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Revista Brasileira de Educação Especial

versión impresa ISSN 1413-6538versión On-line ISSN 1980-5470

Rev. bras. educ. espec. vol.26 no.3 Marília jul./sept 2020  Epub 12-Ago-2020

https://doi.org/10.1590/1980-54702020v26e0143 

Relato de Pesquisa

Análise de Solicitações ao Ministério Público sobre o Direito das Pessoas com Deficiência à Educação

Larissa Gomes Ornelas PEDOTT2 
http://orcid.org/0000-0001-6429-5379

Carla Biancha ANGELUCCI3 
http://orcid.org/0000-0002-9036-7396

2Mestre em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP). São Paulo/São Paulo/Brasil. E-mail: larissa.pedott@gmail.com.

3Doutora em Psicologia Social. Professora no Departamento de Filosofia da Educação e Ciências da Educação. Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo (USP). São Paulo/São Paulo/Brasil. E-mail: b.angelucci@usp.br.


RESUMO

Este trabalho analisa as solicitações referentes ao direito à educação do público-alvo da Educação Especial que chegam ao Grupo de Atuação Especial de Educação - Geduc - do Ministério Público do Estado de São Paulo, desde sua criação em 2011 até o final de 2017, totalizando 163 procedimentos. Busca-se depreender com que intuito, de que maneira e por quais setores da sociedade tal instância é acionada. Utilizaram-se as seguintes categorias: proponentes das solicitações, tipos de reivindicações, rede de ensino a que se referem e variação na quantidade de solicitações ao longo dos anos. Percebe-se que a maior parte das solicitações endereçadas ao Ministério Público são propostas por familiares das pessoas com deficiência, referindo-se a pleitos envolvendo suportes para escolarização em classes comuns de escolas regulares, sobretudo, na rede estadual de ensino de São Paulo. Quanto à variação de solicitações, nota-se um grande número de solicitações nos primeiros anos após a criação do Geduc, com um decréscimo nos últimos anos, o que poderia relacionar-se à maneira como este Grupo vem atuando. Verifica-se a reconfiguração das atuações do Geduc ao longo do período de 2011 a 2017, com a presença de elementos representativos da disposição para atuar na transposição da queixa inicial para a demanda efetiva subjacente. Assim, em vez de respostas diretas requerendo a execução da solicitação por parte das/os representadas/os, são encontradas ações mais demoradas de promoção de diálogo sobre o problema posto. Entende-se, portanto, que as solicitações podem ser utilizadas como ferramenta de ampliação e de qualificação do diálogo entre Ministério Público, sociedade civil e Poder Executivo, visando à universalização do direito à educação.

PALAVRAS-CHAVE: Educação Especial; Educação Inclusiva; Políticas públicas; Ministério Público; Deficiência

ABSTRACT

This paper analyzes the requests regarding the right to education of the Special Education target population that reach the Special Education Action Group (Grupo de Atuação Especial de Educação - GEDUC) of the Public Ministry of the State of São Paulo, from its creation in 2011 until the end of 2017, totaling 163 procedures. It seeks to understand with what purpose, in what manner and by which sectors of society such an instance is triggered. The following categories were used: proponents, types of claims, education network to which they refer and variation in the number of requests over the years. It is noticed that most of the requests addressed to the Public Ministry are proposed by family members of people with disabilities, referring to claims involving support for schooling in common classes of regular schools, especially in the state school system of São Paulo. As for the variation in requests, there is a large number of requests in the first years after the creation of GEDUC, with a decrease in recent years, which could be related to the way this Group has been operating. There is a reconfiguration of GEDUC’s actions over the period from 2011 to 2017, with the presence of elements representative of the willingness to act in the transposition of the initial complaint to the underlying effective demand. Thus, instead of direct responses requiring the execution of the request by the represented parties, more time-consuming actions are found to promote dialogue on the problem posed. It is understood, therefore, that requests can be used as a tool to expand and qualify the dialogue between the Public Ministry, civil society and the Executive Branch, aiming at the universalization of the right to education.

KEYWORDS: Special Education; Inclusive Education; Public policies; Public Ministry; Disability

1 Introdução

Esta pesquisa trata da interface Educação e Justiça, no contexto da garantia do direito à educação para o público-alvo da Educação Especial, qual seja: pessoas com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento ou altas habilidades/superdotação (Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva [PNEEPEI], 2008). O objeto de análise constituiu-se de procedimentos instaurados pelo Grupo de Atuação Especial de Educação (Geduc) do Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP), composto por promotores de justiça, em uma atuação em parceria com profissionais do Serviço Social e da Psicologia, sendo estas/es últimas/os membras/os do Núcleo de Assessoria Técnica Psicossocial (NAT). Há de considerar-se que a função do Geduc é identificar, prevenir e reprimir atos ou omissões correspondentes à violação ou à ameaça a interesses difusos , relativos ao direito à educação, em especial aos princípios assegurados na Constituição Federal (CF) de 1988.

Assim, o objetivo geral deste trabalho foi analisar as solicitações recebidas pelo Geduc relativas à garantia ao direito à educação do público-alvo da Educação Especial, desde a sua criação em 2011 até o final do ano de 2017, a fim de depreender com que intuito e de que maneira tal instância é acionada pelos diferentes setores da sociedade. Para tanto, foram sistematizadas 163 solicitações dirigidas por diversas/os agentes sociais ao MP no período compreendido entre os anos de 2011 e 2017, relacionadas à garantia do direito à educação por parte do público-alvo da Educação Especial.

