um novo texto, a que Moraes (2003) denomina de “Metatexto”. Para que o novo texto se tornasse o mais claro possível tendo em vista a descontextualização causada pela fragmentação do corpus, foi necessário adequar algumas narrativas de eixos anteriores ou posteriores à nova sequência, tornando o sentido o mais claro possível.

2.3 Análise de dados

Utilizamos a análise temática que acontece a partir do envolvimento com os dados, da busca por novos sentidos e compreensão, originando as Categorias Emergentes (Moraes, 2003). As transcrições foram agrupadas por eixos como Escola, Família e Trabalho. Esse processo permitiu estarmos atentos e sensíveis à construção do novo, descobrir categorias até então ocultas e relacioná-las com as concepções teóricas.

A partir dos Eixos, surgiram os temas que não foram estabelecidos a priori, mas emergiram das falas dos próprios participantes, aos quais denominamos Temas Emergentes: Formação para o trabalho e Preparação para o mercado; Trabalho como princípio de humanização e Trabalho como princípio de desumanização; Deficiência como condição biológica e Deficiência como condição social. No presente artigo, trataremos do tema Trabalho como princípio de humanização ou desumanização.

3 Resultados e discussão

Pesquisas têm evidenciado a falta de escolaridade das pessoas com deficiência intelectual como o maior entrave para a entrada e a permanência no mercado de trabalho (Lima, Tavares, Brito, & Cappelle, 2013; Pereira & Passerino, 2012). Ressaltamos que o critério comumente estabelecido pelas empresas para a contratação é o Ensino Médio completo (RAIS, 2016); assim, para realizar as funções em cargos existentes, o candidato deve ter domínio da leitura, da escrita e de cálculos elementares. Trata-se de uma exigência compreensível e até baixa para a atualidade em que o acesso à informação e à escolaridade está facilitado; no entanto, o que preocupa, é que dificilmente essa exigência é atendida quando se trata de pessoas com deficiência intelectual, sendo, portanto, a maior justificativa dos empresários para não contratá-los (Araújo & Schimidt, 2006; Tanaka & Manzini, 2005; Veltrone & Almeida, 2010; Violante & Leite, 2011).

Mesmo tendo passado em média uma década que os estudos mencionados evidenciaram a falta de escolaridade e de formação desse público que corresponda às reais necessidades do mercado de trabalho (Nascimento & Miranda, 2007), o cenário não mudou, como demonstra o estudo de Lorenzo (2016), em que os empresários continuam alegando a falta de qualificação de sujeitos com deficiência intelectual que comumente não chegam a concluir o Ensino Fundamental.

Essa problemática persiste ao passar dos anos e explica os salários mais baixos para pessoas com deficiência intelectual quando comparado a deficiências física, visual, auditiva, com oferta de postos de trabalho considerados simples como demonstram os dados da RAIS (2016). Lima et al. (2013) constataram que sujeitos com deficiência auditiva e física trabalhavam no setor administrativo e adquiriram formação e qualificação profissional, diferentemente daqueles com deficiência intelectual, que ocupavam predominantemente cargos de auxiliares de serviços gerais.

Contrariando as estatísticas, os participantes do presente estudo estudaram em escolas regulares, capacitaram-se com cursos profissionalizantes e dominam a leitura, a escrita e os cálculos matemáticos elementares; em outras palavras, eles atendem aos critérios de contração do atual cenário de trabalho. Esse fato permitiu que alcançassem não apenas o ingresso, mas também a progressão nas empresas em que trabalham.

Caio vivenciou outras experiências de trabalho antes do atual emprego. Desde os 15 anos de idade, ele vendia produtos do sítio dos avós com quem mora e ajudava no plantio e na colheita. Posteriormente, obteve seu primeiro emprego formal como empacotador em um supermercado. Sobre o início no atual emprego, Caio diz:

Ah no comecinho... todo mundo acreditou em mim que eu conseguiria ficar lá. Meu supervisor me apoiou e ainda apoia [...]. No começo eu estava no corte e solda [...]. Mas aqui eu tenho chance de crescer. Porque na outra cidade eu não tinha chance de crescimento. (Caio).