Os objetivos específicos foram: a) caracterizar as solicitações recebidas pelo Geduc quanto a suas/seus proponentes, aos tipos de reivindicações, à rede de ensino a que se refere e como tem sido a variação da quantidade de solicitação por tema ao longo dos anos; b) caracterizar a forma como o Geduc tem atuado a partir da recepção da solicitação, elencando as principais articulações empreendidas a partir da queixa inicial.

1.1 Educação Especial

Em 2006, foi homologada, pela Organização das Nações Unidas (ONU), a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Decreto no 6.949, de 9 de julho de 2009), sistematizando os estudos e os movimentos decorrentes da última década do século XX, afirmando a necessidade de desenhos de políticas públicas fundamentadas nos princípios dos Direitos Humanos. Conforme destaca Palacios (2008), ao discutir a história da elaboração da Convenção:

El objeto, en principio, no fue crear nuevos derechos, sino asegurar el uso del principio de no discriminación en cada uno de los derechos, para que puedan ser ejercidos en igualdad de oportunidades por las personas con discapacidad. Para ello, se debió identificar, a la hora de regular cada derecho, cuales eran las necesidades extra que debían garantizarse, para lograr adaptar dichos derechos al contexto específico de la discapacidad. (p. 269).

O documento é considerado o grande símbolo do reconhecimento internacional da importância do tema, envolvendo uma discussão em caráter mundial, tendo seu Protocolo Facultativo assinado em 30 de março de 2007 pelo Brasil, decidindo pela adesão à Convenção, promulgando o Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009, o qual foi aprovado pelo Congresso Nacional, passando a ter caráter de Emenda Constitucional.

No mesmo período, o Ministério da Educação (MEC) divulgou a PNEEPEI (2008). Como afirma Kassar (2011):

É inegável o impacto dos acordos e compromissos internacionais na formulação de políticas, programas e ações. A própria concepção de direitos humanos é formatação de um ideário de homem, que corresponde historicamente à idéia ocidental-liberal de justiça e igualdade. No entanto, na complexidade da formulação das políticas públicas, as relações das interferências não são unilaterais e tampouco mecânicas. (p. 54).

A Política de 2008, fruto de tensionamento e de disputas que permanecem até os momentos atuais, afirma a escolarização em classes comuns de escolas regulares como princípio da garantia ao direito à educação, com acesso pleno ao currículo por meio da remoção de barreiras e provimento de apoios.

Em 6 de julho de 2015, foi instituída a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI - Lei nº 13.146), a qual, inspirada na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, representou um importante avanço na promoção de direitos, visando à garantia de direitos fundamentais a esse segmento populacional. A LBI considera como pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.

A LBI dedicou um capítulo específico à oferta educacional, ratificando, por exemplo, a ilegalidade de cobrança de taxas extras por parte das instituições de ensino privadas e públicas para matrícula de alunas/os com deficiência ou para o fornecimento de suportes necessários. Sobre a oferta dos suportes preconiza que deve ser organizada a partir do reconhecimento e do enfrentamento das barreiras que impedem a/o estudante de estar na sala de aula comum. As barreiras são das mais distintas naturezas: urbanística, arquitetônicas, atitudinais, tecnológicas, nos transportes, na comunicação e na informação (Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015). O trabalho incide sobre o planejamento de ações intraescolares e intersetoriais para o enfrentamento desses impedimentos, postos no ambiente social.

1.2 O Ministério Público

Segundo a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, que dispõe sobre normas gerais para a organização do Ministério Público (MP) dos Estados, o MP é uma instituição pública autônoma, a qual, não pertencendo a nenhum dos denominados três Poderes brasileiros (Judiciário, Executivo e Legislativo), se configura como um órgão essencial à justiça (Lei nº 8.625, de 12 de fevereiro de 1993).

A CF/1988 é um grande marco na história do MP à medida que promove mudanças importantes na função desempenhada pela instituição no sistema de garantia de direitos, dando a ele a função de defensor do Estado democrático e de direitos e a tutela da cidadania e dos interesses sociais. O conceito de cidadania adotado pela CF/1988 é o de um conjunto de direitos básicos e obrigações de todas/os aquelas/es que estão sujeitas/os às leis que organizam a vida em sociedade. Dessa forma, o MP deve zelar pela defesa dos direitos constitucionais das/os cidadãs/os como defensor do povo, podendo, para isso, se voltar contra qualquer poder da República ou entidade que preste serviço público ou de relevância pública.

No município de São Paulo, o MP atua por meio de Promotorias de Justiça e Grupos Especiais de atuação nas seguintes áreas: consumidor, criminal, Direitos Humanos, educação, eleitoral, pessoa idosa, infância e juventude, patrimônio público, saúde pública, urbanismo e meio ambiente. Os Grupos de Atuação são órgãos criados com a finalidade específica de aprimorar a atuação do MP em alguma área de sua função, sobretudo pela eleição de uma/um promotora/r que vai concentrar a sua atuação de forma que esta não aconteça de maneira difusa. A existência dos Grupos de Atuação precisa estar vinculada a critérios e objetivos e aos demais órgãos de execução do MP. Cabe ressaltar que, por não ser uma Promotoria de Justiça, o Grupo de Atuação pode ter um prazo finito de existência, sendo dissolvido quando houver a avaliação da não necessidade de sua existência (Lei nº 8.625, de 12 de fevereiro de 1993). Dentre os Grupos Especiais de Atuação criados no MP está constituído o Grupo Especial de Atuação em Educação (Ato Normativo n° 700, de 31 de maio de 2011).