Apoio e oportunidade de progressão, assim como perspectivas de crescimento, nem sempre é o que a pessoa com deficiência intelectual encontra, como indica o estudo de Bezerra e Vieira (2012), que constataram a desigualdade de oportunidades no ambiente de trabalho. Além disso, Violante e Leite (2011) apontaram a falta de flexibilidade das empresas, o que sugere que o próprio sujeito tem que se adequar às exigências delas, sendo, portanto, ele próprio o responsável pelo sucesso ou insucesso de sua inclusão. Caio parece estar ciente dos obstáculos, talvez por sua experiência no emprego anterior, e isso faz com que estime a atual empresa e pretenda nela permanecer e progredir, o que não significa, entretanto, que ele mesmo não seja o maior responsável pelo sucesso de sua inserção laboral.

Os relatos de Caio durante os encontros não evidenciam flexibilidade ou adequações da empresa, nenhuma oferta de formação que atendesse aos seus interesses ou às suas necessidades; antes, demonstram seus próprios esforços para construir um currículo que corresponda às perspectivas do mercado de trabalho. Para crescer na empresa, deu continuidade aos estudos e planeja fazer um curso de mecânica para atuar no setor de sua preferência.

Embora esse fosse seu primeiro emprego, Laura também progrediu, como evidencia seu relato: “No começo fazia massagem [...], hoje não dá mais tempo” (Laura). Laura refere-se às funções que realizava ao ingressar na farmácia. Em princípio, foi contratada para recepcionar os clientes enquanto aguardavam atendimento e oferecer-lhes uma massagem, o que já não era pouco, considerando que, não é comum a presença de pessoas com deficiência em contato direto com o público.

No entanto, quando as colegas de trabalho foram à outra cidade realizar um curso de manipulação de florais, Laura demonstrou interesse e tomou a iniciativa de questionar o porquê de não poder realizar também. O proprietário autorizou e, como consequência de seu bom desempenho no curso, Laura passou a atuar no laboratório, além de outros setores que oportunizam diariamente a descoberta de suas potencialidades. Laura recebe apoio e vislumbra possibilidades de progressão: “Tenho vontade de fazer as coisas que a farmacêutica faz, xampu, creme, xarope, o mel é xarope pra por no vidro”. Relata ainda o sentimento de segurança que encontra: “ele sempre cuidou de mim [referindo-se ao empregador]. Ele é cuidadoso. Ele é importante. Ele é importante pra mim pra cuidar. [...] o cuidado, proteção” (Laura).

Caio e Laura encontraram um ambiente receptivo e propício ao desenvolvimento, com apoio, cuidado e estímulo, podendo ainda vislumbrar no outro novas possibilidades, como Laura que gostaria de realizar os serviços da farmacêutica e Caio que almeja tornar-se um mecânico. Suas atividades laborais são dotadas de sentido, sentem-se valorizados e realizam-se no trabalho, especialmente Caio que já havia passado por experiência de descrédito e discriminação no emprego anterior “Eu comecei a trabalhar com 16 anos no mercado, no comecinho eu gostei, mas depois pedi a conta e saí. Exploravam. O salário era feio” (Caio).

Aos protagonistas deste estudo foi concedida a oportunidade de se desenvolver enquanto humanos, independentemente de qual seja a sua condição biológica, fato que os diferem de tantos outros sujeitos com deficiência intelectual que, privados da cultura e do conhecimento, sobrevivem à margem do mercado de trabalho, da escolarização, da sociedade como um todo. Barroco (2012) traz a reflexão sobre a consciência que diferencia o homem dos animais, e que é formada durante intensa relação com o mundo do trabalho. Nessa perspectiva, a consciência humana é constituída em maior ou menor proporção de acordo com as relações postas a esse sujeito, o que significa que a prática social determina o que e o quanto há de humano no homem, independentemente de suas condições orgânicas.

Nesse sentido, podemos afirmar que as relações de trabalho postas à Laura têm cumprido o papel em seu desenvolvimento como ser humano, deixando para trás os paradigmas criados em relação à pessoa com Síndrome de Down de que são incapazes de desenvolverem suas funções superiores. Dessa forma, Laura recusa-se a aceitar práticas que envolvam serviços mecânicos e repetitivos, como explicita em sua fala:

Não gosto de montar conta-gotas! É difícil ficar montando conta-gotas... e tem duas coisas que eu não gosto né, conta-gotas e lavar a louça do vidro, ficar lavando vidro, pra mim é difícil. Às vezes ficam estressando a minha cabeça [referindo-se às colegas de trabalho]: “Vai pro banco, vai pra lotérica!”. Eu falo: “Ai Deus, o que eu faço?”. (Laura).

No entanto, questionar, argumentar, ou mesmo se negar, nem sempre são tarefas fáceis para pessoas que historicamente tiveram suas vozes caladas. Mesmo tendo outros planos, Caio conta que será transferido de setor por motivos de produção. No caso, ele, sujeito com deficiência intelectual, produz em maiores quantidades do que o funcionário responsável pela função. Caio não contesta ou se entusiasma com o novo cargo, tampouco demonstra insatisfação ou esboça qualquer reação e, quando questionado sobre isso, responde:

Pode me colocar, eu não ligo não, eu monto certo, eu faço no tamanho certo. As bandeirinhas assim ó, pequenininhas assim ó, em um dia eu fiz duzentas. O senhor fazia umas dez a vinte só, enrolava. Eu converso pouco lá, o que tem que fazer eu faço, mas conversar só depois que não tiver serviço. (Caio).

Caio orgulha-se de sua capacidade de produção e sua resposta remete ao curso que realizou para capacitação ao trabalho: “aprendi como fazer o serviço certo para o cliente, pra ele não achar ruim com a gente”; “se o chefe falar pra fazer tal coisa tem que fazer”. Com essas internalizações, não se permite questionar ou expressar seus desejos, seus interesses e seus planos como o projeto de passar ao setor de mecânica. Mesmo tendo perspectivas de progressão no trabalho, Caio deixa que a empresa tome a decisão de para onde vai “é ou mecânica ou qualquer outra coisa que quiserem me colocar”. Não podemos desconsiderar que o papel exercido por Caio na sociedade é de pessoa com deficiência intelectual; logo, sujeito sem voz ativa em tomadas de decisões, ainda que estas sejam sobre sua própria vida. É comum que os familiares ou profissionais da saúde e da educação decidam sobre quando e onde poderão estudar, assim como quando interromper os estudos, e, não diferentemente, o trabalho assume a nova posição de determinar o que podem ou não realizar. Os relatos de Caio demonstram ainda o teor de suas relações na empresa:

Eu converso pouco lá. Eu não gosto de gente que fica atrapalhando o meu serviço... Ah, fazem umas brincadeiras lá que eu não gosto [...], se essa pessoa chegou e falou mal de você, não ouve, fica na sua... eu falaria isso ó: trabalha sossegado e nem ouve o que falam de você. (Caio).

Poucas conversas, pessoas atrapalhando seu serviço, brincadeiras que o desagradam, colegas que falam “mal”. Resumidamente, são essas as práticas sociais impostas a Caio, relações que contribuem, ou ao menos deveriam, com a formação do que é humano em si (Barroco, 2012) e que talvez possam explicar a dificuldade que encontra em se expressar, falar sobre seus planos, revelar seus interesses e projetos.

Diferentemente, Laura consegue expressar suas expectativas acerca de como deseja realizar seu trabalho, priorizando a autonomia conquistada:

Eu gosto mais da Carla. Eu gosto mais dela porque me deixa sozinha. Eu sempre fui sozinha pra fazer minhas coisas. É importante pra mim fazer sozinha! [...] O João Paulo (contratante) é diferente de mim, bem diferente da minha qualidade. Ele faz do jeito dele. Eu faço do meu jeito. Cada um tem um jeito. De vez em quando, tem que brigar um pouco, sai uma briguinha (Laura).

Para Silva (2009), conviver na diversidade não é o mesmo que tornar-se um sujeito passivo e que tudo suporta, assumindo o papel exclusivo de espectador. Antes, conviver em coletividade significa imprimir sua individualidade, suas experiências de vida, considerando-as como aspectos que tendem a enriquecer as relações. Entretanto, não é uma tarefa espontânea e fácil para a pessoa com deficiência intelectual que se constituiu em uma sociedade organizada para os ditos normais. Sua individualidade é considerada inferior e tentar imprimi-la pode ser um doloroso processo de luta e quebra de paradigmas.