Foi criado, pelo Ato Normativo nº 724/2012, de janeiro de 2012, o Núcleo de Assessoria Técnica Psicossocial (NAT), inaugurando a atuação profissional de psicólogas/os e assistentes sociais em uma perspectiva diferente, não se referindo apenas a casos individuais, mas com um olhar mais ampliado para a execução de políticas públicas. Segundo Arruda e Santos (2012), o NAT tem como premissa para sua criação

[...] alcançar um conhecimento abrangente e aprofundado da realidade social do Estado de São Paulo, subsidiando ações e decisões no âmbito da instituição. Assim, prima também por uma atuação técnica direcionada à análise da implementação e do funcionamento das políticas públicas, sempre com olhar mais coletivo para as demandas de atendimento individuais. (p. 3).

O Núcleo é composto por assistentes sociais e psicólogas/os, organizadas/os nas áreas de: infância e juventude; educação; habitação; urbanismo e Direitos Humanos (Ato Normativo nº 724 de 13 de janeiro de 2012).

O Geduc iniciou suas atividades em 2011 com o objetivo de potencializar e contribuir para a efetivação de políticas públicas de educação, com os pleitos que versassem sobre os direitos coletivos educacionais, não atuando em casos de violações de direito estritamente individuais, conforme Ato Normativo no 672, de 21 de dezembro de 2010. O nascimento de tal grupo de atuação no MP, voltado a uma pauta específica, correspondia a um novo modelo de atuação, que contava com promotora/r especializada/o, trabalhando com um tema específico e em contínua interlocução com gestores do município e do estado. No contexto da atuação interdisciplinar entre NAT e Geduc, vem sendo desenhada uma proposta de trabalho com a intenção de ultrapassar uma visão legalista da realidade social, considerando as questões sócio-históricas do país e buscando respeitar a história de vida dos sujeitos com quem o MP atua na concretização do direito fundamental à educação (Silva, Silva, & Pedott, 2017).

O Geduc trabalha com questões relativas à violação do direito à educação, seja por demanda espontânea (quando é acionado por algum membro ou associação da sociedade civil) ou por ação propositiva (em caso de tomar conhecimento de alguma violação por intermédio de veículos de comunicação ou por intermédio de visitas às Secretarias de Educação Municipal e Estadual e seus órgãos). Inúmeras requisições espontâneas destinadas ao Geduc, por meio dos canais públicos de atendimento, estão ligadas a violações na oferta de Educação Especial na perspectiva da educação inclusiva.

2 Método

Esta pesquisa utilizou-se da análise documental. Inicialmente, foi realizado levantamento das solicitações referentes à Educação Especial, encaminhadas ao Geduc desde a criação do grupo, em 2011, até dezembro de 2017 e que já foram arquivadas (houve, assim, o entendimento de que o motivo da solicitação encontrou seu desfecho possível). Os documentos foram obtidos por meio de acesso ao arquivo físico do MPSP (disponível no edifício sede do MP no município de SP) e do Sistema Integrado do Ministério Público (SIS MP). A permissão para acesso foi solicitada pela pesquisadora aos Promotores do Geduc, sendo autorizada a leitura dos procedimentos na íntegra, desde que realizada no local . Foi possível também ter contato com a tabela de registro dos procedimentos, elaborada por funcionários do Geduc. Todos os arquivos físicos dos procedimentos estão disponíveis para acesso público na sede do MPSP, salvo os procedimentos que tramitam em sigilo por questões de proteção das partes envolvidas.

A decisão de trabalhar apenas com procedimentos arquivados deve-se ao fato de que o arquivamento de um procedimento acontece quando há um entendimento de desfecho dado ao objeto solicitado. Assim, os procedimentos arquivados congregam um conjunto de informações ao longo de sua tramitação, que permite levantar maiores informações com a finalidade de qualificação da atuação do MP.

As informações sistematizadas foram analisadas a partir de uma leitura de caráter socioanalítico e, dessa forma, qualitativa, balizada pela metodologia de pesquisa-ação. O ponto de partida da intenção na produção de conhecimento é a inserção da pesquisadora como parte componente da instituição a ser pesquisada. Dessa forma, a pesquisa, tal como delineada, produziu e produz ação sobre o campo, com impactos diretos na atividade da qual a pesquisadora é partícipe, considerando o campo como um conjunto dinâmico e não como um objeto estanque (Thiollent, 1986).

2.1 Procedimentos

A análise envolveu incialmente o universo de 1.223 procedimentos arquivados pelo Geduc desde sua criação (2011) até o final de 2017, envolvendo objetos diversos relacionados ao direito à educação. Do total de procedimento, foram identificados 173 caracterizados como referentes ao direito à Educação Especial por terem como elemento-chave a possível violação da garantia de qualidade e acesso à educação por parte do público-alvo da Educação Especial. Contudo, não foi possível ter acesso a dez procedimentos, que não estavam disponíveis para consulta durante o período da pesquisa, chegando ao número de 163 procedimentos analisados

Para a caracterização, foi realizada a leitura de todos os documentos referentes aos 163 procedimentos supracitados, a fim de depreender com que intuito e de que maneira o Geduc tem sido acionado pelos diferentes setores da sociedade. As categorias elencadas para análise do conjunto de 163 expedientes foram escolhidas com o objetivo de se aproximar do tipo de solicitação que chega ao MP. A categoria “proponente” teve o objetivo de investigar quais são os sujeitos que buscam esse recurso para garantia de direitos. Em seguida, a categoria “tipo de solicitação” teve como propósito investigar quais são as solicitações direcionadas ao Sistema de Justiça. A categoria “rede de ensino” destinou-se a categorizar se as solicitações se referem às redes públicas municipais e estaduais ou privadas. Por fim, a categoria “variação do número de solicitações por ano” teve como objetivo principal situar a quantidade de solicitações de acordo com seu objeto ao longo dos anos estudados.