Laura imprime sua individualidade quando reconhece que cada sujeito tem suas próprias especificidades o que os tornam diferentes e não melhores ou piores e considera as discussões importantes para que se chegue a um consenso. Ela luta para manter sua autonomia em fazer o que gosta e de forma independente, reconhecendo o quanto é importante para o seu desenvolvimento mesmo acreditando que nem sempre é tratada com igualdade:

Valorizam bastante meu trabalho, mas... depende, vai depender porque tem um dia que ensina, e tem dia que não! E as fórmulas são delas, depende que eu falei, porque as fórmulas são da Ellen, da Regina, fórmulas delas e... depende pra mim (Laura).

Laura interpreta como desvalorização profissional e desconsideração com os seus interesses a inconstância e pouco tempo das colegas em dedicarem-se a ensiná-la. Questiona o porquê de as fórmulas pertencerem às parceiras que relutam em compartilhar. Segura de suas capacidades e conquistas até então, Laura, por um breve momento, parece ter sua confiança abalada, ou, ao menos, confusa por não compreender o porquê de ainda não ter alcançado seu objetivo, chegando a se culpabilizar na ânsia por uma justificativa - “essa parte eu não consigo fazer”. Não consegue fazer devido a sua condição orgânica de pessoa com síndrome de Down? Ou será que não o faz devido à falta de oportunidade resultantes das sequelas sociais da deficiência, como afirma Vygotsky (1997)?

Kassar (2013) ressalta que a sociedade rotula o comportamento da pessoa com deficiência intelectual como desprovido de significado e sentido, julgando-a incapaz de produzir cultura. Alves (2018) acrescenta que a sociedade também as julga incapazes de significar as situações cotidianas como se não compreendessem o que acontece, o que dizem ou pensam a seu respeito.

Vygotsky (2009) sugere que consideremos o discurso do sujeito para além dos significados de suas palavras. É dessa forma que observamos, na fala de Laura, a capacidade que possui de significar e de atribuir sentido às atitudes de seus parceiros de trabalho, mesmo quando as palavras não lhes são ditas e que os gestos não sejam tão explícitos, o que comprova a existência de funções psíquicas superiores, comumente desconsideradas em pessoas cuja deficiência seja a intelectual. Dessa forma, quando os pares dizem não ter tempo para ensiná-la, Laura significa: “não me valorizam na empresa”. Quando ensinam em alguns dias e em outros não o fazem, Laura interpreta: “não se comprometem com o meu trabalho”. Da mesma forma, Caio domina a linguagem e os signos, atribuindo sentido à situação em que não o convidarampara um almoço, na antiga empresa em que trabalhava. É preciso ter capacidade de abstração e de atenção aos fatos que se delineavam à sua volta para perceber que pessoas foram convidadas, quem não foi, por que não o foi, significando a situação: “sofri discriminação”. É preciso ainda dominar a memória voluntária trazendo a tona fatos passados permeados por representações simbólicas que se entrelaçam aos fatos do presente formando explicações coerentes em um discurso intencional e tecendo expectativas quanto ao futuro. “Essa capacidade de significar só é alcançada em meio às relações sociais, após domínio da linguagem e signos, sendo importante aquisição cultural que diferencia radicalmente o homem dos animais” (Alves, 2018, p. 112).

Pino (2005) destaca a capacidade do homem em significar e a denomina como o lado não natural da natureza, o que significa que a condição biológica e natural do sujeito adquire uma nova configuração; desta vez, simbólica. Dessa forma, é possível analisar a capacidade de Caio em significar uma situação aparentemente simples, mas que o tira de sua condição exclusivamente natural, transportando-o para o mundo simbólico e especificamente humano.

Enquanto Caio observa a movimentação à sua volta com os olhos atentos e curiosos, ele percebe que os fiscais entregam convites para seus parceiros de trabalho. Foi capaz de, mesmo realizando seu trabalho em que aparentemente mantinha-se concentrado (talvez, assim o julgassem os fiscais e os colegas), escutar os sussurros e comentários acerca do evento. Buscou imediatamente em sua memória se porventura não teria ele também recebido o convite. Durante esse episódio, dolorosamente descrito por Caio, destacaram-se os aspectos naturais ou biológicos que o permitiram vivenciar o acontecimento: visão, audição e memória imediata.