A análise do material foi articulada à literatura sobre o tema, bem como a marcos legais vigentes sobre a Educação Especial e os direitos das pessoas com deficiência. Dialogou ainda com documentos relativos a marcos legais da Educação Especial e à atuação do Geduc quanto às solicitações envolvendo a oferta da Educação Especial na perspectiva da educação inclusiva. Para tanto, considerou a análise de: a) políticas, legislação e textos que versassem sobre o direito à educação para todas/os, discutindo a atuação do MP nessa seara; b) documentação do Geduc, desde sua criação, composta pelo mapeamento das solicitações recebidas relativas ao tema da Educação Especial, com vistas a conhecer: as/os agentes das representações; o(s) pedido(s) feito(s) ao MP; o encaminhamento dado a partir desse recebimento.

3 Resultados e discussão

Observou-se que o tempo médio de tramitação das solicitações no Geduc tem sido de dois anos e meio. A partir do estudo dos procedimentos, verificou-se que tal tempo não estava relacionado à demora do MP para iniciar sua atuação a partir da apresentação de uma queixa, mas com o desenvolvimento de atividades de acompanhamento das situações. Isso quer dizer que, nesses dois anos e meio, várias intervenções foram realizadas, como solicitação de informações às partes implicadas na suposta violação de diretos, reuniões com profissionais gestoras/es das redes de ensino envolvidas, visitas às unidades educacionais, audiências, audiências públicas, abertura de espaços para discussões, consulta a pesquisadores da área da Educação Especial, entre outras atuações.

O arquivamento das solicitações referia-se costumeiramente ao esgotamento de todos os pedidos feitos ao longo da tramitação no Geduc, por exemplo: a acessibilização do espaço com a execução de reformas e destinação de suportes para o atendimento das/os alunas/os em classes regulares. Foi possível ainda averiguar situações em que o arquivamento de um procedimento pontual ocorria em razão da abertura de outro procedimento mais amplo, com abrangência de toda a rede de ensino, como a abertura de um Inquérito Civil (IC) destinado a apurar e garantir, no âmbito da Secretaria Municipal de Educação (SME), a acessibilidade arquitetônica de todas as unidades educacionais. Além disso, foi instaurado um IC para verificar a acessibilidade física de todas as edificações de todos os campi da Universidade de São Paulo (USP) e um Termo de Ajustamento de Conduta para que a Secretaria Estadual de Educação (SEE) apresentasse cronograma de acessibilidade física de todas as unidades educacionais.

Quanto às/aos proponentes das solicitações ao MP, apreendeu-se que 64,4% são familiares e estudantes, 27% são instituições do Estado, incluindo, nessa categoria, sobretudo, o MP e a Defensoria, a partir da realização de fiscalizações em instituições e conselhos tutelares. Destarte, a/o principal interlocutora/r do MP tem sido a família, com baixa representação das/os próprias/os estudantes que correspondiam a apenas duas das 105 solicitações do grupo de familiares e estudantes.

A história dos movimentos sociais representativos das pessoas com deficiência pode ser dividida em duas fases distintas. Inicialmente, a liderança desses movimentos foi ocupada pelas famílias e por profissionais, para, então, em um segundo momento, contar com a participação direta das próprias pessoas com deficiência. Contudo, o avanço do primeiro para o segundo, além de muito recente, não significou a superação do momento inicial (Maior, 2015). Tal aspecto auxilia-nos a compreender a presença incipiente de movimentos sociais de pessoas com deficiência que apresentam solicitações ao MP.

Grande parte das solicitações analisadas referia-se à Educação Infantil e ao Ensino Fundamental, sendo escassas as que envolviam outras etapas da Educação. Nesse sentido, as informações do Censo 2018 (Tabela 1) apontam uma progressiva diminuição do número de matrículas ao longo do ciclo de escolarização das/os alunas/os público-alvo da Educação Especial na cidade de São Paulo.

Tabela 1 Número de matrículas do município de São Paulo na Rede Estadual e Municipal em 2018 na Educação Especial. 

  Educação Infantil Ensino Fundamental Ensino Médio Educação de Jovens e Adultos (EJA) Presencial TOTAL
  Creche Pré-escola Anos iniciais Anos finais   Fundamental Médio  
Estadual 0 0 4.163 4.201 5.234 4 426 14.028
Municipal 318 2.837 7.158 6.640 100 1.284 0 18.337

Fonte: Elaboração própria com base nos dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa Educacionais Anísio Teixeira ([INEP], 2018).