No entanto, o mais importante de toda a situação está no lado não natural, ou seja, na significação atribuída, que confere a situação em questão uma nova roupagem, dessa vez simbólica. Caio interpretou (função simbólica) que sofreu uma situação de discriminação na qual não foi convidado devido às consequências sociais de sua condição biológica. Adotando as palavras de Pino (2005), cabe-nos então perguntar “o que é que a cultura faz na natureza do mundo e do próprio homem? Confere-lhes significação, isso que elas não têm e que ao tê-lo não são mais simplesmente o que eram antes” (Pino, 2005, p. 170).

A busca pela compreensão do significado que Caio e Laura atribuíram ao trabalho, mesmo tendo vivenciado situações nem sempre amistosas, torna-se instigante. Quais seriam os motivos que levaram esses jovens a enfrentar o mundo do trabalho? É válido ressaltar que ambos têm uma situação financeira familiar confortável e não dependem do trabalho para manter suas despesas. Viagens, restaurantes e uma vida confortável já faziam parte do cenário desses sujeitos, mais uma vez destoando da realidade vivenciada por muitas pessoas com deficiência que precisam de um salário para auxiliar nas despesas de casa, sendo essa a única ou maior motivação para o trabalho. Essa informação é relevante para a reflexão dos motivos que os levaram a ingressar no mercado formal de trabalho, tornando a vida tranquila de outrora mais agitada, com responsabilidades e experiências nem sempre agradáveis.

Desse modo, é possível inferir que o sentido do trabalho para os participantes dessa pesquisa está para além do aspecto financeiro, uma vez que, no e pelo trabalho, se desenvolveram intelectual e diariamente. Caio e Laura foram convidados a refletir sobre seus próprios motivos e inicialmente atribuíram ao dinheiro a principal motivação. No entanto, quando provocados pela pesquisadora sobre a possibilidade e o direito de receberem um auxílio financeiro e deixarem de trabalhar, rejeitaram enfaticamente, demonstrando a verdadeira importância do trabalho para as suas vidas:

Eu sempre quis trabalhar. Agora vou receber um apoio financeiro sem fazer nada? Ah... eu vou continuar trabalhando do mesmo jeito. Se quiser dar apoio financeiro pode dar, mas eu vou continuar trabalhando do mesmo jeito! Se quiser me aposentar, pode aposentar, mas eu vou trabalhar do mesmo jeito! (Caio).

Os participantes desta pesquisa falaram sobre a importância do trabalho em suas vidas e corroboraram a hipótese de que significa muito mais do que o aspecto financeiro, agindo diretamente no bem mais precioso do homem, na sua humanização, ainda que o dinheiro não seja desconsiderado:

Depois que eu entrei no trabalho, as pessoas me tratam bem. Depois que eu tenho o meu serviço eu fiquei diferente. Eu conheço pessoas novas também. Antes de trabalhar, eu era mais tímido (Caio).

O meu jeito que mudou, o meu jeito pra trabalhar. Faço tudo sozinha. Ninguém dá palpite. [...]. E vai ensinando eu também. Tempinho pra divertir. Brincadeiras, divertir, pra dar risada, bater papo... (Laura).

Caio destaca a forma diferente como é tratado, talvez com maior credibilidade, além de superação da timidez e da socialização. Laura, por sua vez, dá ênfase à autonomia conquistada, às atividades realizadas de forma independente e à percepção de que conquistou a confiança da sociedade em seu trabalho e potencialidades. Menciona ainda as aprendizagens, as conversas e os momentos de diversão. Tais vivências não seriam possíveis se estivessem protegidos em casa, recebendo um auxílio financeiro e desapropriados dos bens culturais, mais significativos do que os bens materiais adquiridos.

Os motivos que inicialmente levaram esses sujeitos a ingressarem no mercado formal de trabalho foram transformados. A esse respeito, Leontiev (2006) explica que uma atividade é composta por motivos compreensíveis e por motivos eficazes. Na história dos protagonistas desta pesquisa, os motivos que os levaram a adentrar no mundo do trabalho são aqueles compreensíveis e comuns à maioria das pessoas, independentemente de sua condição orgânica, como a renda financeira e a necessidade de pagar suas despesas básicas. No entanto, durante o processo de desenvolvimento da atividade, os motivos compreensíveis transformam-se e elevam-se a um nível mais profundo, e o resultado de suas ações torna-se significativo e superior aos motivos iniciais que os levaram ao trabalho (Leontiev, 2006). Além de pagar suas despesas, modificam-se interiormente tornando-se pessoas diferentes, capazes, desenvoltas, autônomas, assim como exteriormente, passando a ser respeitadas e consideradas em seus desejos e capacidades, podendo ser os motivos, verdadeiramente eficazes para despertarem todas as manhãs e enfrentar os obstáculos advindos do trabalho.

Podemos apontar diferenças na forma como Laura e Caio se posicionaram diante dos obstáculos encontrados no trabalho. Laura assume um posicionamento crítico, questionador e demonstra ser plenamente conhecedora de sua identidade biológica e social de pessoa com Síndrome de Down. Tem conhecimento dos obstáculos sociais que enfrenta devido à sua condição orgânica, bem como de seus limites e de suas potencialidades. Não aceita passivamente tarefas que julga não contribuírem para o seu desenvolvimento e manifesta claramente seus interesses, esperando que seja respeitada em suas especificidades.

Caio, por sua vez, assume um discurso menos crítico em relação ao trabalho, adotando uma postura passiva, por vezes até mesmo infantilizada, como se temesse perder as conquistas até então adquiridas se porventura se colocasse de forma mais questionadora ou manifestasse seus interesses. Aparenta confusão em relação à sua própria identidade de pessoa com deficiência intelectual e encontra na obediência e na produção exacerbada a segurança de que não sofrerá mais cenas de discriminação. Enquanto Laura parece enfrentar e refletir sobre tais situações, Caio busca evitar os confrontos e não ouvir as concepções a seu respeito.

As diferenças de posicionamento e próprio desenvolvimento do que há de humano nesses participantes podem ser consequentes da forma como foram vistos e preparados por e para uma sociedade que frequentemente ensina o papel de deficientes que deles espera ser representado (Glat, 2009). Na trajetória dos participantes, podemos destacar o papel fundamental que a família exerceu em sua constituição, seja incentivando a autonomia e o autoconhecimento, ou a passividade e as incertezas acerca de suas possibilidades, destacando-se de forma mais marcante o empoderamento da família de Laura.

Contudo, mesmo com as diferenças no desenvolvimento e na postura de Laura e Caio, advindos da forma como se constituíram, ambos comprovaram que ainda é possível se modificar por meio do trabalho: “eu fiquei diferente” (Caio); “o meu jeito que mudou” (Laura), sendo esta a sua original finalidade: modificar a natureza externa, e, sobretudo, a sua própria natureza interior, humanizando-se por meio de sua atividade. Dessa forma, “o homem age sobre as pessoas e sobre si mesmo, produzindo mudanças nelas e em si próprio” (Pino, 2005, p. 148). Os signos foram culturalmente apropriados e passaram a comandar as ações de Caio e Laura, provocando significativas mudanças interiores. Esses sujeitos adquiriram autoconhecimento e autodomínio, sendo estas as principais características que nos fazem humanos.

É importante ressaltarmos dois aspectos distintos do trabalho. No princípio, o trabalho age como criador da sociedade humana, assim como do próprio homem em um intenso processo de humanização. Com as transformações ocorridas no passar do tempo, a partir do advento capitalista, a atividade de trabalho tornou-se desprovida de sentido, assumindo a forma de trabalho assalariado. Deformado em seu real sentido, o trabalho deforma consigo o próprio homem, que o encara apenas como um fardo necessário para sua sobrevivência, e não mais como necessidade de realização humana, tornando-se estranho ao que produz (Antunes, 2005). O homem perde o seu bem mais precioso, troca o que há de humano, o acesso aos bens culturais, o desenvolvimento de suas funções superiores, por um salário incapaz de suprir suas necessidades, garantindo-lhes, entretanto, uma sobrevida.

Em meio a esse cenário de desesperança e de separação entre trabalho manual e intelectual (sendo este último privilégio de poucos), dois sujeitos com deficiência intelectual contrariam tudo o que era previsível como o atual contexto social de trabalho, os estigmas socialmente a eles atribuídos, os limites biológicos da deficiência e incontáveis outros obstáculos, e resgatam no trabalho o seu genuíno sentido. Transformam-se interiormente, constroem novas possibilidades de desenvolvimento e criam relações sociais especificamente humanas. O trabalho permitiu que não fossem tidos apenas como deficientes, mas como sujeitos culturais, trabalhadores que, como qualquer outro, possuem limitações, mas que são superadas por mediações de instrumentos, signos e humanas restituindo seu verdadeiro sentido.