Tal quadro pode balizar duas hipóteses, não excludentes, sobre o baixo número de solicitações ao Geduc nas etapas finais dos processos de escolarização: a primeira seria a de que o número de solicitações é reflexo direto da diminuição do número de alunas/os com deficiência no Ensino Médio, EJA, Ensino Profissionalizante e Educação Superior. A segunda refere-se ao pouco acesso das/os jovens estudantes público-alvo da Educação Especial ao Ministério Público. Quanto à segunda hipótese, é importante retomar que os anos iniciais do percurso de escolarização estão direcionados à infância, enquanto os anos finais da Educação Básica (Ensino Médio e etapas seguintes) são endereçados a jovens e adultos.

A juventude ocupa um lugar de protagonismo na organização dos movimentos estudantis para reivindicação de direitos, como um momento de transição do mundo infantil, mergulhado no particularismo dos grupos de parentesco, para o mundo adulto e da cidadania plena (Groppo, 2000). Assim, as/os jovens são agentes importantes na reivindicação de seus direitos. Entende-se ser necessário um estudo sobre as barreiras ao acesso desse grupo de jovens estudantes público-alvo da Educação Especial ao MP e, mais especificamente, ao Geduc, levando em conta que o próprio desconhecimento desse lugar de destinação de solicitações referentes à violação de direitos educacionais pode se configurar como uma barreira.

Com relação à baixa expressividade de solicitações realizadas por trabalhadoras/es da educação, é possível inferir sua relação com os processos de sofrimento vividos por profissionais da educação em decorrência da imersão dos sujeitos em contextos marcados por uma grande sobrecarga de trabalho, escassez de espaços de formação e trocas entre pares, baixa remuneração e consequente acúmulo de cargos (Thiele & Ahlert, 2007). Como resultado desse cenário, as/os trabalhadoras/es vivenciariam solidão na execução de suas práticas laborais, desconectando sua atividade diária da importância de participação em espaços de controle social e do aporte de recursos necessários para a consolidação da política pública de garantia do direito à educação.

Sobre a rede educacional a que se referem as solicitações, existe prevalência de solicitações relacionadas à rede estadual, correspondendo a 42,59% contra 29,01% da rede municipal, 22,22% da rede privada e 6,17% de escolas de educação exclusiva. Apesar da leitura de que o número elevado de solicitações relativas à rede estadual poderia relacionar-se ao maior volume da rede no município de São Paulo, ao comparar as informações apenas sobre matrícula do público-alvo de Educação Especial, foi possível apreender que o número é menor na rede estadual do que na municipal. Assim, existe um indicativo de maior dificuldade nos processos de escolarização desse público em unidades educacionais da rede estadual. Contudo, a motivação para essa proeminente dificuldade é um elemento que carece de aprofundamento, indicando a necessidade de estudos sobre a organização da rede educacional estadual no estado de São Paulo para atendimento ao público-alvo da Educação Especial.

Na análise do número de solicitações por ano da pesquisa, percebeu-se grande concentração de solicitações recebidas logo após a criação do Geduc (em 2011), quando comparado ao número de solicitações anteriores a constituição do Grupo Especial de Atuação, recebidas inicialmente por outras promotorias do MP e, posteriormente, encaminhadas ao Geduc, conforme sintetizados na Figura 1.

Fonte: Elaboração própria.

Figura 1 Variação por tipo de solicitações ao Geduc de 2003 a 2017. 

Por um lado, esse resultado pode ser um indicativo de que a configuração de um espaço especializado dentro de uma instituição com a atribuição de garantir direitos possibilita à população endereçar seus pedidos relacionados ao direito à educação por parte do público-alvo da Educação Especial. Por outro lado, a diminuição do número de solicitações ao longo dos anos, no período estudado, pode ter uma relação direta com a forma como o Geduc vem trabalhando com as questões envolvendo a garantia do direito à educação do público-alvo da Educação Especial, privilegiando a inserção dos pedidos em procedimentos de acompanhamento de toda uma rede educacional (municipal e estadual) em vez de instaurar um novo procedimento a cada solicitação recebida. Além disso, os procedimentos permanecem em andamento por um período médio de dois anos e meio, significando que as solicitações recebidas nos últimos anos não devem aparecer na pesquisa, a qual levou em conta apenas procedimentos arquivados. Com relação ao tipo de solicitação endereçada ao Geduc, a grande maioria era relacionada à acessibilidade e aos suportes para o atendimento em classes comuns de unidades educacionais regulares, sendo apenas 5,5% solicitações relativas à matrícula em espaços educacionais exclusivos. Dessas solicitações de atendimento em classes comuns, 47,9% estavam relacionadas a suportes para o processo de escolarização, seguidos por acessibilidade arquitetônica com 25,2%, acessibilidade atitudinal com 17,2% e práticas administrativas com 4,3%.

Tais resultados derrubaram a hipótese inicial da pesquisadora de que o grande objeto de atuação do MP era a solicitação por escolas exclusivas. Como trabalhadora do campo da educação, frequentando espaços nos quais, por muitas vezes, familiares de pessoas com deficiência, especialmente as/os familiares de alunas/os com Transtornos do Espectro Autista (TEA), têm se manifestado publicamente solicitando - às vezes, exigindo - escolas exclusivas para suas/seus filhas/os, a pesquisadora inferiu serem comuns os pedidos para retirada dessas crianças dos espaços de educação regular. Contudo, de acordo com os resultados encontrados, esse pedido não é recorrentemente endereçado ao Geduc, e, portanto, ao MP no município de São Paulo. Ao contrário, a pesquisa mostra que as solicitações são quase sempre referentes a suportes para a permanência escolar dessas crianças e dessas/es adolescentes.

A partir desse complexo cenário, no qual combater violação de direitos está intimamente relacionado a induzir o Executivo a construir políticas públicas de enfrentamento ao capacitismo em relação à pessoa com deficiência, foram analisadas as estratégias e as ferramentas de trabalho utilizadas pelo Geduc e em interlocução com profissionais do NAT. A análise teve como base a indicação das/os principais agentes envolvidas/os na atuação do MP durante o trâmite de um procedimento. Contudo, cabe ressaltar que esse estudo foi apenas um recorte, elegendo algumas categorias, sendo ainda possível uma série de outras análises. A presente pesquisa não pretendeu esgotar a produção de conhecimento que a leitura desses procedimentos permite.

Para explicitar como o Geduc lida com cada uma das situações, foi elaborado o gráfico a seguir (Figura 2) como ferramenta que condensa os dois eixos de análises, correlacionando as articulações efetivadas entre o MP e os tipos de solicitações endereçadas.

Fonte: Elaboração própria.

Figura 2 Sistematização das atuações do MP por tipo de solicitação. 

A Figura demonstra quais as estratégias de atuação do Geduc face ao tipo de solicitação recebida. Destaque-se o fato de que um mesmo procedimento foi inserido em mais de uma categoria de articulação. Assim, diante de uma solicitação recebida, o Geduc utilizava-se das seguintes estratégias: indeferimento (quando a solicitação já foi atendida ou em situações nas quais o pleito inicial não fazia parte do conjunto de atribuições do Geduc); articulação das redes municipais e estaduais (fomento à parceria entre redes municipais e estaduais para resolução das solicitações); articulação intersetorial (atuações na articulação entre pastas distintas, como saúde, assistência social e educação); articulação envolvendo família de alunas/aos; atuação envolvendo diretamente as instâncias gestoras das Secretarias de Educação; atuação envolvendo outros setores do MP; atuação envolvendo instituições do terceiro setor; atuação direta com as unidades escolares envolvidas nas solicitações.

Por meio da análise dos setores envolvidos na atuação do Geduc, verifica-se a preponderância das atuações junto a órgãos centrais gestores das Secretarias de Educação (municipal e estadual) e na esfera extrajudicial. A atuação junto às instâncias gestoras das Secretarias de Educação pode estar relacionada ao fato de esse grupo de atuação possuir função precípua em nível da tutela coletiva e não de direitos individuais.

No caso do estudo das atuações específicas do Geduc em questões envolvendo Educação Especial, apreendeu-se que, ao receberem uma solicitação, as/os profissionais do Geduc inicialmente realizavam uma escuta da/o proponente. Requeriam-se às unidades educacionais informações a respeito de sua organização para o atendimento das/os alunas/os público-alvo da Educação Especial. A solicitação envolvia a indicação dos serviços e dos suportes que compunham o Atendimento Educacional Especializado (AEE), bem como a elaboração dos planos de AEE.

Portanto, a intervenção do Geduc incidia sobre elementos que, de acordo com a PNEEPEI (2008) vigente, já deveriam estar presentes na cena escolar. As estratégias utilizadas contemplavam ainda o envolvimento das/os trabalhadores das Supervisões de Ensino para que fornecessem ao Geduc informações acerca dos suportes ofertados às unidades educacionais para a estruturação da oferta do AEE. Quando verificada a inexistência desse aparato nas unidades educacionais, instâncias de gestão das Secretarias eram contatadas, para eleição de estratégias para fiscalização.

Por fim, observou-se que a atuação do Geduc estava voltada à garantia de uma oferta educacional na perspectiva inclusiva a todos os alunos público-alvo da Educação Especial, alinhando-se ao conjunto de normativas e de diretrizes educacionais vigentes. A garantia de uma educação inclusiva também tem como baliza a produção acadêmica na área que tem demonstrado a importância da efetivação do direito educacional para todas/os. Uma pesquisa do Instituto Alana em parceria com a ABT Associates aponta que:

Existem evidências claras e consistentes apontando que ambientes educacionais inclusivos podem oferecer benefícios significativos de curto e longo prazos aos alunos com e sem deficiência. Um grande número de pesquisas indica que estudantes incluídos desenvolvem habilidades mais fortes em leitura e matemática, tem maiores taxas de presença, são menos propensos a ter problemas comportamentais. (Instituto Alana & ABT Associates, 2016, p. 2).

4 Conclusão

O ponto inicial da realização desta pesquisa foi que se verificou a ausência de estudos de sistematização e de análise da atuação do Ministério Público quanto a sua função na garantia do direito à educação ao público-alvo da Educação Especial, após a realização de uma revisão da literatura sobre o tema. Assim sendo, este é o primeiro trabalho sobre um Grupo de Atuação do MPSP com função específica na área da educação, o que permitiu uma maior concentração das informações e, consequentemente, maior possibilidade de sistematização e análise. Com a concentração de informações, os elementos reunidos nesta pesquisa trouxeram indicativos relevantes para a qualificação das solicitações endereçadas ao MP, bem como a caracterização dos sujeitos solicitantes, suas principais requisições, os encaminhamentos realizados.