E avançando na abstração, esse mesmo trabalhador autônomo, autodeterminado e produtor de coisas úteis tornará sem sentido e supérfluo o capital, gerando as condições sociais para o florescimento de uma subjetividade autêntica e emancipada. Dando, desse modo, um novo sentido ao trabalho e dando à vida um novo sentido. Resgatando a dignidade e o sentido de humanidade social que o mundo atual vem fazendo desmoronar. (Antunes, 2005, p. 66).

Para Lorenzo (2016), mesmo com adversidades, o não trabalhar pode ocasionar consequências ainda mais prejudiciais à vida da pessoa com deficiência. Ainda que com mazelas como discriminação, desvalorização e até mesmo fragmentação da atividade laborativa, Caio e Laura comprovaram que é possível o desenvolvimento humano por meio do trabalho, sendo, dessa forma, imensuráveis os ganhos quando comparados às adversidades.

4 Considerações finais

Duas histórias foram apresentadas com o intuito de demonstrarem que o trabalho se constitui em importante instrumento de desenvolvimento humano. Por meio do trabalho, essas pessoas transformaram o contexto externo, quebraram estereótipos e padrões sociais ao provarem que têm condições de atuar nas empresas e de realizar atividades que demandam funções psíquicas superiores como criatividade, abstração, linguagem, conceitos, entre outros. Caio e Laura resistiram às concepções construídas ao seu respeito atreladas à incapacidade e potencializaram as oportunidades oferecidas. O trabalho propiciou que se modificassem internamente, que descobrissem do que são capazes e que vissem seus feitos mesmo diante de olhares incrédulos. Tornaram-se independentes, críticos, autônomos e se desenvolveram cognitivamente por meio das atividades laborais em que puderam unir a teoria à práxis. Resgatando o verdadeiro sentido do trabalho, humanizaram-se, transformaram a natureza externa, e mais além, a sua própria natureza interior tornando-se seres simbólicos.

O sucesso das histórias apresentadas não se deve a uma única ação isolada de uma instituição ou indivíduo, mas ocorreu por meio de um trabalho em conjunto, em que várias instâncias, como a família, a legislação, a educação, a saúde e a empresa, cumpriram o papel de capacitar, dar oportunidades e assegurar serviços de suporte que oportunizaram às pessoas com deficiência intelectual o acesso aos bens culturais, historicamente negligenciados.

Os substratos biológicos foram ampliados, uma vez que não há limites para a ação da cultura que é capaz de agir até mesmo nos impedimentos advindos da deficiência. A linguagem bem articulada, as significações atribuídas ao comportamento do outro, o ingresso e a progressão no trabalho são evidências da ação cultural, especificamente humana, sobre o natural, permitindo com que esses sujeitos realizassem atividades habitualmente não vistas e consideradas impossíveis para uma pessoa com deficiência intelectual, como, por exemplo, trabalhar em um laboratório de farmácia.

Embora haja na literatura importantes pesquisas que abordem a percepção de pessoas com deficiência, bem como o trabalho por meio da visão dos contratantes e das instituições especiais ou regulares, este artigo diferencia-se por abordar a importância do trabalho no desenvolvimento humano desses sujeitos. O estudo poderá contribuir ao suscitar reflexões acerca do papel da educação em relação ao trabalho, não sendo compreendidos como dois processos dissociados; antes, trabalho e educação completam-se e unificam-se. Compreendemos que educar para o trabalho consiste em preocupar-se com a formação integral de um sujeito que, após adquirir conceitos científicos e desenvolver suas funções psíquicas superiores, se humaniza por meio de sua atividade, independentemente de sua condição biológica. Esse formato em nada se assemelha ao mero treinamento técnico de uma função específica e tampouco consiste na fragmentação entre educação e trabalho.

As histórias apresentadas neste artigo não são comuns e evidenciam a necessidade de mudanças na sociedade, para além do discurso inclusivo, uma vez que não se encontra, por vezes, consistência entre discurso e prática. Apenas dessa forma outras histórias como as de Caio e Laura se tornarão comuns, regras, e não raras exceções.

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Recebido: 12 de Junho de 2019; Revisado: 03 de Setembro de 2019; Aceito: 09 de Setembro de 2019

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