A atuação do Geduc apresenta elementos indicativos do compromisso com a suplantação do modelo de MP demandista, que atende às solicitações endereçadas às promotorias de justiça de forma burocrática e sem envolvimento dos agentes sociais implicados na questão, para o MP resolutivo, que busca criar espaços de controle social de forma a balizar a sua atuação na defesa dos direitos sociais, como apontado por Goulart (2013). Ao trabalhar sob a premissa de que o conhecimento da realidade, por meio da interlocução com as/os diversas/os agentes sociais, permite a qualificação do trabalho direcionado à garantia de direitos, elegem-se estratégias orientadas à indução das políticas e não de decisões arbitrárias e divergentes do que está disposto nelas. A atuação passa a não estar mais centrada em respostas pontuais, visando a responder às solicitações de modo imediatista e instrumental, sem problematizar suas origens e seus sentidos. Busca, ao contrário, articulação de diferentes agentes sociais envolvidos na garantia do direito à educação por parte do público-alvo da Educação Especial, produzindo implicação institucional para a construção de soluções conjuntas, a partir dos parâmetros estabelecidos pela política pública e pelos Direitos Humanos.

Assim, a partir da pesquisa, entende-se que o direcionamento do trabalho do MP para a indução das políticas públicas e a promoção dos Direitos Humanos implica, necessariamente, a diferenciação entre queixa e demanda. Partindo-se da análise dos objetos das solicitações ao Geduc, apreende-se que as/os proponentes das solicitações se queixam majoritariamente da ausência de materiais, trabalhadoras/es especializadas/os e estrutura, sendo os pleitos por suportes para escolarização em classes comuns de escolas regulares e acessibilidade os mais frequentes. Recorre-se então à teoria freudiana para marcar importante distinção entre queixa formulada e demanda subjacente (Quinet, 2011). A queixa será endereçada a um objeto específico de satisfação (nesse caso, a contratação de uma/um profissional ou a realização de adequação de estrutura), enquanto a demanda será referente ao conteúdo existente para além do já formulado. A demanda só se constitui no encontro daquele que se queixa com o outro a quem direciona seu pedido, tendo como precedente o não cumprimento de algo anteriormente ofertado. Transpondo tal diferenciação para o contexto pesquisado, é possível considerar que aquilo que se pode materializar como solicitação ao MP refere-se a recursos, infraestrutura e profissionais, em outras palavras, àquilo que apresenta uma dimensão concreta: a rampa, a sala de recursos multifuncionais, a/o profissional de apoio escolar.

Cabe ao MP garantir espaços de diálogo para a construção do entendimento a respeito de que barreiras estão agindo no impedimento do direito à educação, a fim de criar situações de mediação nas quais as/os diferentes agentes institucionais possam compreender os sentidos das solicitações, reinterpretando-as à luz das barreiras e das diferentes perspectivas sobre o fenômeno em questão, não atuando de maneira instrumental e imediatista. Para ilustrar a leitura da atuação do Geduc na transposição da queixa, apresenta-se o conteúdo de alguns procedimentos analisados. Há procedimentos destinados à investigação de violação de direitos a partir da narrativa de familiares acerca da ausência de profissionais de apoio escolar durante o período de aula. Após o contato do Geduc com a escola, foram encontradas respostas das/os profissionais das unidades educacionais argumentando a não existência de supervisão direta e constante de adulto como estratégia adotada visando à autonomia da/o estudante. Nesses casos, os membros do Geduc desempenharam função de mediação, criando espaços de diálogo entre os sujeitos envolvidos na situação, mas não necessariamente na resposta direta ao pedido feito.

Em outros casos, também envolvendo pedidos por profissionais de apoio escolar, foram encontradas atuações com outro direcionamento, envolvendo cobranças a órgãos centrais da gestão das redes de ensino quanto à contratação de mais profissionais. Esse direcionamento muitas vezes partiu de relatos produzidos em reuniões e/ ou visitas em que as/os profissionais das unidades educacionais apontavam a existência da/o profissional de apoio escolar como, naquele caso, um fator determinante para a frequência da/o estudante na instituição. Assim, uma atuação que privilegiasse apenas uma resposta instrumental e imediatista à queixa formulada desconsideraria a necessidade de diálogo para explicitar a real demanda, a qual envolve, necessariamente, diálogo e reformulação da forma de operar nos espaços educacionais, incorporando contribuições de familiares, estudantes, educadoras/es e do MP. Segundo Chaui (1980):

Há, portanto, um discurso do poder que se pronuncia sobre a educação definindo seu sentido, sua finalidade, forma e conteúdo. Quem, portanto, está excluído do discurso educacional? Justamente aqueles que poderiam falar de educação enquanto experiência que é sua: os professores e os estudantes. (p. 27).

Em vez de respostas imediatistas, requerendo a execução da solicitação por parte das/os representadas/os, foram encontradas ações mais demoradas de promoção de diálogo sobre o problema apresentado. Parece haver, portanto, predominância da utilização de estratégias democráticas e participativas, envolvendo diferentes agentes implicadas/os no processo. Como exemplo, pode-se citar a instauração de procedimentos de acompanhamento de política pública, com o intuito de verificar organização da modalidade de educação especial na perspectiva inclusiva para redes de ensino inteiras. No sentido da promoção de articulação com movimentos sociais, profissionais e estudantes foram realizadas escutas sociais e audiências públicas, com a elaboração do Programa de Atuação do Geduc para o biênio 2018-2020, com a apresentação de seis programas executivos prioritários na atuação do grupo, entre eles um relativo à Educação Especial, com o objetivo de “garantir a oferta de educação especial inclusiva de qualidade” (São Paulo, 2018, p. 95).

Com base no exposto, é possível afirmar que o Geduc se configura como avanço conquistado na promoção e na ampliação da atuação qualificada do MP na indução de políticas públicas, posto que o conhecimento do campo de atuação permitiu a formulação de estratégias balizadas nas conquistas advindas das lutas empreendidas pelos movimentos sociais e assentadas na existência de um corpo normativo vigente. Percebe-se que o avanço da atuação do MP do nível da solicitação para o nível da demanda subjacente é possível, sobretudo, pela construção de um trabalho do MP mais próximo às/aos agentes imbricadas/os nas garantias de direitos.

Contudo, cabem algumas considerações, com a pretensão de suscitar o debate sobre elementos importantes e que, se enfrentados, poderiam resultar na qualificação ainda maior do Geduc e, consequentemente, do MP, na indução de políticas públicas para essa modalidade educacional. A atuação do Geduc é voltada à garantia do direito à educação, de acordo com o Ato Normativo que o constitui (Ato Normativo n° 700, de 31 de maio de 2011). Nesse sentido, foram encontradas poucas atividades envolvendo a promoção de articulação intersetorial, junto a gestoras/es das políticas de saúde, assistência, mobilidade urbana, cultura, entre outras. A fragmentação da atuação com as políticas envolvendo os direitos sociais é uma característica da organização do próprio MP, uma vez que as/os promotoras/es atuam separadamente com questões da saúde, da infância e da juventude, dos Direitos Humanos, da habitação e do urbanismo, do patrimônio público, como já apontado anteriormente nesta pesquisa, no qual foi feita uma exposição da organização institucional do órgão.

No que concerne especificamente ao tema desta pesquisa, a garantia de fruição dos direitos das pessoas com deficiência precisa avançar para a construção de estratégias de atuação entre as diversas promotorias do MP, pois o acesso a espaços de promoção de saúde, aos programas de assistência, à mobilidade e à locomoção na cidade, por exemplo, é elemento fundamental para a concretização do direito à educação.

Outro aspecto entendido como prioritário para a atuação do MP refere-se à concretização da oferta de espaços de controle social e reivindicação de direitos desde os serviços da educação, a serem ocupados pelo público-alvo da Educação Especial, e não apenas pelos familiares. O avanço na organização de uma política educacional fundada no modelo social da deficiência deve garantir a autonomia com o objetivo de discutir, avaliar e reivindicar recursos para garantir seu direito à educação. Isso passa, por exemplo, por estudos e discussões sobre a participação das/os alunas/os público-alvo da Educação Especial em instâncias de gestão democrática das escolas, como grêmio estudantil, entre outros espaços possíveis.

Silva (2018) afirma a necessidade de considerar-se que, em matéria de políticas públicas com enfoque na atuação extraprocessual, as ações por parte dos membros do MP não devem girar em torno de vontades individuais e isoladas, a fim de não se correr o risco de uma atuação desarticulada, ou até divergente, o que seria extremamente prejudicial à garantia de direitos sociais. O autor afirma ainda que a responsabilidade pela transformação da realidade brasileira, tal qual afirmado na CF/1988, não poderá ser efetivada privilegiando-se uma ação tutelada da sociedade, com ações para ou em nome de, mas, sim, com a sociedade e na perspectiva do fortalecimento da cidadania, daí a importância de o MP intensificar seu conjunto de ações de diálogo diretamente com as pessoas com deficiência.

Considerando-se a baixíssima presença de matrículas do público-alvo da Educação Especial no Ensino Médio, na Educação de Jovens e Adultos, no Ensino Profissionalizante e na Educação Superior, destaca-se a necessidade da construção de processos de trabalho que atuem diretamente sobre o grave problema da descontinuidade dos percursos de escolarização nos anos finais da Educação Fundamental.

Explicita-se a necessidade de o MP atuar diante de demandas pela organização de suportes para acessibilização nas diversas esferas envolvidas no cotidiano escolar, implicando a assunção da premissa de que todas as pessoas têm direito à educação, a partir de processos inclusivos (Decreto no 6.949, de 9 de julho de 2009), sendo necessária a mobilização coletiva para o enfrentamento das diversas ordens de barreiras atuando de forma a impedir ou prejudicar a fruição desse direito.

Ressalta-se, por fim, a importância da realização de pesquisas de curto, médio e longo prazo, acerca dos impactos produzidos pela atuação do Geduc na busca da solução de questões envolvendo violações do direito à educação. O presente trabalho teve como recorte a análise da atuação de um dos órgãos agentes do Sistema de Justiça, sendo, contudo, necessário ofertar espaços aos sujeitos envolvidos diretamente nas intervenções do MP para analisar, a partir de sua perspectiva, os efeitos das ações produzidas pelo MP. Sugere-se ainda a realização de estudos com o objetivo de acompanhar como os sujeitos que vivenciam situações de violações do direito à educação têm percebido a atuação do Ministério Público.

4Ato 672-PGJ-CPJ, de 21 de dezembro de 2010.

5Ato 672-PGJ-CPJ, de 21 de dezembro de 2010.

6Aqueles não pertencentes a um único indivíduo, atendendo a um grupo de pessoas ou a coletividade afetada por determinada situação.

7A íntegra do material estudado e o processo de categorização estão disponíveis em Pedott (2019).

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Recebido: 30 de Setembro de 2019; Revisado: 04 de Fevereiro de 2020; Aceito: 22 de Fevereiro de 2020

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